Bastiao #19

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EDIÇÃO 19 // ANO 3 // 2014

SEBASTIÃO SALGADO SEMIABERTO FILAMAN MARLEY

bastiao.net


Em meio ao caos do mundo, o principezinho reflete sobre PangEia. Ele não sabe mais ser humano. Agora quer ser outra coisa. VEJA MAIS de Salvatore D’Amore Adam em: behance.com/salvatoreadam pensando no discurso de sebastião salgado sobre a grandeza da natureza, o ilustrador shiko (DERBY BLUE) preparou a capa dessa edição. confere mais alguns trabalhos dele aqui:. flickr.com/photos/derbyblue


// EDITORIAL

Olha ele ali! Onde? Tá ali, ó, no cantinho. Não tô vendo... Mas eu tô, e agora que vi não consigo olhar pra outra coisa, tá cada vez maior. Onde? Não vejo nada! Mas como não? Não para de crescer, eu quase não te vejo mais, de tão grande... meu deus, como eu nunca tinha percebido?! Mas que agonia, não tinha percebido o quê? Esse teu imenso preconceito! ssshhhh, não espalha! É assim, de cantinho, que ele vem. Enraizado, se acha de casa e invade as nossas cabeças, mina as nossas relações, impede o nosso crescimento. Despercebido, às vezes de onde menos esperamos, vem à tona. Explicita o que temos de pior. Como impedir? Antes de tudo, assuma: sou preconceituoso. Machista, homofóbico, racista e moralista. Nós somos também. O nosso pensamento médio está sempre impregnado de preconceito. A culpa não é inteiramente tua, e nem nossa, bem verdade. Nascemos em uma sociedade opressora que cria, geração após geração, mais e mais opressores. O ciclo é vicioso e atinge mulheres e homens, pobres ou ricos (e não escreveríamos, sem refletir, homens antes de mulheres e ricos antes de pobres?). Porém, mesmo que se divida a culpa com a sociedade, ainda cabe a nós escolher perpetuar esse ciclo ou não. A negação aos preconceitos deve ser um exercício diário. É duro e cansativo quebrar ideias implantadas em nossas cabeças desde muito cedo. É doloroso perceber todas as vezes que fomos coniventes e, por isso, comparsas no crime. Talvez nos custe tempo, saúde, horas de sono, até mesmo algumas amizades, mas já passou a hora de abandonarmos essa cumplicidade

silenciosa, tão danosa quanto o preconceito em si, por permitir que a opressão siga livre a sua saga destruidora, cada vez mais intolerante. Gritar chora macaco imundo não pode, nem no estádio nem em lugar nenhum. A mulher nunca será a culpada em um estupro. E ela poderá usar a roupa que quiser, do jeito que quiser, a hora que quiser. A vítima não será responsabilizada pelos atos do agressor em hipótese alguma. Se algum negro, gay, pobre, mulher, gordo ou gorda cometer um erro, não será pelo fato de ter essa característica, mas sim por ser humano e estar sujeito ao erro. Qualquer um que pensar “bem coisa de [insira a característica]!” está cometendo um erro muito mais grave. Vai demorar até que consigamos desconstruir as ideias estereotipadas da sociedade. Sabemos disso, mas isso não impede que façamos a nossa parte agora – na verdade, impõe que comecemos o processo de mudança nesse exato momento. Já perdemos tempo demais. Vamos nos policiar. Não vamos permitir nenhuma atitude ou fala que diminua e abuse do próximo. O simples fato de sabermos que “é feio” pensar de forma preconceituosa em qualquer situação já é um avanço, pois a autocensura impedirá que os preconceitos, até o menor deles, como a ordem em que escrevemos determinadas palavras, se perpetuem. Optar, agora, por silenciar pensamentos absolutamente descabidos, vai, pouco a pouco, nos educar. Chegará o dia em que abusos contra qualquer minoria serão considerados tão absurdos quanto hoje são o trabalho escravo e o nazismo. Até lá, temos muitas lutas por lutar.

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Veja Bem

sebastião salgado Redação André Lacasi Arthur Viana Carlos Machado Cíntia Warmling Douglas Freitas Gabriel Rizzo Hoewell Ingrid Haas Pilar Luiza Müller Nádia Alibio Sergio Trentini

Lite Ra Tura

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foto

Projeto gráfico DIaGRAMAÇÃO

Produção gráfica Gilberto Sena

Revisão Lisiane Andriolli Danieli

Capa Shiko

A LIBERDADE NUNCA É PLENA

Li vrar te

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MiniR repor ta gens

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KBUMM Design Ana Elizabeth Soares André Lacasi

Especial

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Reportagem

GRITOS DE FILAMAN

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Arte André Lacasi Nádia Alibio Ramiro Simch

Relacionamento Luiza Müller

Fotografia André Lacasi Ingrid Haas Pilar

Colaboradores Eduardo Osório Helena Campos Alibio Leo Lopes Marcelo de Souza Fraga Salvator D’Amore Adam Samuel Sanção Moura

Comercial 51 9166.1799 // 51 3311.1025 Praça Júlio de Castilhos, 74/152 Porto Alegre – RS – Brasil

bastiao.net facebook.com/revistabastiao twitter.com/revistabastiAo


A sUbsTÂNCIA EssENCIAL DO TRAbALHO DE vITOR TEIXEIRA É A CRÍTICA POLÍTICA E sOCIAL. NAs sUAs ObRAs, ELA sE FUNDE À sUA CRIATIvIDADE E TALENTO. FB.COM/VITORTEGOM

arquivo morto texto: Nádia Alibio ilustração: Helena alibio (2014)



// VEJA BEM sebastião salgado

sebastião salgado, o fotógrafo mais renomado do brasil, ajusta o foco para a natureza

Uma volta em direção ao planeta A

s sobrancelhas brancas, espessas e desgrenhadas desviam a atenção. Mas, ali, logo abaixo, em cavidades oculares fundas, como se fossem cavernas na face, estão os olhos azuis de Sebastião Salgado. Deveria ter olhos atípicos, marcados de alguma forma. Entretanto, os olhos que viram a mazela humana nas mais sinceras formas são calmos e firmes. No terraço da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, o fotógrafo concedeu esta entrevista. O tempo de conversa foi curto. O resultado, nem tanto. Ao que se sabe, a subjetividade artística do fotógrafo e a realidade do objeto fotografado estabelecem uma troca instantânea. Ninguém sai ileso. De qualquer conversa com Sebastião Salgado, tampouco. Através da lente, captou a miséria humana como ninguém. Em Êxodos, a dura realidade de pessoas que foram obrigadas a sair de suas casas, desalojadas pela guerra, repressão ou desastres naturais o marcou. Abaixou a máquina por algum tempo. Sebastião e sua companheira, curadora, editora, produtora e organizadora, Lélia, fizeram o caminho inverso. Voltaram para casa. Mudaram-se para a fazenda, no interior de Minas Gerais, onde Sebastião viveu sua infância. O lugar estava morto. Desenvolveram, então, um plano de recuperação ambiental. A partir disso, criaram o Instituto Terra, no qual desenvolvem projetos ambientais no Vale do Rio Doce. A recuperação progressiva do ecossistema outrora degradado trouxe o ânimo necessário para o casal desenvolver um novo projeto fotográfico. Genesis. Lugares em progresso são aqueles em que o homem moderno toca, segundo o homem moderno. Sebastião ajustou o foco no oposto: na natureza, na vida animal. Lugares em sua origem, intocados. Também não saiu ileso. Afirma ter aprendido que fazemos parte de um todo, que tudo é integrado, é vivo, é um planeta. “Nós somos natureza”, garante o fotógrafo com seus olhos fundos e tímidos, mas, sobretudo, expressivos.

// Entrevista EDUARDO OSÓRIO & SERGIO TRENTINI // Foto sergio trentini

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REVISTA BASTIÃO // ABRIL OUTUBRO 20142013

O projeto Genesis tem um foco um pouco diferente dos outros. Ele nasceu ou tem uma relação com o trabalho desenvolvido por vocês no Instituto Terra? Perfeito. O conceito do Genesis nasceu em Minas Gerais, no projeto de recuperação ecossistêmica de um pedaço da Mata Atlântica no qual nós trabalhamos. Antes disso, estive envolvido em um projeto muito duro na África, o Êxodos − inclusive, apresentamos aqui no Gasômetro no ano 2000. Nesse projeto vivi coisas muito duras, então, por um tempo, parei de fotografar e voltei para o interior de Minas. Foi quando começamos essa recuperação ambiental. Quando vi voltando a água, as árvores, os insetos, os pássaros e os mamíferos a uma região que estava sem vida, me deu uma vontade muito grande de fotografar outra vez. Foi aí que quis fotografar a natureza. Assim nasceu o conceito do projeto Genesis.

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fotografo árvores, pois um terço do projeto é composto de seres humanos, mas seres humanos que vivem ainda em total equilíbrio com a natureza. A história desse projeto se parece muito com todas as outras. São histórias importantes para o momento histórico que todos estamos vivendo. Histórias que movem o planeta. No passado, fiz um livro chamado Trabalhadores, que retrata o fim da grande Revolução Industrial e o início da grande globalização no início dos anos 1980. Fiz um livro sobre os movimentos das populações; hoje, terminei um livro sobre o meio ambiente. Naquela época não se discutia o meio ambiente, e, hoje a gente integrou o meio ambiente dentro de um debate global. Acho isso muito importante. Aqui em Porto Alegre vocês tiveram o Fórum [Social] Mundial, onde se discutia exatamente as condições sociais e ambientais do planeta, então eu acho que o ambiente é um pouco novo dentro da discussão, mas é tão essencial quanto a questão social.

As fotografias da natureza substituíram as fotografias do ser humano em contextos sociais. Quais diferenças você notou nessa mudança de contexto?

Você sempre declarou que não “tira” as fotografias, mas as pessoas te “presenteiam” com elas. E com os animais, como foi essa relação?

Não mudei de um projeto em que fotografava seres humanos e hoje

Igual. Não tem diferença nenhuma em fotografar um ser humano

“Eu não gosto do termo primitivo. É quase um termo de julgamento. No sentido que se os consideramos primitivos, é porque nós não somos. Nos achamos superiores, entende?”


// VEJA BEM SEBASTIÃO SALGADO

“Se fizéssemos essa volta em direção à cultura indígena, faríamos uma volta em direção à nossa autoestima”

e outra espécie de animal. Você precisa respeitar o território desse animal e ter, de certa forma, uma autorização. É necessário fazer uma aproximação respeitosa em direção a ele. Isso funciona da mesma forma, mesmo com as árvores, com as montanhas. Você pode fazer uma foto da montanha, mas para isso ter um sentido, é preciso aprender porque você está ali e tentar entender e ver que aquela montanha é tão viva quanto você. Ela é totalmente sujeita ao vento, à luz, à erosão, ao planeta. É preciso ver a evolução − em total crescimento ou em total decadência. Quando trabalhei nas Montanhas Rochosas, um cientista me explicou: “Olha, Sebastião, essas montanhas são jovens. Jovens porque ainda estão em crescimento. Elas crescem não sei quantos metros por ano. A antiga montanha rochosa que tinha aqui erodiu há alguns bilhões de anos, até chegar ao nível zero. Aí essa outra nasceu e está crescendo”. Então eu acho que se tivéssemos capacidade de ver a vida em centenas de milhares de anos, poderíamos compreender que fazemos parte de um todo, que isso tudo é integrado, é vivo, é um planeta. Nós somos natureza. E compreender isso me deu um prazer imenso.

Os seres humanos das comunidades que foram fotografadas eram bastante primitivos? Como foi a integração e aceitação deles? Eu não gosto do termo primitivo. É quase um termo de julgamento. No sentido que se os consideramos primitivos, é porque nós não somos. Nos achamos superiores, entende? Mas, na realidade, trabalhando com essas populações, vi que tudo que nós somos é muito mais velho do que imaginamos. Tudo que é essencial para mim, tudo que é importante, já era essencial, já era importante há tempos. Essas populações amam como eu amo, gostam dos filhos como eu gosto. Eles têm os mesmos sentimentos que eu. Vivem exatamente da mesma maneira. Tudo que é forte e essencial para mim, é forte e essencial para eles. A única diferença é que eles não consomem como eu consumo, não poluem como eu poluo e vivem em comunhão com a natureza. Eles são natureza. Sentem a terra, sentem as árvores que nós, imigramos para a cidade e as abandonamos. Abandonamos nosso planeta. Não somos mais seres

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“Não somos mais seres humanos, começamos a ser outra coisa”

humanos, começamos a ser outra coisa. As pessoas que moram em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo não moram no Brasil. Elas moram em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Não têm mais contato com o planeta. Nós somos um animal como todos os animais e devíamos nos voltar em direção ao nosso planeta, mesmo que fosse espiritualmente, nós devíamos fazer essa volta.

Em relação ao seu trabalho com as tribos indígenas: O que acha que deveríamos aprender com essa carga cultural que o índio carrega? O brasileiro, às vezes, vai procurar a referência do próprio passado em Portugal, na Itália, no Japão, na Alemanha. Imagina que a história dele esteja lá. Mas a verdadeira história dos brasileiros está no Brasil. Temos uma grande cultura indígena e um grande componente da raça dos brasileiros é indígena. Nós

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tínhamos que ir mais em direção à cultura indígena, tínhamos que conhecer mais. Respeitando essa cultura, teríamos uma maior autoestima. É uma cultura que tem muito para dar para gente. Temos tanto que aprender. Se fizéssemos essa volta em direção à cultura indígena, faríamos uma volta em direção à nossa autoestima. O Brasil já tem uma vantagem muito grande: é o único país do mundo que tem 12,5% de sua área de território indígena. O Brasil teve um comportamento interessante em relação aos índios. Os Estados Unidos destruíram a cultura indígena totalmente. Canadá e Austrália, a mesma coisa. Esses grandes países tiveram comportamentos muito duros em direção às populações autônomas. O Brasil não. Existe uma grande instituição chamada FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que conta com um grande grupo de antropólogos e indianistas fantásticos. O Brasil fez essa proteção ao índio e, hoje, acho que nós temos que continuar essa proteção e criar

um movimento nesse sentido. Quem sabe, ajudaríamos a nossa juventude − os jovens que estão na universidade, na escola secundária − a ir em direção a essa cultura e respeitá-la. Só teríamos a ganhar, porque existe uma grande ligação entre as populações indígenas e a malha florestal do Brasil. E precisamos muito dessa floresta.

Para finalizar, Sebastião, como você se insere na sua fotografia e o que tira dela para si? É difícil falar. Não sou realmente um repórter, nem um fotógrafo documental, tampouco sou um jornalista. Essas fotografias são a minha vida. São a minha ideologia, minha ética. Eu passei oito anos para fazer esse último trabalho. Se eu viver 80 anos, serão 10% da minha vida voltados para isso. Para a fotografia. Por isso, penso que vivi minhas fotografias de forma intensa. E é como a vida da gente deve ser: intensa.


OM C O D A P PREOCU E DE OPERÁRIOS A MORT S DA COPA? EM OBRA

// VEJA BEM SEBASTIÃO SALGADO

PELÉ

M ISSO! O C R A S S : RE IS SE EST SINTOMAS COMO A M A IS ÃO PREC ESSE E OUTROS N Ê C O V TE AGORA , COMBA L O M R O N CHEGOU

ores d a r o m de remoção nto e m a r u t superfa dios n í e d o ã expuls tantes s e f i n a em prisão d licial o p a i c n violê tebol u f o n o racism

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ESTE MEDICAMENTO É CONTRAINDICADO EM CASO DE SUSPEITA DE DENGUE AO PERSISITIREM OS SINTOMAS, OUTRA PESSOA, QUE NÃO O PELÉ, DEVERÁ SER CONSULTADA ESTE PRODUTO NÃO É VERDADEIRO. TRATA-SE APENAS DE UMA CRÍTICA À NORMALIZAÇÃO DE ABSURDOS EM PROL DE EVENTO MILIONÁRIO


REVISTA BASTIテグ //ABRIL 2014 // FOTO LEO LOPES


quilombo de santiago do Iguape, na bahia, pelo fot贸grafo carioca Leo Lopes. Esse e outros retratos e momentos registrados pelo brasil em bit.ly/FotosLeoLopes



// FOTO DOUGLAS FREITAS

O

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Se a Salada Mídia fosse um personagem de desenho animado, ia caminhar sempre com uma lâmpada acesa acima da cabeça. Falta de boas ideias? Este é um mal do qual ela não sofre, eu garanto.

Acontece que a Salada não é fictícia, e muito menos um personagem só. É um grupo de pessoas de verdade, pensando e fazendo vídeo de verdade, profundo, visceral. Diferente, porque o comum não vale a pena. Ir pra rua e voltar igual não adianta nada, adianta? “Vocês são criativos até demais!”, eles ouvem por aí de vez em quando. Eu acho engraçado. Criatividade tem limite? Não! Não tem prazo nem orçamento. É só deixar de lado a visão costumeira das coisas. Abrir não só os olhos, mas o olhar. Ajuste o foco e pronto: um admirável mundo novo a cada take. Não se dê por satisfeito quando estiver apenas começando, foi o que a Salada Mídia me ensinou. A pegada é essa. Ação! Ramiro Simch

Membro da Revista Bastião e parceiro da Salada Mídia

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REVISTA BASTIテグ // ABRIL 2014

A liberdade nunca テゥ plena // Texto e reportagem Arthur Viana & Sergio Trentini // Fotos sergio trentini

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// ESPECIAL

As frases grifadas são comentários feitos em matérias sobre o sistema prisional nos sites Terra e G1. Infelizmente, não foi necessária uma busca muito longa para encontrá-los.

A lógica é simples: quem comete uma infração, assume uma dívida e deve pagar por ela. Hoje, a pena é a exclusão temporária do convívio social. Após determinado período, a pessoa gradualmente reintegra-se à vida em comunidade. Sem dever nada a ninguém, pode retomar seus projetos. Não é o que acontece. Quem comete um crime, sobrevive em um ambiente precário e violento, ficando marcado pelo resto da vida. O Estado não cumpre seu papel estabelecido por lei: não fornece condições mínimas para que o preso se recupere. A sociedade também fecha os olhos, e o que acontece fora da sua vista não importa; o outro lado do muro é um mundo distante. Sem atrair holofotes, investimentos no sistema prisional não ganham eleições; logo, não valem a pena. Enquanto isso, paradoxalmente, iniciativas isoladas tentam burlar o sistema para fazer ele funcionar. Após cumprir um sexto da pena, o detento pode trocar o regime fechado pelo semiaberto, podendo até trabalhar. Chamam isso de progressão de regime. Que fique claro que o avanço é estrito nesse sentido. O preconceito é retrógrado, e impera.

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m terço da vida Jucimar Alberto de Cândido, 32 anos, passou preso. Jarbas dos Santos Ávila, 27 anos, afirma que desde os 14 deve ter ficado no máximo dois anos em liberdade. Carlos Vanderlei Pereira da Silva, 32, e Márcio da Luz, 30, também passaram longos períodos trancafiados em presídios, misturados à imundície e suportando péssimas condições estruturais. São vidas adultas inteiras convivendo com o descaso do poder público e a discriminação da sociedade. Matou, morreu, não tem perdão. Que morram e apodreçam entre os ratos. Cadeia não é colônia de férias. Se preocupem primeiro com as pessoas honestas que vivem sem as mínimas condições de dignidade.

Mesmo em tais condições, Jucimar, Jarbas, Carlos e Márcio superaram o período no regime fechado e progrediram para o seGeração após geração, adolescentes engravidam. miaberto. A progressão é permitida após o cumprimento de um o ciclo, entretanTo, pode não implicar sexto da pena . Hoje trabalham, na quebra da trajetória delazer, vidaconvivem, das mães têm dias de vivem. Talvez não por completo, pois carregam para sempre a chaga de ser presidiário no Brasil. O fardo é quase insuportável; o preconceito, imenso. 17


REVISTA BASTIÃO // ABRIL 2014

Aquele que mata uma pessoa, seja quem for e por qual motivo seja, deveria ser preso até o morto voltar. Os quatro trabalham na mais antiga empresa de transporte coletivo do País em atividade, a Carris − sociedade de economia mista com o controle acionário da prefeitura de Porto Alegre. A companhia participa do PAC − ainda que a sigla se encaixe, não significa Programa de Aceleração do Crescimento, mas sim Protocolo de Ação Conjunta −, uma iniciativa da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) para reinserir os presos no mercado de trabalho. As empresas envolvidas ganham benefícios, como a isenção de todos os encargos sociais devidos aos demais empregados, e o preso, além da oportunidade, ganha a diminuição da pena: a cada três dias trabalhados, reduz-se um dia da punição. Segundo dados do Sistema Nacional de Informação Penitenciária (InfoPen), apenas 18,45% da massa carcerária brasileira tinha algum trabalho em 2011, fosse ele interno (nos próprios presídios) ou externo. Ao todo, hoje, 52 presos trabalham na Carris. A companhia participa do PAC desde 2001 e, de lá para cá, 1.397 apenados já passaram pela empresa. Eles recebem salário (75% do mínimo) e alguns benefícios. Jarbas revela que, no

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montante, a remuneração chega a R$ 950. Porém, além do salário, recebem também uma alta dose de preconceito: o uniforme é diferenciado, o vestiário é separado e o banheiro é único, afastado, sendo expressamente proibido que utilizem qualquer outro, sob pena de exclusão do programa. Márcio conta que, de tão grande a fila, tem vezes que alguns não se seguram e vão na grama mesmo, seja lá para o que for.

Por que tanta preocupação com esses animais? Quando estavam aqui fora, a única preocupação deles era roubar, matar, sequestrar. Pena de morte já no Brasil! E isso vale para os defensores dos direitos humanos também. Estão com pena? Peguem um lá no presídio e levem para suas casas! “A calça verde é pra ver de longe quem é preso”, avisa Carlos Vanderlei sobre o uniforme utilizado


// ESPECIAL

pelos presidiários. Ele é responsável pela limpeza dos banheiros da companhia. Vez que outra, pedem pra que ele limpe alguma sala também. “Aí fica alguém te vigiando”, conta. Não existe confiança. Carlos só não é vigiado na limpeza dos banheiros, onde não há nada para ser roubado. Tem é que acabar com essa farra de regalias, porque a maioria sai só para assaltar e matar!

Jucimar encontrou saída para a vida do crime por meio da religiosidade. Cumprindo pena no Presídio Central, foi chamado para um culto evangélico. Decidiu ir e lá encontrou sua salvação. Não é algo que se ache em qualquer esquina do Central, a salvação. “Lá não há separação de alas, então ficamos misturados com presos de alta periculosidade. Tem gente que fica planejando o crime 48h por dia. O sujeito sai de lá pior.” Juci-

mar, no entanto, saiu melhor. Ele é um dos usuários de tornozeleira eletrônica − recebeu a chance por bom comportamento −, e tem todos os seus passos monitorados pelo GPS. Nada que o incomode: com a tornozeleira, pode dormir em casa, em Canoas. E um sorriso se abre quando começa a falar do terreno que está financiando, graças ao dinheiro que está juntando nos dois anos trabalhando na Carris. Pela segunda chance recebida, agradece, e ensina: “A solução não é aumentar pena, colocar pena de morte. Tem que dar oportunidade.” Segundo números não oficiais (a fonte é o próprio Jucimar), apenas 5% dos presos que passaram pela Carris reincidiram no crime. A verdade é que todos agradecem a oportunidade. Sabem que, não fosse o programa, dificilmente conseguiriam trabalho. “Fui trabalhar em um condomínio uma vez, mas quando descobriram que eu era preso disseram que não ia dar”, relata Jucimar. Sem oportunidades de emprego formal, o que resta para muitos é o retorno ao crime. É a própria sociedade que os joga de volta ao submundo, marginalizando-os e se negando a reincorporá-los ao cotidiano. Presídio é para punir! Não é local de passeio nem hotel! Fiquem felizes! Por mim, era uma bola de ferro num pé e uma enxada na mão! Vão trabalhar para o Estado para pagar a estadia!

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“A execução da pena é um problema social, mas todos sabem que a ideia da construção de presídios não traz votos para os políticos” Desembargador José Conrado

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// ESPECIAL

Maurício Sperrotto de Almeida, o Maradona, é coordenador do setor de manutenção predial da Carris, no qual trabalham 22 presos. Para ele, pouco importa o crime cometido pelo apenado. Se ele quer trabalhar, merece a oportunidade. “Não importa o que o cara fez. Importa se ele é responsável, se quer mesmo trabalhar, se é tranquilo. Pra mim tanto faz qual pena ele está cumprindo”, comenta. Maradona é respeitado pelos presos, talvez por não se mostrar condescendente. Durante a entrevista, o coordenador foi o primeiro a falar abertamente sobre o preconceito sofrido por eles. O critério de contratação, explica Maradona, é simples: para participar do PAC, o preso precisa ter bom comportamento. Depois, preenche uma papelada e aguarda a abertura de alguma vaga. Quando a Carris precisa de alguém, liga para os albergues e vê os nomes que estão disponíveis. “Só não aceitamos quem tem o perfil agressivo”, conta. A luta pela reinserção social é dura. O convívio com o preconceito é difícil de suportar, e saber que qualquer desvio de conduta pode levá-los de volta ao inferno das casas prisionais não deixa as coisas mais fáceis. Jucimar, que passou por quase todas penitenciárias do Rio Grande do Sul, sabe bem que o sistema não favorece a recuperação pessoal − “o Central é o pior”, conta. Em sua visão, o Estado deveria fornecer livros, escolas, cursos profissionalizantes, para que o tempo de pena cumpra seu objetivo primordial: recuperação e reinserção social do preso.

Só falta agora é querer TV a cabo, frigobar e condicionador de ar split para não fazer muito barulho para esse bando de estuprador, assassinos, ladrões e pedófilos que lá estão. Enquanto isso, o trabalhador pega o trem lotado, ônibus lotado e come o pão que o diabo amassou todos os dias! País hipócrita esse mesmo! Na teoria, muito bem, obrigado No papel, está tudo certo. “Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”, versa o parágrafo único do Art. 3º da Lei nº 7210. Alguns artigos depois, é advertido que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Publicada em 11 de julho de 1984, a regulação é conhecida como Lei de Execução Penal. “É maravilhosa. Isso que ela é ainda mais antiga do que acusa a data de promulgação, pois começou a ser pensada dez anos antes”, afirma o desembargador José Conrado, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Na teoria, de fato, vamos muito bem, obrigado. Os nossos verdadeiros inimigos são os juízes, os políticos e os direitos humanos. Os juízes porque indultam sem qualquer critério; os políticos porque não mudam a lei; e os direitos humanos porque protegem aqueles que nos matam e nos privam de nossa liberdade.

O problema, explica Conrado, é que não foi criada uma estrutura material a partir do que foi escrito. “A execução da pena é um problema social, mas todos sabem que a ideia da construção de presídios não traz votos para os políticos”. E a população não tem essa consciência social, a noção de que vivemos em comunidade. Exemplifica pedindo que olhemos para as calçadas da cidade: “As pessoas jogam lixo na rua porque não se sentem donas dela. Deve pertencer a uma entidade etérea, metafísica. O brasileiro não se sente dono da própria rua!” Para o desembargador, o que precisa ficar claro é que o sistema prisional é uma questão de sobrevivência social, assim como escola e hospital. “Somos um povo muito individualista, não conseguimos pensar em comunidade.” Jucimar, com a fé que encontrou em uma das alas do Presídio Central, e o desembargador Conrado, em seu gabinete cheio de livros, vivem em mundos diferentes e têm trajetórias absolutamente distintas: enquanto um ocupou-se em julgar crimes, outro, por muito tempo, tratou de cometê-los. Ainda assim, as soluções encontradas por ambos para o problema dos presídios são próximas. Bastou entenderem que estão tratando de pessoas. Ao fim da entrevista, Jucimar repetiu uma última vez: “Aumentar pena, colocar pena de morte: nada disso é solução. Nós precisamos de oportunidades.”

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91% dos funkeiros e 89% dos ouvintes de música gospel acreditam que estarão melhor economicamente em um ano.

R$ 57 milhões em impostos são sonegados a cada hora no Brasil. Com o valor, é possível pagar 2.807 salários anuais de professores do Ensino Fundamental.

Arte: Ramiro Simch

92% dos brasileiros acreditam que há racismo no Brasil.

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Na partida entre Grêmio e Newell’s Old Boys, no dia 13 de março na Arena do Grêmio, o preço médio do ingresso era de R$ 132. Esse valor equivale a 18,23% do salário mínimo brasileiro.

Apenas 1,3% se considera racista.

Entre 2001 e 2012, a frota de automóveis cresceu três vezes mais que o número de passageiros de ônibus em Porto Alegre.


As mulheres reconhecidas. O Prêmio Anual As mulheres nãonão sãosão reconhecidas. O Prêmio Anual // MINIRREPORTAGENS Executivos de Valor elege, todos os anos, Executivos de Valor elege, todos os anos, os os melhores profissionais em setores 20 setores melhores profissionais em 20 da da economia brasileira. Nos últimos seis anos, economia brasileira. Nos últimos seis anos, prêmios foram distribuídos. Deles, 140140 prêmios foram distribuídos. Deles, apenas foram mulheres. apenas trêstrês foram parapara mulheres.

A ocupação de empregada A ocupação de empregada doméstica os piores rendimentos doméstica temtem os piores rendimentos da população ocupada feminina, da população ocupada feminina, comcom remuneração abaixo do salário mínimo. remuneração abaixo do salário mínimo.

homens 81%81% dosdos homens achaacha inaceitável a mulher inaceitável queque a mulher fique bêbada. fique bêbada. As mulheres As mulheres nãonão têmtêm vozvoz no cinema. Entre 2006 no cinema. Entre 2006 e e apenas 2011,2011, apenas 28%28% dosdos personagens de filmes personagens de filmes infantis femininos. infantis erameram femininos.

A mulher negra é a profissional A mulher negra é a profissional desvalorizada no mercado maismais desvalorizada no mercado de trabalho. de trabalho. Mulher branca Mulher branca 12 anos de estudo 12 anos estudo R$ de 19,30/hora R$ 19,30/hora Homem branco Homem branco 12 anos de estudo 12 anos de estudo R$ 29,20/hora R$ 29,20/hora

Mulher negra Mulher negrade estudo 12 anos 12 anos estudo R$ de 15,00/hora R$ 15,00/hora Homem negro Homem negrode estudo 12 anos 12 anos de estudo R$ 23,20/hora R$ 23,20/hora

entender melhor esses números, acesse bit.ly/minirreportagens19 ParaPara entender melhor esses números, acesse bit.ly/minirreportagens19

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REvIsTA bAsTIãO // AbRIL 2014

GrITos DE

// texto e RePoRtageM CÍNTIA WARMLINg & NÁDIA ALIbIO // ilustRaçÕes NÁDIA ALIbIO 24


// REPORTAgEM

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Em meio ao saguão do Hotel Embaixador cheio de gente com trajes africanos coloridos e elegantes, estava uma senhora, numa roda de conversa. O hotel sediou a I Conferência Estadual do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul, no final de março. Quando encontramos Filaman Marley dos Santos, ela logo abriu um sorriso e nos abraçou. Caminhando devagar, mas firme, a ativista de 76 anos carrega na pele envelhecida anos de luta e conquistas sociais. Seus olhos têm o brilho de sabedoria e humildade. Sentamos num lugar mais reservado no hotel e perguntamos quando foi que sua luta havia começado. Então ela lembrou: “Eu acho que já nasci com um espírito de liderança. Tanto que nasci num oito de março; minha mãe morreu num oito de março.” Seu grito já veio dentro do útero, quando sua mãe tentou cortar a barriga para que não nascesse o bebê de uma relação com o patrão na casa onde trabalhava. “Ela se trancava no banheiro com uma faca e tentava cortar a barriga para ver se eu morria, e eu me mexia na barriga dela… Então ela não teve coragem... e eu estou aqui!” Vinda de família pobre de Alegrete, cidade do interior do Rio Grande do Sul, Edi Ferreira Teixeira, a mãe de Filaman, saiu da casa dos pais ainda muito jovem e começou a fazer serviço doméstico em troca de abrigo em outro lugar. Não recebia remuneração e enfrentava longas horas de trabalho com uma patroa exigente. Quando engravidou do patrão, Edi resolveu sair da casa.

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Sem conseguir se sustentar, ela se viu obrigada a retornar. Tentou o aborto, mas não teve forças para matar seu bebê. Na mesma noite em que pariu Filaman, foi obrigada a voltar ao trabalho enquanto sua patroa dormia com o bebê recém-nascido. O nome Filaman Marley dos Santos foi escolhido pelo pai biológico. Ainda bebê, contraiu tuberculose na laringe. Assim, Edi prometeu ao patrão que se sua filha fosse cuidada, ela se afastaria da família e a deixaria para ser criada pelos patrões. E foi o que aconteceu. O reencontro das duas seria 18 anos depois. Mesmo refazendo o laço, Filaman nunca conseguiu chamar Edi de “mãe”. Ser criada por uma família com boas condições em Alegrete foi importante para a formação de Filaman. Sua mãe biológica não sabia ler ou escrever e não tinha condições financeiras para sustentar a filha. Foi graças aos pais de criação que ela teve a oportunidade de frequentar bons colégios e até a sociedade local. Desde cedo sentia uma necessidade de se informar e levantar questões sociais e sobre a desigualdade. Sua luta começou de forma pequena, ajudando a conseguir consultas médicas a seus vizinhos, quando morou em Novo Hamburgo, região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo. Em seguida se mudou para o bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. Foi neste bairro de periferia que Filaman se destacou como líder comunitária. Foi presidente da Associação de Moradores do bairro Rubem Berta e da Federação das Mulheres. Seu trabalho nas escolas do bairro foi através do Conselho de Pais e Mestres. Mais do que títulos de cargos públicos, Filaman possui uma verdadeira ligação com a comunidade. Quando há problemas entre os moradores, é a ela que recorrem.

Mesmo sem ter uma formação universitária, Filaman possui uma sabedoria que veio da rua, das pessoas, do conhecimento construído a partir de reivindicações sociais. Fez parte do Movimento Estudantil durante a ditadura. De lá, passou a ser uma das representantes do Conselho de Pais e Mestres em nível municipal e estadual. Em 1988, o Brasil vivia o período de redemocratização, em Brasília era elaborada a Assembleia Constituinte, que daria forma à nova Constituição Brasileira após 21 anos de ditadura. Participou como representante do Conselho de Pais e Mestres, sendo chamada de “mãe do Rio Grande do Sul”. Literalmente. Uma única criança foi vista entre políticos e representantes da sociedade civil na Constituinte: sua filha mais nova, Karen Cristina, com nove anos na época. A menina tinha um problema de saúde, e por isso foi autorizada a ir junto com a mãe para Brasília. Como líder comunitária, é ativa no Orçamento Participativo, uma iniciativa das comunidades junto à Prefeitura de Porto Alegre para a discussão e aplicação de verbas e recursos municipais conforme as demandas da comunidade. A formulação do Orçamento Participativo foi um dos grandes benefícios para a população, segundo Filaman. São os próprios moradores que, presentes nas reuniões junto a vereadores e representantes do poder municipal, decidem como devem ser utilizados os recursos do bairro. Isso ajudou


// REPORTAGEM

o trabalho de Filaman, facilitou o acesso ao poder público. Além da educação, Filaman sempre prestou uma atenção especial às mulheres e ao machismo. Como presidente da Federação das Mulheres, ela recorda de quando levou um curso de alfabetização de mulheres jovens e adultas para o bairro, nos anos 1990. Ela percebeu que muitas mulheres tinham vergonha e não falavam que não sabiam ler, não sabiam escrever, que se dedicaram só aos filhos, à família. Quando conseguiram ir pra um corredor de ônibus e saber qual deles deviam pegar, choravam na sala de aula. Ela ainda ressalta que trabalhou para criar vínculos na vizinhança, que antes sequer se cumprimentava. Nesse processo de alfabetização, o machismo se mostrou presente na comunidade. Havia mulheres que faltavam as aulas porque o marido não via com bons olhos sua mulher, antes sempre o esperando quando chegava em casa, aprender a ler e escrever. Filaman conversava com a aluna, e, de forma firme, instruía: “Tu diz pro teu marido que tu não é propriedade dele. Ele não quer que tu vá estudar porque ele tá acostumado a chegar em casa, tu vem com o chinelinho, só falta lavar os pés dele não é? A roupinha lá em cima da cama, pra ele tomar banho. A comidinha quente na frente dele. É por isso que ele não quer que tu venha estudar”, e complementava: “Gente, vamos parar com isso. A mulher é a companheira, é a esposa, é a mãe dos filhos, mas não é escrava.” Para Filaman, a situação do machismo ainda não mudou. “Infelizmente, ontem ainda eu tava pensando. Na minha rua tem uma

mulher, jovem. Ela já tem uma filhinha, e agora vem outro bebê. Ela apanha do marido. Ele faz de tudo, tudo que é malvadeza. Essa menina já se criou vendo a mãe apanhar. Nos dias de hoje, em pleno século XXI, ainda a gente vê isso. Eu me lembro, a mãe dela ia lá na associação e se queixava pra mim. Ela queria estudar, e o marido não deixava, ele avançava nela. Eu sempre dizia: ‘Não deixa ele fazer isso contigo’. E ainda não tinha a tal da Maria da Penha. Porque não pode, marido, companheiro, namorado, não pode proibir. Proibir a mulher de estudar, ou apreender os documentos. Hoje eu acho que ela não apanha mais, mas ela sofreu muito. E com a filha agora, a história está se repetindo. A filha assistia a tudo isso. Então talvez a menina ache aquilo natural, o que o homem está fazendo. Mas eu ainda quero conversar com elas”.. Mesmo em sua família, Filaman se deparou com o machismo. Teve três maridos, os três faleceram. O último só foi dar valor ao seu trabalho e compreender sua falta em casa quando ficou doente e dependente dos seus cuidados, mas ela nunca se deixou impedir nem pelos companheiros, nem pelos filhos. Porém, foi tanto tempo cuidando das mulheres, dos homens e dos filhos da comunidade que, por vezes, deixou seus filhos sozinhos em casa. Filaman não foi a mais presente das

mães, justamente por lutar para além de sua família. Essa ausência foi necessária, pois seu papel era mais do que cuidar do seu ninho, mas de muitos outros. Com o tempo, ela percebe o que construiu. Além das muitas conquistas como ativista, Filaman possui seis filhos crescidos, netos e bisnetos – seus grandes tesouros. Ao conversar com seu neto, passando pela Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, em Porto Alegre, ela o lembrou que em breve não estará com ele, mas permanecerá viva no que construiu: “E eu disse: ‘Um dia tu estará casado, com teus filhos, e quando tu passar aqui, a vovó não vai mais estar viva, aí tu vai dizer pros teus filhos, aqui tem trabalho da minha vó.” E se emociona: “Quando terminei de falar isso pra ele, já tava com os olhos cheios de água.” Filaman já sofreu dois acidentes vasculares cerebrais, um infarto, uma isquemia, quatorze arritmias e um câncer. Agora está recuperada, forte e rindo. Avisa que enquanto tiver saúde, ela não para. E que alguns dias acorda com dores, mas logo aparecem à sua casa pedindo alguma ajuda e ela encontra forças para lutar por esses e por muitos outros, que ainda encontram na senhora de 76 anos uma potência de luta. “Eu vejo uma coisa errada, eu não fico quieta. Não me calo, por que eu vou me calar, se eu já nasci gritando, se eu já sabia me defender dentro do ventre da minha mãe? Então, acho que eu tenho que continuar assim.” Só podemos esperar que ela continue gritando.

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REVISTA BASTIテグ // ABRIL 2014

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// LIVRARTE

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REvIsTA REvIsTA bAsTIãO bAsTIãO // AbRIL // OUTUbRO 2014 2013 // ARREPENDIDOs

não soMos caPazes de daR voz a alguÉM. // foto: aaPo haaPanen

NãO sOMOs CAPAzEs DE DAR vOz A ALgUÉM. É IMPOssÍvEL FALARMOs, DE FORMA INTEgRAL, ATRAvÉs DE OUTRAs bOCAs, EsCREvER ATRAvÉs DE OUTRAs MãOs E, PRINCIPALMENTE, vER ATRAvÉs DE OUTROs OLHOs. TUDO PARTE DE UM PONTO DE vIsTA: O NOssO. TENTAR AFAsTAR NOssAs PERsPECTIvAs COMO FORMA DE COMPREENDER O PRóXIMO É, sIM, vÁLIDO. NãO DEIXA DE sER UMA bOA PREMIssA. JÁ É ALgUMA COIsA, DIzEM. MAs DAR vOz A ALgUÉM É DEIXAR qUE FALEM. MARCELO DE sOUzA FRAgA EsTÁ NO REgIME FECHADO, RECOLHIDO NO PREsÍDIO CENTRAL DE PORTO ALEgRE, CONDENADO A sEIs ANOs DE RECLUsãO PELO DELITO DE ROUbO. ELE FAz PARTE DO gRUPO DE EsCRITOREs DO PROJETO DIREITO NO CÁRCERE. COM ELEs, A PALAvRA:

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uscamos de comum acordo abordar um tema que todos tivéssemos conhecimento e autoridade para falar. Para quem se encontra em condições como as nossas, nada melhor que falar sobre sentimento, algo tão importante para as pessoas na rua e questionado se temos aqui dentro. Há quem diga que cometemos erros por não termos sentimento ou por ter em demasia por alguém, mas queremos aqui, nessa tentativa de organizar um grupo de simples aprendizes de

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escritores, expor o que cada um de nós pensa sobre a solidão. Cada um de nós tem sua própria opinião e cada um vive a solidão de sua forma. Conversamos e decidimos que alguns escreveriam e outros, se questionados, debateriam o assunto, cada um a seu ponto de vista. Dessa maneira, foi elaborada esta obra e esperamos que esteja à altura da expectativa que sobre nós foi depositada. Para mim, escrever é uma forma de lidar com a solidão, para

outro, ainda é um grande obstáculo a superar, seja aqui atrás das grades ou na rua, onde muitos ainda se encontram em constante prisão dos sentimentos, e um deles é a solidão. Abastecendo nosso tempo com conhecimento, nunca faltará argumento para debater com os questionamentos que a vida nos implica. Para nós foi uma grande e grata missão e desde já agradecemos a oportunidade e a confiança. Um abraço e obrigado, do grupo de escritores.


// LITERATuRA

sOLIDÃO

// POR MARCELO DE sOUZA FRAGA

P

ara mim, solidão abrange uma parte muito mais complexa de nossas vidas. Por exemplo, eu posso ser uma pessoa solitária mesmo estando rodeado por uma multidão. Hoje em dia, que vivemos em uma sociedade competitiva, em que somos ensinados desde pequenos a nos tornar pessoas aptas a viver em uma “selva de pedra”, como são chamadas as grandes cidades, as crianças já crescem com a concepção de que precisam ser “fortes”, e isso inclui, muitas vezes, esconderem seus sentimentos. Aqui creio que resida um dos problemas da solidão na sociedade atual. Somos seres racionais, mas também somos seres sentimentais. No momento em que escondo meus sentimentos e emoções, seja por pensar que assim serei uma pessoa mais forte, seja por vergonha de parecer muito emotivo e, por consequência, facilmente influenciável ou até mesmo para não me tornar uma pessoa muito “transparente”. O fato é que fomos criados para sermos pessoas que precisam interagir umas com as outras. E isso inclui pedir ajuda, abraçar, demonstrar afeto e, principalmente (e aqui creio estar mais uma falha em nossa sociedade), me preocupar com o próximo. Sim, porque nos dias atuais as pessoas estão muito mais preocupadas consigo mesmas do que com os outros. Estamos deixando de lado valores e princípios básicos que, na minha opinião, são inegociáveis. No momento em que ensino para o meu filho que é mais importante ele se preocupar com os seus próprios problemas do que com os problemas de seus colegas ou amigos, estou, talvez, inconscientemente, criando uma redoma à sua volta e, por consequência, o tornando uma pessoa egoísta e solitária. Em um mundo com 7 bilhões de pessoas parece até mesmo uma incoerência falar de solidão, mas a verdade é que o homem atual está muito ocupado com os seus afazeres e problemas que acaba se esquecendo que na vida as coisas passam muito rápido e, quando for ver, se

deixou para trás o que realmente importa: estar ao lado de quem se ama, o sorriso de uma criança, um gesto de generosidade. Está na hora de rever nossa maneira de viver, o que estamos fazendo neste planeta, se viemos aqui a passeio ou se realmente queremos fazer a diferença em alguma coisa. Me torno uma pessoa solitária quando passo a olhar só para meu umbigo e esqueço o mundo à minha volta. Há alguma coisa errada em nossa cultura atual, em que estamos muito mais preocupados com o que temos do que com o que somos ou fazemos. Se o homem atual, mesmo vivendo em um planeta superpopuloso se sente só, é porque algo lhe falta. E aqui reside o “x” da questão. Quero lembrar que quando alguém escreve sobre algo, está escrevendo sob o seu ponto de vista e aqui emito a minha opinião. Longe de querer ser o dono da verdade. Escrevo não sob um prisma religioso, mas baseado em experiências e práticas vividas e observadas nestes meus 35 anos de existência. Somos seres criados por Deus e, como tais, temos o espírito do Criador em nós. À medida que os séculos foram se passando, o homem foi se afastando de Deus e isso foi criando um vazio muito grande em nossas almas, a ponto de não sentirmos mais a presença divina em nossas vidas. O distanciamento de Deus, que é espírito, nos fez perder os valores espirituais, quais sejam: o amor, a compreensão, a compaixão, a bondade e tantas outras coisas que temos negligenciado ao nosso próximo, que tanto necessita de nossa ajuda. Mas como posso ofertar aquilo que não tenho, ou, se já o tive, perdi? A resposta é que ainda hoje o Senhor está com os braços abertos, pronto para devolver aquilo que perdemos com o passar do tempo, restaurar uma sociedade moralmente corrompida e fazer com que o homem esteja plenamente satisfeito. Só assim, a meu ver, deixaremos de estar sós em meio a uma multidão. FIM Para saber mais sobre o projeto Direito no Cárcere, acesse direitonocarcere.blogspot.com.br

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