Flaubert #13

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alessandro garcia III giovanni arceno guilherme araujo III guilherme scalzilli jeferson tenório III jonatan silva III jØrge pereira juliana aguiar III lira filho III lucas barroso ludmila rodrigues III marcella lopes guimarães mariel reis III morena madureira III victor hugo turezo

ANO II

# 13 REVISTA DE CONTOS


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REVISTA DE CONTOS


© 2015 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2015 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 12 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2015 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os textos desta edição são copyright de seus respectivos autores /// © alessandro garcia // giovanni arceno // guilherme araujo // guilherme scalzilli // jeferson tenório // jonatan silva // jØrge pereira // juliana aguiar // lira filho // lucas barroso // ludmila rodrigues // marcella lopes guimarães // mariel reis // morena madureira // victor hugo turezo ///


NESTA EDIÇÃO DE

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flaubert

REVISTA DE CONTOS

alessandro garcia

estupendas são as tardes na cidade

giovanni arceno

a próxima parada é o sujo

guilherme araujo água marrom

guilherme scalzilli cocô

jeferson tenório

Estela sem Deus (Fragmentos)

jonatan silva Vermelho frágil

jØrge pereira Provocações

juliana aguiar uma noite de natal

lira filho flores

lucas barroso

vivendo em hollywood

ludmila rodrigues joana e os dias

marcella lopes guimarães os óculos

mariel reis a aula

morena madureira A noiva e seu pai

victor hugo turezo

dançando com garrafas vazias na banheira de tijolos


FLAUBERT

REVISTA DE CONTOS

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Os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.

ano 2 III # 13 III BRASIL 2015


A bimestralidade da revista flaubert não arrefeceu o ímpeto dos editores. Reunimos, com mesma alegria, contistas expressivos e discretos acerca do fazer ficcional; ciosos com a linguagem, cercam-se de argumentação sedutora, munidos de instrumentos afiados para desvelar mundos com a melhor palavra. Fora da ficção não há salvação, apregoemos como bons praticantes de uma seita não tão secreta e uma irmandade não tão unida. No entanto, mesmo em cenários que parecem desolados surgem os samaritanos com quem podemos contar, sem risco de traição por trinta moedas ou a tal punhalada... embora existam centenas de brutus na realidade do país. O editorial encolheu, mas a boa vontade não. Paz na terra aos homens de boa vontade, apregoemos mais uma vez. E condenemos a violência seja lá qual for, embora disfarçada de bons modos apenas para adentrar a sala de jantar. MARIEL REIS III EDITOR


Um autor, em seu livro, deve ser como Deus no universo, presente em todos os lugares e visĂ­vel em nenhum.

Gustave Flaubert, 1852


Estupendas são as tardes na cidade alessandro garcia

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Assim, então: você encontra ex-um colega na rua, um destes que não via há tanto tempo. E não é porque vocês tivessem algum tipo de afinidade, não é nada disto. É só a coisa de Claro, vamos jantar juntos, relembrar aquela época! No meio do caminho você se dá conta que nem terão tanto sobre o que falar – que episódios em comum partilharam? Quem era mesmo aquele outro que estava sempre com vocês quando saiam para apostar nos cavalos? Seus pensamentos são interrompidos pela presença de uma mulher que caminha com os dois enquanto procuram um restaurante por ali. Não tinha tomado consciência: é uma mulher de idade próxima à sua e vai de braço dado com seu ex-colega. É a esposa dele, estava dentro da farmácia enquanto vocês dois se cumprimentavam na calçada com uma efusão que tinha mais de inconsequência do que de verdade. Embora seu ex-colega não faça qualquer esforço para apresentá-la formalmente, você meneia sua cabeça, gentil, a mão no topo do chapéu. Ela esboça um meio sorriso, tímida em excesso, triste em demasia. Parece que andou chorando, você percebe. Percebe também um roxo já um tanto esmaecido sob o olho direito, mas vá lá, tantas formas há para se machucar assim. Alergia. O restaurante não é de nenhum tipo que você escolheria, mas com a mesma veemência com que conduz a esposa para dentro, seu


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ex‑colega não tem mais do que seis palavras para convencêlo de que é o suficiente para vocês. O restaurante. Onde alguém vem pegar seu chapéu e o gabardine e as mulheres parecem todas vulgares demais. Um instante e já estão escolhendo o filé de pescada com a salada de vagem; seu ex-colega é quem pede pela esposa, que comenta, olhando assim com tanto interesse para os bordados da toalha de mesa, que está ótimo, pode ser sim. Você não sabe bem em que instante começa a acontecer, é provável que tenha se instaurado enquanto você pediu licença para ir ao banheiro. O que acontece é que agora seu ex-colega está gritando com a esposa e nem parece se importar com todos os olhares à volta, as cabeças se movimentando e as expressões de desaprovação. Não que você não tente apaziguar, perguntar O que é isto […….]? (você se dá conta que há algum tempo vem substituindo o nome de seu ex-colega – que não conseguiu lembrar qual era, desde que o encontrou – por expressões como “meu camarada”, “meu chapa”, “meu velho”. Então, tem um quê de cômico sua pergunta O que é isto, meu velho?). Seu ex‑colega faz pouco caso de sua intervenção, resmunga coisas como É uma vagabunda, mesmo; Porca do rabo gordo; Falastrona ignorante e outras expressões que lhe escapam, porque você não quer lembrar de coisas assim. Uma desculpa qualquer já é o suficente para sair dali, você está a caminho de casa, nem experimentou o filé de pescada e muito menos a salada de vagem. Durante três ou cinco semanas a lembrança permanece com você Como pode tratar uma esposa assim? Como ela aceita?, mas em breve suas lembranças são obliteradas por um novo filme que entra em cartaz e aquele artigo do sujeito insistindo que bebês não precisam de chupeta, é um vício que todos deveriam evitar para seus filhos. Passam-se cinco ou sete anos e bem daquele jeito que aconteceu da primeira vez, saído não se sabe de onde, você encontra o mesmo ex-colega em uma rua qualquer. Mais calvo e gordo, mas não há dúvida: é ele mesmo. Ao lado, a esposa é a mesma, assim como sua expressão. Tímida, outra vez mal retribui seu cumprimento. Hoje, você nem sabe dizer porque, como acontecem estas coisas? O fato é


que meia hora depois você está no apartamento dos dois, mastigando nozes quebradas com um destes quebradores de nozes e bebendo vodka enquanto uma criança berra em um berço que fica por ali, perto do aquecedor da sala. A esposa do seu ex-colega tenta de todas as maneiras fazer a criança parar de chorar, mas não há nada que ponha fim há tanto berreiro. Seu ex-colega, você vê, está perdendo a paciência. Como ele insistia para que vocês assistissem a um jogo na televisão, com o berreiro da criança não é possível ouvir nada. Como a mesma truculência você presenciou da outra vez, seu ex-colega chama a esposa de Inútil, Vaca gorda que não é capaz de cuidar de uma criança e coisas deste tipo aí. Ela chora, você ouve suas fungadas e sabe que ela chora. O que ela faz então é ir para o fundo do apartamento, trancar‑se no quarto e em breve não ouvimos o choro da criança. Não demora muito para que ela retorne, a esposa do seu ex-colega retorna, já bem tranquila e com um semi-sorriso nos lábios. É um semi-sorriso, não resta dúvida, e ele ainda permanece ali, nos lábios, quando ela fala Em breve o filé de pescada fica pronto. Ah, fiz também salada de vagem. Como naquela noite, lembra? Que noite agradável aquela!

alessandro garcia nasceu em Porto Alegre (RS), em 1979. É autor de A sordidez das pequenas coisas, finalista do Prêmio Jabuti. Editor da Flaubert, finaliza o romance A zona da invisibilidade. www.alessandrogarcia.com


A próxima parada é o sujo giovanni arceno

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A maioria dos hindus é cremada, lembrei disso enquanto enfiava a pá na terra. O corpo do morto é levado numa padiola até o crematório. Caso o falecido seja chefe de família, o primogênito faz o trajeto todo segurando uma tocha. Durante o ritual de enterro, o choro não é recomendado. Os budistas também mencionam essa última parte, pois chorar pode perturbar a partida do ex-vivo para o além. Independente do meu respeito profundo às divindades e às suas tradições, quaisquer elas sejam, foi impossível segurar o formigamento dentro dos olhos. Antes de me dar conta, sentia as gotas d’água caindo pelo meu rosto como o toque de um dedo estranho, de cima abaixo da bochecha, e então sentia o sal na ponta dos lábios. Eu empurrava a pá contra a areia seca furiosamente, cuidando para não desequilibrar e cair em cima do meu pai, deitado ao meu lado, sem estar devidamente embrulhado por um saco ou um cobertor. Caído, cru, com a pele já embranquecida. O corpo estava frio, mas isso não foi muito traumático, pois desde que me conheço por gente lembro do meu pai com a pele gelada, independente da situação, seja uma memória de um abraço ou dele passando a mão no meu pau. A primeira vez que ele veio com esse negócio de estupro foi duas semanas após a mãe fugir de casa. Na época, eu entendia que ele devia estar triste e com saudade de vê-la, pois eu também fiquei (muito), então aceitei que ele enfiasse aquele pedaço nojento de carne dentro de mim,


apesar da dor de ser rasgado. Prensado à parede, lembro que virei em sua direção para conferir se esboçava um sorriso ou alguma cara de satisfação, mas ele estava de olhos fechados, com os lábios comprimidos. Terminou quando soltou um jato quente dentro da minha bunda. Largou aos poucos os meus ombros, onde se apoiava, e foi para a cozinha. Me deixou ali pingando pelas pernas porra e sangue. Depois dessa noite eu fiquei uns dois ou três dias sem ver ele, que era geralmente o que acontecia quando tinha um cliente que morava em outra cidade. Nunca precisou se preocupar comigo nas ausências, sabia que a mãe tinha me ensinado a se virar super bem. Mas por via das dúvidas meu pai havia me exercitado, desde muito cedo, a 1) desenhar casas como ele e 2) cobrar caro por estes desenhos. Isso, ele me dizia, asseguraria a minha existência.

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Durante muito tempo, fui destaque nas aulas de artística graças aos desenhos das casas que eu fazia, com traços matemáticos. Desenhava-as vista de várias perspectivas, de frente, com profundidade, vista de cima (igualzinho como Deus vê a todos nós, pensava). Com o tempo o gosto coletivo pelas minhas artes foi enferrujando, porque casas eram basicamente a única coisa que eu sabia desenhar, e fazia isso compulsivamente, como um viciado. Os professores diziam que eu precisava estimular minhas habilidades com outras inspirações, porém toda tentativa de produção minha que não fosse uma casa, era um fracasso. Quando meu pai voltou de viagem, pensei que criaria entre nós uma distância coordenada pelo constrangimento, mas acabou que me tratou como se nada tivesse acontecido e a vida seguiu. Uma semana depois ele me pegou mais uma vez, no momento em que eu ajeitava minha gaveta de bermudas. Laçou o braço pela minha cintura, levantou-me de supetão à sua altura e me cheirou o pescoço. Eu não tinha forças nem autonomia suficiente para reclamar, então deixei mais uma vez ele me comer. Me empurrou de bruços contra a cama, puxou minhas duas pernas para trás, e meteu várias e várias vezes, apertando minhas nádegas com força, espremendo‑as (para em mim fazer com que a dor ficasse mais ardente, e para ele, imagino, o prazer de entrar fosse maior). Aquele


foi o dia em que sem dúvidas mais senti saudade de minha mãe. Pensava nela à medida em que abria a cova, cavando entre areia fina e pedregulhos. Meu pai estava com os olhos negros e fundos, ainda assim sustentava uma fisionomia complacente, como se fosse tudo bem ir pra dentro do buraco dentro de alguns instantes, deveria ser até mais tranquilo ali embaixo mesmo. Seu corpo agora não parecia tão opressor ou dominante. Era apenas um pedaço de borracha fraca, mais quebradiço. Dei beliscadas com a ponta da pá para testar seu estado e a fragilidade dos membros; a ponta de metal criava com mais facilidade alguns cortes no seu antebraço. Se eu fizesse o mesmo na época em que os abusos que meu pai me aplicava começaram a se tornar maníacos, acredito que nem uma britadeira surtiria algum efeito físico.

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Ele passou a sair de casa com mais frequência que na época em que minha mãe morava conosco. Pensei que tinha arrumado outra pessoa para descontar seus desejos. Com o tempo, fui deduzindo que era apenas a falta de coragem dele de viver no mesmo lugar do filho que abusava. Nesse período, ele já me traçava diariamente, fazia parte da rotina. Como sempre fui muito na minha, nenhum professor ou colega de classe havia notado algum transtorno nas minhas atitudes. Embora até a forma que eu andava tinha sofrido mudanças, principalmente porque a dor era muita, estimulada todos os dias pela truculência do pau do meu pai e por minha magreza. Nunca pensei em contar a ninguém porque fui ensinado a resolver meus próprios problemas e, quando não tivesse astúcia o suficiente, deveria pedir ajuda de Deus. Era o que eu fazia. Me ajoelhava na cama toda noite, ainda com a bunda doendo, escutando às vezes meu pai vomitar no banheiro do quarto dele e da mãe, e rezava. Uma vez o padre disse que Jesus havia passado por todas as provações e dificuldades que os homens sequer imaginaram atravessar. Dormi aquele dia pensando se Jesus já havia dormido alguma vez com a bunda latejando. Não sei o que sentia quando olhava para o meu pai no estado de defunto, indiferente. Quando o corpo não possui traços de uma morte específica, é difícil você dizer o porquê partira. Embora eu soubesse, comecei a fabular e criar conspirações sobre como aquele


velho, com a barba rala, cabelo ensebado, nariz adunco, de uns cinquenta anos, foi parar no chão assim do nada, esticado como uma pintura de asfalto. Poderia ter sido envenenado, morrido de alguma doença que atua por dentro do corpo. Terminei de cavar um buraco que tivesse dimensões para comportar o corpo de meu pai. Deixei o pé apoiado na ferramenta e tirei a camisa ensopada de suor. Não havia Sol, mas o mormaço dificultava o trabalho. O suor encharcara e algumas gotas escapavam em direção à boca. Mesmo sendo salgadas, como lágrimas, eu sabia exatamente, quando me chegava aos lábios, o que era produto de esforço e o que era produto do pensamento. Chegou um tempo em que eu estava forçosamente acostumado, porém fiquei surpreso e voltei a ter muito medo de meu pai na primeira vez em que ele resolveu falar comigo durante o estupro. Ele disse Quem é o amor do papai? e eu não consegui segurar o choro, pois das coisas que ele era naquele momento, o que talvez menos fosse era um pai, e ouvi-lo falar com uma entonação de orgulho... A enfiada que mais doeu foi esta. Só não registro esse caso como o ápice da loucura, pois houve uma vez em que ele chegou do trabalho vestido como se fosse encontrar um cliente, de terno e gravata, me encontrou no sofá de pijama e me enrabou ali mesmo. Enquanto me segurava por um mamilo, com uma das mãos, com a outra tirou da bolsa uma lapiseira 3,8 mm, que eu o vira usar tantas vezes para trabalho na mesa da sala, enquanto minha mãe preparava o jantar, e começou a desenhar no meu corpo formas geométricas desordenadas. Na barriga um círculo perfeito, na coxa um decágono, no tórax desenhou algo que parecia um telhado de uma casa. E depois começou a me foder, todo tatuado por seus rabiscos. A monstruosidade havia atravessado a sanidade: ganhava contornos de fetiche.

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Fiquei pensando se, caso houvesse uma última oportuni­ dade de meu pai falar algo, me pediria desculpas. Poderia ser ali mesmo, naquele estado, vestido com os mesmos trapos. Olharia dos pés à cabeça primeiro com o seu olhar manso dos tempos de minha mãe, apascentador, depois com os círculos da esclera avermelhados, possuído pela vontade de me abusar, de me destruir. Mas havia chegado sua hora,


ainda que ele também nunca demonstrou importância que chegasse ou não. Estava indo para o que vem depois, e eu empunhava na mão uma pá em vez de uma tocha, como um ato de protesto. Sua próxima parada era o sobrenatural, e, dada as circunstâncias, o porco, o encardido, o sujo. Por um bloqueio da memória ou simplesmente pelo real acontecimento dos fatos, recordo que não houve nenhum motivo específico para que meu pai parasse com a violência. Ele simplesmente chegou em casa após o trabalho, num determinado dia, e foi para a cama, repetindo o percurso nas duas, três, quatro, cinco semanas seguintes. Nunca mais falou comigo direito, trocava apenas alguns cochichos e reclamações. Empurrei o corpo em direção ao buraco e ele caiu, encaixado no espaço reservado, de uma maneira quase poética, mergulhando de cabeça na terra batida e depois despencando vagarosamente as pernas. Deixei-o assim mesmo, de bruços, para que não voltasse mais, para que, se por ventura retomasse a consciência, o que seria bem improvável, se lembrasse de como me senti na vez em que me arrancara da gaveta de bermudas. Com a pá ajuntei uma pedra grande que tive que cavar para abrir o buraco e pus em cima de seu pênis. Empurrei o montante de areia e pedras que havia extraído da cova que agora meu pai ocupava e dei algumas batidas, para firmar bem. Antes de ir embora, juntei todas as poucas forças que ainda me restavam, segurei a pá e afundei com cabo e tudo, num movimento firme, bem no lugar onde pousara a cabeça do meu pai morto, pensando será que consegui separá-la do pescoço?

giovanni arceno reside em Joinville/SC e é estudante de jornalismo. Escreve nas horas vagabas.


água marrom guilherme araujo

Bruno recebeu a notícia de óbito tão esperada e ficou mais triste do que achava que ia ficar. Afinal, era o último dos seus pais, o macho, que, antes mesmo da madrugada, tinha respirado o ar do mundo pela última vez. A mãe tinha morrido um par de meses antes, num desfecho previsível e silencioso de câncer com diabetes. O pai esperou mais uns dias e a seguiu de maneira abrupta e sem discrição, num acidente de carro depois dos sessenta, com uma moça de vinte no banco do passageiro, que sobreviveu. Bateu num muro, segundo a voz, que em seguida se arrependeu do excesso de detalhes e resolveu omitir, num acesso de pudor, as palavras bêbado e muito rápido. Bruno desligou o celular. “Meu pai morreu.” “Sinto muito.” “Não, não sente.” Olhou para o corpo deitado do seu lado, cuja mão direita ainda não ousava repetir o trajeto com o cigarro até a boca. “Preciso ir. O dinheiro tá na gaveta da escrivaninha. Você pode dormir o resto da noite aqui, se quiser.”

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Depois de mais de oito anos de ausência, interrompidos por uma breve passagem no enterro da mãe, uma semana em que ficou num quarto de hotel até a missa de sétimo dia, recebendo visitas de pessoas de que já tinha perdido qualquer intimidade e cujas feições pertenciam a um passado impessoal,


Bruno voltou para a cidade onde tinha nascido, que vinha abandonando desde os dezessete, prolongando as semanas, os meses, pulando os aniversários e as festas de fim de ano, não vindo sempre que podia. Depois da última briga, em que os olhos da mãe assistiram imóveis aos cento e dez quilos do pai avançando contra o filho, Bruno decidiu fazer de tudo para nunca mais voltar. Telefonava, no começo recebia ajuda financeira dela, que depois de dois anos ele deixou de precisar. Os telefonemas também começaram a ficar mais rarefeitos, um no aniversário dela e outro no natal. No velório da mãe, cumprimentou o pai com um aperto de mão. O rosto do pai ainda estava inchado, embora agora parecesse tão vivo e hostil quanto o de um boneco de cera. Havia coroas de rosas penduradas nas alças do caixão de bétula, flores frescas cobrindo as pernas e os braços gordos, copos de leite em vasos de cristal. Bruno apertava as mãos que eram estendidas para ele sucessivamente e anuía com a cabeça enquanto se admirava com o comprimento da fila. Bruno viu os retratos de família, a mãe sorrindo com alegria do lado da cara gorda e satisfeita do pai, nos pontos mais distantes do mundo, das mais remotas línguas e religiões. Há muito tempo tinha desistido de entender o significado daquele sorriso, daquele contentamento emparelhados, em quase todas as fotos, em cima do piano, da lareira, do bar. Foi para o quintal e viu que a grama do jardim estava grande e em tufos em certos lugares e que a piscina estava inteira assolada de terra, coberta das folhas do plátano oriental. Com toda a certeza, fazia bem mais de um mês que ninguém cortava aquela grama, limpava aquela piscina, cuidava daquela casa.

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Bruno respirava devagar, ouvindo o ar entrando e saindo, com os ouvidos abaixo do nível da água suja. De vez em quando uma folha morta encostava num dos lados do seu corpo ou mesmo da sua cabeça mas ele já tinha se acostumado, não se assustava mais. Olhava para o céu nublado, para a luz filtrada de cinza pelado e de braços abertos, ainda não muito acima do peso, boiando com uma parte da barriga para fora da água marrom, quase da cor das folhas.


“Essa casa é demais! Você não me contou que o seu pai era rico! A gente só precisa de um jardineiro, de alguém pra limpar a piscina...” Bruno conseguia ver, na cadeira, as pernas dela tomando sol. “Se você quiser eu posso começar a cuidar disso amanhã...”

Guilherme Rocha Braga de Araujo nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Botucatu, em 1988. É autor do livro de poesia No Olho do Furacão (Chiado) em janeiro de 2015.


cocô guilherme scalzilli

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– Conhece Fortaleza, Miltinho? Miltinho é o seu nariz gordo, ele pensou. – Não senhora. Só João Pessoa. A namorada olhou-o com admiração. – Sério, Mi? Faz tempo que você foi? – Depois que o Estevão morreu. – Estevão? – perguntou dona Odete, longe. – O irmão do Milton – Nora gritou para a mãe. Silêncio compungido. Quase uma da tarde no relógio de mergulhador. O moço irritado, avistando a fome de indigente. Alcançou o copo entupido por rodelas de limão sem casca. A casca, elas disseram, azeda a caipirinha. Pegou-se curioso para saber como sairia a feijoada naquela mansão. Paio sem pele? A mulher trouxe um enfeite de Fortaleza e uma tigela de bolachinhas finas. Sorriu-lhe a cara de macarronada, como quem chupa o molho e comenta “uma delícia, não?” Ele devolveu a graça pensando “a guria, com certeza.” Esperavam o pai dela. Candidato a sogro do rapaz, ou assim parecia à coitada. Sogro. Nora. Uma galhofa subiu. A sonsa o observava. – Que foi? – Nada, lembrei de um negócio... – O quê? Fala!


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Cogitou protelar, esgotando cada suspiro daquela insipidez adolescente meio vaga e obtusa. Um episódio da turma, algum dos milhares de trocadilhos do acervo, ou qualquer coisa que o Estevão nem tivesse falado. Só pela cerimônia que faziam. Conseguia tudo recorrendo ao irmão defunto. – Nó, será que podia pegar mais um tico...? Suavemente jeca e envergonhado, assistindo de esguelha à prontidão festeira da velha. – Que isso, Miltinhô? Nora, pega bebida pra ele, minha filha. Gentilezas, ademanes, ululâncias. O estômago roncava e elas farfalhando etiquetas. Pega a pinga lá, ô boneca, e não me enche o saco. – Mas era só pedir, né? Cê também, mãe não... Sumiu na cozinha e voltou imediata, casadoira, com a jarra no peito. Milton farejou a chance de filar um honesto e gratuito pilequinho de cana boa. Talvez desse pum, atiçando aquele borbulhar que se anunciava. Qualquer coisa fumaria um cigarro no quintal. Junto com as samambaias e as hortaliças cultivadas por Nora e a irmã caçula. Gostou da idéia, passando a inquiri-la sobre tipos de adubo. Ela respondia orgulhosa, na sua altivez de mulher inacabada, sabedora de nutrientes, e o rapaz foi se distraindo pelos dotes físicos da sua mais recente conquista. A magreza lhe dava um toque menineiro de enlouquecer os invejosos. Mas peituda, com certeza, do contrário ele não estaria ali, pagando sapos familiares, macaqueando índoles. Tinha sua cota de gostosura, construída por balé, natação e escola de gente bem, essa exuberância virginal que dá quase um dó de bulir. Bundita empinada. Mãos deliciosas, suaves, doces. E a curiosidade sapeca de menininha cândida que desbrava os mistérios da escumalha tosca. – Põe mais se quiser, tá? Sorriu e pegou. Orgulhoso da própria sobeja, deu até a pilar as rodelas murchas. Nora contava sobre o busto do pai, no alto da estante, assinado por um escultor municipalmente famoso. Treco feio, mimo de algum cliente feliz e milionário que pagara, assim, com estilo, o ágio do parto realizado pelo insigne “ginóbs”. Foi a expressão usada por ela, fazendo bico de batom e empurrando a bola de boliche à canaleta,


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na madrugada em que se conheceram. Ginóbs. Há coisas que o dinheiro não compra. Bastou evocá-lo e um assobio ecoou no hall de entrada. Surgiu o corpanzil aristocrático, barriguela de nababo, terno, gravata e colete. Branco dos mocassins aos dentes cavalares, sempre expostos, tiscando fiapos sempiternos. Séculos de finesse hereditária mediram o convidado. O jovem sentiu-se num diagnóstico de vagina, e a vagina era ele. – Doutor Aparecido, muito praz... – Milton? Ou Nilton. Newton, como o Isaac? Ah. Milton mesmo. Alcunha Miltinho, pois não? Vamos sentar. Mobilizaram-se, diligentes, puxando os encostos almofadados. – Você aqui – o pai ordenou, tomando a cabeceira. – Nora do outro lado. Escuta, Detinha. Chama a Corina, bem, chama. – Tá, Aparecido, mas se ela berrar daquele jeito de novo... – Como está a cangibrina? Acho que vou bebericar um pouco. Esticou a mão abrindo e fechando, moleque pidão. Serviuse de uns três dedos. Fez que ia oferecer, mediu os escombros no copo da visita e deixou a jarra ligeiramente fora do seu alcance. – Nos velhos tempos de residência... E enveredou. Milton se mostrava atento às memórias do nobre Aparecido, mas de fato só o via mordiscar gruminhos e mexer os lábios umedecidos. Pois àquela altura da prosa nosso patife começava a sentir certas contrações abdominais bastante características. Remexeu-se. Desconfiou que Nora tivesse percebido, aventando traque ou hemorróida. Não, ela não vira. Apertou de leve o esfíncter e relaxou aos poucos, para sentir a umidade crescer alguns centímetros. Estancou a boa distância. Mediu o prazo. – ...daí que o diminutivo popular de bodega ficaria bodeguim. Vê, Milton? Botequim. Não é engenhoso? O médico sorveu a pinga, assentindo para o teto com seriedade, fingindo que estava mesmo prestando atenção ao piano do cedê. Tomando ximbira e ouvindo chopã.


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– Ah, as maravilhas dessa língua tão vulgarizada – murmurou, sonhador; então despertou e bateu o garfo no copo. – Corina! Venha imediatamente! Milton oscilou mais uma vez. Nora olhava-o com serenidade. Sorriu de volta. Ainda não era amarelo, pensou, enquanto flertavam. Ela exprimia “mais tarde vou enfiar a língua no teu ouvido, cachorrão”, tentando ficar mais peralta do que seria capaz. E ele só tentava não ficar amarelo. Testou os limites anatômicos do desconforto. Murchou e retesou as quinas do ventre, afogando a respiração, fazendo mesmo um pequeno ruído gutural. Folgou-se com cuidado e sentiu escorregar um arrepio. As orelhas tremeram. Confirmou: vontade de fazer cocô. Legítima. Doutor Aparecido acomodou o guardanapo de pano sobre as coxas. Uma ternura. Se lhe escapulisse um perdigoto, as calças nevadas estariam protegidas. Falou à filha, mas virou‑se logo para não deixar de penetrar as angústias de Milton com os olhões verdes e as lentes bifocais. – A feijoada precisa ser muito bem composta. Não serve qualquer ingrediente. Precisa de temperos frescos e especiarias selecionadas. É muito difícil fazer uma boa iguaria com essa mistura de sensações gustativas. Tanto que na Bahia... conhece a Bahia, Milton? – ... – ...? – Não senhor. Só João Pessoa. – Ah, a Paraíba. Fiquei uns tempos lá, quando era estudante. Muito calor, Deus me livre. Detinha, querida, vamos nos alimentar? Daqui a pouco – soltou uma gargalhada pousando a mão peluda no braço de Milton – o coitado vai mastigar limões! – Já tô indo, Aparecido! Pombas, não quer a filha na mesa? – Mas onde estávamos? Ah, na Bahia de Todos os Santos. Notem que mesmo aquela sociedade meio suja, decadente e miscigenada, possui um paladar refin... Milton ousou distender mais. Recostou fundo, expirou, prendeu rápido, apertou-se inteiro de baixo a cima. Teve a sensação de que algum pedacinho esmagado havia ficado para fora. Sensação ilusória, certamente, mas o estímulo inicial avolumou, criando um mal estar intolerável. Aspecto


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de micróbio mole, insalubre, úmido, pegajoso. Não. Decidiu não suportar. Sacudiu a cabeça, como se concordasse com as palavras graves do doutor, mas passeava os olhos meio sóbrios pelas portas: cozinha, sala de estar, copa, armários, corredor, ali. Os ladrilhos pela fresta mal iluminada. Uma torneira. Frisou mais a vista e discerniu o espelho. Achou. Mais calmo, virouse ao anfitrião. Mudo. Esperava uma resposta da filha. – Acho que uns trinta mil – ela murmurou, dando de ombros. – Realmente, meio caro... – Milton arriscou, demasiado confiante. Recebeu quatro espantos instantâneos. Nora gargalhou. – Mil-ti-nho! O ginecologista concedeu-lhe um sorriso. Milton imitou-o, sem saber patavina do que se tratava. Dona Odete chegou com uma menina emburrada, espécie de miniatura opaca da irmã. A visão inspirava algo de pecaminoso, e o safado suarento ainda conseguiu gostar. Sentaram. Uma serviçal uniformizada, novelesca, veio carregando imensas panelas de barro onde borbulhavam feijão, lingüiças, carnes diversas, gorduras de cepa. O porco mais limpo do mundo. O uniforme retornou à cozinha e voltou com mais travessas cheias. Diante de Milton aterrissou uma cuia fumegante de torresmo. Toucinho, para os finos, depilado. Nora espremeu limão por cima e pareceu tirar muito gosto dos estalidos que provocava, dando a entender outras delícias. O pai pigarreou e solicitou a couve orgânica. Milton poderia ter sucumbido à desfaçatez habitual, pensando nas laranjas esculpidas e no seu Aparício chupando, mordendo, arrancando fiapos suculentos em plena camisa de seda, alva como as asas de um anjo. Mas o canalha não teve a desenvoltura apropriada. Estava começando a ficar realmente aflito. Temerário esperar até o fim daquele vastíssimo banquete. Nem se estivesse vazio conseguiria armazenar por muito tempo um bolo estomacal de farofa gorda, arroz, feijão preto, calabresa, orelha, rabo, charque, banha, pimenta “de


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quando ficamos em Aracaju... conhece Aracaju, Milton?” Seria desumano lutar. Entregou-se por minutos à sorte. A pasta mal mastigada ia ganhando forma, empelotava com a saliva, o resto seco cimentando as gengivas. Engoliu, lenta e dolorosamente, a esplendorosa feijoada, encaixando-a nos apertos da barriga dura. Pontadas simultâneas no intestino grosso, como as garras de um feto sem útero, ameaçavam rompê-lo. Retraiu o cóccix num golpe derradeiro. A mesma sensação liquefeita, cruel, anunciando algo volumoso e inevitável. Rolha de aspereza arrancada lisa, lá embaixo, dentro, íntima. A mensagem nervosa saiu das entranhas, chispando o arrepio pelos anéis da coluna, atingindo o cérebro no ponto que alarma: necessidade fisiológica iminente. Urgência de animal. Urgentíssima. – Será... Nora, será que dava pra eu lavar as mãos? – Magina – sorriu dona Odete, sugando uma tira verde – a gente não tem essas reparações. Nora riu. Doutor Aparecido fingia apenas comer. Milton afastou a cadeira e ergueu-se. Era questão de hon... – Só uma higiene simples. Hábito de família, sei lá. – Precisa explicar, agora, Milton? – vociferou o pai, de boca cheia – À vontade. A casa é nossa. O cafajeste precisou controlar as passadas. Não ser afoito demais. Uma hecatombe moral podia ocorrer se descobrissem o segredo. Caminhou como se levasse um cacho de marimbondos sobre a cabeça. Achegou-se da fresta, acendeu a luz, deu um passo ereto de valsa e entrou. Olhou em volta antes de fechar. Não olhou de verdade, só achou de bom-tom dar mais solenidade e menos temperamento ao gesto. Encostou a porta de mansinho, deixando a tranca escorregar junto com a maçaneta. O contingente fecal se anunciava, irrefreável. Acendeu a luz. Rápidas centelhas fluorescentes foram materializando as paredes coloridas, os vasinhos na pia, o sabonete enxuto, os ladrilhos desenhados, um banco minúsculo no chão, a parede, o teto, a luz acesa, paredes, vasos com flores, parede,


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vasos, pia seca, toalha, banquinho, parede, chão. Lavabo! Uma porra dum lavabo! Um lavabo! Um... Lavabo. As pernas tremiam, suadas. As mãos tremiam, suadas. A testa suava, as têmporas suavam. Latejava inteiro. Precisava deixar sair, imediatamente‚ era necessário que defecasse, naquele momento e não em outro, estava já nascendo, impossível conter, agora ou nunca mais na vida. Resistir já não era uma possibilidade. Tirou as calças e, ato contínuo, um sapato. A meia. O outro, de raiva e, de raiva, também a outra meia. Pronto. Safo, trancado, livre. Intocável. Sem desespero. Nem latrina. Calma. Tivera embaraços piores na vida, sairia daquele com a mesma elasticidade. Ninguém podia entrar, ninguém podia ver. Que esperassem. Ficaria a dúvida, sempre, o empate da defesa. Quanto ao cheiro, demoraria. Sim, esfregaria um pouco de sabonete na... pia? Ora, nada mais justo. Nos vasinhos de plantas, seria milimetricamente inviável. Nos bolsos? Nas meias? Nas meias?! Não havia alternativas. Mesmo que houvesse, porém, ele não estava apto a especulá-las. Forçou o mármore que circundava a louça rosa claro. Firme. Resistente. Sentiu que ia sucumbir. Apanhou o banquinho e subiu, entortando o tronco à frente, ajudando as nádegas com as mãos para trás. Vozes na sala próxima. Inúteis. Conseguira. Um desafogo maravilhoso, avalanche de glórias, a dádiva do esvaziamento corporal. Poderia finalmente pensar. O mundo inteiro giraria mais solto e feliz. – Milton? Vitoriosamente evadido para a louça da pia. Uma paz de coito findo, prostrada e ofegante. Do sorriso escorriam filetes de alívio. Forçou uma entonação simpática e tranqüila, como se tirasse cravos ao espelho. Bem apropriado, aliás: cravos hor-rí-veis ao espelho. – Oi? – Milton? Desceu do banquinho. Observou, orgulhoso, os três cilindros corpulentos esfriando no côncavo da louça.


– Que houve, Norinha? Pensou rápido e concluiu que tanta cerimônia já era besteira. Arregaçou uma das mangas e passou a mão onde seu corpo estava sujo, colhendo o máximo de substância, com a rudeza necessária, para a lavagem final. – Mí, a gente esqueceu de falar. Viu, usa o outro banheiro. Ele estremeceu. – Por quê? – Esse aí tá sem água. Ninguém sabe ao certo o que se passou com Milton Tanajura naqueles instantes caóticos. A palma imunda em riste. As nádegas miseráveis, e aos poucos também as coxas. Os despojos repulsivos maculando a pia luxuosa. O odor maléfico dominando o ambiente. Nora encostada à porta, aguçando os ouvidos, já preocupada, talvez até sentindo as primeiras emanações da inhaca. Dona Odete mastigando, Corina mastigando, o doutor Aparecido engolindo. A serviçal na cozinha. Pode ser que Nora tenha arriscado, afetuosa, uma última vez: – Querido? Tá tudo bem? Sabe-se apenas que Milton limpou a mão na toalha, abriu a porta, esbarrou na moça, cruzou a sala em disparada e sumiu para sempre.

guilherme scalzilli é historiador, jornalista e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela, 2007), publicou também volumes de contos e poemas. Mantém um blog sobre cultura, política e atualidades: guilhermescalzilli.blogspot.com.br


Estela sem Deus (Fragmentos) jeferson tenório

“Estranho que tudo isso tenha começado longe do mar” Estela

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Eu já achava esquisito, nos fins de semana, o silêncio em torno da mesa. Nunca conversávamos. Nunca falávamos de nossos receios. Depois do almoço eu ia para quarto e me olhava no espelho para notar um pouco meu rosto. Eu sempre me achei feia. E acho que isso era um pouco por conta dos meus cabelos. Depois que completei cinco anos quem me penteava era o meu irmão Juarez. Minha mãe saia cedo para trabalhar e não tinha tempo para nada. Meu irmão puxava meu cabelo com tanta força porque ele seguia à risca aquilo que minha mãe dizia: que os cabelos dos negros devem ser domados, que cabelo duro tinha de ser amarrado. E durante toda a minha vida eu andei com meus cabelos presos porque eu aprendi que não se pode ser muito livre quando se tem cabelos crespos. Mas dentro de casa eu não me preocupava em andar com eles soltos. E por isso, a vida fora daquela casa não fazia muito diferença para mim. Gostava de me esconder. E também foi nesse tempo que eu passei a treinar o abandono. Acho que cada um já nasce com algum problema, o meu era saber lidar com a perda. Eu treinava sem saber direito o que estava fazendo. Meu primeiro treinamento começou com um casal de peixinhos que eu tinha no meu quarto. O Ari e a Elizete. Os dois eram da raça “gup”, todo colorido. Eles não ficavam num aquário porque era muito caro na época. Eles ficavam num pote de compotas. Um dia a Elizete apareceu boiando.


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E aquela morte foi tão inesperada para mim. Tinha meus 7 anos e entendi que peixes, quando boiam, não voltam mais. Peguei um coador e “pesquei” a Elizete. Fui no pátio atrás de casa e a enterrei. Fiquei o dia pensando que o Ari seria o próximo. Passei uma noite inteira pensando como a gente pode se proteger do fim. Aí me convenci que a morte não ia mais me pegar de surpresa. Ah, mas não ia mesmo. Então decidi que eu devia exercitar a despedida. Tirei o Ari do meu quarto. Ele passou a dormir em cima da mesa da cozinha. E na minha cama, olhando para o teto, eu fingia que ele tinha morrido também. Às vezes, doía saber que ele estava lá, ao meu alcance, mas não ia buscá-lo. Eu brincava de doer porque é assim que a gente se preveni do fim. Pensei que é assim que se sobrevive quando a vida não nos respeita. Quando se tem pouco, sentir falta até que é bom. Aí a gente se agarra ao precário e aceita o que tem. Eu tinha a falta. E a falta já é alguma coisa. Acho que meus peixinhos só vieram para me mostrar que a tristeza pode ser muito precoce. E contra isso não há como se defender. Eu demorei muito pra perceber isso, sabe? Mas vejam bem, preciso dizer, antes de tudo, que não conheci a tristeza com meu pai que era a pessoa mais doce do mundo. Com ele aprendi a gostar da noite, do escuro. Meu pai era uma pessoa alegre porque sabia esconder muito bem a dor. E esconder a dor requer uma certa destreza e experiência. E agora, olhando para trás, posso dizer também que herdei a infelicidade da minha mãe. Foi ela quem me ensinou que a vida nasce amarga. Mulheres negras como eu sabem que o amargo é o primeiro gosto que se aprende. No início você não se dá conta. Depois percebe que seu próprio corpo nasceu com marcas que vão incomodar as pessoas para sempre: o seu cabelo, seu nariz, sua cor, seus olhos. Desde cedo somos ensinadas a baixar a cabeça para que o mundo nos aceite melhor, mas comigo foi diferente. Porque eu não baixei a cabeça para que o mundo gostasse de mim, eu baixei a cabeça para tentar amar minha mãe. Minha mãe. Meu maior obstáculo na vida. Havia vezes, quando era pequena, que eu sonhava com paredes me cercando. As paredes brancas, intransponíveis.


Elas se moviam todas na minha direção. E quando chegavam bem perto de mim a ponto de me sufocarem, eu via o rosto de minha mãe. Outras vezes, imaginava a minha mãe como um país estrangeiro. Um país esquisito que quanto mais eu buscava entender a geografia, mais eu era jogada para fora. Todos os meses eu era exilada. Colocada para longe mesmo estando dentro. Demorei pra me dar conta que me tratar assim alimentava minha mãe. Quando saí de casa pela primeira vez eu tinha 14 anos, depois de ter tomado uma surra porque deixei a comida queimar. Fugi de casa. Busquei abrigo na minha tia Odete. Passei dias curando os vergões que ficaram marcados na minha pele depois da surra. Eu não queria nunca mais voltar para casa. Mas enquanto isso, minha mãe não hesitou em colocar meu nome na gamela. Em cortar galinhas no cruzeiro. Em rogar preces aos orixás para que eu fosse derrotada pela vida. Não hesitou tocar sineta em cima de uma cabeça de cera coberta de mel, para que eu fraquejasse. Não hesitou em acender velas pretas e vermelhas e pedir ao povo da rua que eu voltasse sem defesa e aceitasse que minha mãe era o único afeto que eu podia ter. E por muitos anos eu pensei que amor fosse uma espécie de sede, porque minha mãe era o meu deserto. E achei que todas as mães fossem como desertos. Por anos pensei que para conquistar seu amor eu tinha de aceitar aquela secura.

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Todo mundo sabia que meu pai não era homem de viver muito em família. A casa dele era a noite. De dia ele era estivador no cais do porto. A noite ele era músico. Ele tinha um grupo chamado “Jazz Paris”. Meu pai era o único negro do grupo. Eu achava muito bonito ver ele chegando com aquele sax pendurado no ombro, o chapéu meio amassado e um cigarro na mão. Eu morria de vontade de acompanhálo nas apresentações, mas o problema é que minha mãe sempre dizia que moça virgem, direita, não podia andar por aí em bar de pinguço. Aliás, preciso dizer que a minha mãe tinha uma grande preocupação com a minha virgindade, tanto que um dia, sem mais nem menos, ela resolveu me levar num médico para saber se eu ainda era virgem. “Olha aqui Estela, escuta bem, se eu souber que tu não é mais menina-moça, eu te arrebento inteirinha, tu tá me


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escutando guria?”. E no caminho que fizemos até o centro onde ficava o médico, eu tremia como uma vara verde, ao mesmo tempo em que repassava toda minha vida até ali, tentando achar algum momento que eu tivesse perdido minha virgindade sem querer. Pensei na vez em que estava tomando banho e de repente comecei a sangrar. “Será que se perde a virgindade quando a gente menstrua?”, “Ou será que foi a vez que cavalguei naquele cavalo, eu sei que senti uma coisa boa, mas eu estava de roupa...” “Será que foram as vezes que lavei ela mais do que devia? Será que coloquei meu dedo fundo demais?” Ao chegarmos, ficamos na sala de espera. Logo em seguida o médico me chamou. O médico era um homem já grisalho, o mesmo que atendia minha mãe. Fiquei sozinha com ele naquela sala fria e branca, sentada numa cadeira olhando para o chão como uma bobalhona, mas aos 14 anos qualquer uma é bobalhona, eu acho. Antes de me examinar, o médico me perguntou se já tinha feito sexo com alguém, eu não disse nada porque havia coisas que eu não conseguia dizer aos homens mais velhos mesmo que eles fossem médicos que cuidam das partes íntimas das mulheres. “Responde menina!” disse ele aumentando um pouco a voz. Permaneci quieta e de cabeça baixa. “Na hora do prazer não teve vergonha, não é?” Ele riu. “Deita ali na cama, menina”. Eu deitei. Em seguida, ele disse para eu tirar minha calcinha e abrir minhas pernas. Nesse momento eu pensei em dizer não. Mas eu ainda não tinha idade para dizer “não.” Porque eu não sei quando isso acontece exatamente, mas chega um tempo na vida que a gente aprende a dizer “não” para as coisas. Mas o tempo do “não” é um tempo difícil de alcançar. O medico lavou as mãos. Olhei os braços peludos dele. Senti um certo nojo. Depois ele colocou as luvas brancas. Eu achava que sabia o que ia ocorrer ali. Mas quando ele veio na minha direção e pôs a mão no meu joelho, senti que devia sair dali, porque ninguém havia me dito que um homem ia botar um dedo dentro da minha vagina e ia ficar furunfando nela. Eu quis segurar a mão dele, mas eu não tinha muito força, porque como eu já disse não conhecia o tempo do não. Enquanto estava com o dedo dentro de mim, ele perguntou se eu sentia alguma coisa, eu disse que sim, que doía. E ele foi entrando


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mais, eu disse numa voz que acho que eu só eu ouvi, “para doutor, por favor”. Ele nem me olhou. Eu fechei os olhos e rezei para deus pedindo que aquilo acabasse logo. E creio que foi a única vez que deus me ouviu, porque logo em seguida o doutor parou. “Pode se vestir, menina. Tu continua virgem ainda”. Disse ele tirando as luvas. “Mas vê se não vai ficar como essas outras gurias perdidas, por aí, viu? Se a tua mãe te trouxe aqui é porque tu andaste aprontando alguma coisa.” Depois ele mandou eu sentar na cadeira. Enquanto ele preenchia uns papeis ia me dizendo: “Olha guria, não é por mal que tua mãe te trouxe aqui. Veja, tu já é uma moça e os guris tão soltos por aí, entende? Vocês tem que se cuidar porque homem é homem. Eles estão no direito deles. Tu entende isso, meu bem?” Eu respondi que sim e ele continuou. “Eu graças a deus não tenho filhas. Tenho dois varões em casa e sempre digo pras mães amarrarem as suas cabritas porque meus cabritos estão soltos” ele riu novamente. Tu queres uma balinha, querida?” perguntou ele pegando um pote colorido de jujubas. Eu disse que não com a cabeça. Fiquei escutando tudo aquilo ainda sentindo o dedo dele em mim. “E então doutor?” “A senhora pode ficar tranquila, dona Jacinta, sua filha é virgem. Mas eu já tive uma conversa bem séria com ela.” “Ah doutor, o senhor é sempre tão gentil, e tão atencioso” “Que isso, Dona Jacinta, assim a senhora me deixa até sem jeito.” “Mas é verdade, ah... se o pai dessa aí fosse um terço do que o senhor é” “É, a vida faz dessas coisas. O dona Jancinta” “Ai doutor não me chame de dona que me sinta velha” “Ah, não... se me permite... de velha a senhora não tem nada”. Ainda bem que minha mãe pediu pra eu sair uns minutos porque aquela conversa estava me deixando enojada. E até fui vomitar um pouco no banheiro. Depois sentei no vaso. Fiquei passando o dedo perto da minha vagina, por cima da calcinha. Depois eu chorei. Não que estivesse doendo. Na verdade doía. Mas não era lá. Era dentro, no peito, eu acho. É tão ruim quando a gente não sabe onde a gente


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dói. Depois lavei as mãos e fiquei ali esperando minha mãe terminar a conversa com o doutor Olavo. Mas isso é outro assunto que não gostaria de me estender. Não que eu me importe de falar sobre essas coisas, pois sou uma senhora de 60 anos, bem vivida, bem sofrida, bem experimentada, portanto não há nada que eu não possa falar e sei muito bem o que acontecia naquele consultório. Naquela noite não dormi. As 5h da manhã meu pai chegou. Não estava tão bêbedo como de costume. Eu levantei e o tratei melhor que pude. Guardei seu chapéu. Dei-lhe um abraço e depois fiz café. “O que foi Estela? Tu parece triste?” “Eu acho que já nasci triste, pai” Meu pai sorriu, pôs a mão no meu rosto. “Olha guria, eu podia te dizer para não falar isso. Mas acho que tu me puxou. Também nasci triste. Por isso que eu gosto da madrugada.” “O que tem a madrugada, pai?” Ele ficou em silêncio como se procurasse uma boa resposta. “A noite é quando posso ser alegre, é só isso.” Eu sorri. E sem saber, meu pai estava me ensinando a esconder a dor. “Pai.” “Que foi Estela?” “Ontem a mãe me levou no médico.” “E está tudo bem?” Olhei para o chão, eu sei que devia ter contado tudo. “Sim, pai, está tudo bem. Coisa de mulher.” Meu pai passou mão na minha cabeça e disse que se assustava com a passagem do tempo, que eu estava crescendo rápido demais. Depois eu chorei um pouco para dentro, porque não se pode ser triste quando está amanhecendo. Eu mal sabia que aquela história da minha virgindade ia se repetir. Posso dizer que minha mãe foi a uma grande guardiã do meu hímen. E todas às vezes eu aceitava sem dizer nada, tudo isso para agradar minha mãe. Tudo isso para conseguir entrar naquele país, naquela pátria estrangeira. Mas acontece que eu havia crescido, e não queria mais aquilo. Tanto foi que quando a minha mãe veio com aquela conversa novamente de conferir minha virgindade, eu dei


um jeito de ir embora. Eu tinha 16 anos. E já havia aprendido a dizer não. Mas não bastava contrariar minha mãe. Era preciso ir mais longe. Me livrar de suas amarras. Sair de casa e não voltar mais. Por isso calculei tudo. Primeiro mandei uma longa carta para minha madrinha Jurema, que morava no Rio de janeiro. Ela tinha um filho pequeno. Depois, nas trocas de cartas, combinamos que se eu fosse morar com ela eu cuidaria de seu filho enquanto ela trabalhasse. Depois de tudo acertado, silenciosamente arrumei minhas coisas. Sai sem me despedir de ninguém, nem do meu pai, nem de meu irmão, nem da minha mãe. Eu sabia que quando eu entrasse naquele ônibus em direção ao Rio de Janeiro, uma guerra entre nós seria declarada para sempre.

jeferson tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. É autor do romance O beijo na parede, vencedor do Prêmio AGES (Associação Gaúcha dos Escritores) e eleito pela associação como livro do ano de 2013. “Estela Sem Deus” é trecho de um romance inédito.


vermelho frágil jonatan silva

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Eu deveria anotar todas as datas minuciosamente, mas eu não sou tão disciplinado assim e, se o fizesse, não passaria de um teatro malfadado. Eu ia escrevendo, rascunhando tudo, à exceção das datas. Tudo, tudo, menos as datas. Eu pintava os ratos, misturava acrílico e óleo sobre a tela e usava outros materiais também. Uma peculiaridade: eu os coloria em vermelho, um vermelho frágil que estabelecia o ponto limítrofe entre o real e o imaginário. Depois de prontas as telas, parava em frente a elas para que me observassem. Os ratos. Não havia contornos, só o limite, tão tênue quanto o sonho da noite anterior, tão tênue quanto andar no tempo. Em diversas posições os ratos iam se formando entre as pinceladas de leves camadas, leves camadas de vermelho. Olhava as paletas e recolhia o tom. Em cima, abaixo. Esquerda, à direita. O que eram retas e paralelas ganhavam forma de bolas de pelo escarlate que fuçam e rascunham caminhos atrás de uma coisinha, miserável que seja. Posso usar óleo de linhaça, mas o vermelho sempre permanece, mesmo que em pedaços divididos com a sombra rubro-enegrecida que faz jus ao nome e marca trechos de luz. E se o segundo erro de Deus é a mulher, o primeiro só pode ser o homem: por isso, pinto ratos. Não pense que são quaisquer ratos, são verdadeiras ratazanas, ratazanas


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vermelhas em seu todo, mas sem data. Nada para mim tem data, nada é eterno, tampouco efêmero. Só os ratos valem. Eles buscam seu ouro por entre os restos, o lixo - o abjeto. Deveríamos ser assim, buscar o ouro entre o que consideramos impróprio porque, na verdade, não o é. Eu conheço homens que não são dignos dos ratos. Conheço ratos mais dignos que um homem. Ainda assim, raramente gosto das telas: elas parecem inacabadas e acho que é por isso que me olham; me pedem um fim. São como moribundos que imploram a morte e estão cansados de agonizar. Meus ratos também; eles exigem de mim um ponto final, um basta derradeiro. Enquanto não os concedo esse direito, tinjo suas peles em vermelho, o mesmo vermelho que manchou o tapete quando vi Eulália assassinada em nossa casa. Há somente uma diferença: o vermelho do sangue é consistente, consciente de si e do seu papel; a cor dos ratos é frágil, inacabada e triste; é um vermelho em processo de fuga da paleta - que não deseja ser quem é. Os ratos adquirem a geometria para si e me conduzem as pinceladas e, por isso, são feitos em camadas e, por isso, levam anos para ficar prontos. Mesmo assim, quem os vê não os entende e reclama da precisão e do talento do pintor. Contestam a necessidade da arte e a rebaixam ao vulgar. Eu pinto os ratos, disse uma vez na galeria ao ver a tela ser tripudiada. Desculpe, eu ouvi. O grupinho saiu e eu me alojei em frente ao quadro e fiquei ali, horas, como se o consolasse pelo disparate. Nunca mais assisti a uma exposição minha e jamais voltei a me importar com o que pensa o público. Danem-se, eu digo, não pinto para vocês, pinto para mim. Isso me acolhe e me consola quando lembro que não tenho assistente. Não quero, mas preciso. O cheiro da tinta é forte, embriaga, logo, nem preciso beber, nem fumar ou usar uma droga qualquer. Já tenho o que irá me matar, se não intoxicado, será de um câncer lento e gradual. Apreendi que nem sempre é questão de sorte. Todos os ratos eram em todos os vermelhos: escarlates, carmesim, salmão, encarnado. Todos eles significavam alguma coisa e não diziam nada. Eram de algodão, ferro e


fibra; viviam; respiravam; comiam; se reproduziam. Tudo dentro da tela. Tudo no momento em que observavam e me mediam - de cima a baixo.

jonatan silva ĂŠ escritor.


provocações jØrge pereira

Laura,

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Não costumo ser relapso em nenhuma de minhas obrigações, sobretudo quando assumo a postura de exímio jornalista que sou. Porém não consigo me consternar com as reflexões que fiz em minha vida após uma sessão de entrevistas quando uma convidada muito astuta colocoume na parede definitivamente. Anos de elaboração de sábias provocações e com um ligeiro pensamento na minha capacidade de acidificar o meio das opiniões, sentava-me a mesa e começava o meu programa de exatos vinte minutos na rede de televisão aberta. Mas eu devia ter atentado para minha intuição quando terminei de ler a obra poética de minha sublime entrevistada, passaram dois dias desde meu pedido de afastamento e ainda não fui capaz de perceber a imensidão de seus textos embaraçadores. Não vem ao caso detalhar aqui esse misto de situações involuntárias e contrações quase que puerperais de minha mente. Agora sou apenas um escritor crítico longe de qualquer claquete de edições e câmaras de produção, e isso muito me agrada. Chegava ao fim da vigésima sétima edição do nosso programa especial de fim de ano e lá estava ela, respondendo a todas as minhas perguntas em sua concretude espiritual e psicológica. Mas partindo de uma senhora com um


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potencial inestimável como você, eu já devia esperar que as provocações tomassem um rumo pessoal e longe da minha órbita de fatos inesperados. Acontece que você sequer esperou pelo fim da declamação da poesia do Brecht que viria no final, e antes que eu pudesse dar o último ar de indelicadezas culturais, tomou a frente com simples palavras que me tiraram a vocalização e qualquer enquadramento: A que você veio Abujamra? Estava eu fadado a minha profunda comoção e resignação espiritual de tempos imemoriais. Ainda olhei desconcertado paras os lados, coisa que nunca aprendi a disfarçar, pois até então não precisava me esconder em alguma expressão de medo social; mas então parei. Parei e encarei-a em seus olhos, que para mim exumavam um cheiro cadavérico de realização e dúvida certeira na minha incapacidade de contra-atacar. Achei-me ferido Laura, eu não lhe tive respostas. Em questões de relatividade temporal asseguro-lhe que não perdurei a pausa por mais de um minuto sequer, mas houve com ela o meu sentido figurado de entender que aquela situação comprovava o risco que eu havia tomado durante a minha agnóstica vida terrena. Mas escrevo para lhe ser mais fiel e amigo, e que isso se torne um elo importante entre nós dois. Pois bem, aceite minhas próximas palavras como uma verdade temporal sobre meus possessivos pensamentos circunstanciais de Fé, isso porque você me insita a experimentar outros lados de minha verdade. Encaixar-me em uma polaridade de ética religiosa sequer passou pela minha cabeça em todos esses anos até o presente momento, mas devo lhe dizer que em temas de conhecimento religioso, admiro a qualidade de exímio líder socialista de Jesus e toda a sua orientação sobre o bem e o Amor. Mas isso não significa que eu serei salvo e tampouco que creio na magnitude que ele representa para o maior bloco religioso do mundo. Não Laura, eu estou longe desse admirador da beleza estoica de uma crença, mas bastante próximo da necessidade quase incabível de entender cada uma delas. E sobre a sua pergunta que não soube responder, por hora apenas informo que até o final das linhas dessa carta, você saberá.


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Aqui estou mais uma vez perambulando e me comprometendo em registrar um posicionamento que não asseguro arrepender-me. Porém ofereço-me a honra de rebater um diálogo e afirmo em minha óptica que tanto a Deus quanto aos homens tudo é possível, pois o que é Deus senão a conjuntura humana em seus desejos e vontades próprias de crença e espírito? Apesar de ser moralmente ético e quase correto em seus discursos, Jesus não deixou para trás sua peculiar vocação divina de líder quase intocável em realidade pensativa. E assim eu me sinto mais amigo de Jesus e de Deus do que um ser que venera as suas respectivas naturezas de Pai e Filho, e se assim me comprometo em relacionar-me com eles, dispensando qualquer cerimônia entre choros e lamentações para alcançá-los. Vejo com facilidade Jesus em Paul La Fargue, e porque não em Sartrè? Sendo tão universal quanto ele foi, posso ir do taoismo, ao xintoísmo, a Maomé e aos curandeiros com a mesma sede de entender Jesus ou Deus. E se eles recebem nomes diversos e variados em qualquer lugar que eu for, entendo como uma mera alternativa de apresentar algo novo nesses meios religiosos. Não vá me dizer que Jeová é mais ou menos sagrado que Buda, ou que o deus Sol é mais ou menos sagrado que Cristo, isso é uma falácia e das grandes, porque onde um estiver o outro certamente estará, se é que existe essa diferença primordial no Divino. Ser Deus no meio dessa multidão de certos e errados que o mundo apresenta deve ser no mínimo espalhafatoso e cômico. Imagine um belo dia em que Deus acorda de manhã e percebe que está com vontade de aparecer aos homens como Buda, e no outro, por ter um senso de humor encantador, decide se revelar na forma de uma virgem às criancinhas? Tudo é possível minha cara amiga, e essa verdade é tão possível quanto admirável. Por isso tomo a liberdade de meu sincretismo e não dar muitos créditos ao Torá ou a Bíblia, prefiro levantar todas as manhãs e gastar mais tempo em minhas orações e encontros espirituais mais afetivos do que me preocupar se chamarei Deus de Deus ou de Tupã. E aí que está a sua resposta, e por entender sua natureza sábia e avassaladora em captar as mensagens do meu


subconsciente, afirmo que vim para entender em mim mesmo a necessidade de relacionar-me com o divino sendo homem ou mulher, negro ou amarelo, canibal ou puritano, sagrado ou profano. E por hora isso te subscrevo e para mim já basta. Recife, 2005 Abujamra

Jørge Pereira é recifense e estudante de Bacharelado em Biomedicina pela Universidade Federal de Pernambuco, além de pesquisador pelo CNPq. @jorginhoops


uma noite de natal juliana aguiar

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A noite de Natal era aguardada ansiosamente por Gisele desde quando era criança. À época, um mês antes da data, já arrumava a árvore com um zelo impecável, como se estivesse montando um quebra-cabeça e cada peça fora do lugar fosse comprometer toda a harmonia daquele cenário construído especialmente para aquela ocasião. Lá estavam o sapato na janela, a carta afetuosa ao Papai Noel, sem pedidos desmedidos como ensinara sua mãe, a família reunida, as brincadeiras com seu irmão, a correria pela casa, as músicas de Natal e o velho barbudo com sua enorme pança, seu riso frouxo, seu saco de presentes cheio e seu abraço acolhedor, como a protegê-la para sempre. Passados mais de 40 anos, Gisele ainda nutria aquele sentimento pela noite de Natal. Este ano comprara um pinheiro, o que acreditava conferir mais autenticidade e beleza à comemoração. Já havia o enfeitado, assim como toda casa, que reluzia apenas com as luzes do pisca-pisca em diferentes cores, tornando o boneco do Papai Noel ora esverdeado, ora amarelado e formando um arco-íris em constante movimento pelas paredes. Na porta da sala, pelo lado de fora, uma linda guirlanda para receber os convidados. O chester, o bacalhau, a rabanada e todos os outros preparativos já estavam prontos para a grande noite que se avizinhava. A espera durante o dia estava sendo longa, ansiava pela chegada dos primeiros convidados como


quando criança esperava pelos presentes na árvore de natal. Este ano, havia reduzido o número de pessoas, seriam apenas seus dois filhos, com suas esposas e crianças, seu irmão com a nova namorada, sua mãe, seu pai, este sempre de Papai Noel, porque havia crianças e, principalmente, porque o abraço continuava sendo acolhedor e dava a segurança que Gisele precisava para continuar tocando a vida. Havia também duas amigas de infância e seu marido, é claro. Gisele preparou a mesa de jantar, colocou o CD de músicas natalinas e ficou a esperar no sofá da sala, com as lembranças da vida invadindo a sua mente na forma de um filme em flashback embalado pelo som soturno de algumas melodias e das imagens que dançavam nas paredes revezando-se entre excitadas ondas vermelhas e lamuriosos ventos azul- escuros. As horas passavam e nada dos convidados chegarem. Gisele olhava o relógio de cinco em cinco minutos, com um sorriso indeciso nos lábios, compreensivo e preocupado, imaginando que algum imprevisto pudesse ter acontecido, nada urgente ou desesperador. Às onze horas Gisele levantou-se do sofá e, dando como certo algo que antes era uma mera previsão – o imprevisto que atingira seus familiares – dirigiu-se à enorme mesa de jacarandá, sentou-se à cabeceira e deu início a ceia, com o semblante calmo e o sorriso resignado. Ergueu a taça de vinho para brindar com os seus: o marido que nunca existiu, os filhos que sequer teve possiblidade de ter, a mãe que a abandonara quando pequena, o pai falecido há anos, o irmão que não a procurava e os amigos que a esqueceram. Era uma noite de Natal e, portanto, havia o vinho, a mesa posta, a casa belamente enfeitada e iluminada; havia a esperança e o otimismo de Gisele.

juliana aguiar é carioca, escritora e advogada. Participou da Coletânea Clube da Leitura, vol. 2 (2012). Atualmente está trabalhando para publicar seu livro individual de contos.


flores lira filho

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– Que piegas, disse Fernandes baixinho, em som quase inaudível. Disse porque sua irmã colocava em um jarro de vidro barato as rosas que acabara de ganhar do namorado. A menina mexia com seus dedinhos as pequenas pétalas, enquanto dizia algo sobre o quão rápido aquele tipo de planta morria e, lentamente, as mais frágeis caiam por sobre a mesa. “Olha”, dizia ela a Fernandes, “chuva de pétalas”. O menino mostrou-lhe um sorriso mecânico e a situação não merecia mais que isso. Para ele, era um contato fútil com a natureza do amor. Reclamava do presente da irmã pois dele não tiraria proveito nenhum. O da última semana, tivera a oportunidade de desfrutar sozinho: a cesta de chocolates que a irmã não degustara por estar de regime. Alimentava‑se do amor alheio, pensou nisso ao comer as guloseimas. Isso talvez fosse mais pecaminoso que o pecado da gula em si. Comia com voracidade, pois essa era a sua ação contra aquele amor, sua revolta demonstrada. A mãe entrara na cozinha. Leve essas flores daqui, falou. Fernandes olhou com desprezo mas aceitou com a indiferença que quem faz um trabalho por pura obrigação. Levou as flores para a sala de estar. Na prateleira junto aos outros vasos, deixou jazer a planta. Lá, ela poderia morrer em paz. Quem sabe esmorecer-se entre outras. Mais uma, e logo seria substituída. As flores eram representação. Lembrou-se de quando era pequeno e carregava no peito uma medalha


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de N. Sra. Das Graças. Com fé rezava toda noite. Mas um dia quando estava indo para escola, o cordão rompeu-se e a medalhinha ficou perdida no pátio onde os meninos jogavam bola. Desde então passou a se esqueceu de fazer as preces noturnas. A medalha não era sua fé: mais parecia um lembrete que ela existia. Sentiu gratidão pelas flores e, no entanto, e restringiu-se a isso pois elas eram somente vida do sentimento representado. Notou seus matizes. Algumas das pétalas já estavam morrendo e as outras, já mortas, pendiam tristemente no galho. Pensou: nada disso me comove mais. Talvez as flores também fossem ingratas, afinal. Quando o amor dos dois amantes acabasse, elas seriam culpadas também. A janela estava aberta e agora entrava um sopro de vento frio. Ela sempre ficava fechada para evitar que algum mosquito pudesse entrar, atraído pelas flores que ficavam próximas. E quando deu por si que teria ele que também fechar a janela, uma abelha entrou pelas frestas e pousou por sobre uma rosa. Fernandes ficou escandalizado. Não porque tivesse medo de animais, mas pela audácia com que aquele animal aproximava-se dele. Notou: a abelha sugava da flor recém cortada o néctar do qual ela também se alimentaria. Ela também há de se alimentar do amor do outro, pensou em olhar desafiante para a abelha. Estavam juntos ali, na sua solidão. Ambos não conheciam o amor e poderiam portanto se amar. Mas quis a natureza que eles pagassem pelo amor dos outros, parasitando-os. Quis poder sustentar o olhar imperioso na abelha, mas não conseguiu. Derrota. A abelha teria de acompanhá-lo, de viver para ele. Sedenta, ela bebia e parecia lambuzar-se no néctar. Se fosse dado as abelhas o poder de chorar, talvez ela o fizesse. E talvez chorasse. Estava perplexo. Não havia mais o que fazer, apenas admirar docemente a abelha e notar que seus olhos luziam em pura luxúria da essência. Fernandes, estupefato, não se mexia. Olhava aquilo com admiração e inveja. O artrópode fazia o mesmo que ele, mas de forma inconsciente, e logo pertencia a um pérfido infinito o qual não poderia fazer parte. Aquele ato incorruptível que ele não fora capaz de realizar, agora polarizava toda a sua existência em dois: o lado azedo, o qual


compartilhava com os que lhe eram cotidianos e o néctar que ele haveria de compartilhar para sempre com a abelha. Por que ela mergulhava na rosa como se tivesse a procura de algo? Esse nado deveria ser um mergulho dentro de si própria, na sua natureza selvagem e inocente. Fernandes perguntou-se como ele poderia fazer o mesmo, arrancando de si a inocência que tinha. Sair daquela situação insípida onde se encontrava e de onde partia toda a rotina diária, toda neste instante dependendo de um momento, uma ação. Era brutal a sua simplicidade. Fernandes ficou imediatamente fascinado com o único oficio que a abelha teria: o de fabricar o mel que também lhe serviria de alimento. De alguma forma muito curiosa aquele amor seria reciclado e voltaria para ele, fazendo assim parte de um conjunto completo. Seriam, logo, amantes. Felicidade pensar assim. Deleitar-se com a ideia de um amor tão verdadeiro, bem que com uma criatura absurdamente animalesca. Conciliar a si mesmo com o outro e desfrutar desse amor cíclico seriam de todos os maiores presentes que uma ternura como aquela poderia lhe dar. Pousou lentamente nas mãos de Fernandes. Iludido, então, pelo afeto, entregou-se com fascinação a amante. Sentiu a carícia macia do casco da abelha lhe roçar a mão. Abriu-a, determinado a continuar naquele furacão de sensações, fazendo assim com que a abelha lhe desfrutasse da palma. O carinho tomava cada vez mais intimidade. Imergia dentro da palma como se já conhecesse o caminho de cor, e sabia como o enlaçar em sua privação. A abelha aproveita-se da carência de Fernandes, da turbulência de sua vida solitária. Tudo seria diferente agora. Não estava mais sozinho e teria a abelha para lhe amar. Aquele amor insinuante que dela brotava e que ele aceitava se esvaindo de qualquer culpa. O animal rolava, dançava e brincava com a palma do garoto enquanto ele próprio se divertia com aquilo tudo. Permitia tudo sem reservas, tudo poderia ser carinhoso e amoroso e paciente. Mas um pensamento assustador veio-lhe a consciência como que para lembrar que ele também era parte essencial da morte: “se eu fechar a minha mão...” Soou assim, em tom de ameaça. Ficou aterrorizado. Nunca quis perpetrar a abelha. A ideia veio-lhe advertir que ele haveria


de terminar tudo, se assim fosse necessário. A abelha seguia seu trajeto mesmo que fosse o da morte inferida pelas mãos de Fernandes. Mas desejaria unificar-se ao animal e não aniquilá-lo. E sentiu. Sentiu uma dor dilacerante. Algo lhe rasgava a pele e cravava-se nela de forma débil e ao mesmo tempo muito dolorosa. Olhou exasperado e percebeu: a abelha havia picado a palma de sua mão, e o ferrão agora pendia inerte, sem vida. Por que fizera isso?, pensou. Não poderia designar aquilo de outra forma que não traição. Nessa traição também incluía uma espécie de revelação, de vaticínio: a traição é a dor da morte. Pois, no exato segundo em que fora picado, Fernandes, por um ato de reflexo, fechou a mão com força e assassinou o animal. Tentou implorar perdão, desnorteado, a despeito de toda a dor que sentia. Mas a abelha já repousava silenciosamente na sua palma. Elevou-a até a altura dos olhos, era o último adeus, enfim. Manejou seu corpo petrificado com a ponta dos dedos da outra mão e, arrependido, sentiu vontade de chorar. Apenas não chorou porquanto tomou consciência do seu ato: para que a vida tivesse continuidade ela, a abelha, teria que ser livre. Para atingir essa liberdade profunda apenas a morte. Fernandes ouvira o chamado do amor e dele apenas sentira o desprezo. A partir daquele momento, o amor seria sempre visto como um calvário e cada término seria um cadafalso a percorrer. O bicho ainda estava lá, esperando o seu destino. Cabia a Fernandes decidir o que fazer. Nada faustoso seria-lhe consentindo. Pensou com afeição no reino das abelhas e se perguntou qual epitáfio seria dado aquela trabalhadora. Que frase sintetizaria a existência dela, que dentre tantas, amou-o de verdade? Sem dúvidas, as outras lamentariam a perda, mas afinal ninguém é tão insubstituível assim. Muito menos nesse reino cruel de escravidão. Novamente, a fatalidade encarregava a ele o destino do corpo. O corpo que não era mais corpo agora, era objeto. Sempre fora. Ao se livrar da abelha, porém, ele estaria livre para amar outros seres. Queria a vida, os poucos momentos que os dois desfrutaram antes do momento final, de novo, e a qualquer custo conciliar o


amor e a existência. Penou ao lembrar da traição e sentiu um gosto amargo de revolta. Como que em um rompante, aquela raiva foi distendendo-se dentro dele, viva e ao mesmo tempo entorpecida. Enquanto o corpo esfriava, a raiva dele o aquecia. Nenhum vento frio batia na janela agora. Começava a suar e isso lhe incomodava. Deveria tomar uma decisão rápida, Fernandes tinha que retornar, o fazer diário estava nos seus pés. Seu carinho pela abelha cada vez mais ia sumindo, tornava tão cristalino quanto a própria casca do bicho. Quis sair dali para poder clarear as ideias, mas não podia: o cadáver deveria ter um fim. Fim? Sim. Talvez a morte nem sempre seja a dor, há quem diga que ela traz alívio. Fomenta-la dentro de si todos os dias seria nada mais que um lembrete de que há vida. Lembretes e representações. Compensou esse pensamento mórbido mexendo um pouco o animal na palma da mão com a esperança que ele ainda se mexesse. Inútil. Mas a morte não é tudo. Seria amor afinal? Respirou fundo. Estava pronto para o réquiem. Olhou para animal morto na palma da mão e viu como ele jazia como se dormisse. Fernandes mirou as rosas que ainda pouco serviram de alimento para o bicho e decidiu fazer de uma pétala morta a campa que sepultaria o seu amor. Embrulhou o pequeno animal na pétala e ao longe parecia uma criança tão pequena quanto um embrião. Já não ligava mais para o ferrão que ardia em dor quase erótica na palma da mão, porque dela se sentia o prazer da paixão. Não pôde evitar o pensamento que na hora de maior entrega aquele amor o traiu. Deixou-se absorver por toda aquela onda de sentimentalidade e para tanto fechou os olhos. Queria apenas existir naquele momento. Seria como um dançarino entregando-se e deixando-se levar pela companhia de dança a qual pertence. Seguiria errado, assim. Já não precisaria de amor algum, a lembrança bastaria para o amante e as definições de otimista ou pessimista já não existiam. Do amor fez sua prece e seu jazigo, dessa forma existindo apenas para a lembrança. Não descartaria amor nenhum mas, viver aquele, jamais, e tão logo não podendo, dar-se-ia a infelicidade de poder orientar seu orgulho de viver a origem de todos os amores: a si mesmo. Praticar o auto-amor todos os dias formando um incansável novelo


de si mesmo, transbordando em tantas palavras, em atos que falariam por si e quem sabe ser tão primitivo a ponto de poder parar de falar e só então viver um existência de abelha. Ser infinito. Desejou essa vida: ser fragmentado, e conseguir dizer ao mundo que o inteiro já não existia mais, que o inteiro é falso e tudo há de completar-se um dia. Pegou naquele embrulho de rosa e o depositou próximo ao jarro de vidro que sustentava as rosas. Não restavam dúvidas que aquilo era o que o que deveria ter sido feito desde sempre. Agora era hora do adeus eterno, era a hora do adeus mais profundo e único. Queria escutar o nada e dele usufruir em forma de prece da realidade da vida. Eis o que precisava: voltar. Para onde, era isso que ele já não sabia. Voltar. Estamos sempre voltando para onde iniciamos, é mais ou menos essa a aritmética da vida, voltar incessantemente ao zero. Talvez Fernandes tenha percebido nesse momento que seu zero não era ao lado da abelha. Voltou a cozinha onde a família já almoçava. A mãe perguntou alguma coisa referente ao porquê da demora coisa que ele não respondeu com mais de três palavras. Sentou defronte a janela da cozinha e refletiu em coisas aleatórias. Depois pensou que talvez por ali entrasse outra abelha.

lira filho tem 22 anos, nasceu em Belém do Pará e é escritor iniciante. Teve contribuições para blogs de entretenimento e moda, como TrendCoffee. Atualmente, cursa medicina na UEPA.


vivendo em hollywood lucas barroso

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Você assistiu a muitos filmes de Hollywood e acreditou que beber e fumar te deixaria mais sexy, porque os personagens fazem isso o tempo todo e recebem uma atenção significativa das mulheres. Então, você vai lá: bebe e fuma. Repete a equação algumas vezes, mas sem resultado algum. Até o momento em que – eu estou resumindo a história – você senta sozinho em um bar. E essa triste cena se repete também. Pois o mais triste seria ficar em casa – ainda mais depois que você entregou os gatos para adoção e cancelou a TV por assinatura, porque quase todos os canais eram de culinária. Um dia, uma mulher se aproxima e pergunta se você tem fogo. Sim, lógico que você tem. Você faz um gesto ágil em seu Zippo falsificado e uma labareda surge e ilumina por pouco tempo o lugar. Você quase consegue vêla por completo. Depois, ela lhe pede uma bebida. É tudo muito estranho. Isso raramente aconteceu, pois você não está em Hollywood. Você já bebeu e fumou o suficiente para não cair nesse truque. Você está mais gordo e com uma péssima dentição. Sua pele não está boa. Só em Hollywood que os homens pisam fundo e ainda mantém os braços musculosos e barriga em dia. Sua aparência se assemelha a de um figurante totalmente inexpressivo. Você retorna a mulher. Não prestou atenção em quase nada do que ela falou. Algumas palavras e frases soltas, apenas. Cocaína; meu exmarido; meu filho está com minha mãe; essa cidade é uma


merda; esses políticos são um bando de ladrões safados; meu pai me batia; como os alugueis estão caros hoje em dia; os bancos estão acabando com a gente; televisão só transmite porcaria, tem um ou outro programa de culinária que eu gosto... Você só balança a cabeça, dá umas bicadas em seu copo, dobra as sobrancelhas ou oferece sorrisos curtos. Se fosse em Hollywood, ela seria uma espécie de modelo fotográfica ou garota da previsão de tempo fracassada e você aparentemente teria sorte em encontrá-la. Mas seria só uma isca. Depois das primeiras noites tórridas de sexo – em Hollywood o sexo é sempre quente –, vocês viveriam em guerra. Ela teria outros amantes. Você, outras. Os dois teriam crises de ciúmes. Seria uma barra, seria doentio. O final do filme seria uma fuga, deixando pequenos delitos ou crimes para trás. Você guardaria umas novas cicatrizes, que só trariam orgulho pra você – nem cicatrizes de guerra são mais motivo de orgulho, as de briga então... Ela, a personagem secundária, a coadjuvante da história, seguiria do ponto onde lhe encontrou. E, certamente, outro homem triste a acolheria. A resposta para tudo isso, ou a moral, pouco importaria. Seria só uma breve história de amor sem redenção alguma. Uma parábola onde os personagens se ferem por serem solitários e não encontrarem respostas. Afinal, quem tem pretensão em tê-las? Você acorda do transe que foi assistir a esse “filme b” e ri de toda essa bobagem que você inventou. Ela, que estava falando sobre como as crianças sabem ser cruéis, usando como exemplo seu filho de cinco anos que a chamou de puta na frente de toda a família em uma noite Natal, se surpreende com sua alegria repentina. Você se desculpa e diz que pensou numa besteira, numa piada. Ela quer saber o que é. Diz que ficou muito curiosa e também quer rir. Você pergunta se ela não quer seguir a conversa na sua casa. Lá você conta o que te fez cair em gargalhada. Ela aceita o convite. Fala que está ansiosa para ouvir a tal piada. Na verdade, você não sabe contar uma sequer, mas tem noites que vale a pena arriscar. lucas barroso é escritor e jornalista, autor de Virose (2013, Bartlebee). Mantém o blog Café Preto e Solidão.


joana e os dias ludmila rodrigues

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Tive dois sonhos. Um era assim. Eu estava num ambiente de gravação ao vivo, com bem poucas pessoas, e a pessoa que conduzia aquilo tudo me pedia indicação de um livro que eu tivesse lido e gostado. Eu ficava um pouco tímida ao ter que olhar para a câmera e falava de um livro que eu havia lido recentemente e realmente gostado, em que grandes filósofos apresentavam sua ficção, ou seja, seus lados autores literários. Eles faziam ficção quase contemporânea, era incrível. Eu começava a entrar naquilo e contar com detalhes, muito encantada, sobre a ficção de cada um, até que as pessoas começavam a rir um riso constrangido, desconcertadas, e eu não entendia. O apresentador parou minha fala e disse que o livro era uma grande ficção, se eu não tinha percebido. Eu não tinha percebido, respondi, e ele disse trata-se do mais novo livro de Antônio Usberco Sales, que está aqui entre nós, enquanto Antônio Usberco Sales me olhava com um misto de constrangimento e raiva e o apresentador estabelecia um paralelo entre seu livro e O último voo do flamingo, de Mia Couto. Eu baixei o rosto e tentei fazer com que minhas mãos o cobrissem, mas elas não eram grandes o suficiente, de modo que uma pessoa a meu lado não parava de comentar quão vermelhíssima eu estava. Tamanho era o incômodo de ter que continuar ali depois da vergonha excruciante que eu julgara ter passado, que eu pensava que ia morrer, e repetia, na minha cabeça: eu vou


ludmila rodrigues publicou os livros O rosto na xícara e Minha cabeça já não comporta tantos antigamentes. Cursa Letras Vernáculas na UFBA e mantém o blog ludmila-rodrigues.blogspot.com.br

morrer, não vou aguentar, eu vou morrer. Naturalmente, não tenho sequer vaga ideia de quem seja Antônio Usberco Sales. No outro sonho, era fim de tarde e os mosquitos de verão zuniam irrequietos. Estávamos numa casa distante e enfeitávamos a cerca de madeira com bolas vermelhas de natal. Eu olhava para o verde distante quando Vicente me confessou gostar de outra mulher. É tão doentio, o ciúme. Doía de um jeito tão insuportável, eu só conseguia pensar na quantidade de vezes em que ele não parara de ler jornal por mim. Eu olhava ele apertar o cordão preso à bola na cerca de madeira gasta e pensava em quantas vezes ele tinha continuado a ler o jornal, minhas mãos pálidas de pavor segurando a caixa cheia de bolas tremelicantes. Quem era ela, quem era ela, eu não sabia, doía tanto, meu deus. Me disse que ela tinha cabelos dourados e era linda, falou de trejeitos que ela tinha, de pequenezas encantadoras. Me contava de sua paixão como se desabafasse com um grande amigo, e eu pensava, pare, Vicente, não continue, eu não quero saber, por deus, mas continuava calada. Tanta coisa eu soube, tão forte e apertado era o nó na minha garganta que acordei berrando, num sobressalto. Vicente já deixara a cama. A semana vai se aproximando do fim e as pessoas vão ficando sorridentes e esperançosas. Esse clima que infesta as ruas e as casas e as tevês e os vizinhos me apavora. Fecho-me em contrário à humanidade: segunda-feira é o dia mais feliz que existe. Preciso da calmaria que é estarem todos fazendo o que lhes cabe, ocupados e cansados, tristes, resignados. Se vem a sexta-feira, não consigo suportar a felicidade da cidade, meu tédio, o jornal e o livro de Vicente, a vontade de morrer. Hoje é quinta-feira. Percebo que não é cedo, já quase anoitece. Ouço barulho de chaves, Vicente abre a porta e eu imagino que devo ter dormido muito. Me dá um beijo na testa, está um pouco suado e tem o jornal de hoje na mão esquerda. Eu devo ter dormido muito, realmente. A noite certamente será de insônia.


os óculos Marcella lopes guimarães

Chegou cedo à casa da filha. O convite era para o café e ela sabia que a filha madrugava. Até o café secar na garrafa, conversaram sobre os assuntos mais distantes dos afetos. Quando acabaram, ela se ofereceu para lavar a louça. A filha aceitou de pronto, afinal tinha uma leitura a terminar. Enquanto lavava a louça, pensava na proporção de páginas lavadas e xícaras lidas ao longo dos anos de vida comum. Quando a filha rompeu com essa convivência, sentiu o alívio de não ser mais confrontada com aquele silêncio opressivo só interrompido pelo barulho da página virada. Entretanto, quando a vida ensinou o desconforto da saudade, as visitas para tomar café juntas transformaram o barulho das páginas no seu coração.

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Secou as mãos, a louça podia ficar no escorredor. Viu a filha sentada no canto da sala para aproveitar a luz natural da janela. Surpreendeu os óculos no seu rosto. Na adolescência, tentara em vão usá-los para construir o personagem de intelectual a qual consagrou a vida. Conseguiu finalmente os óculos? A filha sorriu dizendo que eram só para leitura. Foi com tristeza que ela tinha recebido o vaticínio dos óculos para leitura há anos. Agora, a filha parecia tão calma! Sonho realizado? Sentou-se do outro lado da sala e pegou o bordado, fingiu conferir o acabamento para reparar na filha. Surpreendeu o branco acima do canto direito da testa. Era o sol no seu


cabelo negro? A concentração da filha favorecia o reparo disfarçado. Não era o sol. Você não vai pintar o cabelo? Não, eu estou gostando e sorriu calma diante do precipício. Quando decidiu que seria adulta, aos 14 anos, começou a pintar o cabelo; agora, decidida a não ser velha, continuava a prática. Achava inconcebíveis aqueles gostos da filha, mas havia perdido a esperança de demovê-los. Olhou seus óculos de leitura, o tufo branco acima do canto direito da testa e sentiu ódio. Aquele ódio que sentem os que amam de maneira feroz. Foi tomada por um desejo de pisar-lhes os óculos, de arrastar-lhe pelos cabelos até a pia do banheiro e esmagar uma bisnaga inteira da tinta mais escura que encontrasse, sobre a cabeleira salpicada de branco da filha. A respiração encurtava até inundar os olhos prontos a arrebentar, quando a filha interrompeu a leitura. Da calma que ela nunca compreendeu, sacou: Mãe, eu tô com uma vontade tão grande de comer bolinho de chuva. Para que esperar chover? E sorriu com seus dentes de leite.

Marcella lopes guimarães é carioca radicada em Curitiba e Professora de História Medieval na UFPR. Escreveu livros dedicados aos estudos literários, outros à História Medieval, publicou artigos científicos em revistas brasileiras e estrangeiras e colaborou no suplemento literário Rascunho. Destaque-se a coleção de livros sobre Identidade, Alteridade e Memória para a Editora Positivo, que tiveram como público alvo crianças de 6 a 10 anos. Seu livro Capítulos de História: o trabalho com fontes, editado pela Editora Aymará, foi selecionado no PNBE do Professor em 2013.


a aula mariel reis

Tia Débora, o dever está pronto. Ela recolhia com má vontade o caderno para inspecioná-lo. A saia não estava tão comportada como na semana passada, a diretora chamoulhe a atenção devido ao traje provocante. A reprimenda só aumentou sua exasperação para que o dia terminasse de uma vez, para que corresse para casa e pudesse divertir-se à vontade com seu amante. Professora, posso ir ao banheiro? Débora todas as noites assaltada pelo desejo, enrolava-se na corda de sua filha, subtraída quando ela dormia. Fazia um rolo com a corda trançada, punha dentro de uma fronha e a enfiava entre as pernas. Apertava firme entre as coxas. Enrolava parte do cordame nos pulsos, como se estivesse amarrada pelo amante imaginário, comprimia o rosto contra o travesseiro para abafar o ruído do gozo.

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Tia ele implicou comigo, recordava-se que a dobrava, entrelaçando com o que sobrava daquele ‘v’, encorpado com as voltas que se lhe dava, tornando-se um suplício. Ela extasiada por tê-lo em suas mãos, a textura rústica que o enrijecia como era de seu interesse. Depois o cobria com o preservativo, besuntando com vaselina. Não sem antes açoitar-se. Deixando as nádegas em fogo, prontas para receber seu suplício. A dificuldade para manter sua


forma não lhe era problema, intensificava mais o prazer em introduzi-lo em si mesma. Briga na sala, tia Débora. Ela cavalgava com seus olhos fechados, imaginando os prazeres que sua filha sentia quando espancava aqueles meninos. Ela não aprovava seu comportamento, mas compreendia perfeitamente a competição desleal desses tipos. O desperdício, essa perda para um sexo tão bestial. As coxas estremeciam, toda ela era presa de sensações incomparáveis, nem mesmo sentidas quando acompanhada do pai de Nádia. Ralhou para que fizessem silêncio e se concentrassem em seus deveres. O sexo intumescido, avolumado pelo desejo, acalmado pelas coxas que se apertavam com discrição por baixo da mesa. Disfarçava o regozijo, mergulhada em leitura de revista, que se interrogada não saberia responder nada do artigo que fingia ler. O sinal do recreio acudiu Débora do apuro de explicar porque sua cadeira estava molhada. Quando pediu ao faxineiro para limpar seu lugar para a aula à tarde, recorreu a desculpa de flacidez no períneo.

mariel reis é contista, ensaísta e editor. Publicará, pela editora Oitava Rima, no 1º semestre de 2015, o livro Bordel de Bolso


A noiva e seu pai morena madureira

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Sentada em frente a um espelho, a noiva espera. Já está pronta há meia hora. Tem até o buquê na mão. Diz o convite que a cerimônia começou há 10 minutos. Claro, todos sabem que ela vai atrasar. Ninguém imagina que chegue antes de uns 40 minutos após o horário combinado. Mas ela não está ali fazendo hora. A noiva está à espera do pai. E olha que essa não é a primeira vez que isso acontece, não. Na escola, a noiva era sempre a última a ir embora. Todo dia o pai chegava mais ou menos uma hora após tocar o sinal da saída. A cena era sempre a mesma: depois de observarem as outras crianças irem embora uma a uma, num incessante bater de portas de carro e kombis escolares, restavam ela e a inspetora, sozinhas na entrada do colégio. Nos aniversários dos colegas era assim também. A noiva ficava até o fim da festa, horas após o parabéns. Exausta depois da tarde de corre-corre nas brincadeiras com a garotada, ela ainda encontrava energia para pegar numa vassoura e ajudar a mãe do aniversariante a arrumar a casa. Só assim conseguia distrair-se da angustiante demora do pai. Agora, do outro lado da cidade, em um quarto fedorento de pensão, passados 20 minutos do início daquele que deveria ser o grande dia de sua filha, o pai da noiva também está diante de um espelho, e tenta, em vão, apertar a gravata borboleta por cima da camisa amarrotada que veio no paletó alugado na tarde anterior.


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Seu dia começou com umas cervejas, lá pelas dez da manhã, emendou num rabo de galo depois do almoço e já está nos shotzinhos de conhaque. O telefone toca pela décima vez. É ela de novo, sua ex-mulher. Ele não atende. Imagina que a bruxa esteja berrando mais impropérios para a secretária eletrônica. Ele se serve de outra dose de conhaque. Mas é claro que o pai da noiva não está com a consciência limpa. Ele sabe que está atrasado. Que deveria ter feito a barba e tomado um banho antes do casamento de sua única filha. Que mais uma vez está dando motivos para a ex-mulher lhe chamar de bêbado, irresponsável, viado, filhodaputa, etc. Mas nada disso lhe desperta tanto o interesse quanto uma nova dose de conhaque. Enquanto isso, a noiva continua paralisada em frente ao espelho. Está imune aos berros de sua mãe suada, borrada e descabelada de tanto andar freneticamente pela casa ligando para o crápula do ex-marido, que mais uma vez a deixou sozinha com uma bomba na mão. Imersa nos flashbacks das bebedeiras do pai, a noiva nem consegue pensar no noivo, em como a essa hora, passados 30 minutos do horário impresso em letras douradas no convite da boda, deve estar roendo a última lasca de unha que lhe resta nas mãos, sob os olhares patrulhadores da mãe dele, a sogra mais desconfiada que a noiva já teve e cuja confiança demorou anos para conquistar. Subitamente, ela se levanta da penteadeira e corre até o carro alugado que a espera na porta da casa. A mãe nem viu, está deixando mais um recado mal-educado na secretária eletrônica do ex-marido. Senta-se no banco de trás com dificuldade, amontoa a cauda do vestido e fica pensando aonde deve ir. Quando o chofer a deixa em frente à pensão fedorenta do outro lado da cidade, já se passaram 50 minutos do início do casamento. A noiva vê o pai deitado na cama. Está de cueca e ronca ruidosamente. Nas mãos, a garrafa de Dreher já quase vazia e um cigarro ainda acesso. O paletó alugado jaz no chão, em uma pilha indefinida de peças. A noiva pega o cigarro entre os dedos do velho e dá um trago. Na garrafa, dá um longo gole, até que a esvazia. Ela observa o traje de seu pai empilhado a seus pés e dá um sorriso enigmático.


Na porta da igreja, uma hora e vinte minutos depois do horário marcado, a noiva chega no carro alugado e é recepcionada pela figura histérica da mãe, a quem diz, determinada, que veio sozinha e assim vai entrar em sua cerimônia. Depois da entrada de padrinhos, mãe, futuros sogros, damas de honra, é a sua vez. Ela posiciona a garrafa vazia de Dreher, que está vestida com a gravata borboleta no gargalo, entre o braço e o antebraço. E assim a noiva entra na igreja, sob os acordes previsíveis da marcha nupcial, acompanhada pela mais perfeita tradução de seu velho e mais uma vez ausente pai.

morena madureira é paulistana, mas desde criança sabia que vivia na cidade errada. No Rio, encontrou seu lugar. Ao menos por enquanto. Entre as efemeridades da vida, uma certeza: a paixão pela palavra, que paga suas contas e acalma seu coração.


dançando com garrafas vazias na banheira de tijolos victor hugo turezo

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jairo abriu os olhos, tocou a barriga nua e ensanguentada, e levantou-se vagarosamente. observou que o corpo de uma mulher jazia no carpete imundo. o vestido estava com as alças cortadas e vários buracos. pôs a mão sobre os ferimentos da mulher, que aparentava não ser tão velha mas nem tão nova assim. a cara chupada dava-lhe um aspecto de sofrimento. os cabelos semelhavam com palha envelhecida, e as unhas com foices amarelados e descascados. não dava sinais de que iria despertar e movimentar os ossos muito cedo. ele jamais fora àquele local. começou a martelar as ideias, tentando lembrar-se da noite anterior. ou dos dias? não sabia o tempo que permanecera naquele lugar. iniciou uma análise geral. mancando – sua perna estava comprometida, uma espécie de barra de ferro tinha sido colocada estrategicamente em seu joelho, provocando uma ferida horrenda –, foi até o banheiro. os azulejos misturavam-se à sujeira. verdes, amarelos azuis e brancos. tudo naquele túmulo parecia podre. bege. o vidro do espelho havia sido quebrado em quatro partes. dois pedaços menores estavam no chão, com a extremidade pontiaguda tomada por sangue seco. os outros dois estilhaços haviam sumido. dentro da banheira, tijolos moídos. a cada minuto que passava enclausurado no ninho, jairo sentia-se cada vez mais estranho. decidiu revirar os fragmentos de tijolos. pegava-os de forma violenta e os jogava para fora da banheira. cortava as mãos toda vez


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que partia, ávido, para uma nova investida. não demorou muito e suas mãos estavam encharcadas pelo líquido vermelho viscoso. gotas e mais gotas respigavam no chão. a cor do piso do banheiro, antes irreconhecível, agora refletia o sangue atônito de jairo. a dor parecia não incomodá-lo. estava extasiado, pelo ar, pelo ambiente deteriorado e pelo desespero. continuava trabalhando na retirada dos tijolos. de repente, sentiu uma coisa gelada. retirou mais alguns pedaços e se deparou com garrafas de cerveja em meio à cubos de gelo. alguém estava ali, se embriagando, rindo e fazendo buracos em nossa pele, pensou. abriu a cerveja, dando uma longa e barulhenta talagada. atravessou o quartinho, passando o pé por sobre a mulher, que ainda continuava esparramada no carpete, e foi até a janela. afastou a cortina e tentou abri-la, mas estava emperrada por madeiras irremovíveis nas extremidades. pegou uma camisa do chão, passou no vidro empoeirado, e avistou do outro lado da viela estreita, uma mercearia, familiar aos olhos, mesmo combalidos pelo cansaço. pôde deduzir que estava num edifício. talvez dez andares o separassem do térreo. fixou o olhar no local, tentando avistar qualquer transeunte flutuando pela rua morta. esperou por trinta minutos, o relógio acima da cerejeira despedaçada acusara o tempo através do tique-taque ensurdecedor. já sem esperanças e agonizando com o barulho, ouviu passos que aparentavam vir do outro lado da porta, no corredor. fincou ainda mais o ferro para dentro do joelho, tentando alcançar a entrada do calabouço. escutou um barulho de porta se abrindo, e uma balbúrdia irrompendo as paredes do cômodo. risos, gritos, copos sendo quebrados e notas de piano. ensaiou alguns urros ensandecidos, mas logo desistiu. começou a achar que o quarto era invisível às pessoas. a mulher ainda aparentava estar desacordada, mas jairo notou que a posição de suas mãos havia mudado. parou ao lado do corpo, agachou-se com certa dificuldade e lambeu-a. passava a língua pelo rosto todo. ela despertou, com o olhar assustado, mas não moveu sequer um dedo. a língua contornava a face da mulher. os fios de saliva repousavam sobre o rosto, formando pequenas poças que, em poucos segundos, se transformaram em grandes lagos de cuspe. de


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súbito, avançou-lhe como um animal. mordeu-o no pescoço, abocanhando a pele e triturando-a com os dentes afiados que mais pareciam abridores de lata. jairo deu um salto para trás. no impulso, contorceu o joelho ferido, e a dor agora era insuportável. recostou-se na madeira partida, totalmente moído e exausto. sentiu que não conseguiria mais andar. amaldiçoava a mulher em seu pensamento, enquanto ela arquejava no canto da parede bege. a mulher aproximouse de jairo, tentando entender o que estava acontecendo e que lugar era aquele, onde um homem debruçava-se sobre o corpo de uma mulher aparentemente morta e a lambia. os dois estavam submersos num oceano escuro, onde a luz custava entrar por aberturas minúsculas. maníacos no apartamento ao lado festejavam a morte dos chamados ‘porcos’ – bêbados indigentes que manchavam as ruas da cidade. “os porcos e suas garrafas de plástico fodidas não mais contaminarão as ruas”, bradavam, estourando os punhos na mesa. logo perceberam que não estavam ali por acaso. viviam nas ruas com suas garrafas de plástico, pedindo dinheiro e praticando pequenos furtos em mercadinhos mais sujos que as roupas esfarrapadas envolvidas em seus corpos ensebados. os gritos ensurdecedores dos psicopatas entravam e explodiam nos tímpanos de jairo e da mulher. fincavam como agulhas. ecoavam nas entranhas, cada vez mais alto e forte. olharam para a porta. a maçaneta girou, estalou, e a porta se abriu. um homem de barba espessa, terno bege enrugado, com olheiras e calçando sapatos bem conservados, adentrou bruscamente no recinto. cheirou o ambiente carregado de sangue e pó. aproximou-se da mulher e fincou-lhe um prego bem no meio da testa. jairo simplesmente não conseguia reagir. o joelho, completamente contaminado pelo ferro, logo teria de ser amputado. para a sua surpresa, o assassino de porcos desaparecera pela porta. a mulher sucumbia no carpete e logo seria engolida completamente pela morte. jairo pôde ouvir o último suspiro, que buscava pelo último pedaço de alma. jairo continuava sem poder se mover. havia uma banheira de cerveja há cinco metros de seu corpo e ele não podia se mexer. resolveu cortar a própria garganta com um pedaço de


vidro da garrafa de cerveja que tomara. o sangue esguichava, lavando o c么modo de vermelho. enquanto agonizava, do outro lado da parede podia ouvir as notas de piano e o grito dos matadores. morrera com as gostas do l铆quido que tanto apreciava, secas, entre os dedos esfacelados.

victor hugo turezo cursa jornalismo. Nasceu em Curitiba.


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ATSIVER SOTNOC ED


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