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“Brúsquio: Quer que Platão seja um ignorante, Aristóteles um asno, e seus seguidores sejam insensatos, estúpidos e fanáticos? Fracastório: Não afirmo que esses sejam cavalos e aqueles asnos, que esses sejam macacos e aqueles símios, como você quer me fazer dizer. Mas, como eu disse desde o começo, eu os considero heróis da terra. Todavia, não posso acreditar neles sem uma prova, nem admitir aquelas proposições, cujas constatações, como você deve ter percebido, se não estiver cego nem surdo, são tão expressamente verdadeiras”. Como visto, Bruno refundiu conceitos, teve a presciência da cultura universal de séculos depois, daí o crescente ódio dos poderosos e dos sufocados pelos dogmas. O choque dos contrários, que cria elementos de ativação e revolta, as noções de verdade absoluta e verdade relativa, o infinito, a vida extraterrestre e outras posições rejeitadas pela igreja de Roma foram tratados pelo livre pensador. Quando, nos diálogos, alguém pergunta quem poderia ser o juiz dessas concepções incoincidentes com as verdades da época, Bruno responde através de um personagem: “Todo juízo reto e atento, qualquer pessoa discreta, que não se abstine quando perceber que foi convencida e está impotente para defender as razões daqueles e resistir às nossas”. Era demais para a intolerância então predominante. Foi torturado, os carrascos queimam-lhe o corpo com ferro em brasa e quebramlhe os ossos. Pouco depois, vão levá-lo à fogueira. Seu único crime: ter escrito um livro considerado nocivo aos dogmas. Virou mártir aos olhos dos que propugnam pela liberdade de espírito como bem maior.

PEDRO GORDILHO

virtude da qual me sinto livre na sujeição, feliz no sofrimento, solto na indigência e vivo na morte. Aquela em virtude da qual não invejo os que são servos na liberdade, sofrem no prazer, são pobres na riqueza e mortos em vida, porque trazem no próprio corpo os grilhões que os prendem, no espírito o inferno que os oprime, na alma o erro que os debilita, na mente a letargia que os mata. Não há por isso magnanimidade que os liberte, nem ciência que os avive, nem esplendor que os abrilhante”. O caráter manifestamente contestador de Bruno vai longe. Com efeito, em conformidade com certas teses da teologia, seria inconcebível a existência de vida humana em outras galáxias. Pelo mistério da encarnação, a segunda pessoa da Santíssima Trindade veio à Terra, assumindo forma humana, para redimir os homens do pecado original e abrir os caminhos para a salvação eterna. O homem, criado por Deus (alma e corpo, essência e existência), pecou contra seu criador, comprometendo todo gênero humano. Se Cristo veio a este planeta para salvar o homem, a decorrência lógica é que não existem homens em outros planetas. Em seu livro, Bruno admite também a existência de vida em outros planetas, como se verifica através do seguinte diálogo: “Brúsquio: Os outros mundos estariam habitados como este aqui? Fracastório: Se não assim ou melhor, ao menos não pior. Porque é impossível que uma inteligência racional e um pouco atenta possa imaginar que estejam privados de semelhantes ou até melhores moradores os inúmeros mundos, que a nós se manifestam iguais ou menores que o nosso”. E em outro trecho do diálogo, demonstrando Bruno seu forte respeito à ciência:

O sistema coperniciano representado por Trovadir (Biblioteca Nacional de Paris)

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