Revistalpendre7

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ISSN 2236 4382

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EDITORIAL

OS MODOS DE COMUNICAÇÃO E DE VISIBILIDADE DAS CIDADES INVISÍVEIS

“Pensar é achar uma metáfora tanto quanto comunicar é achar um modo de dizer”. A frase de Ferrara nos serve de guia para a prática exploratória dos modos de pensar e de dizer as “cidades invisíveis”, àquelas construídas pela imagem e o imaginário de escritores, poetas, urbanistas, filósofos e todos aqueles que fazem do espaço público e, sobretudo, da cidade um cenário de experimentações que comunicam a aventura humana em meio à cultura. Pensar e construir novos regimes de enunciação a partir destas cidades físicas e ficcionais é o que desejamos com este número da Revista Alpendre. Se por um lado, Filide, Raíssa, Marósia, Pentesiléia, Cecília, Trude, Leônia, Diomira, Isidora. Dorotéia, Zaíra, Anastirma, Isaura, Maurília, Zoé, Zenóbia são os nomes mais significativos que povoam nosso imaginário literário, as narrativas do jovem veneziano, Marco Polo ao Imperador Mongol, Kublai Khan, não podem ser pensadas como memória exclusiva dos grandes navegadores. Ao contrário, tal atitude advém daqueles que se lançam à experiência humana tecida no enredo de um olhar atento, curioso e demasiadamente, aberto ao estrangeiro. As cidades são a expressão mais eloquente da aventura do pensamento humano. Portanto, pensá-las e buscar estratégias para comunicar tal experiência não deve ser confundido com o mero exercício hermenêutico de decifração de códigos e mensagens que constroem as narrativas das cidades. Para além, encontra-se o andarilho, o caminhante que imersos na espacialidade das cidades são capazes de agenciar uma multiplicidade dos signos junto à reversão dos seus sentidos. Para conhecer e entender as cidades é necessário manter o espírito em movimento, o olhar sempre novo, investigador, procurando descortinar o aqui, mas também o ali, o outro lado, o atrás, o acolá. E é essa estratégia que propicia ao leitor da cidade uma desconstrução da bifurcação de cada nó escondido por entre os becos, as ruelas e suas calçadas. Um olhar forjado nos interstícios e que embriagado de prazer, funde-se à paisagem ao mesmo tempo que é se autoriza enquanto uma espécie de “escaneador das superfícies”, ou seja, àquele que se deixa capturar pela materialidade do espaço na expressão dos seus volumes, texturas, cores e aromas. De outra forma, trata-se de perfazer "os caminhos das andorinhas que cortam o ar acima dos telhados, constroem parábolas invisíveis com as asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a pináculo, sobranceiam todos os pontos da cidade de cada ponto de suas trilhas aéreas.", como poetizou Marco Polo. Navegar por entre os espaços que a cidade nos oferece é o convite que fazemos, a você, caro leitor!

André Teruya Eichemberg - Editorial e Projeto online Laura Fernanda Cimino - Editorial Isabella Valino Teixeira de Bessa - Produção de conteúdo Maria Júlia Barbieri Eichemberg - Editorial Rafael di Lima- Produção de conteúdo e Projeto gráfico Facundo Guerra - Capa


SUMÁRIO A Mudança da Paisagem Interna Tatiana F. Silva Chaves 04

Arquitetura Segundo a Arte Alison Kioshi Kinoshita 07

DROP / Fallen Body 26

Ensaio Sobre o Futuro

Maria Júlia Barbieri Eichemberg 28

O Blur na Arquitetura Tatiane Amadeu de Freitas 30

DROP / The Castro! 46

A Ciber Paris de “Personal-Shopper ” Lucas Bandos 48

DROP / SPFW e o Desfile de Ronaldo Fraga 55

A Arte do Acaso

Alex Sandro Lucas Mazali 59

A percepção Urbana Como Produtora de Conhecimento Tatiana F. Silva Chaves 70

Moriyama San

André Teruya Eichemberg 76

D R O P / A Arte Urbana de Keith Haring 78

E N T R E V I S TA

Débora Cristine Rocha – 80

F OT O S

Facundo Guerra - 86


“De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas” (Ítalo Calvino). Quando se decide viver em outra cidade, uma das primeiras perguntas que surgem é: qual é o meu objetivo? Sim a pergunta é reta e sisuda demais para dizer sobre o que nos move. Lembro que todas as vezes que pensei em me mudar de cidade, ou que me mudei efetivamente, fui motivada por um desejo. Desejo de viver com qualidade, de morar em um lugar mais bonito, de conhecer novas pessoas, de rever tantas outras, de aprender um idioma. Olhar para uma cidade e imaginar-se nela é experienciá -la como imagem possível, como sonho. E ainda que a cidade já seja conhecida, enquanto não se chega ao destino, é o desejo

que conduz a imaginação e dá forma a uma cidade latente porque ainda não habitada. Mas a despeito do desejo que nos impulsionou, o que se acontece quando se está longe de onde estávamos acostumados, seja em outra cidade, seja em outro país, é antes de tudo nos darmos conta das mudanças que acontecem conosco de uma forma extremamente visceral, mas que só é possível perceber quando nossas referências também mudam. Não é apenas uma mudança de paisagem externa, não é apenas uma mudança geográfica, é, isso sim, uma mudança na paisagem interna. 4


Não há termos de comparação em uma cidade estranha. Os olhos percorrem as ruas em busca de representações que soem familiares, mas as referências não estão lá. Por outro lado, estar sem referências é também possuir uma página em branco, onde o corpo risca seu movimento e ao fazê-lo cria seus mapas, espacialidades, desenhos necessários ao aprendizado cotidiano, numa linguagem não-verbal de onde emergem sua relação com o outro e com o ambiente. É o uso que nos dá a noção do modo de ser da É o uso que nos dá a noção cidade e dos seus moradores. Viver a cidade é reco- do modo de ser da cidade e nhecê-la, é ler as sutilezas do seu dia-a-dia e traduzi- dos seus moradores. Viver a la. É a partir daí que se estabelece uma percepção cidade é reconhecê-la, é ler possível da cidade através dos seus fragmentos de as sutilezas do seu dia-a-dia imagem. Possível porque a percepção é em grande e traduzi-la. parte um ato de criação e imaginação, já que as informações nunca são percebidas como um espelho do real e, quando traduzidas, ganham novos contornos, ou seja, apreender a cidade é também recriá-la. Nasci em São Paulo, me mudei para Fortaleza aos 17 anos, voltei para São Paulo para fazer Mestrado, voltei para Fortaleza e hoje moro em Dublin. Entre essas idas e vindas ainda busquei outras cidades para flanar, aprender, trocar. E neste ato de troca entre Não há objetivo a ser atingimim e a(s) cidade(s), ela(s) me surpreende(m) com uma possível reposta para a pergunta sobre o objeti- do, mas uma busca intermivo de se viver em outro lugar: não há objetivo a ser nável por descobrir-se. Busatingido, mas uma busca interminável por descobrir- co em outras cidades porções se. Busco em outras cidades porções de mim que de mim que foram perdidas foram perdidas ao longo do tempo, partes daquilo que ao longo do tempo. me compõe, pedaços de histórias que nem sabia existir, mas que de uma certa forma ajudaram a construir a minha própria. Mudo de cidade, procuro novas paisagens, novos horizontes e novos aprendizados, porque mais do que uma vida longa, espero ter uma vida larga.

Texto e fotos por: Tatiana Chaves Tatiana Chaves é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo. É mãe de dois meninos e busca, através do yoga, encontrar o equilíbrio necessário para reafirmar diariamente sua escolha pela simplicidade em meio à espetacularização e gourmetização da vida. 5


EdifĂ­cio Albina, SP Foto: Facundo Guerra,2018 6


A

Por Alison Kioshi Kinoshita

R

TI G

O

Este trabalho trata-se de uma in-

ca com o conceito de belo para que

vestigação sobre o desenho artístico1

assim, possamos diferenciar a estética

como metodologia de exploração do

clássica da estética Aisthesis, esta últi-

design da arquitetura. Existem possibi-

ma tratará do processo da experimen-

lidades de que estas linguagens sejam

tação livre que a arte proporciona, mais

interseccionadas para produzir uma

relevante quando se trata de compre-

nova relação, onde uma completa sin-

ensão de processos criativos e da ciên-

cronicamente o sentido da outra. Lu-

cia por traz da produção de arte.

crécia Ferrara (2009 p. 12) chama essas relações de sincretismos, muito frequentes na época modernista, onde o sentido da arte passa por um processo de crise, inovação e desconstrução da representação mimética.

Posteriormente serão mostradas aplicações dos estudos advindo de experimentações artísticas nas formas e nos espaços da arquitetura. Os estudos de caso exemplificarão melhor a ideia. A finalidade de se pesquisar no-

Para entender como tais relações

vas formas para conceituar arquitetura,

ocorriam, primeiro deve ser entendido

fundamenta-se na ideia de que o uso

o caráter científico da arte.

contínuo e centrado das atuais tecnolo-

Desenho artístico refere-se à pintura, ilustra-

gias de desenho técnico, muitas vezes

ção, entre outras formas de expressão artísti-

impedem de explorar a arquitetura em

cas que são livres, comparadas ao desenho

um sentido mais profundo e dinâmico.

técnico (precisão).

Não é finalidade substituir essas ferra-

Para tanto, será mostrado um

mentas, muito menos o desenho técni-

contexto histórico que possibilitou a de-

co, pois são partes vitais do processo

sassociação entre o conceito de estéti-

que envolve a arquitetura. O objetivo é

7


mostrar que projetos de arquitetura podem ser

com a visão romantizada criada pela alta bur-

mais explorados em suas fases de concepção.

guesia que buscava no campo e nas raízes

Também não é intenção discutir uma arquite-

tradicionais a fuga para um mundo idealizado

tura que trate de questões visuais, servindo

que estava longe da realidade das classes bai-

apenas de fachada. Se por vezes parecer, é

xas, entrelaçadas a um mundo caótico e ace-

porque não se pode deixar de mostrar que

lerado que estava a surgir: o mundo moderno.

processos artísticos também foram usados

O formalismo russo literário, movimento

uma vez para se elaborar arquitetura como

voltado à produção poética no início do século

elemento visual, e que agora são usados co-

XX, observava que a produção do texto literá-

mo embasamento para discussões mais pro-

rio não necessitava de um princípio, como

fundas sobre o design do espaço.

uma receita mágica na qual o produto final se-

Desenho técnico é o desenho necessário para que se

ria sempre considerado satisfatório, a questão

faça um projeto claro e compreensível para ser executa-

mais importante seriam os resultados do pro-

do, na arquitetura são realizados com o desenho técni-

cesso criativo na qual a pessoa se envolve pa-

co os projetos executivos de arquitetura.

ra produzir tal texto e seu constante processo

O Processo de desconstrução da

de auto avaliação. FERRARA (2009 pg. 8) usa

imagem.

o pensamento formalista como base para mostrar que essa relação não ocorria somente na

Para entender a arte como caráter de ci-

literatura, mas também em outros tipos de lin-

ência é preciso entender como surgiu o rompi-

guagens, transcrevendo a maneira de viver do

mento da arte com a estética clássica, para

homem moderno em forma de arte.

que então seja possível compreender como

Retomando esse conceito a revolta ro-

são possíveis as relações de sincretismos en-

mântica, pode se compreender que agora as

tre a linguagem do desenho artístico e a lin-

classes baixas, que em sua maioria não tinha

guagem da arquitetura.

acesso à educação artística e que também es-

O que era até então considerado como

tavam desiludidas com visão romantizada do

arte até os séculos XVIII e XIX era apenas o

mundo agora poderiam produzir seus manifes-

que vinha das escolas de arte frequentadas

tos, já que a estética clássica (ou o princípio)

pela da alta burguesia, portanto a arte era uma

não era mais fundamento para sustentar o

cultura que só os mais nobres da época ti-

conceito de arte.

nham acesso. A revolta romântica que ocorreu

Para ilustrar melhor o que foi dito do pa-

nesta época foi uma necessidade de produção

rágrafo anterior suponhamos um exemplo de

artística pela baixa burguesia. A escola tradici-

uma pintura clássica e uma pintura modernis-

onal e as técnicas não eram mais um empeci-

ta. A pintura clássica possui um regime para

lho para que outras classes sociais começas-

ser executada: desde a primeira camada em

sem a produzir arte. Surgia um distanciamento 8


tina a óleo, que na maioria das vezes é mono-

sentido da pesquisa.

cromática exigindo uma quantidade de um sol-

O experimentalismo propunha a experi-

vente especial diminuindo de quantidade à

mentação da arte além do limite da estética

medida em que vão se adicionando veladuras.

clássica, como um grande campo, que quando

A cada camada, menos solvente e mais

adentrado permite as mais variadas possibili-

óleo para torná-la colorida e resistente a ação

dades de experimentação que, até então, não

do tempo. Sem contar na série de estudos so-

haviam sido exploradas: as formas, as cores, o

bre a forma, cor, contraste e perspectiva que o

material e a falta de perspectiva, propondo ao

artista precisa ter para formular e produzir a

observador a habilidade de ser produtivo no

imagem mais perfeita e bela sobre a realidade.

olhar e nos sentidos.

Camadas de tintas na qual se dá cor e corre-

O funcionalismo descrido como sendo a

ção ao trabalho monocromático, também são

característica que a arte reflete sobre as mani-

transparentes já que são dissolvidas com óleo

festações do homem, propondo a nova refle-

de linhaça.

xão sobre a realidade. O sincretismo como

A pintura modernista é um questiona-

procura da essência da linguagem que FER-

mento de toda essa técnica, sempre procuran-

RARA (2009 p.11) descreve como o princípio

do uma questão para arte mais profunda do

para a relação entre linguagens distintas.

que a reprodução da imagem. Enquanto a pin-

“A linguagem em estado de liberdade deveria ope-

tura clássica exige que a pessoa domine uma

rar com sua própria estrutura e a exacerbação desse princípio levava a uma correlação de signos, aproximando, por exemplo a poesia da música criando as denominadas “fono-imagens” ou, aproximando-a da pintura até como ideário de metodologia, tendo em vista a adoção do conceito de arte sem objeto dos cubistas pelos poetas futuristas russos que, na opinião unanime dos estudiosos, foram a transformação direta do Cubismo em termos literários” (FER-RARA 2009 p. 11).

técnica para ser um artista, a pintura moderna faz nascer o artista como um cientista da arte pela sua capacidade de entender a realidade, produzir agenciamentos que resultam em algo novo. Essa nova ideia era mais próxima à realidade das classes mais baixas, tornando a arte como algo popular e atenta as coisas que

Também é pertinente entender que:

foram criadas pelo homem: A cidade, a tecno-

“O Sincretismo da arte moderna justifica-se pela absoluta necessidade de escapar ao domínio do significado arbitrário e inovar na linguagem o que está ligado ao desenvolvimento tecnológico, às teorias da comunicação e da informação e as novas técnicas de reprodução.” (FERRARA 2009 p. 12).

logia, a máquina, o operário e o banal em con-

traposição a tudo aquilo que foi criado por Deus: a natureza e suas formas Segundo FERRARA (2009 p. 11) essa nova manifestação pode ser fragmentadas em

O último passo é a chave para a compre-

três passos: o experimentalismo, o funcionalis-

ensão da pesquisa. A arte não era mais asso-

mo e o sincretismo que são essenciais para

ciada a reprodução da imagem da realidade,

compreender esse movimento e também o

portanto, tornou-se como campo aberto para 9


outras coisas, sejam elas feias, incompreensí-

tística como ensaios para produção arquitetô-

veis, misteriosas entre uma infinidade de rela-

nica.

ções que inovaram o seu sentido e compreen-

Estudos de caso.

são. No mundo artístico moderno não existe mais ordem, regras ou delimitações, mas é

I - Wassily Kandinsky

certo que há o desejo incessante de misturar

Wassily Kandinsky foi um pintor e profes-

tudo para produzir novos resultados.

sor russo, um dos primeiros artistas a pintar

Estes adjetivos, por muitas vezes podem se atrelar a arte moderna em sentido pejorativo, mas essa é a

um quadro abstrato no ocidente. Em 1910 pro-

discussão fundamental que ela propõe: será que arte é

duziu uma das suas primeiras obras não-

somente bela? O feio assim como outras categorias é

figurativas a “Primeira aquarela abstrata” de-

explorado pelos artistas como algo com valor tanto

pois de muito trabalho como um pintor figurati-

quanto o que é belo. Isso é fundamental para enten-der

vo.

o que é Antiestético, “contra a estética” a arte é de livre expressão não precisa se fundamentar em dogmas. Antiestético também pode ter o mesmo sentido nesse trabalho que a palavra “estética” (sozinha, não precedida de “clássica”) ou seja, estética Aisthesis, que trata-se de experimentação sensorial (fruição).

Torna-se mais clara a possibilidade de entender as formas do desenho artístico, seja

a gravura, pintura ou ilustração como parte influente na produção arquitetônica, o desenho torna-se a metodologia para capturar a infinidade de possibilidades artísticas da forma, da cor, do espaço, para cristalizá-los em forma de

Pintura 1: Walissy Kandinsky - A Primeira Aquarela Abstrata. Fonte: WassilyKandinsky.net6.

arquitetura. Dessa percepção surge uma pergunta:

Essa obra pode ser entendida como a

Que processos devem ser levados em conta

primeira relação com que a criança tem com o

para que seja possível o sincretismo entre o

mundo, quando a experimentação estética ain-

desenho artístico e a arquitetura?

da é livre. Depois do amadurecimento, muitas dessas experimentações são perdidas, para

Alguns casos serão mostrados para se

aprender a “raciocinar” e, só alguns artistas

entender como se dão as relações de sincre-

têm a capacidade de retomar esse processo

tismo, os dois primeiros justificam o rompimen-

ARGAN (1992). Alguns de seus primeiros tra-

to da arte com a estética clássica e fundamen-

balhos contam com a destreza da estética

ta a arte como discussão científica e filosófica.

clássica, mas Kandinsky mostra que a arte es-

Os demais exemplificam a experimentação ar10


tá acima do figurativo, e então propõe uma ex-

pacidade de promover a educação e cresci-

perimentação estética nova.

mento intelectual dos seus espectadores, bastava deixá-los participarem do seu trabalho ao

Arnold Schönberg foi um compositor aus-

estimulá-lo a refletir sobre suas obras.

tríaco do qual a música inspirou o trabalho de Kandinsky, quando ouviu a sua ópera em Mu-

A forma com que Kandinsky rompe com a

nique: Três peças para piano opus 11. Os dois

sua produção figurativa é um grande marco na

trocaram muitas correspondências desde en-

sua carreira, pela forma que buscou entender

tão, entre 1910 e 1914, ambos sempre procu-

a essência de sua arte. Alguns podem dar

rando a transcendência espiritual e inovação

qualquer adjetivo pejorativo às suas obras,

em seus trabalhos. Nessa época Kandinsky

mas é justamente esse processo que o artista

produziu uma obra que também pode ser en-

revela como inovador.

tendida como sincretismo, onde sua arte relaci-

Não somente o belo tem valor, mas tanto

ona-se com a música de Arnold Schönberg em

o belo quanto o feio na arte têm o mesmo pa-

uma fono-imagem.

tamar de importância. O feio, antes esquecido, pode nos revelar novas experimentações que jamais seriam reveladas seguindo o conceito clássico de arte. Kandinsky não só é, como prova que é um artista fabuloso. Ele entendeu a necessida-

de da inovação da sua arte e não teve medo de explorar mais a sua produção artística. Também desassociou o conceito de belo como o conceito de estética ao entendê-la como experimentação sobre arte, que acontece das maneiras mais variadas, inusitadas até das Pintura 2: Wassily Kandinsky - IMPRESSÃO III (Concerto) – 1923. Fonte: WassilyKandinsky.net7.

mais simples, como como o inocente desenho de uma criança.

Kandinsky sempre procurou sua própria superação, tanto que escreveu um livro publi-

II - Kazimir Malevich.

cado em 1911, intitulado “Do espiritual na arte”. O autor explica que o conceito de arte vai

Considerado o pai do Suprematismo, tra-

além de um trabalho, é uma experiência espiri-

balhou com diversos estilos de pintura, entre-

tual entre o artista e o espectador. Kandinsky

tanto suas obras mais famosas exploram a cri-

tinha a consciência de que seu trabalho pode-

atividade pela geometria que segundo ele seria

ria ser mais valioso do que a mera reprodução

a essência criadora do universo: formas puras,

da realidade, e que aquilo que fazia tinha a ca-

geometria, cores primárias. 11


moderna, também o resultado de uma síntese

de todo um processo para se chegar à forma mais pura que existe e compará-la como a inexplicável representação de um Deus. Malevich foi ousado em expor tal tela em uma posição considerada sagrada, mas essa atitude mostra o quanto a arte é poderosa, de chegar a tal supremacia, não só de um processo criativo próprio, mas o supremo de todo o modernismo. De nada adiantaria Malevich pintar um simples quadrado preto em uma tela e colocáPintura 3: Kazimir Malevich - QUADRADO PRETO SOBRE FUNDO BRANCO – 1915. Fonte: Iconographia8.

lo em posição de ícone, seria apenas uma tela insignificante, se não fosse pelo seu processo

Sua obra mais famosa e também consi-

e sua teoria que a embasam e permite chamá-

derada uma das mais polêmicas é o Quadrado

la de “Quadrado Suprematista”. Malevich pro-

Negro Sobre Fundo Branco, originalmente

va que o processo é fundamental para se fazer

chamado de “Quadrado Suprematista”, expos-

não somente arte, mas também tudo aquilo

to pela primeira vez na “última exposição de

que se deseja atribuir qualidade.

pintura futurista 0.10” na posição de ícone, como os ícones sagrados das famílias ortodoxas: no canto, virado para o ocidente e sempre no alto para proteger o lar. De todas as telas, o “Quadrado” é a mais chamativa, equilibrada, não flutuante como as formas dos outros quadros da exposição. (CORTEZE 2014). Não é somente uma forma geométrica ou uma loucura, mas sim uma obra repleta de sig-

nificados que estão longe de serem entendidas outras telas da exposição, como se fosse

Fotografia 1: “A Última Exposição de Pintura Futurista: 0.10”, Dezembro de 1915, Petrogrado (São Petersburgo). Fonte: Iconographia9.

o mais poderoso resultado do mais amplo pro-

Nesse momento foram apresentadas a

cesso que jamais poderia ser entendido de ou-

produção artística de Kandinsky e Malevich

tra maneira a não ser em forma de arte. Abso-

para entender a diferença entre a estética

luto, o Quadrado de Malevich é o zero da arte

clássica, (na qual há a busca pelo conceito de

dos, sua posição exalta soberania em cima

12


belo através da produção artística) da Aisthe-

É o caso da arquiteta Zaha Hadid, que apesar

sis, onde a arte é uma ferramental de experi-

de ter feito uso da tecnologia de BIM e CAD

mentação. Agora há conhecimento de que a

para executar suas obras, embasou toda a sua

época modernista teve papel fundamental para

concepção de arquitetura pelas suas pinturas

estudar arte como uma ciência, na qual a ex-

feitas em sua maioria em acrílica sobre papel.

perimentação é usada para se construir pro-

Diferentemente das tecnologias de preci-

cessos que agora podem se desdobrar em ou-

são de desenho utilizada pela maioria dos ar-

tros tipos de linguagem, como no caso desta

quitetos para a representação e entendimento

pesquisa: a Arquitetura. Os estudos de caso a

da arquitetura. Zaha dá qualidade a cada pro-

seguir mostram como a experimentação artísti-

jeto a partir das formas sensíveis de suas pin-

ca se aplica no processo teórico na arquitetu-

turas. Este foi o meio pelo qual Zaha usou pa-

ra.

ra explorar as formas e adquirir identidade como arquiteta ao longo do seu processo, e a

III - Zaha Hadid.

partir dos resultados obtidos usou a tecnologia Helio Piñon mostra que o processo de produ-

BIM para executar o seu pensamento como

ção do arquiteto contemporâneo entra em jogo

arquitetura.

quando a ferramenta tecnológica em que ele

A arquiteta Zaha Hadid é um estudo de

trabalha estrutura seu projeto ao nível da ra-

caso especial, já que sua experimentação so-

zão em detrimento da sensibilidade:

bre arquitetura teve influência do pintor Kazi-

“[...] Os programas de CAD são um meio de representação muito preciso ainda que − pelo que vejo − o seu uso seja difícil e esteja mais orientado à razão do que aos sentidos, o que não é um bom presságio, tratando-se de um instrumento da arquitetura. Dir-se-ia que esses programas são mais adequados à mentalidade mecânica de um escriturário que ao espírito ordenador e sensível de um escritor. De qualquer modo, se conseguimos superar as dificuldades operativas − o que não é um obstáculo irrelevante para aqueles cujo propósito transcende o instrumento [...].” PINON (2009).

mir Malevich. A década de 1970 foi um momento crítico de investigação. Embora os arquitetos tivessem pouco trabalho, fomos muito produtivos com desenhos. Um resultado do meu interesse em Malevich foi minha decisão de empregar a pintura como uma ferramenta de design. Achei que o sistema tradicional de desenho arquitetônico era limitado e procurava um novo meio de representação. Estudar Malevich permitiu que eu desenvolvesse a abstração como um princípio investigativo. (HADID 2014, tradução nossa)

As palavras de PIÑON (2009) descrevem

Na concepção de sua primeira obra: Vitra

a arquitetura como processo de criação que

Firestation de 1993 em Weil am Rhein, Alema-

nasce da experimentação do arquiteto com

nha, Zaha demonstra claramente seu proces-

diversos meios de expressão. O arquiteto con-

so de criação, desde o conceito ao projeto fi-

trola as etapas projetuais e tem a sensibilidade

nal. Nessas primeiras pinturas Zaha dá início a

para manejar as suas ferramentas na medida

sua experimentação espacial através das for-

em que pretende expressar os seus conceitos.

mas. 13


Pintura 3: Zaha Hadid - “Concepção artística para a Vitra Firestation”. Fonte: Archdaily.

Pintura 4: Zaha Hadid - “Concepção artística para a Vitra Firestation” Fonte: Archdaily.

Sua principal obra (O Quadrado) resultou de uma incansável exploração estética registada através dos demais quadros expostos. Da mesma maneira, a arquiteta Zaha Hadid entendia que o resultado final de uma obra arquitetônica era mais genioso quando bem explorado durante seu processo criativo. A pintura em acrílico foi a ferramenta que julgou ser a mais abrangente e adequada, se tratando do processo de construção das for-

Pintura 5: Zaha Hadid - “Renderização da obra”. Fonte:

mas de seu projeto.

Archdaily14. 14

A cada obra produzida a construção ga-

sincretista, onde uma nova arte manifesta-se

nha formas e volumes, há certa ambiguidade

através de uma intersecção de linguagens: a

no entendimento entre o que é pintura abstra-

pintura e a arquitetura, nascendo uma arqui-

ta e o que é arquitetura, mas é essa condição

pintura, ou pintura-arquitetura.

relevante quando se trata de uma relação 14


A arquiteta apresenta o resultado da exploração das formas. A fachada do edifício que

também possui ambiguidade no sentido, aparenta tanto uma pintura abstrata quanto um volume em um espaço virtual. Todo o resultado processual de Zaha Hadid é edificado em uma construção de formas magníficas e únicas.

Fotografia 2: Vitra Firestation - Weil am Rhein, Alemanha. Fonte: Architectural Review15.

IV De Stil O Neoplasticismo, corrente de pensamento estava ligada sempre as formas limpas e elementares, envolvia o pensamento de vários artistas neerlandeses: Mondrian, pintor modernista,

Theo Van Doesburg, artista plástico, designer gráfico, poeta e arquiteto, e Thomas Gerrit Rietveld arquiteto e designer de produtos. O De Stijl era um periódico desse movimento, foi publicado pela primeira vez em 1917 contando também com a participação de outros artistas para a contribuição conceitual do movimento do neoplasticismo. É interessante falar um pouco sobre esses artistas que tanto influenciaram o pensamento e a arquitetura moderna. E também para entender que muitas relações de sincretismos ocorriam enquanto artes eram conectadas pelo mesmo pensamento.

15


Piet Mondrian. Piet Mondrian foi um pintor que também teve um passado figurativo as-sim como Walissy Kandinsnky. “Mondrian, escreveu muito, mas não escreveu uma teoria sobre arte” (ARGAN 1992 p. 409) sempre acreditou que a única forma de provar uma teoria sobre arte era fazendo arte. “Como Spinosa, em suma, Mondrian pensa que não é possível conhecer nada sobre a percepção, mas que a essência das coisas não se conhece na percepção e sim com uma reflexão sobre a percepção separada da própria percepção: uma reflexão em que a mente opera sozinha com os meios exclusivos que lhe são fornecidos por sua constituição”. (ARGAN 1992 p. 409)

1943-4 – Por: Wikimedia Commons Fonte: Gemeentemuseum Den Haag, Public Domain16.

E toda a carreira de Mondrian acaba sen-

A altura, a proporção e a profundidade

do essa grande reflexão, notada por sua ob-

dos elementos possuem uma lógica de redu-

sessiva produção de pinturas, cortes e cola-

ção segundo sua distância, cor, luz ao mínimo,

gens em poucas cores, essencialmente nas

ou primordial segundo os seus princípios esté-

primárias, o preto e o branco. Um grande

ticos, tornando-o um grande artista por produ-

exemplo é a obra Victory boogie-woggie de

zir obras científicas, Mondrian foi capaz de pro-

1934, a última da sua carreira. Trata-se de

duzir essa obra pelo seu passado como pintor

uma desconstrução da imagem da cidade de

figurativo, tendo adquirido conhecimento sobre

Nova York. As formas não são meramente ale-

a forma de reproduzir imagens pela profundi-

atórias, possuem uma lógica de redução dos

dade, satura-ção e valor das cores da paisa-

elementos da paisagem.

gem para então desconstrui-los numa geome-

“Tome-se esta composição de 1927. É uma super-

tria primordial, que é fundamento base do neo-

fície “impressionada com poucas cores: branco, negro, vermelho, amarelo, azul. É o painel pictórico dos impressionistas, transformado pelos cubistas em painel plástico: para Mondrian, o limite de um e outro é o caráter empírico. Para fazer uma pintura que tenha o mesmo rigor e a dignidade da ciência, Mondrian propõe transformar a superfí-cie empírica em plano (entidade Matemática). Subdividindo a superfície por meio das coordenadas verticais e horizontais, resolve numa proporção métrica tudo aquilo que a natureza apresenta-se como altura e largura. (ARGAN 1992 p. 412) 16

plasticismo e do De Stil.

Theo Van Doesburg. Entre as obras de Theo Van Doesburg destaca-se o café L’Aubette, com sua estética geométrica minimalista, inspirada pelo De Stijl, envolvendo o expectador num jogo de cores e formas que são “tridimensionalizadas” pela arquitetura.

Pintura 6: Piet Mondrian - VICTORY BOOGIE-WOOGIE 16


Fotografia 3: Theo Van Doesburg e Hans Arp: CInemarestaurante L’Aubette – Por: Wikimedia Commons. Fonte: Archdaily17. 17

Fotografia 5 - Thomas Gerrit Rietveld - Interior da Casa Gerrit Rietveld – por: Wikimedia Commons Fonte: Archdaily19.

A concepção de Van Doesburg é a de

pensamento do De Stjil, formas puras e ângu-

que todos os integrantes, seja o arquiteto, en-

los retos, Rietveld adota até as cores primá-

genheiro, pintor ou escultor devem ter partici-

rias, as mesmas que Mondrian usava em suas

pação no início do projeto em uma unicidade

pinturas, com a finalidade de diferenciar as

de pensamentos, interdependentes e sem dis-

funções dos ambientes. Nesta casa, tombada

tinções de categorias. É inaceitável que algum

como Patrimônio Mundial da UNESCO desde

desses elementos sirva apenas de comple-

2000 também há uma das mais notáveis pro-

mento ou suprimento de uma falta (ARGAN

duções de Rietveld, a Poltrona com elementos

1992).

em negro, vermelho azul, desenhada em 1917

Gerrit Rietveld

com o mesmo princípio primordial do De Stjil: peças de madeira em laca colorida e listéis em encaixes de juntas simples, remetendo aos atos primários da construção (ARGAN 1992 p. 406). 18 Há um grande projeto por traz das formas simples e aparentemente desconfortáveis desse mobiliário: a distribuição do corpo, o conforto, a estrutura que suporta o peso, sus-

tentação estética e função. É como se Rietveld não preparasse uma poltrona para se sentar,

Fotografia 4: Thomas Gerrit Rietveld - Casa Gerrit Rietveld – Por: Wikimedia Commons Fonte: Archdaily.18.

mas sim uma “poltrona primordial” ou aquela que deu e continuará dando origem a todas as

Em 1925 é feita a casa Gerrit Rietveld,

outras. A não colocação de estofamento e ou-

em concreto e aço (materiais ícones do mo-

tros

dernismo que possibilitaram que tal constru-

elementos

deixa

clara

a

intenção

“primordial” de Rietveld para esse mobiliário,

ção existisse), com a mesma linearidade de

de ser puramente um estudo sobre o sentar. 17


A Compreensão do processo sincretista. O De Stijl tem exemplos de sincretismo, que só foram possíveis quando todos os seus integrantes assumiram que todas as formas de arte têm o mesmo patamar de importância, bem visível no projeto de Van Doesburg, que apesar de não ter uma discussão espacial e sim visual, tridimensionaliza uma pintura, como as de Mondrian através da sua arquitetura. Em questão de funcionalidade, Rietvield discute a cor com a finalidade de estabelecer funções e as formas de ângulos retos mostram com clareza a função da arquitetura e da estrutura. Mondrian é a liga de todas essas artes e formas de expressão, ele dá a base teórica para sustentar a complexidade de relacionamentos entre diferentes artes, que só foram possíveis através da sua concepção de redução ao elemento mínimo, essencial nesse caso para produzir sincretis-

mos.

V - Karina Puente Karina Puente, arquiteta em Lima, fez uma série de ilustrações do Romance de 1972 de Ítalo Calvino: “As Cidades Invisíveis”. As ilustrações são feitas principalmente com tinta nanquim em papéis e recortes, conferindo-lhes um aspecto delicado e cuidadosamente trabalhado. Cada Ilustração dessa série tem um processo conceitual e se referem a uma das várias cidades apresentadas por Calvino nesse livro que retrata as viagens fictícias do explorador veneziano Marco Polo e o antigo governante mongol Kublai Khan.

É indissociável apreciar o trabalho de Puente sem se lembrar de desenhos infantis, com sua pureza e simplicidade ao mesmo tempo em que a artista reproduz padrões complexos, preenchendo toda a dimensão do quadro. Só é possível ver grandes formas a partir das pequenas que são minimamente detalhadas. Para FERRARA (2009) uma nova geração de arte é preciso entender que o desenvolvimento se dá pela sensibilidade e pelo processo criativo do qual o artista se envolve. As obras de Karina Puente têm aspecto infantil como se remetesse o processo livre da criança representar e entender as coisas, como também mostram que só a coisa mais pura é capaz de entender a coisa mais complexa da imaginação e que palavras não bastam para representar. Ao observar algumas ilustrações de Karina verifica-se um processo de desconstrução das formas simbólicas até torna-las um complexo. A arquiteta possibilita uma nova visão sobre o modelo abstrato, onde o potencial de compatibilidade entre diferentes tipos de linguagens artísticas aparece inserido sutilmente dentro do processo que está descrito em cada forma das suas gravuras. Procurar ver trabalhos artísticos com olhos atentos é importante já que pequenos detalhes podem ter discussões importantes. A obra em visão geral tem caráter abstrato, mas ao 18


olhar atento verifica-se a existência de peque-

A Exposição: How small? How vast? How

nas formas que remetem a elementos de uma

architecture grows? (Quão pequena? Quão

cidade. Todas as obras de Puente tratam-se

vasta? Como a arquitetura cresce?), reúne 58

de ensaios, onde as descrições das cidades,

obras de arte em mesas de madeira de pernas

que foram dadas por Ítalo Calvino são remeti-

finas, tão frágeis e delicadas quanto as obras.

das em forma de desenho. Esse estudo de ca-

Foram desenvolvidas pelo arquiteto como in-

so entende a relação de sincretismo pela ca-

tenção de se estudar espaços, ao mesmo tem-

pacidade de gerenciar pensamentos em forma

po em que deixa visível o seu entendimento da

de desenho, que é uma característica comum

arte como um laboratório de possibilidades. 21

da maioria dos arquitetos ao recepcionar os

O processo criativo de Junya ishigami é

desejos de seus clientes, como se fosse um

um exemplo de como a arte pode se aplicar a

tradutor de sonhos para desenhos e espaços.

arquitetura contemporânea. Ishigami expõe a importância de sempre estar estudando as possibilidades do espaço arquitetônico, e que isso torna o arquiteto preparado para lidar com os mais diferentes tipos de situações sem que precise perder tempo ao retomar seus conceitos para fazer uma obra, uma vez que os processos de criação já foram ensaiados. As peças da exposição são preciosos universos de possibilidades com conceito e fundamentação teórica, onde os estudos têm

Ilustração 1: Karina Puente: Zirma. Fonte: http:// karinapuente.com/> Acesso: 03/Mar/2017.

potência criativa suficiente para se transformar em espaço pelas mãos do arquiteto. Eu queria mostrar o máximo possível, porque nesta exposição eu quero mostrar outras possibilidades de arquitetura. Na nossa era, não temos um propósito específico para criar um edifício, pois entendemos que deve haver uma variação de propósitos para cada pessoa, para cada usuário. Nesta exposição, tentamos mostrar muitas maneiras de fazer um edifício. Quando digo variação, quero dizer variação de aspectos visuais e técnicos. Em cada projeto, a imaginação é muito importante. A arquitetura é estilo de vida e há tantas possibilidades de construir um edifício. Não existe uma maneira específica de criá-lo. (ISHIGAMI 2008, tradução nossa).

VI - Junya Ishigami. Junya Ishigami estudou arquitetura na universidade nacional de música e belas artes

de Tokyo. Além de ter meios de expressão artística bem desenvolvidos, teve contato com outros expoentes da arquitetura japonesa, como o escritório SANAA (Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa), possibilitando que este arquiteto desenvolvesse uma arquitetura única, que segundo ele é capaz de “reencantar o mundo”. 19


Um exemplo de edificação de Ishigami

Para este caso é possível entender que tanto

que expõem a sua fantástica visão do mundo arte, arquitetura, natureza e tecnologia entram em relaé a Greenhouse exposta na Bienal de Veneza

ção interdependente em uma simbiose que não só po-

de ser entendida com uma relação de sincretismo como

11º Exibição internacional de arquitetura em também um manifesto de a arte pode estar contida em 2008 no pavilhão japonês, fazendo o uso de outras linguagens, bem como na ciência e na natureza. elementos naturais e delicados da mesma maneira que a sua arte exposta em How Small? How Vast? How Architecture Grows?

Fotografia 6: Junya Ishigami, How small? How vast? How architecture grows Fonte: Designboom.

Fotografia 7: Junya Ishigami, How small? How vast? How architecture grows? – Study of little gardens. Fonte: Designboom.

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Greenhouse, por: Ishigami e Yoshizaka - Bienal de Veneza - 11º Exibição internacional de arquitetura em 2008, pavilhão japonês. Fonte: Japlusu23.


Considerações finais Foi possível compreender através do estudo a relação de sincretismo entre o desenho artístico e a arquitetura, onde o primeiro possui tem capacidade de completar e produzir sentido do segundo. Sabendo que a arquitetura se faz da técnica para ser executada, a possibilidade integrá-la com a arte do desenho artístico está na capacidade que o artista-arquiteto tem em gerenciar as suas ferramentas de pensamento, aproveitando se daquela que mais lhe convém no momento mais adequado.

O caso de Zaha Hadid é o exemplo mais claro do uso da metodologia do emprego do desenho artístico no processo de criação de arquitetura, no entanto Junya Ishigami mostra que não só o desenho artístico, como também outras formas de arte podem ser englobadas como método de produção arquitetônica. O arquiteto demostra que não é necessária técnica de fazer arte, mas que há a necessidade de produção de arte, e que ela pode surgir da maneira, mais inusitada, mais simples e singela, munindo-se dos mais diversificados materiais em formas novas, que caracterizam potencial arquitetônico.

Entendeu-se a diferença entre a estética Aisthesis e a estética clássica, que é necessária para compreender o desenho artístico como ciência da experimentação, possibilitando uma arquitetura com aprofundamento teórico e espacial já que uma infinidade de formas e pensamentos podem ser testados através do desenho artístico, antes de serem executados na forma de arquitetura. Vale lembrar que a arte foi estudada de maneira científica, ressaltando seu valor teórico. Uma vez que foi considerada como loucura, a arte tem seu significado novamente retomado neste trabalho ao exibir o processo criativo de grandes artistas modernistas que permitem entender a essência experimental da estética. Com esse conceito, a intersecção entre a linguagem do desenho artístico e a linguagem da arquitetura fica entendida como uma relação de qualidade interdependente.

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Referênc ias AD EDITORIAL TEAM. "As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino ilustradas por Karina Puente. Archdaily. Tradução de Romullo Baratto, 2016. ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna, Companhia das Letras, São Paulo, 1992. BINI, Renan. O formalismo russo. Obvious, 2017. CORTEZE, Mariana. Quadrado preto. Iconographia, 2014. ELALI, M. How architecture grows. Junya Ishigami. FERRARA, Lucrécia D’Alessio. A estratégia dos signos, São Paulo. Perspectiva, 2009. FRACALOSSI, Igor. Clássicos da Arquitetura: Residência Rietveld Schröder / Gerrit Rietveld. Archdaily, 2012.

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FRAZÃO, Dilva. Piet Mondrian: Biografia de Piet Mondrian. E Biografia, 2017. HADID, Zaha. Zaha Hadid RA on the influence of Malevich in her work. The Royal Academy of Arts, 2014. OSVALD, Vivian. Kazimir Malevich recebe maior retrospectiva de sua obra em quase 30 anos. O globo, 2014. PIÑON, Helio. Representação Gráfica do edifício e construção visual da arquitetura. Vi-truvius, 2009. SANTIBAÑEZ, Danae. O processo criativo de Zaha Hadid através de suas pinturas. Ar-chdaily. Tradução de Eduardo Souza, 2012.

Este artigo foi orientado pelo Profº Me. André Teruya Eichemberg 25


Fallen Body É curioso pensar em como a arte está naquilo que não podemos expressar em palavras ou expressões, descrevendo apenas como são sentidas, como sente que são. Em maio de 1947, Evelyn McHale, tirou sua própria vida quando tinha apenas 23 anos, lançando-se do 86º andar do Empire State Building, um edifício emblemático por ser constantemente escolhido por suicidas. No Bolso do seu casaco, um bilhete: "Ele está muito melhor

sem mim, não serei uma boa esposa". Robert Wiles, estudante de fotografia que passava do outro lado da rua, ao ouvir o impacto aproximou-se com a sua câmera e fotografou o corpo da bela jovem que caiu sobre o teto de um carro estacionado. Esta fotografia correu o mundo e ficou conhecida como "The Most Beautiful Suicide"(O Mais Belo Suicídio). A imagem de Evelyn morta no meio dos destroços do carro consegue ser trágica e terna, e a prova de como um ato tão abrupto, como o suicídio, pode ter contornos poéticos. Apesar do impacto, seu corpo não apresentava nenhum arranhão e reparese como a sua mão esquerda parece acariciar o colar de pérolas. A serenidade do seu rosto, as pernas cruzadas e a elegância do seu corpo como se estivesse simplesmente deitada. A fotografia foi publicada no mesmo ano pela revista Life e anos mais tarde, em 1963, o pai da Pop Art, Andy Warhol, fascinado pela iconografia trágica, utilizou a mesma foto de Robert Wiles para criar um quadro intitulado "Suicide - Fallen Body".

Por Rafael di Lima

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Foto: Robert Wiles, 1947 Fonte: Life.com 27


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Avenida Paulista, dezembro de 2017. Dobro a esquina, e em meus pensamentos ecoa essa expressão “dobrar a esquina”… e ela soa como se o corpo tivesse força suficiente para fazer o espaço se dobrar num ângulo preciso, 90 graus para ser mais exata. É meu corpo então que dobra a esquina e segue sobre as pedras irregulares da calçada da avenida mais icônica da metrópole. Os passantes apressados, revelam, para além da pressa, a melancólica atmosfera dos finais de ano, esses momentos estranhos que antecedem os finais e anunciam os inícios. É engraçado como ficamos ansiosos quando estamos próximos do fim, como se fosse possível empurrar o passado para dentro dos bueiros abafados e limpar as memórias com a enxurrada das chuvas de verão, que lavam os meio-fios e se depositam nos buracos, criando poças-espelho para o reflexo da imponente avenida, que nesse momento mais parece uma velha prostituta encantada. Aliás, ninguém liga pra ela, pois a pressa não nos permite sequer reparar em seus penduricalhos natalinos. Mas há alguém ali, um velho, um sábio boêmio que habita uma empena, ele só tem olhos para ela e a reverencia com um olhar dissimulado. Dizem que ele era um arquiteto apaixonado pelas curvas da mulher. Também dizem que quem o prendeu nessa parede cega foi um grafiteiro, mas eu prefiro chamá-lo de encantador de muros. Logo abaixo do bom velhinho mora um mago japonês, o mestre ninja dos encaixes e da madeira, dobrador de luz. Ele veio pra cá e se apaixonou

pelos cobogós rendados dos seus aprendizes, esses são dobradores de espaço, gostam das grelhas e tem um apreço imenso pelos pergolados. Desse encontro nasceu uma casa, onde hoje, habita outro jovem japonês. Ele veio falar do futuro. É assim mesmo. Uma miscelânea louca e pós-moderna. Quero saber o que ele tem a dizer, e quando adentro sua morada, vejo objetos e pedaços de coisas, caixas de fósforo, molas malucas, buchas vegetais, pedras, linha de anzol, batatachips e lenços de papel, precisamente iluminados e habitados por micro-homens pálidos. O mais intrigante é que todas essas coisas, se esvaziam de sentido e se convertem naquilo que está para além do que elas podem representar, o micro -corpo converte todos esses objetos em espaços dotados de potência, são reentrâncias, espaços sólidos, curvas delicadas, vazios pronunciados, linhas de transparência, cavernas para o corpo habitar. O jovem arquiteto é um dobrador do signo. Quando o faz, nos leva a atravessar o cotidiano saturado e entupido de sentidos e nos joga fora dele, num plano, ouso eu dizer, imanente, que me desculpe nosso guru francês, pela apropriação simbólica de um conceito tão caro à sua filosofia. Nos instalar fora do signo, via signo, é o caminho para adentrar sua caverna. Mas sua caverna só nos é revelada no andar de cima, onde habitam seus desenhos de futuro, ou as mônadas leibnizianas, que também me perdoe esse filósofo tão respeitoso. São maquetes, igualmente iluminadas e igualmente povoadas por micro-homens pálidos, elas são feitas de nada. Não há escadas ou portas em

suas casas, não existem janelas ou cômodos, não há o que nomear. São inúmeros e infinitos espaços feitos de vazio. Vazios que o corpo dá o sentido que quiser, pois pode imprimir nele as forças tangentes de seu desejo, e no momento que lhe convier: quando senta-se, torna-se banco, quando deita-se, tornase cama e nesse jogo do tornarse mostra que o futuro é um vir a ser constante. Devir corpo do espaço, devir espaço do corpo. O impulso primitivo do futuro, como já dizia o dobrador do signo “é instalar-se num momento antes da arquitetura nascer”, ou ainda, imprimir a força tangente que faz o próprio espaço dobrar em signos infinitos. Compreendo agora, como meu corpo dobra a esquina e como a esquina dobra em mim. É meus caros! Diz o jovem arquiteto, o futuro não tem hologramas, instalações imersivas nem telas touch-screen! Salve a caverna de Fujimoto e a escuridão da caverna de Platão! Salve a penumbra de Aganbem que nos permite ser micro-homens pálidos e dobradores do tempo!

Texto e foto por: Maria Júlia Barbieri Eichemberg 29


A R

TI G

O

Por Tatiane Amadeu de Freitas

Com o caos urbano já consolidado na vida contemporânea, o corpo que percorre a cidade de forma apressado, deixa de perceber elementos fundamentais da paisagem urbana para o entendimento do espaço. Neste contexto, o presente artigo analisa como a vida urbana contemporânea altera os processos perceptivos visuais e sensoriais do corpo e suas relações. Corpo este que vive imerso nos excessos de imagens da vida cotidiana, um corpo sempre com pressa e com o olhar cada vez mais desatento, que impõe novas relações entre espaço-tempo e as imagens que nele são impressas.

Os processos perceptivos estão cada vez mais falhos e desconexos devido aos excessos simultâneos e múltiplos de estímulos do contemporâneo, são pequenos instantes que são saturados de muitas informações. Com isso, ocorre uma indiferença do corpo para com essas imagens e estímulos, pois o corpo não consegue processar o todo e sim uma apreensão parcial, ocorrendo uma perda da relação com o espaço em que se vive, entre o habitante e a cidade. Hoje, com o aumento da velocidade já estabelecido no contemporâneo junto aos excessos de estímulos gera-se pouca assimilação do espaço, resultando em processos perceptivos sem distinções

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que descaracterizam o espaço, criando imagens desconexas da paisagem urbana. A percepção automatizada dos corpos gera uma fragmentação do espaçotempo, com espaços cada vez mais desqualificados e descaracterizados, tornando a arquitetura desfocada devido aos seus detalhes passarem despercebidos devido a incorporação da velocidade no cotidiano. Estar imerso nesse excesso de estímulos do espaço do contemporâneo causa um desfoque em nossa percepção, que será chamado de blur3 perceptivo. Sendo assim, se faz necessário procedimentos para transformar o olhar e a percepção, a partir de uma observação mais atenta que qualifique os espaços e relacione-os com o corpo. Assim, para desenvolver essa análise, foram utilizados os conceitos do filósofo Nelson Brissac Peixoto sobre as questões relativas a arte e as cidades, como destaque para sua interpretação de que “o olhar contemporâneo não tem mais tempo” (PEIXTO, 1996, p. 179). Por se tratar dos processos perceptivos do corpo para com o espaço, os conceitos de Merleau-Ponty (1994) são utilizados como forma de compreender como o corpo percebe o espaço e sua complexidade através dos sentidos.


FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO Merleau-Ponty (1994) em sua obra Fenomenologia da Percepção, apresenta uma análise da concepção sobre os processos de percepção por meio da revisão de conceitos de sensação e suas relações com o corpo, movimento e conhecimento. Assim, compreender a percepção é entender que esta ocorre através da compreensão do corpo como espaço, por meio de sensações compreendidas pelo movimento juntamente a atitude corpórea de cada indivíduo. A percepção não ocorre de modo isolado, ela é um complexo de todos os meios de sentido junto ao nosso afeto, sensibilidade, memória, cognição e outros, que formam juntas a percepção de um único sentido. Os sentidos, e em geral, o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto que sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade, emite, para além de si mesmo, significações capazes de fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos e de experiências. (MERLEAUPONTY, 1994, p. 178) Na concepção fenomenológica, a percepção ocorre pela apreensão dos sentidos do corpo, tratando de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo. A percepção ocorre de forma peculiar, é próprio de cada sujeito, devido

as experiências de cada ser para com o mundo que se relaciona com a memória, afeto, sensações, crenças a fim de formar um único elemento perceptivo. Merleau-Ponty (1994) diz que é preciso enfatizar a experiência do corpo para a criação de novos sentidos, devido ao fato que a percepção não é uma representação mental, mas sim um acontecimento corpóreo e da existência. Blur (substantivo), do inglês, borrão, mancha, desfoque. O termo blur é muito utilizado no photoshop para caracterizar uma imagem sem foco. É também utilizado na fotografia para criar efeito de movimento ou conferir importância a objeto que ficou em foco, formando na imagem, partes com e sem nitidez. A análise fenomenológica da percepção distingue-se de outras porque esta apoia-se na questão do movimento. Os movimentos acompanham nosso processo perceptivo de acordo com o mundo, é ele quem desempenha o papel na percepção de como o corpo se relaciona com o objeto. As sensações acontecem quando são associadas a movimentos e cada objeto/ elemento convida para a realização e criação de novas possibilidades de interpretação de diferentes situações e experiências que a ele é submetido. É o corpo quem faz a mediação entre o mundo exterior e a consciência interior, que comunica e

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agencia um ao outro. Merleau-Ponty (1994), em seus capítulos sobre o mundo percebido, reforça que a percepção deve ser fundada na experiência do sujeito, sendo que este olha, sente e, nessa experiência do corpo, reconhece o espaço como expressivo e simbólico, de forma que espaço- sujeito se tornam um único elemento. Outros fatores também são aplicados na teoria do filósofo, como as questões de subjetividade e de historicidade, na qual o sujeito correlaciona corpo, tempo, afetividade, culturas, relações sociais, entre outros. A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como concebe o físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir. (MERLEAU- PONTY, 1999, p. 308) A abordagem da percepção identifica-se com os movimentos do corpo e como este redimensiona a compreensão do sujeito no processo de conhecimento. Sendo assim, é o corpo que efetua e ordena a síntese do processo perceptivo. A percepção remete a incertezas do corpo em movimento, assim o autor afirma que os sentidos dos acontecimentos estão na corporeidade e não


em uma essência pré-definida (Merleau-Ponty, 1994). Não há algo definido, pois, a percepção ocorre de forma subjetiva, está na liberdade das escolhas que o corpo faz em um lugar de acordo com as situações que lhe são dadas e as possibilidades que são abertas. Sendo assim, a experiência corpórea pode ser entendida como um campo de possibilidades, que faz com que ocorra uma comunicação entre os sentidos e o próprio espaço. A experiência configura em um conhecimento sensível sobre o que está sendo impresso no corpo. O mundo fenomenológico é o mundo dos sentidos, das cores, formas, texturas, olhares, aromas, imagens e outros, que se entrelaçam e permitem o encontro de acontecimentos, produzindo conhecimentos de forma subjetiva. Toda percepção vem acompanhada de algo não percebido, de algo que está para além de uma percepção rápida e imediata, que passa despercebido aos processos perceptivos. Quando o corpo percebe algo, ocorre a possibilidade de desconhecer outros elementos que compõe o todo, sendo assim, quando percebemos um espaço, objeto, temos apenas uma apreensão parcial deste.

O corpo, para Merleau-Ponty (1994), é o primeiro plano na análise da percepção, pois é este que revela ao indivíduo como este percebe o mundo.

A PERCEPÇÃO EM “A CHEGADA” A ficção científica “Arrival” (A Chegada), do diretor Denis Villeneuve explora vários conceitos que podem ser analisados, como a questão do tempo, a questão da comunicação dos alienígenas, relações entre os estados, a linguagem utilizada, a percepção e outros. O foco dessa análise será para a questão da percepção junto com os conceitos de fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1994). O filme, resumidamente, conta a história da chegada dos alienígenas na terra e como o mundo reagiu a chegada das naves. A protagonista é uma professora de linguística que foi convidada pelo estado americano para compreender a linguagem dos alienígenas. Na forma falada, a linguagem destes seres consiste em uma série de ruídos e grunhidos, e na forma escrita, consiste em símbolos circulares que não possuem começo nem fim, apenas variantes que expressam palavras e frases em um único desenho .

Figura 1 - Cena do Filme Fonte: Arrival (2016)

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A linguagem, chamada de heptapod, é filmada de forma que os humanos a visualizam em uma tela de dentro da nave. Há um espaço com uma camada translúcida que delimita o espaço dos alienígenas e dos humanos. Estes últimos vêem a escrita enquadrada em uma grande tela, sendo assim, não há um contato direto com o que está do outro lado. A protagonista, durante o processo de entendimento da linguagem, começa a ter pequenas mudanças perceptivas durante os acontecimentos diários. Sonha com passado, presente e futuro, porém ainda não consegue entender completamente o que está acontecendo. O processo de entendimento muda quando acontece uma mágica cena com a protagonista, na qual esta é imersa completamente no espaço dos aliens. Não há mais uma tela que os divide. Quando ela ocupa o espaço deles, começa a entender perfeitamente a linguagem, tornando-se possível uma manipulação do tempo que vem dessa forma de comunicação. Assim o filme, trabalha com esse loop temporal, uma temporalidade cíclica, que é entendida quando a protagonista passa a se comunicar fluentemente com os aliens. Os loops refletem como a linguagem dos Et’s podem ver e manipular o tempo, o futuro.

(...) perceber no sentido pleno da palavra, que se opõe a imaginar, não é julgar, é aprender com sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo. O fenômeno da percepção verdadeira oferece, portanto, uma significação inerente aos signos, e do qual o juízo é apenas a expressão facultativa. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 63)

Arrival mostra que o contato direto da protagonista com o mundo desconhecido dos alienígenas, refaz o seu modo de percepção sobre o seu mundo exterior. Sendo a percepção um modo de sentir o mundo, a protagonista passa a relacionar seus processos perceptivos sobre o todo de uma forma diferente. Se antes a protagonista tinha uma apreensão parcial do desconhecido, estar imersa do outro lado da tela, fez com que o sensível atuasse de forma a dar significação para aquele novo mundo. Se a fenomenologia retrata a descrição dos fenômenos manifestados na experiência humana e da consciência humana, temos que o filme retrata esse momento da experiência, de quando esta é levada às últimas consequências de modo a alterar a consciência humana para novos processos perceptivos que antes não eram possíveis.

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O BLUR

DO CONTEMPORÂNEO O caos do contemporâneo sugere um excesso de estímulos, sejam eles informacionais e/ou sensoriais, que causam um comportamento no sujeito de não ter tempo para esperar, observar e sentir a imagem que compõe a paisagem4 urbana. As imagens e todas as informações que ocorrem a cada instante em nossa volta, passam de forma despercebida em um misto que pouco se conhece e reconhece. Vivenciar o espaço urbano hoje é estar submerso em imagens que escapam a percepção do corpo, impossibilitando compreender o espaço de forma a caracterizá-lo totalmente. O modo rápido de deslocar do sujeito na cidade contemporânea gera percepções automáticas da paisagem, são múltiplas e sobrepostas imagens que criam um cenário único, sem distinções de cada elemento. Mas, a paisagem se torna habitual e não se deixa perceber, porque nos habituamos à sua visualidade. Esse hábito impede a observação e a discriminação da complexidade comunicativa subjacente à semiótica da paisagem e, como consequência, a paisagem é percebida apenas pelo seu impacto visual que a faz circunscrever-se à estesia e à fruição. (FERRARA,2012, p. 45)


Junto aos excessos, tem-se ainda a questão da velocidade, na qual o aceleramento imposto pelo ritmo da vida urbana contemporânea faz com que as imagens e elementos passem cada vez mais despercebidos ao olhar e a percepção do sujeito. É a necessidade de se fazer muitas coisas em pouco tempo cada vez mais rápido de modo a não perder tempo que provoca essa perda com o espaço em que se habita. Assim, temos que a percepção é colocada de forma que os detalhes se perdem em meio aos excessos do contemporâneo.

As transformações mais radicais na nossa percepção estão ligadas ao aumento da velocidade da vida contemporânea, ao aceleramento dos deslocamentos cotidianos, à rapidez com que o nosso olhar desfila sobre as coisas. (PEIXOTO, 1996, p.209)

No horizonte, um mundo cada vez mais opaco. Quanto mais se retrata, mais as coisas nos escapam. Uma obsessão que, ao invés de criar transparência, só redobra essa saturação. Qual o destino de nossas imagens, esses espectros descartáveis e sem significado? (PEIXOTO,1996, p. 9) O olhar hoje é um embate com uma superfície que não se deixa perpassar. Cidades sem janelas, um horizonte cada vez mais espesso e concreto. Superfície que enruga, fende, descasca. Sobreposição de inúmeras camadas de material, acúmulo de coisas que se recusam a partir. (PEIXOTO,1996, p.13)

Para Peixoto (1996), filósofo que aborda as questões sobre arte e cidade, “ o olhar contemporâneo não tem mais tempo”. Sua obra Paisagens Urbanas (1996), mostra um estudo sobre as cidades e suas relações com as pessoas que a habitam, relacionando arte e cidade, sendo arte a pintura, fotografia, arquitetura e cinema.

Peixoto (1988) também analisa a questão do olhar na sociedade contemporânea em “O olhar do estrangeiro”, abordando assim a questão do ver como um problema. O problema parte do paradoxo que tudo é feito para ser visto, mas não conseguimos enxergar. A visão está desfocada devido à grande saturação das imagens. “Vivemos no universo da sobreexposição e da obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo. ” (PEIXOTO, 1988, p.361).

O autor mostra que em uma época de caos das metrópoles se faz necessário novas experiências como forma de redescobrir a cidade. Peixoto (1996), cita um exemplo sobre a arte cinematográfica, neste tem-se o olhar concentrado nas imagens que mudam em pequenas frações de tempo, mas que quando o telespectador fecha os olhos, a imagem se perde naquela pequena fração de tempo.

Com isso, não ocorre a possibilidade da comunicação entre os sentidos e o próprio espaço desenvolvida por Ponty (1999), ou seja, o que é visível deixa de ser compreendido devido à falta de tempo do corpo contemporâneo, não ocorrendo a percepção atenta através dos sentidos. “O visível é o que se apreende com os olhos, o sensível é o que se aprendemos com os sentidos” (PONTY, 1999, p.28)

Sendo assim, a velocidade pode ser comparada como tal exemplo, porque esta faz fechar os olhos da percepção, de modo a perder imagens, não havendo conexão e criação de sentido. O resultado são imagens desconexas resultantes da aceleração junto aos excessos do meio contemporâneo.

É a partir dessa visão desfocada, da saturação dos sentidos devido aos excessos do mundo contemporâneo, que o termo blur da percepção será aqui utilizado. O blur é colocado de forma a resumir os conceitos sobre a falta de nitidez dos processos perceptivos do corpo para com o espaço.

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Times Square e os excessos de estímulos visuais e sensoriais. Fonte: Google imagens

Assim, se há falta de nitidez e desfoque do espaço em que o corpo está inserido, o espaço começa a se configurar como pequenas manchas (ou borrões) indefinidos, pois devido aos excessos, muito dos espaços passam despercebidos e indiferentes a percepção. Esse espaço desfocado resulta em espaços com aura de blur, na qual o espaço perde sua definição e sua significação, tornando-se embaçado para o corpo, com detalhes que não se tornam distinguíveis ao olhar. O blur pode ser entendido como o resultado do excesso de estímulos que são impressos ao corpo constantemente que torna a percepção incapaz de criar significado ao meio que está inserido. O corpo, como sujeito que se apropria do espaço, é nítido. É forma pensante que habita, porém em meio aos excessos da vida contemporânea, a percepção falha de forma que não há mais nitidez nos elementos que se percebe. Ocorre uma descaracterização do espaço, na qual este fica desqualificado, resultado da percepção de algo sem muita clareza de definição. 35

Não há mais necessidade de se compreender o espaço e construir uma identidade a ele, pois o sujeito não tem mais tempo. O blur retrata a questão de que o corpo conhece o espaço, mas o percebe em pequenas frações de elementos que o compõe, o espaço em blur é um espaço descaracterizado, sem distinções entre os elementos, são fragmentos que compõe um todo. As mudanças do espaço urbano implicaram em mudanças em nossa experiência do corpo para com o todo, assim como explica PEIXOTO (1988): O indivíduo contemporâneo é em primeiro lugar um passageiro metropolitano: em permanente velocidade, cada vez mais longe, cada vez mais rápido. Esta crescente velocidade determinaria não só o olhar mas sobretudo o modo pelo qual a própria cidade, e todas as outras coisas, se apresentam a nós”. (p. 361) O “Olhar do Estrangeiro” de Peixoto (1988), retrata a questão de como as imagens passam a perder o sentido e propõe que é necessário resgatar a capacidade de fazer o olhar ver as


coisas como se fossem a primeira vez. Usa a imaginação e a linguagem como forma de ver através da imagem que é impressa ao indivíduo. O estrangeiro, para Peixoto, é aquele que resgata as figuras de uma paisagem banalizada, criando uma identidade para aquele lugar. É a questão que atravessa, nos últimos anos, o pensamento e a arte contemporânea: a perda de sentido das imagens que constituíam nossa identidade e lugar. Daí o recurso ao olhar do estrangeiro, tão recorrentes nas narrativas e filmes americanos recentes: aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber. (PEIXOTO, 1988, p. 362) Para Fernando Fuão (2014), “ com a revolução dos meios de comunicação e a intensidade do outro, do diferente já não nos causa tanto estranhamento, pode passar indiferente” (p. 25). Com isso, ele desenvolve sobre o conceito de estrangeiro, que neste caso é aquele elemento inesperado, que acontece sem a espera e de forma imprevisível. O estrangeiro é um desvio em um objeto que deixa de cumprir a função que cumpriria originalmente, provocando um estímulo para a mudança de percepção. É um despertar da percepção que acabe com a inércia do corpo diante do espaço.

Logo, a arquitetura pode resgatar a questão da percepção do espaço de forma a criar um sentido, através da percepção sensível que o corpo coloca neste lugar, criando identidade. Seja através do estranhamento definido por Fuão (2014) ou pelo olhar estrangeiro de Peixoto (1988), ambos se relacionam com a necessidade de desenvolver uma percepção atenta, que comunique sentidos e espaço. Para Merleau-Ponty (1999), para reatar a atenção “seria preciso mostrar como uma percepção desperta a atenção, depois como a atenção a desenvolve e a enriquece” (p.54).

O BLUR ENQUANTO ESPACIALIDADE ARQUITETÔNICA Para exemplificarmos com a arquitetura pode refletir sobre a questão do blur como forma de criar uma nova percepção para o corpo resgatando a capacidade de colocar em foco a imagem, foram analisadas três obras arquitetônicas de dois diferentes arquitetos. Assim, é possível comparar como a arquitetura pode criar espaços totalmente imersivos para o indivíduo, colocando-o em um processo de percepção diferente do que é comum no cotidiano. Durante o processo de apreensão espacial do corpo nesses diferentes espaços, o indivíduo precisa resgatar a capacidade de perceber os elementos que compõe a espacialidade, através de uma 36

percepção mais atenta sobre o espaço, diferentemente do que acontece diariamente com o corpo imerso na cena urbana. O blur acontece como uma potência da arquitetura contemporânea, que não permite criar identidade ao espaço, mas permite uma nova forma de percepção diferente do que o corpo está habituado. Os estudos de caso escolhidos apresentam semelhanças na concepção arquitetônica, pois foram criados a partir de uma arquitetura sem definição de espaços e de formas, através de materialidades da arquitetura pouco pertinentes, que atuam como elemento principal na criação de ambientes imersivos que usam o corpo como complemento da arquitetura.

A Nuvem Efêmera A Blur Building (2002), foi uma experiência arquitetônica construída na Suíça sob um lago. A construção, de caráter efêmero, foi projetada como uma resposta à chamada “arquitetura de alta definição” como forma de contrapor a saturação dos excessos de estímulos visuais presentes no modelo de vida contemporâneo. Diller e Scofidio (2002) explicam que “entrar na Blur, é entrar em um meio sem forma, sem características, sem profundidade, sem escala, sem volume, sem superfície e sem dimensões”. A Blur foi construída a 25metros de altura a cima do lago fazendo com que a pró-


pria água do lago – por meio de alta tecnologiacriasse a própria arquitetura, passando por um processo de filtragem e sendo expelida através de nevoeiro por 31.500 aspersores de alta pressão. O corpo ao habitar a Blur não pertencia a nenhuma dimensão. Era um habitar do vazio, pois ali não ocorriam noção de espaço e de profundidade, como acontece na arquitetura normalmente. O nevoeiro produzido pela Blur (2002) impedia o reconhecimento de pessoas, fazendo com que os arquitetos se apropriassem desse fator para explorar mídias interativas durante o processo de habitar do corpo dentro desse espaço. A capa de chuva recebida pelos participantes continha informações sobre os gostos pessoais, assim, quando duas capas se cruzaram, ocorria troca dessas informações. Gostos comuns resultava em capa vermelha, gostos contrários resultava em capa verde. Com isso, o espaço arquitetônico também acontecia através das relações sociais que ali eram trocadas, como um rizoma. A Blur se dissolve no caminho, no corpo e no próprio espaço. A névoa, sem perspectiva, forma toda a espacialidade que muda conforme a dança

dos ventos, mudando o espaço a cada fração de tempo. A perspectiva só conhece as coisas que pode reduzir a seus termos que ocupam um lugar, cujo contorno pode ser definido por suas linhas. Mas o céu não ocupa um lugar, não tem medidas. As nuvens são “ corpos sem superfície”, sem forma precisa, cujo limites se interpenetram. Escapando, graças à fluidez de sua matéria, ao regime perspectivo, as nuvens criam um espaço volumoso, saturado. (PEIXOTO, 1993, p.250

A Blur Building é uma nuvem em meio ao lago, que responde a saturação provocada pelos excessos de estímulos de sentidos do mundo contemporâneo de alta resolução. A Blur é uma arquitetura de baixa resolução que faz com que as referências visuais e acústicas do indivíduo sejam apagadas conforme esse atravessa a passarela em direção ao meio da obra. É nesse processo que o corpo começa a apagar as referências do que está habituado e começa a entrar em um processo de atenção para as possibilidades disponíveis ao corpo.

A Blur BuildingFonte: Site Diller e Scofidio 37


É nesse processo que o corpo começa a apagar as referências do que está habituado e começa a entrar em um processo de atenção para as possibilidades disponíveis ao corpo. No caminho até a Blur, o colorido da cidade dá lugar ao branco, os excessos visuais dão lugar a um olhar quase cego em meio ao vazio encoberto pela névoa. O corpo em meio a Blur, começa a criar novas referências para aquela espacialidade como forma de produzir sentido traduzindo-a em um lugar informado5. É através de novas referências para o corpo, a obra de caráter efêmero consegue mudar os processos perceptivos do corpo através da contradição com o que se vive atualmente e com a experiência promovida por ela. Os arquitetos conseguem questionar a própria natureza do espaço, de forma em como este coloca o corpo imerso em um processo de percepção totalmente diferente do que o corpo está habituado. Se hoje, tudo é extremamente nítido, com características bem definidas, a Blur vem para retratar o contrário, criticando o meio saturado de imagens que vivemos.

A Luz em Foco Floresta de Luz surgiu a partir da marca de moda COS que encomendou ao arquiteto japonês, Sou Fujimoto, uma instalação imersiva para o Salão do Automóvel realizado em Milão em 2016.

O projeto foi desenvolvido em um teatro antigo abandonado, sendo utilizado como partido pelo arquiteto a referência do antigo uso do espaço. Assim, foram criados holofotes em feixes de cone que criavam áreas de luzes e sombras sobrepostas. Como a proposta era criar uma floresta totalmente imersiva, foram adicionadas paredes espelhadas como forma de criar a ilusão de um espaço infinito, além de sons dentro do espaço. Os feixes de luz podem ser comparados as altas árvores de uma floresta. O projeto acontece quando a luz encontra a pessoa e viceversa. Não há um espaço totalmente definido para os usos, a luz e seu movimento agenciam o espaço juntamente com aquele que o habita. Nesse projeto, ocorre um desfoque dos parâmetros arquitetônicos sobre espaços altamente definidos estruturalmente e espacialmente. A luz explora esse espaço sem “bordas” definidas, dissolvendose em um espaço imersivo e contínuo. Sem a luz atuando constantemente no ambiente, seria como habitar o vazio de um espaço abandonado. A luz, como produção arquitetônica, cria um espaço sem forma, sem profundidade e sem volume, não há dimensões específicas do projeto. As pessoas podem estar tanto em espaços de extrema luz como na penumbra,

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sendo que neste último, o corpo deixa de ser tão nítido. É possível agenciar o projeto do arquiteto com o conceito de blur. A imersão nesse desfoque de espaços proposto pelo arquiteto, ocorre de forma visual, mas agencia todos os outros sentidos para o corpo poder habitá-lo. A percepção é totalmente remodelada devido ao espaço não ser composto de formas extremamente definidas, como ocorre na arquitetura normalmente. A luz muda essa percepção e faz com que o corpo crie e questione o próprio espaço para poder habitá-lo. A espacialidade criada por Fujimoto só acontece juntamente com os sentidos e as sensações que são impressas pelos sujeitos que a habitam, e também pelas experiências que se produzem através de modos particulares de entender, sentir e habitar o espaço. Segundo Merleau-Ponty (1994), citado por Santaella (2010, p.285), “o sujeito da sensação não é um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado e modificado por ela; é uma potência que co-nasce com um certo meio de existência e se sincroniza com ele”. A arquitetura de luz projetada pelo arquiteto também resulta em uma arquitetura de baixa resolução devido a materialidade encontrada.


É interessante ressaltar que o arquiteto se apropria de um elemento principal para produzir todo o espaço, no caso a luz, em que esta devido sua projeção em feixes, gera um blur visual para a percepção da pessoa. O espelho, usado como segundo elemento para a construção, atua como potencializador desse efeito, para criar o efeito de uma floresta maior esteticamente. O espaço se dissolve em um ambiente imersivo, assim como na Blur Building, habitar esse espaço é fazer com que outras formas de percepção atuem sobre o corpo. É conhecer o desconhecido, desvinculando todas as formas de percepção que atuam automaticamente no corpo cotidiano, através de uma experiência imersiva ao corpo.

Floresta de Luz Fonte: Archdaily

A Nuvem Tridimensional A Serpetine Pavilon no ano de 2013 em Londres, foi projetada pelo arquiteto Sou Fujimoto como uma instalação temporária em que o público pode interagir com a estrutura. Ficou conhecida como “A Nuvem” devido a sua leveza estrutural, que foi composta por treliças de aço tridimensionais e devido a sua forma, que se assemelha a nuvem por suas características fluídas e translúcidas. O projeto propõe as pessoas a interagir e explorar o espaço projetado de diversas formas, promovendo novas experiências ao corpo. O projeto adota a aparência leve e semelhante a nuvem, que permite que a estrutura se funda a paisagem, de forma a causar um estranhamento provocando um estímulo para que a percepção atue de maneira comunicativa entre o sentido produzido e o espaço agenciado. A arquitetu39

ra de Fujimoto faz com que o corpo crie novas formas de interação com o espaço de forma a mudar a criar novos usos que é próprio de cada indivíduo. Os vários níveis da nuvem indicam que para o espaço acontecer, se faz necessário explorar e interagir com a estrutura. A apreensão das significações se faz pelo corpo: aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal” (MERLEAUPONTY, 1994, p. 212). O explorar do corpo através dos níveis promove uma experiência para o corpo como se este estivesse se misturando a própria paisagem, composta pelo verde do parque e pela construção clássica. O indivíduo que vê de fora, é afetado por corpos suspensos no espaço e pela arquitetura que juntos se fundem a paisagem.


O verde do parque e o azul do céu misturamse com a estrutura criada por Fujimoto, que foi possível através das formas irregulares e imprecisas que geram um blur na paisagem, de forma que o exterior e o interior do espaço se integram, causando um estranhamento. Fuão (2014) cita que para uma mudança de conduta na percepção do indivíduo, se faz necessário um shock que inicie uma transformação, que

desperte o corpo. Com isso, o projeto de Fujimoto para o Serpentine Gallery afirma esse despertar da percepção do corpo, tanto na questão visual acerca da paisagem quanto para a criação de uma percepção mais atenta sobre as possibilidades de habitar a estrutura nuvem. Natureza e artificialidade se complementam criando um blur capaz de modificar toda a cena do parque.

A nuvem Fonte: Serpetinesgallery.org

Da Atenção à Visibilidade Os projetos apresentados podem se agenciar com os conceitos de Ferrara (2002) sobre visualidade e visibilidade, que se configuram como duas categorias de análise do estudo dos modos perceptivos para a tentativa de compreensão da imagem e da paisagem urbana. A visualidade seria o ato de ver, porém sem um reconhecimento pelo pensamento. Nesse primeiro caso, o corpo desconhece os signos que compõe a paisagem, resultando em espaços que não são repertoriados. As relações entre percepção e imagem ficam apenas com a representação do signo visual.

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O blur perceptivo pode ser caracterizado como visualidade, pois diante do conceito empregados sobre este, tem-se que devido aos excessos de estímulos do contemporâneo, o corpo com a percepção em desfoque não produz significados aos espaços.

A relação entre ambos normalmente acontece de forma rápida e sem grandes interpretações devido a velocidade que vivemos hoje. Já na visibilidade ocorre uma construção a partir do signo, estabelecendo relações entre imagem e a paisagem. Nesse caso, essa construção de relação permitem o surgimento de novos signos mais elaborados para caracterizar o lugar através dos signos visuais já existentes.


“A visualidade corresponde à constatação visual de uma referência e, mais passiva, limita-se ao registro decorrente de estímulos sensíveis. A visibilidade, ao contrário, é propriamente semiótica, pois é compatível com a cognição perceptiva como alteridade que caracteriza e desafia a densidade sígnica. A caracterização dessas categorias parece imprescindível para se enfrentar a dimensão visual sendo signo.” (FERRARA,2002, p.101) Para a visualidade se tornar visibilidade é necessário exercitar o olhar e os processos perceptivos, fazendo com que a percepção organize os signos das espacialidades. É necessário treinar o corpo para que ele reconheça as diferenças, fazendo com que a percepção ocorra de forma atenta, para assim qualificar o espaço, dar sentido a ele, entendê-lo e caracterizá-lo como lugar informado. Exercitar a atenção é uma forma de resgatar a criação de identidade ao espaço através da percepção, de forma a retomar as referências do meio que passaram despercebidas. Para Merleau-Ponty (1999, p.55) “a percepção distraída nada contém a mais e nem mesmo nada de outro do que a percepção atenta”. Sendo assim, exercitar a atenção pode ser comparada ao fato do corpo criar sentido através da apreensão do espaço pelo sensível, pois a visualidade pode ser comparada com uma percepção distraída e a visibilidade uma percepção atenta. Os projetos apresentados trazem ao indivíduo que habita tal espacialidade uma necessidade de tornar a primeira percepção (visibilidade) que se tem do espaço para uma percepção mais apurada (visibilidade). A partir do momento que torna visibilidade, os projetos podem promover uma experiência única ao corpo, através do estranhamento causado pelas espacialidades que se apropriam do blur, fazendo com que os processos perceptivos atuem de forma diferente do que acontece no cotidiano.

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A ARQUITETURA COMO MEDIAÇÃO DA PERCEPÇÃO A partir desta análise, é possível concluir que a arquitetura possui ferramentas que possibilitem uma mudança nos processos perceptivos do corpo para com o espaço, mudando a relação do indivíduo com a arquitetura e o espaço/tempo. Os estudos de caso apontam para espaços em completa imersão no blur criado pela arquitetura, que está representado por espacialidades sem formas e definições exatas, porém o sujeito que habita sente a necessidade de tornar a percepção mais atenta diante daquele espaço devido aos novos agenciamentos sensoriais que eles permitem. Portanto, a arquitetura pode contrapor o blur perceptivo que a vida contemporânea reflete no corpo através da criação de espaços que induzam a percepção a fatores antes não explorados através da imersão do corpo em determinados lugares. O blur causado pelos excessos pode ser refletido na arquitetura como forma de causar um estranhamento no sujeito de modo a ampliar e atentar para o que se é visto e percebido, de forma que a percepção automatizada do corpo dê lugar a criação de novos sentidos. Com isso, ocorre um repensar do espaço construído através de uma percepção multissensorial que acontece diferentemente do que ocorre durante a correria da vida cotidiana que é imposta ao corpo. A arquitetura pode mediar os processos perceptivos de forma a transformá-lo, permitindo um redescobrir dos espaços e da própria paisagem urbana. Sendo o blur, uma potência da arquitetura contemporânea que pode permitir ao corpo novas formas de percepção, através de uma arquitetura que coloque o corpo imerso em novas espacialidades que causem estranhamento e traduzam em pensamento.


Não se trata de criar uma arquitetura que consiga fazer com que o sujeito perceba sua totalidade de elementos que o compõe, mas sim fazer com que ocorra uma mudança do processo perceptivo em blur da qual o corpo está habituado para uma percepção atenta, que coloque em foco o espaço e o corpo, configurando ambos como um único elemento, na qual um só existe com a presença do outro. Quando a arquitetura se apropria do blur, causa um estranhamento no sujeito que faz com que o corpo pare, olhe em todas as direções, sinta e reflita compreendendo assim, a paisagem e suas relações.

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REFERÊNCIAS DILLER, Elizabeth. Blur Building <https://dsrny.com/project/blur-building?index=false&section=projects> Acessado em: abr. 2017 FERRARA, Lucrécia D'aléssio. Olhar Periférico: Informação, Linguagem, Percepção Ambiental. 2. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999. 283 p. . As mediações da paisagem. Líbero, São Paulo, 2012 Floresta de luz/ Sou Fujimoto. Disponível em:<http://www.archdaily.com.br/br/785814/sou- fujimoto-instala-um-bosque-de-luzpara-o-cos-no-2016-salone-del-mobile

FUÃO, Fernando Freitas. A collage como trajetória amorosa e o sentido de hospitalidade: acolhimento Filosóficos. Volume 4. 2014.

em

Derrida.

Ensaios

MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 662p. PEIXOTO, Nelson Brissac. O Olhar Do Estrangeiro. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 361-365. Paisagens Urbanas. 4. ed. São Paulo: Senac, 1996. 436 p. SANTAELLA, Lucia. Percepção: fenomenologia, ecologia e semiótica. São Paulo: Cengage Learning, 2002. 146 p. Serpentine Pavillon/ Sou Fujimoto – Disponível em: <http://www.archdaily.com.br/br/01-118923/serpentine-pavilion-slash-soufujimoto> Acessado em: mai. 2017

Este artigo foi orientado pelo Profº Me. André Teruya Eichemberg

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Bovespa Foto: Facundo Guerra,2018 45


Localizado no subúrbio de São Francisco/ EUA, O Castro é sem dúvida, um exemplo de como atitude e pensamento são fatores intrínsecos na construção do espaço. O que antes dava lugar a fazendas enormes e estradas de terra, hoje é visitado por turistas do mundo inteiro, conhecido pela sua história de resistência e ativismo LGBT. Suas elegantes casas vitorianas, construídas no inicio do século XX, por imigrantes irlandeses, alemães e escandinavos que se estabeleceram aos arredores de São Francisco em busca de terras baratas, deram ao bairro uma eloquência contrastante nos anos 60 e 70 onde fez nascer uma comunidade com poder político e econômico considerável, e quando o histórico bar Twin Peaks foi construído com janelas do chão ao teto, toda a América viu isso como um sinal de que os moradores de Castro estavam orgulhosos de sua identidade gay. O assassinato em 1978 do político gay de São Francisco, Harvey Milk, foi o ponto de virada na história da comunidade. E mesmo quando a AIDS entrou em cena e ser gay parecia ser uma sentença de morte, mesmo com o medo generalizado, havia muita gente disposta a lutar pelo seu espaço de existência. Afinal, Castro era exatamente isso: uma possibilidade de exercer a própria identidade, de não se anular perante a opinião pública, de resistir à heteronormatividade.

Por Rafael di Lima

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Entre 1985 e 1988, o fotógrafo Thomas Alleman clicou o entusiasmo da comunidade que resistia ao estigma imposto sobre LGBTs mundo a fora. Anos depois, em 2012, os registros fotográficos de Alleman compuseram a brilhante exposição “Dancing in the Dragon’s Jaws”. “Espero que estas fotografias lembrem os espectadores da nossa história social, quando a primeira onda da epidemia de AIDS derrubava um dos bairros mais vibrantes de nosso país e, ao mesmo tempo em que uma parte da comunidade mostrava medo, desgosto e raiva, alguns ainda tiveram a coragem e a vontade de celebrar o sonho de vida que foi ir morar em São Francisco (…)”, disse Alleman à imprensa, na época da exposição. As imagens, riquíssimas, nos trazem uma lição de vida. Mostram que mesmo nos tempos mais difíceis, é possível lutar pela própria dignidade e dar a volta por cima. Certamente, ainda estamos neste longo processo, porém, com a participação de um coletivo que só faz crescer.

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Fotos: Thomas Alleman Fonte: Alleman.com


A R TI G O

Por Lucas Bandos

Em meados do ano de 2016, durante a 69ª edição do Festival de Cinema de Cannes, o cineasta francês Olivier Assayas foi laureado com o prêmio de Melhor Di-

retor por seu, até então, mais recente trabalho: o longa-metragem “Personal Shopper”. Protagonizado pela atriz Kristen Stewart, o filme acompanha o cotidiano da personagem, Maureen, uma jovem norte-americana, moradora de Paris, que – conforme sugere o título da película – se sustenta trabalhando como compradora de roupas e acessórios para Kyra, uma celebridade do mundo moda, vivida por Nora Von Waldstätten. Aparentemente dotada de poderes mediúnicos, Maureen procura estabelecer algum tipo de contato com o espírito de seu irmão gêmeo, Lewis, morto precocemente, em decorrência de um problema cardíaco que também a acomete. Em meio às suas frequentes tentativas de se comunicar com um suposto plano sobrenatural, a protagonista é surpreendida por uma série de mensagens de texto suspeitas, que repentinamente chegam ao seu smartphone, vindas de um número de telefone desconhecido. Desconfiada de que as mensagens possam se tratar, na verdade, de sinais emitidos por seu falecido irmão, Maureen decide dar sequência ao diálogo iniciado por seu misterioso interlocutor. A partir daí, ao mesmo tempo em que a personagem passa boa parte do filme em trânsito pela capital francesa, perambulando de boutique em boutique, uma trama de tons sobrenaturais se desenvolve e diversas fantasmagorias se manifestam ao longo do enredo.

Em texto a respeito do longa-metragem de Assayas, publicado

em sua coluna no portal do Instituto Moreira Salles, o crítico e jornalista José Geraldo Couto (2017) afirma que um dos principais diferenciais de “Personal Shopper” se dá justamente pelo fato do filme:

enfatizar o caráter fantasmático de nossa modernidade virtual: mensagens de celular vindas sabe-se lá de onde, imagens que viajam pelo éter e surgem como ectoplasmas diante de nossos olhos. Nesse contexto, uma tela de smartphone pode ser um portal para o além. É a atualização, por meio da tecnologia, de crenças, desejos e temores ancestrais. 48


Hiperconexão e mobilidade na cidade-ciborgue

Une-se a essa abordagem temática

Como vimos no segundo capítulo desta

que o diretor e roteirista do filme traz a res-

monografia, a imagem da cidade-ciborgue

peito das interferências e influências exerci-

consiste numa reformulação da imagem da

das pelos dispositivos digitais sobre a intimi-

cidade industrial do pós-Segunda Guerra

dade e o comportamento do sujeito contem-

Mundial.

porâneo, a representação do uso despersona-

Com a introdução das tecnologias do

lizado que Maureen faz do espaço urbano pa-

digital, a malha urbana adquire um caráter

risiense.

tecnológico e informacional, de modo que

Ao contrário da figura do flâneur bau-

tanto espaços físicos quanto eletrônicos são

delairiano estudado por Walter Benjamin, que

redesenhados, “reconfigurando a arquitetura

faz da rua sua casa, que se sente acolhido

externa e interna das cidades” (LEMOS, 2004,

“entre as fachadas dos prédios, como o burguês

entre

as

suas

quatro

p. 139). Toda essa complexificação do espaço

pare-

urbano organiza-se materialmente no chama-

des” (BENJAMIN, 2017, p. 39) e cuja vida “só

do espaço de fluxos, “que problematiza o es-

se desenvolve entre as pedras cinzentas da

paço de lugar da mesma forma que o tempo

calçada” (idem, p. 40), a protagonista de

real atinge a noção de tempo cronológi-

“Personal Shopper” não demonstra qualquer

co” (idem, p. 134).

sentimento pela cidade onde vive, desejando,

No entanto essa problematização não

inclusive, abandoná-la assim que possível, ao

configura uma oposição entre essas duas ins-

invés de fruí-la.

tâncias.

Mais do que mero recurso narrativo,

A cidade-ciborgue, ao contrário, agudiza a relação entre esses dois espaços. Os espaços de lugar, como ruas, monumentos e praças passam a ser interfaceados pelo espaço de fluxo por meio dos diversos dispositivos de conexão às informações digitais. [...] Hoje, por meio dos diversos dispositivos eletrônicos, o espaço de lugar é complexificado pelo espaço de fluxo: relações estabelecidas online repercutem em encontros reais, compras e home banking interferem no dia-a-dia da cidade de concreto e aço, ativistas usam a rede para organizar manifestações políticas ou hedonistas como as atuais flash mobs. Na cidadeciborgue, o espaço virtual está em sinergia com o espaço de lugar (LEMOS, 2004, pp.

esse desprendimento da personagem em relação à urbe é sintomático da própria reconfiguração dos espaços de lugar da antiga cida-

de industrial, que caracteriza aquela que André

Lemos

(2004)

chama

de

“cidade-

ciborgue”, ou seja, a cidade da cibercultura, “onde as infraestruturas de comunicação e informação já são uma realidade e as práticas daí advindas formam uma nova urbanidade” (LEMOS, 2007, pp. 122-123). Urbanidade esta que Lemos (2005) chama de “ciberurbe”. 49


135-36).

substitua a figura do cidadão consumidor-

Diante de tal constatação, compreen-

passivo – habitante da cidade industrial da

de-se, enfim, que o espaço de fluxos abrange

cultura das mídias e subjugado pelo regime

também os espaços físicos compostos por

comunicacional no padrão “um-todos” dos

toda a infraestrutura material exigida para

mass media –, seu modo de se apropriar do

que se dê o livre tráfego das informações di-

espaço público (físico ou virtual) da cidade-

gitais. De maneira que, “mais uma vez, ve-

ciborgue, “não significa, necessariamente,

mos que o espaço virtual não substitui o es-

maior interação na vida pública, já que a hi-

paço físico. Antes, adiciona funcionalida-

perconexão é aqui uma nova forma de con-

des” (LEMOS, 2004, p. 146), estabelecendo

sumo e narcisismo” (LEMOS, 2004, p. 143).

E é justamente a manifestação desse

com este último uma relação de interdepen-

modo hiperconectado de apropriação do es-

dência. É nesse contexto, no qual também se

paço, performado pelo indivíduo em meio a

estabelece uma “nova dinâmica política entre

um ambiente de “privatização do público e

o

priva-

publicização midiatizada do privado” (LEMOS,

do” (LEMOS, 2004, p. 142), que surge aquele

2004, p. 143), que vemos em cena ao assis-

que Lemos (2004) chama de “cidadão-

tirmos a “Personal Shopper”.

espaço

público

e

o

espaço

ciborgue” ou “cidadão hiperconectado”: o su-

Afinal, ainda que a protagonista do

jeito da era informacional, que se vê imerso

filme, Maureen, passe uma considerável par-

numa interação cada vez mais intensa e es-

cela do tempo de projeção locomovendo-se

treita com as redes e instrumentos de comu-

pela cidade, não há em seu cotidiano sinais

nicação digital.

de uma maior interação com o espaço público que a rodeia.

Faz-se necessário pontuar, no entanto, que, embora esse “cidadão hiperconectado”

50


Típica cidadã-ciborgue, Maureen percorre a cidade sempre em contato com dispositivos digitais, em “Personal Shopper”

Durante o longa-metragem, boa parte

hotéis, praças, etc., criando um ambiente ge-

de seus diálogos mais extensos e relevantes

neralizado de acesso onde qualquer pessoa

para o enredo se dão por meio de dispositivos

pode, dentro do seu “território informacional”

digitais – em especial, o smartphone –, estan-

constituído através de suas senhas de acesso,

do, portanto, voltados aos domínios das

enviar e receber informações multimodais, em

“malhas virtuais do ciberespaço” (LEMOS,

mobilidade (LEMOS, 2007, pp. 129-130).

2001, p. 46), ainda que fisicamente localiza-

A ideia de mobilidade à qual Lemos se

dos na malha urbana.

refere não só “é central para conhecer as no-

Essa postura da personagem, no en-

vas características das cidades contemporâ-

tanto, não elimina nem diminui a relevância

neas” (2005, p. 4), como também pode ser

dos espaços físicos de lugar. Pelo contrário. O

encarada como a principal característica das

que se tem no filme, na verdade, é a repre-

tecnologias digitais, que se configuram en-

sentação dos novos usos que lhes são atribuí-

quanto tecnologias móveis, cuja promessa é a

dos no contexto da cibercultura, no qual “as

de “propiciar uma conexão a ‘qualquer hora’ e

redes telemáticas planetárias de informação,

em ‘qualquer lugar’” (COOPER et al., 2002 p.

em relação concreta com os espaços urbanos,

296 apud LEMOS, 2005, p. 4).

constituem

novos

territórios

informacio-

Essa capacidade de “transcender as

nais” (LEMOS, 2007, p.129).

‘limitações’ geográficas e de distância” (idem,

Territórios que se caracterizam como o

p.4) – que caracteriza tanto os dispositivos

interstício, como a interface das redes telemá-

digitais quanto as práticas decorrentes de seu

ticas e das redes físicas das cidades e seus

uso – é a responsável por configurar a ciber-

espaços “de lugar” (Castells, 1996) – rua, ca-

cultura da contemporaneidade enquanto uma

fés, restaurantes, pontos de ônibus, metrôs,

cultura da mobilidade, uma cultura na qual as 51


sociedades se encontram envolvidas, confor-

sim para cumprir as tarefas que lhe são desig-

me descrito por Deleuze e Guattari (1997),

nadas por sua contratante, Kyra.

num processo de sucessivas territorializações

A cidade lhe serve como uma espécie

e desterritorializações, semelhante ao noma-

de rede de vasos comunicantes entre diferen-

dismo experimentado pelas civilizações primi-

tes localidades geográficas, na qual o percur-

tivas.

so, ou melhor, o intermezzo, como prefeririam Conforme afirma Lemos (2005, p. 5), à

Deleuze e Guattari, assume uma função me-

luz das proposições de Joshua Meyrowitz

ramente pragmática e utilitária.

(2004):

Exemplo claro dessa postura da prota-

O mundo atual, marcado pelas tecnologias móveis e pelas diversas formas de flexibilidade social, está colocando a cultura contemporânea numa forma de organização social mais fluida, com papéis menos rígidos e lugares sociais intercambiáveis que se aproxima em muito da forma social dos primeiros agrupamentos humanos.

gonista é uma passagem do filme, na qual ela

Nomadismo high-tech

nica. Não há, por parte de Maureen, mesmo

viaja de Paris até Londres, a bordo de um trem, com o objetivo de buscar, numa boutique de luxo inglesa, algumas peças de roupa encomendadas por Kyra. Todos os seus deslocamentos se dão forma absolutamente mecâenquanto estrangeira, qualquer demonstração

Essa perspectiva da mobilidade digital

de mudança de humor ou comportamento por

enquanto uma espécie de nomadismo ou

conta da alteração de cenário. A viagem não

“retribalização” do mundo e das sociedades, à

vai além de seu fim prático, de modo que não

qual se referem tanto Deleuze e Guattari

há brechas para qualquer tipo de fruição da

quanto Lemos e Meyrowitz – e que guarda

urbe londrina.

certa aproximação com a ideia de “aldeia glo-

Em consonância com a atitude da per-

bal” de Marshall McLuhan –, pode ser facil-

sonagem, o diretor do longa-metragem opta

mente observada em “Personal Shopper” ao

por – tal qual acontece com as cenas situadas

nos debruçarmos mais atentamente sobre o

em Paris –, não revelar ao espectador nenhu-

modo de vida da protagonista do longa-

ma paisagem icônica da capital britânica, que

metragem de Assayas.

só pode ser visualmente identificada pelo pú-

À semelhança do nômade apresentado

blico por conta do tradicional black cab que

por Deleuze e Guattari, que se diferencia do

transporta Maureen da estação ferroviária até

migrante, uma vez que “só vai de um ponto a

a loja à qual ela tem de se dirigir.

outro por consequência e necessidade de fa-

Desse mesmo modo, ao longo de todo

to” (1997, p. 51), a personagem Maureen

o filme, o foco da câmera sempre recai sobre

transita pelas ruas de Paris não para usufruir de uma vivência do espaço urbano em si, mas 52


paisagens e cenários que formam esse intermezzo entre dois destinos, como salas de embarque, vagões e estações de trens, estradas, ruas e avenidas congestionadas, terminais urbanos e interiores de ônibus ou táxis. Entretanto, ao ocupar esses espaços, Maureen se configura não apenas enquanto uma nômade urbana, mas, principalmente,

enquanto

uma

nômade-

ciborgue, digital e hiperconectada, sempre com seu smartphone à mão e em plena atividade. Seja assistindo a um vídeo sobre a pintora abstracionista Hilma af Klint ou, como na maior parte das cenas, trocando mensagens de texto com seu misterioso interlocutor virtual. Enquanto cidadã da cibercultura, imersa na era da mobilidade, a protagonista de “Personal Shopper” pertence a um grupo de “novos beduínos”, cujo território “não é o deserto, mas o território in-

Ambientes que sugerem deslocamentos predomindam entre as paisagens retratadas em “Personal Shopper

formacional criado pela intersecção do espaço físico com o ciberespaço nas metrópoles contemporâneas” (LEMOS, 2007, p. 132).

A respeito desses beduínos high-

tech, Lemos afirma:

munidos de tecnologias sem fio como laptops Wi-Fi e smartphones, aliam mobilidade física no espaço público com a mobilidade informacional pelo ciberespaço, redimensionando as práticas e a constituição do (no) espaço físico. O seu objetivo não é o intermezzo, o que fica entre os pontos, não é abandonar os lugares, mas buscar o seu território informacional de onde ele se conecta à rede. Fisicamente ele se desloca entre pontos para, eletronicamente, poder passear pelo ciberespaço (2007, p.132).

53


Assim, à maneira desses nômades do século XXI, ao mesmo tempo em que percorre e ocupa os domínios materiais dos espaços de lugar, Maureen navega pelas veredas cibernéticas do espaço virtual, vivenciando, dessa forma, o mais contemporâneo dos usos que o cidadão pode fazer do espaço urbano, agora configurado em espaço de fluxos, flexível e comunicacional.

A ciber-Paris habitada pela personagem e retratada pelo filme de Assayas foge dos moldes turísticos e espetaculares, mas também não se aproxima de uma imagem urbana afetiva e ligada a reminiscências. A paisagem que constrói a cidade de “Personal Shopper” é a da era da conexão, permeada pelas práticas advindas da mobilidade digital e pela sinergia com o virtual. É, enfim, a imagem de “um ambiente de acesso e troca de informações

Diálogos e outras atividades via smartphone surgem em cena em grande parte dos deslocamentos de Maureen pela cidade

que envolve os usuários” (LEMOS, 2005, p. 16), enredando-os por vias hipertextuais, cujos infinitos percursos estão à distância de um clique ou de um toque numa tela touchscreen.

RE FERÊNCIAS

¹COUTO, José Geraldo. Cinema, matéria e espírito. Blog do Instituto Moreira Salles, São Paulo, 10 mar. 2017. 2

LEMOS, André. Cidade-ciborgue: a cidade na cibercultura. Galáxia: Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica, São Paulo, n. 8, pp. 129-148, out. 2004. 3

LEMOS, André (Org.). Cibercidade II: Ciberurbe: A cidade na sociedade da informação. 1. ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2005. 374 p. 4

MEYROWITZ, Joshua. Global nomads in the digital veldt. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 24, pp. 23-30, jul. 2004.

5

Ver: LEMOS, André. Anjos interativos e retribalização do mundo: sobre interatividade e interfaces digitais, 1997.

Este artigo foi orientado pela Prof.ª Dra. Laura Fernanda Cimino 54


Por Isabella Vallino

SPFW e o desfile de Ronaldo Fraga. Intitulado “As mudas”, o desfile que fechou a SPFW desse ano quem o assistiu, atravessou como uma espada-de-são-jorge na espinha, como lama nos pés e trouxe a dor das famílias, a delicadeza das bordadeiras, a intimidade das plantas que brotaram onde não deveriam para explicar a incompletude da vida. O rompimento da barragem na cidade de Mariana em novembro de 2015, deu luz para o estilista Ronaldo Fraga desenvolver sua nova coleção. A memória deu voz ao desfile. As bordadeiras deram vida as peças que ora lhes foram tiradas pela tragédia. O que é vestir uma angústia? O que é vestir lembrança? O que é vestir mudas? Ronaldo Fraga respondeu a todas essas perguntas durante a apresentação da coleção. De primeiro momento as peças destacam-se pelas plantas brotadas em cima da barragem, ao som dos povos, de Milton Nascimento interpretado por Lívia Nestrovski & 55


Fred Ferreira, o desfile começa agulhando nosso peito “A gente aprende a morrer só, meu povo... “, com a interpretação maravilhosa da apresentadora Marilia Gabriela; depois as roupas nos mostram um lado mais humano com as fotos encontradas das famílias do desastre, os retratos de vidas que foram esquecidas. Memórias que foram levadas e que hoje foram resgatadas pelo estilista brilharam na passarela como sinal de sobrevivência. Outro destaque significativo para o desfile é que o estilista começa com as peças nos tons mais claros, cores que foram desbotadas após o barro encobrir tudo, a medida em que as modelos caminhavam os tons se escureciam, a coleção revelava imagens de paisagens destruídas que ao mesmo tempo tornaram-se fonte de renda para as bordadeiras daquela região, onde Fraga viu a possibilidade de manter viva a memória têxtil dessas mulheres guerreiras. O silêncio foi apenas quebrado pelos aplausos e pela emoção daqueles que de alguma maneira foram tocados pela sensibilidade do estilista. A moda nunca é só moda, é comunicação. É comunicar algo, não roupa. É poesia visual. “Antônio cavou com as próprias mãos , por oito meses, a terra onde antes estava a sua casa a procura da foto dos filhos enqto bebês . Móveis, jardim e criação, é fácil arrumar, mas memória não, dizia ele.” Ronaldo Fraga.

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Fotos: Zé Takahashi 57


Retalhos onde um dia foi a Companhia Nacional de Tecidos Foto: Facundo Guerra, 2018 58


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Projeto desenvolvido por Alex Sandro Lucas Mazali Orientado pelo ProfÂş Me. AndrĂŠ Teruya Eichemberg 68


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AR TI

G O

Profª Msc. Tatiana F. Silva Chaves

A PERCEPÇÃO URBANA COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO O presente artigo parte da seguinte questão: que relação comunicativa se estabelece entre corpo e ambiente? O objetivo é discutir de que forma o corpo percebe o ambiente em que vive e com ele estabelece vínculos comunicativos, ou seja, como produz conhecimento. A título de exemplo foram selecionadas fotografias de Cristiano Mascaro, considerado o fotógrafo de São Paulo, que retratam pontos da cidade e que se configuram como apropriações cognitivas que transformam o espaço em lugar.

A cidade, desde que se tornou ponto de convergência das atividades econômicas e, consequentemente sociais, em especial a partir do século XIX, acabou também atraindo olhares para seus mais diversos aspectos – arquitetônicos, comerciais, políticos, culturais, entre tantos outros. No entanto, grande parte da produção acerca das cidades considerou-a como pano de fundo, cenário ou mesmo se propôs a pensar seus aspectos desconectados entre si ou apontando uma ordem de explicação geral e necessária estabelecendo uma fissura entre espaço e tempo, natureza e cultura. Essa visão que separa sujeito e objeto e coloca de um lado a técnica, o sistema econômico e uma ordem global e de outro a cultura e uma organização local, ora privilegia um ponto, ora se detém em outro, e revela um pensamento dicotômico ainda não superado. Essa separação é proveniente de um pensamento moderno que pretende uma ordenação do mundo e, para isso, considera o sujeito isolado do espaço da natureza como uma forma de legitimação ideológica de sua destruição. A conseqüência são modelos que congelam o objeto e tiram a mobilidade que lhe é inerente impedindo desdobramentos para novos questionamentos e

novas possibilidades de ver. Para Charles Sanders Peirce (1839-1914), cientista fundador da moderna Semiótica, esta foi a questão na qual se baseou sua filosofia do Idealismo Objetivo, ou seja, a ideia de que não há uma ruptura entre mente e matéria estabelecida a partir da observação de que a Natureza, como a mente, tem a tendência a criar hábitos. Portanto, se seguem a mesma lógica, tudo se apresenta como mente (mind), já que do contrário, se objeto e pensamento não seguissem a mesma lógica, o mundo seria para nós incognoscível. Segundo Peirce, “a única teoria inteligível do universo é a do idealismo objetivo, de que matéria é mente esgotada, hábitos inveterados tornando-se leis físicas” (PEIRCE apud IBRI, 1992, p. 59). Por esse motivo, para o estudo do espaço, especificamente do espaço urbano, dada sua complexidade e mutabilidade constante e acelerada, torna-se necessária uma investigação interdisciplinar que considere a cidade como algo que está para além dessas separações e cujas representações são resultados da experiência humana (FERRARA, 2002, p. 96). 70


Neste sentido, é necessário entender a cidade como um organismo vivo e, mais do que isso, como ambiente, onde todos os elementos se comunicam. Desta forma, supera-se uma visão voltada para a tentativa de ordenar e homogeneizar o espaço a fim de flagrar a construção de ambientes únicos e específicos que nos levam a entender o objeto como complexo e aberto sistemicamente. Sendo assim, parece-nos que a melhor maneira de estudar a cidade é entendê-la como manifestação semiótica (FERRARA, 1993, p. 231) cujo caráter dialógico permite pensá-la como espaço comunicativo possibilitando uma apreensão possível de suas linguagens e representações. Além disso, pensar a relação entre corpo e cidade é admitir o homem não mais como simples componente da paisagem urbana, mas como um sujeito que interage e imprime marcas sobre este espaço. A partir desta visão, fica claro que o corpo não apenas recebe informações do ambiente, mas está com ele numa relação de troca constante. Para entender a cidade como ambiente, partiremos dos estudos do biólogo Jacob von Uexküll (1864-1944) acerca das diferenciadas percepções que cada animal possui daquilo que chamou seu mundo-próprio. Uexküll verificou que o ambiente fornece sinais que provocam reações no organismo através de seus órgãos sensoriais, demonstrando que há uma relação entre fatores do ambiente e o corpo do animal. A essa relação chamou “ciclo-defunção” cuja soma com outros ciclos-de-função formam o ambiente para determinada espécie animal (UEXKÜLL, 9). Sendo assim, o ambiente (Umgebung) é dado, mas a percepção específica de cada organismo lhe confere significado e, portanto, existência, demonstrando que do ponto de vista da percepção e organização do modo de vida, não há um ambiente único para todos os seres, mas ambientes individuais, ou Umwelts, em que cada espécie possui seu espaço e tempo subjetivos.

Essa visão mostra que há uma ordenação do mundo sem a qual o processo de significação não seria possível, mas que, em se tratando do ambiente urbano, interior e exterior interagem 71

promovendo uma relação entre o tempo e o espaço impostos por uma ordenação que supõe uma racionalidade global hegemônica de um espaço dado a priori, e uma organização do tempo e espaço proposta pelo próprio corpo no ambiente numa tentativa de adaptação de ambos. Ou seja, o tempo ordenado cronologicamente e o espaço ordenado do ponto de vista de sua estrutura/funcionalidade, ambos obedecendo a normas globais ou coletivas de percepção e uso, coexistem com um tempo perceptivo individual e um espaço local organizados muitas vezes de forma a romper com a ordem existente, ou criando novas maneiras de adaptação e apropriação cognitiva espaço-temporal. Essa adaptação se dá, no caso da cidade, através dos usos e hábitos que os sujeitos traçam neste espaço, qualificando-o e, com isso, produzindo o que podemos chamar de lugar. O lugar é espaço qualificado, ou seja, é capaz de produzir significados e, por isso, impossibilita a dissociação do espaço e da corporeidade que a anima.

Corpo e percepção Entendendo o lugar como resultado de uma seleção promovida pelo corpo no espaço, um fragmento retirado que possibilita a elaboração de territórios e mapas cognitivos únicos, é possível inferir que para traçar esse recorte e dar a ele significado, qualificá-lo, é necessário que ocorra um processo perceptivo capaz de produzir novas informações e conhecimento. Nesse ponto, podemos voltar a Uexküll e seus estudos sobre o Umwelt. O autor considera o Umwelt como o modo próprio de cada espécie organizar sua relação com o ambiente. Essa relação é tão particular que não pode ser interpretada por outra espécie à luz de sua maneira de também se relacionar com o mesmo ambiente; antes é preciso entender cada espécie em seu mundo próprio. “Cada sujeito fia as suas correlações como os fios de uma aranha, relativamente a determinadas propriedades das coisas, e tece-as numa sólida teia que suporta sua existência.” (UEXKÜLL, 42). O Umwelt diz respeito às capacidades de adaptação, organização, percepção, de movimento e representação de cada sujeito, já que um dos principais fatores que nos difere de outras espécies não é a capacidade de representar, mas de representar simbolicamente (DAMÁSIO, 2004, p. 58). Neste sentido, é possível ampliar a noção de ambiente, de forma a ultra-


passar o local onde se está, onde as coisas acontecem para abarcar também os ambientes cultural, psicológico, e todos os conjuntos de possibilidades. Essa visão supera a noção de ambiente como entorno voltando-se para uma compreensão da relação, do que ocorre no entre. Podemos arriscar que a criação de Umwelts ocorre com o corpo no ambiente urbano que, mesmo possuindo uma ordenação, está também em constante mutação propondo sempre novos desafios à adaptação e, portanto ao conhecimento. Segundo Michel Serres, todo conhecimento começa no corpo, em sua capacidade mimética que engendra reprodução e representação (SERRES, 2004, p. 69). No entanto, é importante pensar que nem todas as representações que acontecem entre corpo/mente/ ambiente são simbólicas; existem outros tipos de representação, já que o que representamos não é apenas o que vemos e o que vemos não é apenas o que tem existência. Essa observação pode ser mais bem explicada pelo neurocientista António Damásio quando trata de um outro tipo de imagem que não a que nos referimos anteriormente com relação à cidade, e sua compreensão torna-se importante já que a maneira como percebemos e agimos no ambiente decorre dessas representações que se transformam em narrativas verbais ou nãoverbais. Essas imagens dizem respeito a organizações das representações neuronais decorrentes da interação corpo/ambiente; são imagens internas do corpo. Damásio entende a imagem quase como um sinônimo de pensamento, um padrão mental decorrente de estímulos polissensoriais que geram os sentimentos e as emoções, considerados por ele como alicerces da mente. O autor define as emoções como sendo ações ou movimentos visíveis, na maioria das vezes, e que ocorrem no “teatro do corpo”, ao contrário dos sentimentos que são invisíveis ao público e acontecem no “teatro da mente” (DAMÁSIO, 2004, p. 35).

internamente e questiona as informações que havia antes fazendo com que 72


o corpo as reorganize, como afirma Christine Greiner:

tanto, a metonímia focaliza mais especificamente algum aspecto do objeto considerado (LAKOFF, não é apenas o ambiente que constrói o corpo, nem tampou- 2002, p. 93). Não se trata de uma escala de valores co o corpo que constrói o ambiente. Ambos estão ativos o tempo todo. A informação internalizada no corpo não chega na qual se evidencia o que é importante ser capimune. É imediatamente transformada (...) Não há estoque, apenas percursos transcorridos e conexões já experimenta- tado para representar o todo, mas de um olhar das. (GREINER, 2005, p. 43). atento àquilo que qualifica o espaço. Tal relação se evidencia, no trabalho de Mascaro, no diálogo enÉ possível entender, desta forma, que mesmo tre a imagem captada e o título que a nomeia revepossuindo aparatos sensório-motores muito semelando o universo do qual faz parte. lhantes, o que possibilita uma percepção muito A Avenida 9 de Julho, por exemplo, não apareparecida, cada corpo estabelece suas próprias coce num plano aberto no qual estejam também prenexões com o ambiente num movimento inintersentes seus edifícios, suas sinalizações, seus corupto. Assim, o corpo não pode ser entendido comércios, seu trânsito, mas sim numa composição mo um depositário de informações, mas como um geométrica de um viaduto junto a um corpo solitáespaço de fluxos e trocas que, ao mesmo tempo rio que lhe dá vida. A avenida não está localizada em que constrói a cidade, é resultado dela. Assim, geograficamente mantendo relação com suas adjao corpo desenha seus próprios espaços estabelecências ou marcada por algum aspecto simbólico cendo novos usos para a cidade e propondo uma que lhe confira uma referência no tempo; ela está organização espacial que estabelece uma relação tão somente flagrada num instante – um espaço entre elementos heterogêneos, uma relação não banal. Na verdade, da avenida, como espaço para entre prováveis, mas entre possíveis que, por isso circulação de automóveis, quase nada aparece; mesmo, está sempre em aberto, disponível a uma somente uma única pessoa que parece contradizer reorganização, dando à cidade também uma caraco adjetivo “populosa” conferida à cidade. Essa preterística de organismo vivo. Essa forma de viver o/ sença é o punctum da imagem, sua marca, um no espaço da cidade escapa das formas rígidas e se lance de dados, o acaso perenizado (BARTHES, produz na tessitura dos afetos, do embate ou en1984, p. 46) que se torna o referente para o que, contro com o outro, com a sociabilidade enfim. É ao olhar para a foto, se possa entender como renessa dinâmica que se produz o lugar. Não se trata presentativo daquele espaço. do lugar antropológico carregado de memória histórica, mas do lugar como agenciador do diálogo entre signos do passado e do presente (FERRARA, 2002, p. 18). É possível perceber a produção do lugar a despeito da imagem pela qual uma cidade se faz conhecida quando se observa, por exemplo, as fotografias de Cristiano Mascaro sobre a cidade de São Paulo, cujas imagens revelam um olhar diferenciado sobre a cidade, captando o que parece invisível ao se esconder sob o hábito. As fotografias de Mascaro se colocam como um desafio à percepção, já que fogem da pasteurização de um modelo de imagem criado para São Paulo e veiculado, sobretudo, pela mídia. Esse desafio se impõe também na medida em que, mesmo atuando como metáfora visual da cidade tomada no seu conjunto, a montagem das imagens captadas por este fotógrafo sobre a cidade, fragmentam -na e, à maneira de metonímia, em que a parte vale pelo todo, o detalhe é ressaltado como expressão de um contexto maior. Para Lakoff e Johnson esse uso da metonímia se aproxima da função da metáfora ao permitir uma compreensão. Entre73


Um dos principais marcos da cidade, o Edifício Copan é registrado por Mascaro naquilo que nele há de peculiar: suas curvas. É essa forma que chama a atenção de quem passa pelas principais vias da cidade e que o consagrou como cartão postal (ver imagem comparativa) e espaço simbólico incansavelmente veiculado pela mídia. Entretanto, nessa imagem do fotógrafo não há nada que ateste o Copan como o maior edifício residencial do país, nem tampouco revela sua imponência em relação às demais construções vizinhas. Ainda que suas curvas sejam inconfundíveis, o enquadramento dado por Cristiano Mascaro foge da “reprodutibilidade técnica” da imagem e solicita um conhecimento prévio da cidade de São Paulo ou de seus principais aspectos simbólicos. Somente assim é possível realizar, por montagem, a visibilidade daquilo que está apenas sugerido. O próprio modo de fotografar de Mascaro se dá por montagem, na medida em que busca o heterogêneo a partir da combinação de elementos que, apesar de familiares, podem ser lidos de outra maneira como consequência do enquadramento dado.

Imagem Corporativa, Edifício Copan

Edifício Copan – foto: Cristiano Mascaro

A partir dessas imagens, entendemos que o olhar que se propõe a caminhar por outras veredas relativiza a intencionalidade da imagem e do próprio espaço urbano fazendo uso da imaginação dentro da qual as possibilidades são infinitas. Esta também foi a proposta de Ítalo Calvino ao eleger a Visibilidade como um dos seis valores a serem preservados neste milênio e cujo objetivo é não perder uma das faculdades humanas que julga fundamental: “a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados” (CALVINO, 1990, p. 108). As imagens de Mascaro são apenas uma mostra de como o uso inventivo ou um olhar diferenciado sobre o ambiente permitem criar vínculos com a cidade transformando seus espaços em lugares. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbáries: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: rua de mão única. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da História em Walter Benjamin. São Paulo: USP, 2000. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel, 1988. FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Design em espaços. São Paulo: Edições Rosari, 2002. FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Espaços comunicantes. São Paulo: Annablume, 2007. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles Sanders Peirce. São Paulo: Perspectiva: Hólon, 1992. LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Educ, 2002. MASCARO, Cristiano. Avenida 9 de julho. 1996. 1 fotografia. MASCARO, Cristiano. Edifício Copan. 1996. 1 fotografia. MASCARO, Cristiano. Imagem comparativa cartão postal – Edifício Copan. 1996. 1 fotografia. SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. UEXKÜLL, Jacob Von. Dos animais e dos homens. Lisboa: Edições Livros do Brasil, 1932.

74


Túnel subterrâneo na Lapa, São Paulo Foto: Facundo Guerra,2018 75


As abordagens audiovisuais de Ila Bêka e Louise Lemoine sempre nos mostram situações inusitadas e sensíveis a respeito de uma obra icônica da Arquitetura. Assim foi na singular Maison Bordeaux de Rem Koolhas, em que nos mostra o olhar não do arquiteto ou moradores, mas percepções da empregada da casa, a Sra. Guadalupe. Na série ainda temos obras referenciais de Herzog & Meuron, Renzo Piano, Frank Gehry, Richard Meier, Bjarke Ingles, entre outros. Moriyama San é provavelmente um dos filmes mais sensíveis que ressalta, de forma poética e precisa, os encontros sobre um ser humano, o Sr. Moryiama e a arquitetura. Moryiama house é uma obra prima de 2005 de Ryue Nishizawa, que também desenvolve projetos junto ao SANAA, com a também arquiteta Kazuyo Sejima. Após a morte de sua mãe, o Sr. Moryiama resolve pedir a Ryue uma nova casa para morar. Este então responde prontamente: - Você não precisa de uma casa. Você precisa de uma pequena vila no meio de uma floresta.

A proposta do projeto é uma singela floresta-morada em Tóquio, e aí que começam as singularidades e expressões dos dias atuais. Para obter tal imersão numa pequenina floresta, o projeto não se insere num espaço afastado do meio urbano, mas, de forma inusitada, e por isso mesmo, fantástica, numa área central de Tokio. O filme evidencia a personalidade e intimidades do Sr.Moriyama e como tais agenciamentos possibilitam ao seu corpo gerar novas potências afetivas nas diversas paisagens do projeto. Dessa forma, não há como separar o corpo de Moryiama com o espaço que cria suas existências. Surge daí uma arquitetura que compreende as reflexões íntimas do corpo no e para o espaço. O filme captura essa relação intrínseca entre corpo/espaço, de forma que nos desperta outras relações afetivas na arquitetura. O espaço de morar foi projetado em dez blocos separados, criando intervalos entre eles. Tais intervalos são zonas que tendem a maximizar a potência de vida de Moriyama. Descobre-se nessas zonas, um microcosmo de ações que se desdobram naturalmente e que desvelam uma tempo76


ralidade sutil e fantástica do seu cotidiano. O interessante é perceber que o projeto insere algumas questões já compreendidas pelos modernos mas com novas possibilidades espaciais, tais como o teto jardim ou mesmo a racionalização funcional e dinâmica das aberturas e dos blocos da residência. Entre os espaços, acontecem situações cotidianas que absorvem e fazem sentido a fragmentação espacial dos blocos, uma pequena bacia para lavar as mãos conectado com uma mangueira dessas que compramos por aí, um simpático caranguejo perambulando, as plantas e árvores se desdobram em complexas redes de luz e sombra. O interessante é que ao passar uma semana com o morador, o filme consegue captar essa essência entre Moryiama e os espaços. Cada bloco é utilizado de acordo com sua rotina ou necessidade. Moriyama adora livros e música experimental japonesa, dorme no chão, lê embaixo da escada, ou sobre uma janela, ou embaixo de uma árvore; sempre está lendo. A arquitetura agencia as possibilidades e recursos de forma simples e orgânica, o que fica evidente no controle fluído sobre a luz, tão evidente em seu conterrâneo, Tadao Ando, o que nos permite promover tais densidades luminosas com as funções possíveis. Não se faz arquitetura sem o tempo que escorre sobre os seres de quaisquer natureza, os conduzindo. A arquitetura portanto, não se desvincula das existências presentes no tempo que é criado pelo Sr.Moriyama, um tempo que nos permite sentir uma leveza e simplicidade da vida.

Há, de certa forma, um resgate ou uma reencantamento das coisas, do corpo que vai desdobrando e desvelando a potência de vida existente em seu cotidiano. Tal abordagem audiovisual, mesmo que focada e direcionada a questões estéticas dos autores, não se encontra em livros ou nos cultuados cérebros da academia, não está nos fóruns e eventos sobre arquitetura, pois o sensível sempre é o que está no lado de fora, pra lá ... Uma semana com Sr.Moriyama nos faz repensar a essência da arquitetura e como pensar as potencialidades do corpo no cotidiano. Arquitetura está a salvo com o Sr.Moryiama, e ele é foda!

Texto: André Teruya Eichemberg Fotos: Docaviv.com/2017 77


Por Rafael di Lima

A Arte Urbana de Keith Haring Keith Haring foi o criador de uma das mais notáveis e emblemáticas iconografias da cultura moderna, com o seu traço característico, os seus desenhos e graffitis de homenzinhos eléctricos. Ganhou notoriedade ao desenhar a giz nas estações de metro de Nova Iorque. Nos anos 80, participando de diversas bienais, pintando até mesmo no Muro de Berlim. Sua arte é iconoclasta, seguindo um caminho estético próprio, alheio a modas e paradigmas. Da mesma forma que Basquiat (jovem artista protegido de Andy Warhol), Haring abriu novas portas de entendimento de arte urbana. A sua linguagem influenciou grande parte da cultura pop atual e o seu legado continua a fascinar tanto leigos quanto especialistas no mundo inteiro. Mesmo sendo um dos artistas mais comercializados do século XX, Keith definia sua criatividade numa única frase "Eu não acho que a arte é propaganda. Sinto que deve ser algo que liberta a alma, provoca a imaginação e encoraja as pessoas a ir mais longe. Celebra a humanidade em vez de manipulá-la”. Esse gênio da art pop, que expressava através da sua arte causas humanitárias importantes, morreu aos 31 anos de idade, vitima de AIDS. 78


P.S.

Uma das obras mais conhecidas de Haring tem origem curiosa: ele fez amizade com um estudante de Pisa em Nova York, e depois de ouvir muitas histórias sobre a cidade, decidiu assim visita-la em busca de uma parede adequada para o trabalho que já tinha planejado realizar. O local escolhido foi a grande parede da Igreja de Sant’Antonio Abate, uma estrada que encontra-se na grande Piazza Vittorio Emanuele II. Cada personagem representa um aspecto diferente de um mundo em paz: as tesouras “humanizadas” são a imagem de colaboração concreta entre os homens para derrotar a serpente, que esta comendo a cabeça da figura à direita, a mulher com o bebê refere-se à idéia da maternidade, os dois homens que seguram o golfinho é uma representação da relação do homem com a natureza. O mural tem um título incomum: “Tuttomondo”, uma palavra que resume sua busca constante para atender e identificação com o público, exemplificado aqui pelo personagem amarelo andando e correndo, no centro da composição no mesmo nível de um transeunte hipotético. Os trinta personagens do mural tem a vitalidade e a energia típicas de Haring e seu fervor criativo incessante que lhe permitiu acaba-lo, poucos meses antes de sua morte.

Fotos: Tseng Kwong Chi,1986 Fonte: Haring.com 79


E N T R E V I S TA

Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Débora Cristine Rocha fala sobre a leitura subjetiva da cidade, as políticas de programação do espaço urbano e sobre sua pesquisa que investiga a correlação entre as cidades, espaços urbanos e a cultura.

ALPENDRE— Em que medida as “cidades invisíveis” de Calvino poderiam nos oferecer possibilidades de leitura do fenômeno urbano e consequentemente, de investigação de novos modos de subjetivação entre o espaço e a cultura no contemporâneo? ROCHA: Ah, nesse livro, Calvino nos torna conscientes sobre o verdadeiro significado de cidade. Ele mostra como cada cidade é um organismo vivo, coletivo e único; gerado, nutrido e alinhavado por modos de fazer, viver e sentir; repleto de gestos cotidianos e experiências de vida. Calvino apresenta inúmeras cidades ao leitor e mostra como cada uma a seu modo é um lugar excepcional, específico, que adquire forma por meio dos vínculos – sociais, econômicos, afetivos, reais e ficcionais, culturais, dentre tantos outros – que seus moradores articulam com a espacialidade que habitam. Ou seja, o escritor mostra como cada cidade é um mundo particular, uma construção da cultura da qual emerge, assim como uma construtora que torna essa cultura possível. A cidade é o que Milton Santos chama de lugar, distante do simples local. O lugar é a espacialidade apropriada pelas pessoas, que a tornam palco de vivências, desejos, materialidades e imaterialidades, desafios e vitórias. Já o local é a espacialidade esvaziada de humanização. Como cada cidade é apropriada de uma maneira, nenhuma cidade é igual a outra. Lembro de uma amiga de Ituiutaba, cidade do interior mineiro, que nos primeiros dias em São Paulo pediu uma informação na rua e voltou para casa, acredite se quiser, 80


chateadíssima. Chegou aonde dividíamos um apartamento e disse horrores da cidade

Eis um ato rotineiro, apropriado de maneiras bem distintas. Sim, pedir e rece-

de São Paulo. Ao perguntar o que tinha acontecido, explicou que havia pedido informação a um engravatado, que até lhe deu, mas de modo muito rápido. O rapaz respondeu e continuou caminhando com a maior pressa. Segundo o relato, como se ela nem existisse. Eu, paulistana, achei tudo normal e fiquei sem entender qual era o problema. Sobretudo, mas não apenas, nas áreas centrais de São Paulo onde morávamos, as pessoas andam mesmo correndo e comportam-se com velocidade surpreendente. São sucintas e de fato nem sempre cumpri-

ber informações na rua é uma ação cultural, cheia de significados, que depende da cidade na qual nos encontramos. No entanto, seja em São Paulo, seja em Uberaba, nessa ação está presente a dimensão do humano e do espontâneo, da organização coletiva – não hierarquizada, construída por discussão, cooperação e oposição – dos grupos vinculados a cada cidade. Há na cidade, um apurado senso comunitário. Porém, além da cidade, existe o urbano, que embora se relacione de maneira indissociável com a cidade a partir de determinado período histórico, é algo muito

mentam ou despedem-se longamente ao darem informações, ainda mais quando estão com o tempo contado. Ninguém estranha, é o ritmo do lugar. Só fui entender a revolta da amiga quando, na cidade de Uberaba, também localizada no interior de Minas Gerais, às quatro e meia da manhã, eu e um grupo de amigos precisamos perguntar sobre a direção que deveríamos seguir e tivemos a sorte de encontrar alguém nas ruas desertas da cidade. Enquanto o homem nos orientava, ouvimos uma voz vinda de dentro da casa em frente à qual ele estava parado: “Eu sei!” E o dono da voz saiu da casa e veio explicar com a maior boa vontade como é que deveríamos fazer para alcançar o destino desejado. Era um senhor já de muita idade que de repente disse: “Eu levo vocês lá!” Nós, sem querermos dar trabalho, brincamos: “Mas aí como vamos trazer o senhor de volta?” Para a nossa admiração, ele respondeu com singeleza e alegria: “Volto só! Com permissão, levo a bicicleta na garupa de vocês e venho para casa com ela.”

diferente. O urbano é a maneira como um sistema econômico, notadamente o capitalismo, procura submeter a espontaneidade, a criatividade típica da cidade aos seus interesses. Para tanto, faz uso de uma programação, um conjunto de instruções hierarquizadas e rotinas rigorosas, para controlar a cidade e direcionar os seus rumos. Enquanto a cidade se articula como rede, cuja horizontalidade permite que as pessoas possam dialogar e encontrar soluções em conjunto, o urbano estabelece relações de dominação, próprias da organização em pirâmide e encara a cidade como espaço hierárquico, no qual o poder público manda e a população obedece. É a lógica do mando e da subordinação. Por isso, a liberdade proporcionada pela rede é vista pelo urbano como ameaça à ordem por ele imposta e acusada de baderneira. Só que precisamos considerar que a rede não implica em falta de organização, mas na existência de uma forma de organização diferente da hierárquica, que está além das relações de mando e subordinação. Esse é o seu teor revolucionário, 81


tão combatido pelo poder. Nas Cidades invisíveis de Calvino, quando

ja confronto entre o urbano e a cidade. O urbano deseja que a cidade lhe seja servil,

o viajante Marco Polo relata ao Grande Khan como são as cidades por onde passou, é verdade que ele mostra a beleza da criatividade das cidades. Mas também é verdade que ele tece uma cartografia das cidades que compõem o reino do Khan, o que o auxiliará a manter o poder sobre elas, pois saberá como controla-las de maneira mais eficiente. Sim, a dominação se beneficia do conhecimento sobre o dominado. E sim, a literatura pode nos tornar conscientes sobre a condição humana tanto quanto a sociologia.

mas ela o desafia e segue a sua própria pauta, ligada às aspirações populares. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o prefeito Marcelo Crivella (PRB), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, tem programado o urbano com o ponto de vista do pentecostalismo que representa. Em 2017, ele abriu uma verdadeira guerra contra a cidade ao cortar as verbas municipais destinadas ao Carnaval, o maior evento turístico da cidade, no ano de 2018. O discurso neoliberalista de Crivella justificou o corte ao afirmar que, diante da crise econômica, a prio-

ALPENDRE— Entre cidade e urbanidade há uma relação dialógica. Como você vê as atuais políticas de programação e de uso do espaço urbano implementadas pelos agentes públicos dentro da lógica do capitalismo neoliberal? ROCHA: O capitalismo neoliberal programa o urbano para que sirva a seus propósitos, que não beneficiam a coletividade, mas apenas um grupo reduzido de indivíduos, a classe dominante. No processo, a criatividade da cidade é sufocada e a organização em rede que a caracteriza, controlada. Às vezes o controle é ostensivo e truculento, às vezes está disfarçado sob o persuasivo véu da propaganda política. Porém, em ambos os casos, é comum que ha-

ridade eram as crianças e as creches. Crivella é um prefeito pentecostal que é pentecostalista antes de ser prefeito, um contrassenso dentro do Estado laico. Veja, é comum que os pentecostalistas não pulem o Carnaval e realizem retiros espirituais durante o período, pois acreditam que se trata de uma festa que fere princípios cristãos e está ligada ao demônio. Até aí, cada um acredita religiosamente no que quiser e faz o retiro que quiser. O problema é que se o Carnaval tem esse significado para o pentecostalismo, ele não tem o mesmo significado para o restante da cidade e movimenta todos os anos milhões de reais no Rio ao atrair turistas do mundo todo.

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Os turistas não vão necessariamente participar dos desfiles das escolas de sam-

samba. Durante o desfile de 2018, a Estação Primeira de Mangueira, uma das agre-

ba, pois a festa vai além disso: há bloquinhos, festas patrocinadas pelos hotéis, idas ao Cristo Redentor, consumo nas praias, bares e botecos etc. Porém, quem é o carro-chefe? Obviamente o desfile. Todo o resto acontece em torno dele. Portanto, se a qualidade do desfile cai, o lucro total da cidade com o Carnaval tem grande chance de seguir o mesmo rumo. E a festa é uma fonte de renda das mais importantes para muita gente, o que inclui desde o vendedor de sorvetes na areia até o dono do hotel de luxo. Ou seja, no Rio, Carnaval não é despesa, mas investimento com retorno ga-

miações mais antigas e respeitadas do Carnaval carioca, apresentou o enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro eu brinco”, conta a História do Carnaval carioca como festa de rua. A escola leva para a avenida um boneco de Judas para ser malhado. O boneco representava Marcelo Crivella. A resistência não fica por aí. Nas ruas, blocos de Carnaval como o Simpatia, Paz e Amor incluem na festa marchinhas e gritos de guerra que ironizam o prefeito. A cidade dá as costas ao urbano programado e combate seus desmandos por meio do humor, uma das mais importantes formas de pro-

rantido. Na crise, é um volume de dinheiro que entra na cidade que não poderia ser esquecido. Só que a prioridade do prefeito, que é pentecostalista antes de ser prefeito, é honrar a sua religião e não cuidar dos interesses da cidade. O resultado? As verbas foram mesmo cortadas, a Liga das Escolas de Samba (Liesa) protestou, o prefeito ironizou o protesto e a polêmica tomou conta da cidade, apimentada pela mídia. Para jogar mais lenha na fogueira, Crivella, que já havia viajado durante o Carnaval de 2017, faz o mesmo em 2018. Durante o momento mais importante do ano na cidade, o prefeito se ausenta e deixa de administrar todas as dificuldades que costumam surgir durante um evento de grandes proporções em qualquer cidade do mundo. Só que a cidade possui as suas artimanhas, formas de resistência com as quais o poder hierárquico tem dificuldade de enfrentar. As escolas de samba não puderam fazer reverter o corte de verbas, mas articularam a sua resposta por meio do que conhecem como a palma da mão, o

testo já inventadas. As imagens são transmitidas para o mundo todo e exibem a luta contra o neoliberalismo, associado a uma forma de pentecostalismo desvirtuado. O poder avança, mas não se pode dizer que livremente. Há brechas nos muros erguidos pelo urbano em torno da cidade e o poder nunca consegue submetê-la por completo. ALPENDRE- Como poderíamos pensar a cidade a partir da ideia de comum, no sentido de um espaço comum atravessado por singularidades. De outro modo, como pensar a cidade como espaço de resistência ao biopoder? ROCHA: A cidade é o espaço compartilhado por todos aqueles que dela fazem parte. São Paulo, uma cidade cheia de diversidade, por exemplo, é o espaço elaborado por todos os indivíduos, todos os grupos, todas as tribos que a vivenciam. Do pichador periférico ao alto executivo que transita pela Avenida Paulista, cada habitante da maior cidade brasileira tem as suas questões, buscas, dificuldades, alegrias e descobertas. Cada um é singular, algo que o capacita a dar contribuições únicas ao espaço co83


mum, que só tem a ganhar com as singularidades que agrega. Porém, como sabemos, pertence à essência do biopoder a ambição de querer transformar a vida em produto capitalista, moldá-la e enquadrá-la segundo parâme-

era. A mídia irá registrar com estardalhaço a inauguração do ar no sanitário. Enquanto isso, haverá cortes no programa que distribui leite para as crianças da cidade. Cuidar do banheiro é mais importante do que aliviar a fome. Afinal, a hi-

tros que não fazem sentido para a cidade compartilhada. Em São Paulo, no primeiro dia de sua gestão iniciada em 2017, o prefeito João Dória Júnior (PSDB) lança o programa Cidade Linda. Programa de limpeza e zeladoria, o Cidade Linda será a estrela do urbano programado e deixa claro desde o princípio que o importante é a higienização da cidade, não as suas vozes. Diante da imprensa reunida para cobrir o primeiro dia de trabalho do novo prefeito, Dória surge com uniforme de gari e dá algumas vassouradas no chão da Praça Catorze Bis, localizada no centro de São Paulo. As vassouradas são simbólicas, duram poucos instantes. No resto do tempo, que leva uma hora e dez minutos, o prefeito posa para fotos e concede entrevistas. Nesse contexto, varrer é ato performático, excelente para a propaganda política do urbano e um aviso duro para a cidade: ela, suja e mal cheirosa, será faxinada. Não é à toa que uma ação comemorada pelo prefeito e patrocinada pelo empresariado paulistano será a instalação de ar condicionado no banheiro do Parque do Ibirapu-

gienização é prioridade da classe social que o urbano representa. Já a fome, a classe dominante não considera eliminá-la, pois muitas vezes lhe serve como instrumento de dominação. E o que dizer sobre a guerra contra os artistas visuais? O Cidade Linda apagou o mural de grafite da Avenida Vinte e Três de Maio, a maior obra do gênero das Américas. Construído de forma colaborativa e com a concordância do poder público, uma das referências em grafite no mundo foi coberta por tinta cinza de uma hora para a outra e desapareceu. Aí a resistência se fez sentir. Apesar de parte da população apoiar a ação, o restante da cidade confrontou a prefeitura. Os artistas se mobilizaram, os acadêmicos falaram sobre a perda irreparável do que havia sido feito, a população lamentou a perda do seu patrimônio visual. Ainda assim o prefeito justifica o ato e dá declarações que revelam profundo desconhecimento sobre arte, visualidade, grafite e pichação – ele confunde os dois movimentos e acredita que abrigam bandidos. 84


C ada tribo resiste do seu jeito. Os artisNo meu caso, estudo a relação entre o tas fazem performances e manifestos, os urbano e a cidade e procuro pensar os meacadêmicos escrevem e dão entrevistas nas quais apontam a incompetência do urbano para julgar o que é e o que não é arte, a população debate nas redes sociais digitais. Mas nada se compara ao que os pichadores vão fazer. Eles respondem com uma forma de guerrilha urbana, decidem pichar o nome de Dória no patrimônio público e avisam que não se importam em serem presos. Há um limite na relação conflituosa entre urbano e cidade que uma vez ultrapassado estabelece a revolta aberta da cidade. ALPENDRE- Gostaria de saber sobre as pesquisas realizadas pelo Grupo ESPACC e

canismos de programação, vigilância e controle desenvolvidos nas espacialidades públicas. Denomino, ainda que provisoriamente, a minha pesquisa como “Reality administração pública”, pois ela toma como hipótese que técnicas televisivas próprias do reality show têm sido utilizadas pelo poder público para persuadir com eficiência a cidade a aceitar o controle que lhe é imposto pelo urbano. Portanto, é uma pesquisa que alia estudos sobre televisão às investigações sobre a forte relação entre poder e resistência na cidade.

a sua individualmente que investigam a correlação entre as cidades, espaços urbanos e a cultura. ROCHA: O grupo Espacc (EspaçoVisualidade/Comunicação-Cidade), sediado na PUC-SP, pesquisa espacialidades. Esse é um conceito proposto pela líder do grupo, a professora Lucrécia D’Alessio Ferrara, que indica o quanto o termo “espaço” pode ser abstrato e vago. Já as espacialidades são representações do espaço, elaboradas pela cultura na qual têm lugar e podem ser tratadas de maneira mais objetiva. Para o Espacc, a Catedral da Sé, em São Paulo, não é apenas um espaço, mas uma espacialidade, uma representação que carrega consigo a cultura na qual foi elaborada. Devo dizer que muitos dos meus colegas no Espacc possuem pesquisas que conscientizam e até emocionam. Alguns percorrem a cidade como flâneurs e revelam-na como organismo vivo, outros debatem as espacialidades que a compõem. Há também pesquisas conceituais que repensam os significados de semiótica e comunicação. 85


Galeria Clรกudia Andujar, Sรฃo Paulo Foto: Facundo Guerra, 2017 86


Higienรณpolis, Sรฃo Paulo Foto: Facundo Guerra, 2018 87


Centro Cultural Ocupa Ouvidor 63 , São Paulo Foto: Facundo Guerra, 2018 88


Cemitério Do Araçá, São Paulo 89

Foto: Facundo Guerra, 2018


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