Revista Preá 24

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Como surgiu o desejo de morar na praia, um lugar antes relegado aos trabalhadores braçais do porto, com suas vestes mínimas, território proibido para mulheres e homens da classe abastada? Afinal, até o início do século 18, as cidades litorâneas européias não apenas davam suas costas para as praias, mas também nelas jogavam seus dejetos. Os autores que se debruçam sobre o tema da ocupação do litoral explicam que esta mudança de visão, de espaço desprezado a espaço desejado, coincide com mudanças sociais, “resultado da emergência de valores, hábitos e costumes que transformam o mar, o território do vazio e do medo, em espaço atraente para a sociedade contemporânea”, nas palavras do geógrafo Paul Claval, que também explica o conceito de maritimidade: Maneira cômoda de designar o conjunto de relações de uma população com o mar – aquelas inseridas no plano das preferências, das imagens e das representações coletivas em particular. É através do conceito de maritimidade que podemos entender como se deu e vem se dando a ocupação do território litorâneo, bem como sua urbanização, através do que aqui será chamado de prática marítima moderna e sua principal representação – a vilegiatura marítima. Se a prática marítima tradicional é a relação do homem com o mar através da pesca e atividades relacionadas ao porto, práticas essas datadas desde o período das grandes navegações, a prática marítima moderna, principalmente no Brasil, tem início no final do século 19 e início do século 20, e compreende as novas formas de relação que as elites estabelecem com o mar. No início, esta nova relação se dava enquanto prática terapêutica – Alain Courbain exemplifica como começou, três séculos atrás, essa “história do desejo da beira-mar, dos prazeres do passeio na areia, da contemplação emocionada da infinitude marinha e da invenção do veraneio, com a organização da natureza litorânea em balneários, marinas e belvederes”:

O banho de mar deve ser tomado durante o outono, um pouco antes do pôr-dosol e à sombra, nunca no cálido e fétido Mediterrâneo, mas nas águas geladas do mar do Norte e do canal da Mancha. O prazer nasce da água que flagela e, mais sub-reptício, da contemplação proibida dos cabelos soltos, pés nus e quadris marcados por calças justas das moças que se escondem em carruagens de banho. Das recomendações ligadas diretamente à saúde passa-se posteriormente ao conceito ou ideal de vilegiatura marítima (com a espacialização da segunda residência), onde o ócio, o lazer e a recreação são os motivos primordiais para o novo desejo.

RAÍZES Sempre é bom lembrar que, antes de almejar a beira-mar, o homem urbano tinha o sertão como objeto de desejo. O sertão representava a origem da produção que animava a economia da cidade e do porto: a ligação do urbano com o litoral restringia-se à relação portuária para escoamento das mercadorias do interior. Além disso, a necessidade de ir ao sertão para resgatar as próprias origens justificava a constituição da segunda residência, refazendo e invertendo o caminho dos ancestrais. (A segunda residência, de acordo com Seabra, é a “habitação cujo uso é eventual”, não constitui “suporte da vida cotidiana”, sendo utilizada, máximo, metade dos dias do ano, “considerando todos os fins de semana e o período de férias escolares”.) A necessidade de obter uma segunda residência, então, seja para fins terapêuticos, seja para o gozo das férias com a família, era latente no desfrutar do convívio com as raízes, com a terra, o rural, o sertão e toda a sua carga identitária de lembranças vividas ou sonhadas. E a sociedade detentora da segunda residência, caracterizada por uma classe abastada, com recursos excedentes, fundamentais não apenas para a construção e manutenção da segunda residência como também para o deslocamento até ela.

O processo de modificação desta lógica de valorização social dos espaços, com a transferência do sertão para o mar – onde o homem urbano que antes dava as costas para o mar agora passa a desejar vê-lo de frente –, se dá por imitação dos hábitos e costumes de uma aristocracia européia: cabia aos aristocratas imprimir modismos, que eram absorvidos pela burguesia no desejo de se igualar em importância, copiando seus hábitos e costumes. Enquanto o historiador francês Marc Boyer aponta o século 18 como o início dessa mudança – com os britânicos sendo os pioneiros na prática do banho de mar e passeios na orla, com fins terapêuticos de início, e posteriormente para lazer e ócio –, estudiosos da ocupação do litoral nordestino identificam o mesmo processo no Brasil de cem anos depois, na virada do século 19 para o século 20: o novo olhar para a praia enquanto reflexo das necessidades de uma nova elite que, tendo acesso às informações do exterior e da capital federal, então no Rio Janeiro, e sob suas influências, passa a ver a praia como um lugar atrativo para curar os males do corpo e da alma, e, futuramente, para o simples prazer.

VILEGIATURA Com o morar na praia – ou o desejo de – tornando-se moda, surge uma nova prática marítima moderna, a vilegiatura, bem explicada e exemplificada por Eustógio Dantas: A vilegiatura marítima representa instauração de racionalidade associada à sociedade do ócio nos trópicos. Sua natureza consiste em deslocamento com o objetivo de estabelecer-se (fixar-se) em espaço privilegiado para seu exercício (zonas de praia). Incrementa-se, nesses termos, lógica dispare da preexistente, na qual esses sujeitos estabeleciam-se no sertão e nas serras, com suas famosas chácaras e sítios. O objeto de desejo desse novo vilegiaturista é a obtenção da segunda residência, construída nas praias das capitais nordestinas. Antes morada de uma população excluída socialmente (pescadores, trabalhadores

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