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Editorial

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Destaque

De olhos postos no futuro Carl Schmitt afirmou um dia: “O estado, enquanto um todo, com corpo e alma, é uma máquina. Trata-se de uma obra feita por seres humanos, na qual a matéria e os artistas, a máquina e o construtor são idênticos, isto é, os seres humanos”. Já de olhos postos no novo ano, o tempo torna-se novamente um enigma. Como será o futuro e o que podemos saber dele? Se é lá que vivem as nossas esperanças, nele depositamos também os nossos receios e as nossas desilusões. Não o conseguimos adivinhar, dificilmente prever, mas nessa imprevisibilidade reconhecemo-lo tão fascinante quanto esperançoso. A A23 encontrou assim quatro jovens do Interior do país, entre tantos outros, que escolheram a música como destino. As inseguranças, as desilusões, a falta de apoios nacionais aos artistas foram alguns dos temas abordados, mas também a dedicação à arte que, numa sociedade onde a globalização é sinónimo de uniformização, resiste ao artificialismo. Existimos pelas relações que temos com os outros, pelo que somos enquanto pessoas que (con)vivem com outras pessoas. O crescimento da população urbana tem aumentado consideravelmente. Diariamente, algures no país, alguém abandona a sua povoação rural, que mais não seja para se instalar nas periferias urbanas. Cresce a população urbana e cresce com ela o número de automóveis. Na passagem do milénio, por exemplo, havia cerca de 700 milhões de automóveis em todo o mundo. Constroem-se mais estradas e mais parques de estacionamento, tomando conta das cidades. Poderá a urbe sobreviver ou estará sob a ameaça de perda de identidade a longo prazo? O dossier deste número 1 da A23 reflecte pois sobre onde e como param os condutores da região da Beira Interior. Um dossier que é, sobretudo, uma reflexão cívica, ao serviço da cidadania. A música, que pauta este primeiro número da A23, faz soar em cada página diferentes tons. Desde a música clássica, à música do brasileiro Chico Buarque, que reflecte aqui em entrevista sobre o cruzamento do seu percurso literário com uma aclamada carreira mundial musical, a música em si enche-nos de alegria, desenvolvenos enquanto pessoas. E de novo de olhos postos no futuro perguntamos: Qual será o futuro destes jovens que a ela se dedicam por inteiro? Estaremos à altura de os acolher na sociedade? Como será viver num mundo verdadeiramente multicultural? E que papel terão nele as regiões? Sabemos sim que o olhar prospectivo comporta consigo necessariamente um olhar retrospectivo, que seja, sobretudo, a consciência do tempo em que vivemos. Quem tem a consciência do tempo em que vive está também aberto ao futuro. Talvez a grande questão que se coloca seja não apenas saber de onde vimos, mas também para onde vamos. Ricardo Paulouro

P.08 GRANDE TEMA

Quando a vida se escreve nas pautas Apesar das crescentes dificuldades que o nosso país teima em criar aos jovens músicos em Portugal, nem isso os demove de seguirem a música como carreira. Esta reportagem reflecte sobre o estado desta arte em Portugal e, em especial, na região da Beira Interior. Quatro jovens que abraçaram a música falam das escolas que os acolheram e dos aspectos que consideraram fundamentais para a sua formação. Apesar das dificuldades, a música continua a encher corações.

P.14 DOSSIER CIDADANIA

Pagar para parar As placas rectangulares com o enorme P que indicam o início das “zonas de parqueamento pago” têm surgido nos últimos anos por todo o lado nos pólos urbanos do Interior. A A23 analisou os parqueamentos pagos de quatro cidades do Interior – Castelo Branco, Covilhã, Fundão e Guarda – tentando responder à pergunta: “é realmente necessário pagar para parar no Interior?”

P.22 ENTREVISTA

Entrevista a Chico Buarque Um dos maiores nomes da música ao nível nacional, que esteve recentemente no nosso país a apresentar o seu novo trabalho «Carioca», fala aqui sobre o ofício da escrita. Chico Buarque revela-se um verdadeiro contador de histórias. Uma arte reservada aos grandes artesãos da linguagem.

P.05 ENSAIO “A União Europeia e a Turquia” P.06 OPINIÃO “Sobreviver à mediocridade” P.16 CRÓNICA “A Dupla Vontade de Monsieur Ramos” P.18 PORTFOLIO Rui Dias Monteiro P.26 CULTURA “Dave McKean - O Ilustrador de sonhos”; “Voar”; “Debaixo de olho”; “Parabéns Ballet Gulbenkian!” P.30 ARQUITECTURA “O arquitecto da memória” Luís Marçal Grilo P.32 VIAGEM “Constância - ao sabor dos rios” P.35 GASTRONOMIA “Restaurante Marisqueira Bela Vista” P.36 VÍCIOS “Alforge - A tradição com muito estilo” P.38 ESTREIA “Teatro das Beiras no Teatro Nacional” P.39 FOTOREPORTAGEM “Alternativos de todo o mundo, uni-vos” P.40 MEMÓRIA

Director/ Ricardo Paulouro Director-adjunto/ Pedro Leal Salvado Chefe de Redacção/ Margarida Gil dos Reis Colaboram neste número/ António Leal Salvado, Jacinto Galião de Tormes, Luiz Antunes, Luís Marçal Grilo , Manuel da Silva Ramos, Manuel Halpern, Paula Nogueira, Pedro Fiúza, Pedro T. Ramos, Rui Pelejão Marques, Vasco Paulouro Neves Design Gráfico/ contiudo.com | David Duarte, Nuno Lages Foto de Capa/ Manuel Luís Cochofel Fotografia/ António Supico, Magda Fernandes, Manuel Luís Cochofel, Maria Sofia Xavier, Mário Raposo, Rui Dias Monteiro, contiudo.com | Nuno Lages, David Duarte, Pedro Seixo Rodrigues Ilustração/ Lucas Almeida Periodicidade/ Trimestral Tiragem/ 10.000 exemplares Impressão/ Mirandela Artes Gráficas Distribuição/ Gratuita Propriedade/ Associação Cultural A.23 | associacao23@gmail.com | www.contiudo.com | contiudo@gmail.com Número registo na ERC/ 125073 Morada e sede de redacção/ Rua dos Três Lagares - Edifício Laranjeiras, Torre 3, 6º - 6230 Fundão A.23 // 01


Š Ricardo Paulouro


A um tu genérico après tout (No primeiro dia do milénio, às 4.30 da noite)

Eu serei o que tu pensares e não poderás saber e hás-de pensar sem saber para saberes o que eu próprio nunca soube eu serei o que nunca fui só tu é que poderás saber e saberás por não saber e já sem qualquer tensão envolverás o que não fui no que para ti serei irrevogavelmente porque terei de ser o que fui não sendo embora nunca nada na agitação de ser quem fui perdidamente incapaz de morrer na morte de cada instante sem disfarçar o meu fulgor sem estancar a minha sede morrendo de ser o que era e não ser porque não morro e amando a inatingível fonte que em mim murmurava incertamente com o olhar que não era nada no silêncio de ser sempre o silêncio de uma sombra que caía como um pássaro morto. António Ramos Rosa (Texto inédito)

O Sol em dias de Inverno //

António Ramos Rosa

Dedica-se há mais de 50 anos exclusivamente à literatura. António Ramos Rosa é autor de uma das mais marcantes poesias do nosso tempo e a sua actividade crítica abriu, com lucidez, novos caminhos poéticos. A sua obra impõe-nos uma luz que ora revela a realidade, ora nos revela a nós próprios. Só nos últimos dois meses viu a sua obra premiada com o Grande Prémio de Poesia da APE, o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Prémio do PEN Clube. Aos 82 anos, o poeta mostra-nos como é possível o universo caber numa palavra. Palavra de vida, que foge à névoa e é luz que brilha.


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Sinais

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O cerco de Jericó

“Uma cidade é uma possibilidade, desde que se cultive a arte do possível” Texto | Rui Pelejão Marques Ilustração | Lucas Almeida

abertura da Faculdade de Medicina, na cidade da + ACovilhã, é um dos acontecimentos mais marcantes no ano de 2006, não só para a região mas também para o país. Localizada junto ao Centro Hospitalar da Cova da Beira, que ocupa, num ranking nacional, o honroso quarto lugar, esta obra vem reforçar a concentração de vários serviços de saúde na mesma cidade. Uma mais valia não só para os covilhanenses mas também para todos os habitantes da Beira Interior que têm agora ao seu dispor serviços de excelência, a que se juntará, brevemente, o tão esperado Pólo de Psiquiatria.

novamente de parabéns a Academia de Música + Está e Dança do Fundão. Os jovens músicos Tiago Mileu, no piano, e Francisco Franco, na guitarra, foram seleccionados pela Antena 2 para representarem Portugal no 41º Concurso Radiofónico Internacional Concertino de Praga, tendo ainda transmitido em directo os concertos dos alunos. Mais uma prova da qualidade e excelência do ensino da Academia fundanense.

Municipal de Castelo Branco está de parabéns + AporCâmara ter sido uma das primeiras autarquias do país a aderir ao Programa Território Artes, para aceder a espectáculos co-financiados pelo Ministério da Cultura. A Bolsa de Produções do Programa Território Artes integra até à data 227 possibilidades de programação, incluindo espectáculos, ateliês e exposições. Com esta iniciativa, Castelo Branco coloca-se novamente num panorama culturalmente activo, aberto à itinerância e ao multiculturalismo.

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A indefinição que vivem vários serviços dos hospitais de Castelo Branco, Fundão e Guarda revela uma insensibilidade da parte do governo para uma questão fundamental da vida das pessoas como é a saúde. Ao longo do último ano ninguém conseguiu explicar qual o projecto para o Centro Hospitalar da Cova da Beira e qual o papel dos vários hospitais da região. Bom senso para esta questão é o que se pede neste início de novo ano.

Tom Waits e o meu avô Manuel Vitorino partilham uma filosofia diurética. Ambos são extraordinários bebedores e apreciam uma pequena particularidade da vida no campo – Mijar ao ar livre. No pico de Dezembro o meu avô prefere regar as suas viçosas couves, enquanto Tom Waits montou o seu estúdio num galinheiro para gravar “Mule Variations” e nos “intermezzos” poder mijar ao luar do Arizona. Há quem viva com a eterna melancolia da vida no campo, sem saber que a vida no campo se resume a mijar sob o luar calado e cúmplice, e escutar a chuva a bater na terra, emanando aquele cheiro a fecundação da Gardunha. Nas cidades, mijar na rua é punível com coima, e por isso inventaram o urinol, que pode ser um equipamento sanitário ou um meio de financiar a nova decoração do gabinete do vereador local. Felizmente, mijar nas cidades em Portugal é uma borla, ainda que meio secreta. Nas cidades da Mittleurope, só mija quem paga. Essa pequena diferença reflecte-se na qualidade do serviço. Trata-se da melhor publicidade à liberalização capitalista do xixizinho público. Enquanto em Portugal um urinol cheira a mijo e tem aquele encanto sórdido da poesia ejaculada nas paredes e na loiça da fábrica de Valadares, no meio da Europa as “toillets” cheiram a alfazema e o papel higiénico é mais do que suficiente para garatujar um volume de “A memória do mundo – das origens até ao ano 2000”. Este opus magnum da história da humanidade foi a última aquisição da minha mãe nas promoções do Círculo de Leitores. Ela ficou com o triturador Moulinex (a terceira, para o caso de avarias). e eu fiquei com a história do mundo, desde Lucy, a remotamente sexy avô de todos nós, até à última entrada que relata o problema da sobrepopulação no planeta terra: “Com uma taxa de crescimento de 2 por cento ao ano, a população mundial duplica em cada 35 anos. A manter-se assim o mundo terá 56 biliões de habitantes em 2100”. Os catastrofistas, estilo Malthus, diriam que não haveria croissants quentes e sushi para todos, mas um inabalável optimista pensaria de imediato nas vastíssimas possibilidades

de encarar de frente um problema de sobrepopulação de mulheres boas, e sobretudo disponíveis… Na mesma obra enciclopédica que serve de base para os meus copos de whisky, conta-se a história de Jericó, oficialmente a “mais antiga cidade do mundo”. Mais interessante do que a sua fundação, que data do VIII milénio, é a história do seu cerco e destruição, como reza o livro de Josué do Antigo Testamento: “No sétimo dia, as muralhas de Jericó caíram, o povo entrou na cidade e passou a fio de espada homens, mulheres, crianças e velhos, até mesmo os bois, as ovelhas e os jumentos. Os muros de Jericó não voltaram a erguer-se.” Esta carnificina recoloca o problema do trânsito em Lisboa num patamar ético completamente diferente, e leva-nos à inevitável catalogação das cidades modernas – entidades devorativas de terra e homens? Santuários do anonimato? Território da solidão pura? Eu cá, que a Malthus prefiro o malte, gosto de pensar que uma cidade é acima de tudo uma possibilidade; um território de escolha, um caminho só nosso que eventualmente se cruza com outros. Uma cidade é uma liberdade vigiada, mas a liberdade possível de espetar o nariz na “Ronda da Noite” do Reijk Museum depois de um charro de “White Widow” num “coffe shop” em Amsterdão, ou mergulhar na praia de Copacabana e depois comer um bolinho de bacalhau e ver as bundinhas cariocas a passar ao som do choppe; beber vinho e comer queijo em Paris, andar de táxi em Roma, ir às putas nos arranha-céus de Tóquio e nas catacumbas do Cais do Sodré, ou simplesmente dizer adeus ao homem que diz adeus nos semáforos do Saldanha. Uma cidade é ir até Cabul no bolso de Vasquez Montalban e na companhia “groumet” do seu detective Pepe Carvalho, entre acepipes e iguarias. É isso que vale a pena nas cidades – a possibilidade de conhecer as pequenas aldeias que somadas e multiplicadas fazem uma metrópole de sensações e descobertas. E isso é quase tão bom como mijar ao ar livre sob a sombra de uma Gardunha de Dezembro. [x]


A União Europeia e a Turquia //

Texto | Vasco Paulouro Neves

A recente visita do Papa Bento XVI à Turquia teve o mérito de colocar na agenda mediática a delicada questão da entrada deste país na união europeia. Tema incómodo para largos sectores sociais e políticos da Europa, que se assumem feroz e militantemente contra a sua entrada, a “questão turca” emerge hoje como uma questão difícil, mas fundamental de ser encarada, no contexto de uma Europa em crise. Dentro da Europa as resistências à entrada da Turquia na União Europeia são mais que muitas. Sectores políticos muito diversos assumem abertamente a sua oposição, avançando argumentos como a geografia, a quase totalidade do seu território encontra-se no continente asiático, ou a sua incompatibilidade com valores fundamentais da “civilização” europeia. Este último argumento, suportado essencialmente pela noção de “choque de civilizações”, teorizada por Huntington, ganhou um forte impulso com o 11 de Setembro e a crescente islamofobia das sociedades ocidentais. Como diz Ramonet, ele manifesta a actual “angustia identitária” do Ocidente em relação ao Islão. Muito por causa deste contexto, a história da relação entre a Turquia e a União Europeia tem sido feita de impasses, de alguns avanços e muitos recuos. Em relação à Turquia, a tese da incompatibilidade civilizacional com a Europa não é mais que uma completa e bem urdida mistificação. Ao longo de todo o século XX, com a emergência da Turquia moderna das cinzas do império Otomano, toda a sua história é a narrativa de uma persistente aproximação à Europa. A Turquia moderna, fundada pela revolução de Kemal Ataturk, mostrou desde o início uma grande afinidade com os valores europeus e ocidentais: separou a religião do Estado e promoveu a laicidade do novo regime, impôs aos seus habitantes costumes ocidentais (foi promovido o vestuário ocidental em prejuízo da roupa tradicional dos turcos) e até inventaram um alfabeto ocidental. Na década de 50, aderiu à NATO e ao Conselho da Europa, e data de 1959 o seu pedido de adesão à então CEE.

A aproximação entre a Turquia e a Europa prosseguiu em 1963, com um acordo de associação com a CEE, e em 1995 foi assinado um tratado de união alfandegária. Finalmente, nos conselhos europeus de 1999 e de 2002, a União Europeia reconheceu oficialmente a Turquia como candidata à adesão, fixando um conjunto ambicioso de condições (a calendarização então proposta definia para 2006 a abertura das negociações e a sua conclusão em 2015). É inegável que a emergência da Turquia moderna de Ataturk não foi feita sem elevados custos no que toca às liberdades individuais e do respeito pelos mais elementares direitos humanos. A ideia de uma Turquia secular e laica só foi possível através da tutela perniciosa dos militares sobre a vida politica e social, tutela essa que de certa forma ainda hoje perdura. Por outro lado, o nacionalismo feroz promovido pelo recém-criado Estado, necessitado de reinventar uma forte identidade nacional, teve quase sempre na base uma política de exclusão de “outras” identidades: ao longo da história contemporânea da Turquia, os desejos independentistas, ou até autonomistas dos Curdos, foram sempre ferozmente reprimidos; o genocídio dos arménios, em 1915, foi o momento mais trágico desta política chauvinista. Contudo, desde que em 1999 a União Europeia aceitou oficialmente a Turquia como país candidato à adesão, tem-se assistido a uma evolução significativa no sentido da democratização e do respeito dos direitos humanos. O horizonte da entrada do país de Ataturk na EU, tão desejado pela elite turca, deu azo a uma série de reformas que não podem deixar de ser vistas como sinais extremamente positivos: foi abolida a pena de morte; o projecto de criminalização do adultério foi abandonado; e, mais significativo ainda, houve uma melhoria inegável das liberdades no Curdistão turco, o ensino da língua curda foi autorizado e muitos presos, defensores da causa curda, foram libertados. É certo que ainda falta fazer muito em termos de

Ao longo de todo o século XX, com a emergência da Turquia moderna das cinzas do império Otomano, toda a sua história é a narrativa de uma persistente aproximação à Europa. democratização da Turquia. O estado turco ainda não reconheceu oficialmente o genocídio dos arménios de 1915, falta ainda avançar mais nos direitos dos curdos, nomeadamente avançar com uma amnistia em relação aos milhares de prisioneiros do PKK, e o poder e influencia dos militares sobre o poder politico turco é ainda uma realidade, mas é precisamente sobre estas complexas realidades que o efeito da entrada da Turquia na União Europeia mais se sentiria: reforçar a sua democratização, a sua laicização e a defesa dos direitos humanos neste imenso país. Uma Turquia democrática tem ainda o mérito de abalar seriamente a tese que preconiza uma incompatibilidade insanável entre o Islão e a democracia. Desta forma, uma Turquia dentro da Europa constituir-se-ia como um poderoso exemplo para todas as outras sociedades de maioria islâmica, em particular as sociedades existentes nessa zona do mundo tão decisiva e instável que é o Médio-Oriente. Por fim, e não menos importante, a adesão da Turquia à União Europeia teria um efeito muito positivo para a própria Europa. Poria fim à nefasta concepção da Europa enquanto “clube cristão”, reforçando uma visão do velho continente enquanto espaço de liberdades, democracia, multicultural e laico. E reforçava a Europa enquanto projecto político, como espaço privilegiado para desenvolver um diálogo entre civilizações e uma politica de cooperação e paz em contraponto às poderosas forças que apenas procuram o conflito e a guerra. [x] ENSAIO // 05


Sobreviver à mediocridade //

06 // OPINIÃO


Texto | António Leal Salvado Fotografia | Manuel Luís Cochofel

A nossa civilização tem, cada vez mais, o eixo do seu desenvolvimento fulcrado nas competências. Se já enquanto espécie herdámos do nosso antepassado homo habilis o segredo de evoluirmos através da transformação das capacidades em competências, a condição de sapiens sapiens deu-nos a consciência de ser possível levar até ao impensável o ciclo capacidades / competências / novas capacidades. Esta possibilidade de fazer da inteligência uma ferramenta para a aquisição de mais inteligência não abriu só indefiníveis fronteiras à felicidade individual, acrescentou também ilimitados apetrechos ao progresso dos povos. A matriz de desenvolvimento das sociedades mais avançadas à entrada no século XXI assenta na capacidade de criação, na corrida a criar mais, a criar melhor, a criar primeiro. E a criação depende da quantidade e da qualidade de talentos. O talento é o primeiro veículo do caminho para a perfeição – e esta é a meta exigida pela concorrência imparável das partes no todo globalizado. Por todo o lado se cata o tecido social à caça de talentos, por todo o mundo desenvolvido se trata o talento como uma espécie de pedra filosofal que há que descobrir, estimular, mutiplicar e aproveitar. Nós, portugueses, temos algo que nos faz conviver mal com o talento. Somos uma pátria com uma estranha força centrífuga à volta dos homens e dos feitos de excepção – de Camões a Fernão de Magalhães, de Bartolomeu de Gusmão a Jorge de Sena, da bravura no Cabo das Tormentas ao “salto” no sudexpress. Fora do nosso solo, o limite parece ser o céu; aqui, parece às vezes que não há nada para ninguém. O talento e as competências de excelência são votados a sentimentos que vão do menosprezo ao incómodo, servindo a mesma idiossincrasia que nos deprime na certeza de que a responsabilidade é sempre alheia. O futuro é sempre difícil por causa da pesada herança do passado, o sucesso próprio é sempre impossível por causa do fracasso de outros. O presidente da junta de freguesia sente-se desapoiado pelo presidente da câmara municipal, que se sente sabotado pelo primeiro-ministro, que se sente incompreendido pelo presidente da república, que se sente manietado pela conjuntura europeia, que se sente condicionada pela hegemonia americana, que quando não anda a braços com os extra-terrestres se sente compelida a encontrar, arrasar e/ou reinventar o eixo do mal. Nesta conjuntura do conformismo com a própria incapacidade de mais fazer do que procurarmos quem expie as culpas próprias que nunca admitimos, ainda vai havendo quem queira resistir e procurar o futuro olhando para a frente, na convicção de que a energia se gera de dentro para fora – e pela positiva. São aqueles que sabem ou querem vencer pelo talento. Vemolos, se não em quantidade pelo menos em qualidade, não só no estrangeiro mas também no país, não só nas metrópoles do litoral mas também no coração do interior. Haja quem seja capaz de encarar o seu brilho sem cuidar de se sentir ofuscado. Admirar o talento provoca nas boas almas aquele fascínio que faz da inteligência o maior dos espectáculos. Mas nunca a ideia de que o génio é um dom que a Natureza distribui aleatória ou fortuitamente por aqui e acolá e que, uma vez recebido, só tem que deixar-se correr. Nada de mais errado! Quem observa de perto aqueles a quem de modo simplista chamam “sobredotados” apercebe-se facilmente dos riscos que a capacidade excepcional acarreta – para quem a transporta e para quem a acompanha. Riscos que não raramente se transmutam para perigos fatais, até pela dimensão com que a sua própria natureza reclama que sejam tratados ou permite que sejam subestimados. É lapidar, nos nossos dias, o

comovente exemplo de David Helfgott, um canadiano que aos 14 anos suscitava a admiração entusiástica da sua comunidade ao vencer os concursos de piano em que participava, com uma alma gémea da de Chopin e uma técnica próxima da de Rachmaninov. David tinha um problema sério: o pai, possuidor ele próprio de conhecimentos invulgares mas com um ego maltratado pela vida, viu no talento do miúdo a sublimação das suas próprias frustrações; enquanto David deleitava os auditórios com brilhantes interpretações, o pai exigia o panteão da glória. Foi fatal para o jovem: esquecendo o excelente professor que generosamente o acompanhava, ignorando o acolhimento de uma comunidade que o queria levar longe, o pai de David fez questão de ser ele a escolher o que o miúdo tocava – e desprezou a necessidade do longo caminho que é o virtuosismo, lançando o filho no queimar das etapas que só os bons professores e as escolas atentas conhecem: David tinha que ser, não só um bom músico, mas o maior dos músicos. Convenceu-o a consumir-se no estudo da peça mais difícil da história do piano. David conseguiu tocá-la – mas no mesmo palco e na mesma hora em que foi aclamado como genial intérprete da imortal “Rach 3”, caíu derrubado pela insanidade mental. Passou 30 anos entregue aos cuidados da psiquiatria e sempre que despertava da letargia da loucura sofria de uma tristeza imensa pela condição em que se via. Tem hoje 59 anos e o seu nome não é símbolo da glória que merecia – mas de uma compaixão universal que jamais havia de querer. O que falhou com David Helfgott? Talvez o mesmo que nós, portugueses, teimamos em deixar ao acaso: A distribuição certa dos papéis da família, da escola e da comunidade, no acompanhamento que colectivamente é indispensável às capacidades de quem é único. O afecto sem técnica, a técnica com rigor, o acompanhamento desinteressado de quem faz do génio virtual um valor colectivo e humanístico – porque não há génios de perfeição em homens de espírito deformado. Afinal, faltou saber subtrair à força do acaso aquele chico-espertismo que, por cá, tão bem conhecemos.

Nós, portugueses, temos algo que nos faz conviver mal com o talento. Somos uma pátria com uma estranha força centrífuga à volta dos homens e dos feitos de excepção – de Camões a Fernão de Magalhães, de Bartolomeu de Gusmão a Jorge de Sena (...) Quando, há uma década ou mais, o jovem covilhanense Filipe Quaresma escolheu como desafio de futuro a arte – esse domínio em que o talento chega ao sublime pela via da genialidade – poucos acreditaram em mais do que o sonho próprio da sua idade. Bruno Borralhinho, um outro rapaz da Covilhã, apostou no mesmo caminho e sacou das mesmas armas do talento. Ambos tomaram as vitaminas de que nem a genialidade prescinde: uma família que os compreendeu sem nada impor, uma escola que os acolheu atentamente, um professor que lhes dedicou a produção técnica e artística que os seus talentos mereciam. Nasceram, naturalmente, dois grandes nomes da arte do violoncelo a nível mundial, nas salas de uma escola covilhanense, pelas mãos de um professor beirão. Filipe e Bruno são hoje dois homens respeitados pelo talento singular adequadamente conduzido. Ao lado deles, no palco, não tardará a estar Joana Cipriano, outra menina cuja vocação de eleição

começou na Covilhã um rumo que já vai na Royal Academy de Londres. Todos sairam de uma escola que os professores Luis Cipriano e Paula Ramos fizeram à medida dos grandes ninhos de talentos. Estranhamente, a mesma escola que prescindiu desses dois mentores. Estranhamente, uma escola em que o Poder Público tem o domínio e o mando. Estranhamente, uma escola que sob o domínio do Poder hoje parece não ter forças para lutar sequer pela sobrevivência. Estranhamente, tudo isto ocorre enquanto os pupilos de Luis Cipriano brilham no mundo inteiro, fora da escola dominada pelo Poder – e, mais estranhamente ainda, no seio de uma Associação a quem o Poder tem “distinguido” com a atenção de… querer fechá-la a todo o custo. É sintomático que no mesmo dia em que o grupo de Luis Cipriano era agraciado pelo Presidente da República por ter triunfado nas Olimpíadas Corais que reuniram 160 coros na Coreia do Sul, a vereação da cultura covilhanense vinha à imprensa dizer que não atribuía qualquer significado ao que considerava um “passeio turístico”. Também no Fundão há quem se distancie do clima geral de queixume pelas culpas alheias. Durante o passado mês de Novembro, o Teatro Nacional D. Maria II e o Palácio Nacional da Ajuda deram a ver aos lisboetas e a Antena 2 deu a ouvir ao país, em 3 concertos, o que de melhor se faz em benefício dos jovens talentos musicais. O motivo dos espectáculos era, nem mais nem menos, a apresentação dos dois candidatos portugueses ao Concurso Europeu de Jovens Músicos de 2007, organizado pela U.E.R.. Os dois concorrentes que vão representar Portugal são, ambos, alunos da Academia de Música do Fundão: Francisco Franco, na classe de guitarra e Tiago Mileu no piano. Não foi só Francisco e Tiago deslumbrarem; não foi só o 3º concerto dar a conhecer a qualidade de Joana Simão e da orquestra da Academia que a acompanhou – não foi só isso tudo o que suscitou orgulho dos fundanenses mas também perguntas do país: foi também o facto de estes jovens talentos vingarem numa escola que em dez anos de funcionamento formou já um invulgar lote de excelentes artistas e insiste em dar continuidade a um currículo de que já constam cerca de uma centena de prémios em concursos no país e no estrangeiro. Tudo isso provoca admiração, mas o facto de esta escola (em que se formaram, desde o zero, as pianistas Ana José Carrolo e Teresa Doutor, que já vão longe, e em que deu os primeiros passos o extraordinário bailarino Luis Antunes) conseguir continuar a tão elevado nível causa ainda mais admiração. E a atenção que desperta nas instâncias de Poder da sua própria terra causa justificada perplexidade. Enquanto a Academia é convidada aos mais destacados palcos, enquanto produz miúdos como Tiago Mileu, que aos 12 anos fez questão de se mudar do Alentejo para o Fundão por causa da aprendizagem do piano e aos 14 já é convidado por compositores estrangeiros para executar as suas obras – enquanto isso, a Escola anda visivelmente fora das prioridades do poder fundanense. O projecto de se estruturar como Ensino Artístico Integrado, tão adequado e pioneiro como necessário, tem merecido pouco mais que a indiferença; e até na nova e onerosa infraestrutura pública para a cultura da cidade o papel destinado à Academia é simplesmente o silêncio. Parece que o cinzentismo cultural destes difíceis dias é atacado menos com a harmonia da melodia e mais com a berrância da cor. Assim se cultiva por cá o talento – o mesmo talento que da França à China, da Inglaterra ao Japão, dos Estados Unidos à Rússia, é estimulado como valiosa matéria prima para o desenvolvimento. Assim se deixa o futuro entregue à sorte – à mesma sorte que decidiu dar a David Helfgott, não o repouso nos anais da História dos génios, mas a errância entre o banco do piano e o quarto do hospício. [x] OPINIÃO // 07


Quando a vida se escreve nas pautas //

Texto | Margarida Gil dos Reis Fotografia | Manuel Luís Cochofel

Os nossos jovens estão cada vez mais atentos à música e querem-na abraçar enquanto carreira. Apesar das dificuldades e obstáculos que o próprio país cria às escolas de música, as notas de música continuam a alimentar a vida de muitos e os ouvidos de outros. No Interior do país, a música teima em ficar, para bem de todos. Porque a música torna-nos melhores pessoas, mais cultas e mais sensíveis, de coração aberto à poesia da vida. O ano de 2006 foi o ano de todas as homenagens. No dia 27 de Janeiro de 2007 completam-se os 250 anos sobre o nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart, de tal forma que 2006 foi já apelidado de “Ano Mozart”. Um pouco por todo o mundo, as notas de Mozart são ouvidas nos mais variados locais, inclusive em Salzburgo, cidade natal do famoso compositor. O ‘génio’ é assim celebrado em todas as suas facetas. Menino-prodígio musical, o talento fora do comum de Mozart tem sido fonte de fonte de austeros e longuíssimos tratados musicológicos, filmes, livros policiais e romances. Certo é que as primeiras composições foram feitas aos cinco anos de idade, aos sete já aprendera sozinho órgão e violino, escrevia sonatas para piano aos oito e terminava aos doze a sua primeira ópera. Não sabemos se ainda vivemos no encantamento de formar pequenos génios que encham grandes salas de espectáculos com aplausos. Certo é que, talvez de forma muito mais lenta do que no resto do mundo, começa-se a reconhecer a importância da música enquanto formação profissional e, sobretudo, pessoal. Considerando que todas as crianças nascem com a capacidade de aprender um instrumento musical, sendo este um processo semelhante ao da aprendizagem da língua materna, os pais começam a sentir a motivação e a quase necessidade de desenvolverem as capacidades auditivas dos benjamins. Chegou-se assim felizmente à conclusão de que a música, em especial a música clássica, deve fazer parte não só da vida dos jovens, mas também da vida de uma cidade. Ou não o teria já sentido Camões ao dizer que “Quando soam as cordas / do seu instrumento / doces e suaves / então dissolvem-se as dores de quem sofre”. Ouvir e saber estar atento aos pequenos sinais do mundo é uma virtude, um exercício constante de entrega e renúncia mas, por isso mesmo, compensador. Descíamos, num destes dias quentes, de céu luminoso, surpreendentes para o início do Inverno, a Rua 25 de Abril, no Fundão, e reparámos como aquela rua era diferente de todas as outras. Não em termos arquitectónicos, pois trata-se de uma rua perfeitamente banal, onde os carros separam as casas que se distinguem em termos de paleta de cores, umas brancas, umas rosa, outras azuis, mas diferente pelo que dizia. A rua comunicava uma quantidade imensa de sons, acordes, vários compositores misturados, diferentes tipos de instrumentos, algo desorganizados mas igualmente cativantes. Ora um piano que martelava insistentemente exercícios de Czerny, ora uma flauta que desafiava um oboé. Não seria também por acaso que, a meio da rua, parava uma cara sorridente, carregada de sacos de supermercado mas que abrandava o passo para tentar captar alguma nova melodia. Felizmente, pensámos nós, a música não está enclausurada entre quatro paredes mas anda por aí, pelas ruas e pelos ouvidos. Como o deus grego, Apolo, que tocava a sua lira de ouro para liderar as Musas, ou Pã, deus dos caçadores, dos pastores e dos rebanhos que trazia sempre consigo uma flauta que ele mesmo fizera aproveitando o caniço em que se havia transformado a ninfa Siringe. A A23 encontrou quatro intérpretes do futuro, cuja escolha profissional incidiu sobre a música. Ainda jovens, o profissionalismo é já uma palavra-chave, assim como o trabalho e a dedicação. São eles que contribuem para que o nosso dia seja mais luminoso e a nossa vida tenha mais harmonia. Porque a música é para todos.

08 // GRANDE TEMA


Joana Cipriano: “dedicação, trabalho diário e capacidade de luta” Aos 20 anos, Joana Cipriano não se arrepende de não ter seguido Direito como carreira profissional. As pautas de música pesaram mais do que as leis e os códigos e não se imagina hoje a tocar outro instrumento que não o violino. Começou aos 6 anos os seus estudos de música e acredita que foi isso que determinou que “o gosto pela música fosse crescendo, bem como o objectivo de vir a ser violinista profissional”. Deu os primeiros passos na classe do professor António Ramos, alguém que hoje considera marcante para a sua carreira, e terminou o Curso de Instrumento, em 2004, na Escola Profissional de Artes da Beira Interior, na classe do mesmo professor. Actualmente, frequenta o terceiro ano da Escola Superior de Música de Lisboa, na classe do professor António Anjos, e a classe de música de câmara da professora Irene Lima. Não se lembra da primeira vez que pisou um palco e nem isso é de todo importante. “Sempre me lembro de tocar violino. O facto de ter nascido numa família de músicos permitiu-me desde cedo conhecer variadíssimos instrumentos, talvez daí o ter optado pelo violino”. Integrada no projecto “Erasmus”, Joana frequenta, neste momento, a Escola Superior de Música e Teatro de Vilnius, na Lituânia, na classe do professor Martynas Svégzda von Bekker. Consciente das dificuldades que um músico profissional ainda hoje tem, em Portugal, em termos de carreira, Joana não hesita ao apontar, com alguma revolta, uma justificação: “esta situação acontece devido ao poder estar normalmente distribuído por ignorantes! O que se passa na Covilhã nos últimos tempos é a prova disso!” Já decidiu que após esta experiência na Lituânia quer prosseguir

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Filipe Quaresma e o violoncelo: variações sobre um acaso os seus estudos no estrangeiro, mas continua a colaborar com a “Orquestra Clássica da Beira Interior” e com a “Sinfonieta de Lisboa”, entre outras formações. Eleita, em 1995, finalista na classe de Violino Iniciação do Concurso Juventude Musical Portuguesa, Joana obteve neste ano o segundo prémio do mesmo concurso na categoria de Música de Câmara. Soma-se ainda a menção honrosa que recebeu em 2005 no concurso de arcos “Júlio Cardona”. “Estudo em média cinco horas por dia. Esta é uma profissão que exige muita dedicação, trabalho diário e capacidade de luta!”. Um percurso que já lhe oferece muitas recordações, sobretudo quando tocou a solo, em 2003, no Luxemburgo, o Concerto em Ré Maior de Beethoven para violino e orquestra ou o recital final de 12º ano, onde tocou o Concerto para violino de Tchaikovsky. Tendo frequentado Cursos de Violino e de Música de Câmara com vários professores – Angel Sampedro, Marcelino Rodriguez, Sergey Kravchenko, Gerardo Ribeiro, Elisa Joglar, Tony Millán, Igor Naidin, entre outros – foi concertino da Orquestra Portuguesa das Escolas de Música, em 2002, e membro do 4º Estágio Nacional de Orquestra APROARTE, sob a direcção do Maestro Ernest Schelle. Um currículo já longo, onde se somam muitos compositores interpretados. Na hora de eleger os preferidos não encontra um ou dois nomes: “estilisticamente toda a história da música é rica, cada compositor teve o seu papel na evolução da cultural musical, por isso, torna-se difícil estabelecer uma hierarquia”. À pergunta ‘o que gosta de fazer para além da música?’, Joana Cipriano brinca com a resposta e responde a meia voz, “mais um ensaio”. Um caminho que se afigura longo e repleto de sucessos, sem esquecer nunca as exigências de se ser um bom músico: “Capacidades inatas, capacidades de trabalho. A música contempla a Arte Sacra mas ainda não existem milagres! Quem não tiver capacidade de trabalho nunca será músico.” 010 // GRANDE TEMA

Não abraçou o violoncelo de pequenino mas quando se cruzou com ele foi para toda a vida. Filipe Quaresma, hoje com 26 anos, é um premiado violoncelista. Natural da Covilhã, iniciou os seus estudos musicais aos seis anos, no Conservatório da cidade, escolhendo o piano como instrumento. Hoje recorda com graça a primeira vez que pisou o palco, justamente a tocar piano: “Foi muito divertido. Foi uma audição de piano no Conservatório. Estava a tocar de memória e perdi-me tantas vezes que a minha professora teve de me mandar parar!”. Reconhece que foi talvez graças ao pai que hoje se dedica integralmente à música. “O meu pai adora música e quis que eu tocasse um instrumento. Aos 12 anos fui para a EPABI (Escola Profissional de Artes da Beira Interior) e comecei a estudar violoncelo”. Nem então o percurso foi linear. Queria estudar violino mas a falta de vagas lançou-lhe um novo obstáculo. Foi então que a professora, directora pedagógica e criadora da instituição, Paula Ramos, lhe propôs o violoncelo. Iniciou aquele que seria um caminho promissor, pela mão do professor Rogério Peixinho que hoje considera um marco na sua carreira profissional. Frequentou, desde então, Master class com: Eliaz Arizcuren, Márcio Carneiro, Robert Cohen, Anssi Karttunnen, Colin Carr, Jian Wang e Zara Nelsova, entre outros. Entre 1998 e 2003, estudou com David Strange e Mats Lidstrom na Royal Academy of Music e integrou a Orquestra de Jovens da União Europeia. Contam-se também vários prémios e bolsas: 1º prémio no concurso Jovens Músicos da RDP (solistas nível médio), 2º prémio (solistas nível superior), 1º prémio no concurso internacional Júlio Cardona (classe B), Norah Mary Turner Trust Award, Sir Arthur Bliss Prize, Foundation Award, S&M Eyres Scholarship, Guilhermina Suggia Scholarship e a bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Apesar de considerar todos os concertos marcantes, Filipe Quaresma relembra que “ter tocado no 75º aniversário do violoncelista Rostropovich foi realmente especial”. No entanto, não esquece as dificuldades de se ser actualmente músico em


Portugal: ”O mercado de concertos é limitado. As orquestras não têm vagas. Começamos a depararmo-nos com uma situação em que temos demasiados músicos para o mercado existente”. No entanto, para além das colaborações com alguns grupos, bem como dos próximos concertos a solo e recitais já agendados, Filipe guarda a memória de cada um dos concertos passados. Como solista tocou com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, Orquestra Sinfónica Juvenil e Orquestra da semana internacional de música do Luxemburgo. Em Setembro de 2002, foi convidado para tocar no open day house do Wigmore Hall, em Londres, bem como no Remix – Ensemble e Remix Orquestra. Tocou com a London Sinfonietta, Tokyo Ensemble, Orquestra da cidade de Granada e Orquestra Sinfónica de Londres. Em 2003 esteve à experiência com a Orquestra Sinfónica da BBC e chegou a leccionar na própria escola que o viu crescer enquanto músico (EPABI). Actualmente, com uma média de ensaio de seis horas por dia, ou três horas nos dias mais livres, dificilmente Filipe trocaria a sua profissão por aquela que teria seguido caso não se tivesse cruzado com o violoncelo: medicina. Portugal terá perdido um médico, mas ganhou um excelente músico. “Talento, sensibilidade, paciência”, esta é receita, ou pelo menos o conselho, para quem queira seguir as suas pegadas.

Filipe Alves: quando o encanto nasce na banda Filipe Alves tem 17 anos. Fomos encontrá-lo numa sala pouco luminosa da EPABI (Escola Profissional de Artes da Beira Interior), na Covilhã, durante uma das suas aulas de trombone, acompanhado pelo professor. Ali estava parado, bem no centro da divisão, este rapaz de estatura média com o imponente instrumento de sopro que é o trombone. As paredes reflectem o tempo e contrastam com a jovialidade e boa disposição que por ali se vive. Sentados pelas escadas, nos corredores, afinando os instrumentos ou trocando dicas, os jovens alunos da EPABI fazem desta escola a sua casa. O mesmo se passa com Filipe Alves que, aluno do Conservatório de Castelo de Paiva, se mudou de ‘armas e bagagens’ para a fria cidade da Covilhã para estudar música com o professor Nuno Scarpa. Apesar das saudades pesarem, a certeza de querer ser músico não o esmorece. Muito pelo contrário, aqui encontrou novos amigos que são quase família. Porquê o trombone como instrumento, perguntamos-lhe. “Atraiu-me logo o som do trombone, mas também a técnica… É um instrumento muito bonito e…. como é grande impressiona bastante as pessoas! [risos]”. Antes ainda de estudar no Conservatório, Filipe já se cruzava com a música todos os dias e em casa. O irmão e o primo tocavam numa banda e arrastaram-no para estas lides. Mas Filipe quis ir mais além e o encanto da música fez com que planeasse a sua vida no sentido de fazer dela a sua carreira. “Muito empenho e muito estudo. Acho que estas são as palavras-chave para qualquer aluno que queira ser músico profissional. Nesta profissão, como em muitas outras, é preciso um grande esforço e sacrifício mas depois vale a pena!”. Há três anos fez um solo na Fundação Serralves, no Porto, um evento que o marcou e que só reforçou os seus objectivos. Não é de todo esquisito no repertório, “mesmo porque temos de estar preparados para tocar de tudo um pouco, mas gosto especialmente de Mahler e de Stravinsky”. Actualmente, estuda cerca de quatro horas por dia. E sabe que tem sempre de estudar mais e mais. “Mas o estudo é um prazer. Quando decidi vir para a Covilhã, apesar de ter de sair de casa muito novo, tive todo o apoio da minha família. E tem valido a pena”. Apesar de tudo, Filipe sabe que Portugal não lhe oferece as condições que necessita para ser um músico bem sucedido. E

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já pensa na próxima viagem, esta um pouco maior do que a que fez ao vir para a Covilhã. “A Art School de Amesterdão pode ser um dos possíveis destinos. Sei que é inevitavelmente algo sobre o qual terei de me debruçar brevemente”. Sentimos que não podemos continuar a perturbar a aula e retiramo-nos discretamente. A porta emperra, talvez fruto dos anos, e faz um barulho estridente, como uma nota desafinada. No centro da sala pouco iluminada continua Filipe a sua aula, sob o olhar atento do professor, encasacado por causa do frio que teima em ficar. E uma nota solta-se do trombone, atravessa as paredes, e sai à rua.

Ana Zé ou a música como escrita “Comecei a estudar música aos sete anos no Conservatório da Covilhã. Aprendi piano com uma professora cega e foi com ela que aprendi a minha escrita. Estive no Conservatório até aos 11 anos e depois vim para a Academia, no Fundão. Fiz o Conservatório e, como cada vez gostava mais de música, decidi que devia continuar. Agora estou na Escola Superior de Artes Aplicadas de Castelo Branco, no último ano.” Assim define Ana Zé, em poucas palavras, o seu percurso na música. Com uma grande simplicidade e um sorriso permanente de quem reflecte que respirar a música todos os dias é tão importante como o ar. O piano de cauda preto é o protagonista da sala, onde Ana Zé passa todo o tempo que pode, desde que chega a casa da Escola Superior de Castelo Branco. “Escolhi estudar piano por influência dos meus pais mas ainda bem pois fui aprendendo a gostar dele cada vez mais. Pelos 13 anos soube que era mesmo isso o que queria para mim.” Uma decisão acertada, pois o piano ficou para toda a vida. Agora, finalista da Escola Superior, galardoada até então com o prémio de uma das melhores alunas da Escola, Ana Zé não se preocupa demasiado com as dificuldades que sabe que irá encontrar futuramente no país: “Os meus pais tinham muita consciência dessas dificuldades e queriam que eu fizesse outra coisa para além da música mas eu quis dedicar todo o meu tempo exclusivamente à música.” Actualmente, já nem contabiliza o tempo de estudo. Mantém a média de umas seis a sete horas de ensaios por dia mas acredita que esse momento a sós com o piano é período de dedicação extrema que não deve ser regido pelas leis da matemática. Chopin, Bach, Mozart, Lopes-Graça… todos fazem parte do seu repertório. “É impossível eleger um ou dois compositores. Cada um foi muito importante para a História da Música e sinto que tenho de conhecer um pouco de cada”. Ainda se lembra de ter subido ao palco aos sete anos. Seguiram-se até à data vários concertos, concursos e audições. Aos 16 anos participou num concurso que foi marcante no seu percurso: o concurso Lopes-Graça, em Tomar, onde apresentou um repertório de música portuguesa. Ganhou uma menção honrosa mas recorda essa experiência pelo facto de lhe ter possibilitado a descoberta dos compositores portugueses. Reconhece-se uma pessoa muito auto-crítica que nunca esquece o papel determinante que alguns professores tiveram na sua vida: a professora Beatriz, que lhe lançou as bases da linguagem musical, a professora Olga Silva ou até mesmo Maria João Pires, com quem teve algumas aulas: “Ficava sempre um bocadinho nervosa quando ia ter aulas com a Maria João Pires mas quando ela começava a falar passava-me todo o nervosismo porque ela é tão natural que somos quase obrigados a relaxar. Aprendi com ela a, antes de começar a tocar, libertar todas as tensões que temos no corpo.” Não esquece também algumas pessoas com quem se cruzou, tais como o amigo Jorge, invisual, dois anos à frente na Escola, que tem feito um percurso notável, inclusive 12 // GRANDE TEMA

ao nível internacional: “O Jorge mostrou como poderia seguir a música como carreira. Tomei-o como exemplo e pensei ‘Se ele pode dedicar-se à música, eu também’”. Grande apreciadora de todos os géneros de música, Ana aproveita os seus poucos tempos livres para simplesmente ouvir. Esse é talvez o melhor conselho que pode dar a alguém que tente decifrar a linguagem musical: “ouvir muita música, de todos os géneros e encontrar a nossa maneira de nos exprimirmos”. As várias experiências fora de Portugal, em concertos em Vigo, na Rússia ou em Itália, fizeram-na reflectir sobre as limitações que um músico ainda encontra no seu país: “A grande questão é que é impossível viver-se em Portugal de concertos. Por isso, muitos recorrem ao ensino”. Muito em breve, Ana terminará o seu curso superior e um novo desafio surgirá na sua vida: “Dar aulas vai ser um desafio para mim, isto é, tentar explicar aos outros uma coisa que eu andava a tentar aprender e que continuo a aprender. Assusta-me o ensinar alunos que comecem a aprender piano porque um aluno avançado é mais simples de ensinar pois já está familiarizado com a linguagem…” Por enquanto, prefere definir-se ainda como aluna. Pedimoslhe para tocar qualquer coisa no piano que não parou de olhar para nós durante toda a entrevista, como se pedisse para ser tocado. A suavidade com que Ana o toca e, simultaneamente, a intensidade com que a ele se dedica, fazem-no falar. A insegurança que Ana referiu várias vezes ao longo da entrevista desaparece naquele momento. Ela e o piano são um só e a linguagem do corpo funde-se com a linguagem da música. Naquele momento, Ana já não está ali na sala. Está noutros mundos, viaja.

Duas escolas do Interior: a música que forma melhores pessoas, mais cultas e sensíveis ACBI: “a característica principal na aprendizagem de um instrumento é a humildade” Apesar de todos os problemas e dificuldades em dirigir uma escola no Interior do país, Luís Cipriano acredita que as diferenças entre um aluno que estude música no Interior e na capital do país se devem a outros factores que não o talento. A diferença, para o director pedagógico da escola, reside nas condições que são dadas às pessoas para poderem revelar o seu talento: “As infra-estruturas, por exemplo, são muito importantes. Em Lisboa, as pessoas podem ir a bibliotecas, assistir a concertos ou a uma master classes. No Interior também o podem fazer mas perdem um dia para fazerem uma coisa que em Lisboa se faz em duas ou três horas. Por outro lado, a diferença reside também na ‘matéria’ que comanda. A Covilhã é uma cidade pequena e politicamente extremamente fraca. Mas esse poder é ainda rodeado por poderes mais fracos que tomam conta das instituições. A diferença não está por isso nas capacidades das crianças ou das instituições. Há 15 anos que, por exemplo, ao contrário do que antes se verificava, o Conservatório da Covilhã não coloca pessoas em instituições superiores. A EPABI ganhava antigamente vários prémios, algo que também se alterou. O Interior é interior por causa das mentes interiores que o comandam.” Segundo Luís Cipriano, a Covilhã já provou as suas qualidades ao nível de músicos, no entanto, alerta o maestro, temos de saber lidar com o problema de fazer músicos antes do o serem efectivamente: “Transformar os alunos numa espécie de estrelas é meio caminho andado para que nunca venham a ser músicos

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porque a característica principal na aprendizagem de um instrumento é a humildade. Por melhor que um músico seja vai sempre encontrar no mundo outro que seja melhor do que ele. O ensino da música não é só o ensinar a criança a debitar notas mas é também o ensinar-lhe a ter uma postura. Quando se sobe a um palco não deve haver dúvidas, mas a seguir a um concerto elas deverão sempre surgir. A dúvida é a margem de progressão que deveremos sempre ter”. A ACBI tem assim apostado na formação de crianças desde os 3 anos, acreditando que, mais do que formar músicos é imperativo formar ouvintes: “Queremos incutir a cada criança cultura e uma certa sensibilidade, pois não podemos prever o lugar profissional que cada uma delas venha a ocupar no futuro. O problema de muitos políticos em Portugal é que não têm formação cultural, logo, não estão abertos a estas questões.” O Coro Misto, outro caso de sucesso, tem, no entender de Luís Cipriano, provocado algumas contradições: “Não podemos admitir que muitas das pessoas do coro – amadoras – tenham assistido a muitos mais concertos do que os professores do 1º ciclo do país inteiro! Essa é outra das situações a combater”. Quanto a Joana Cipriano e Filipe Quaresma, dois alunos relativamente aos quais acompanhou de perto o percurso, não hesita em afirmar que os bons professores de instrumento que tiveram, a humildade, o sentido auto-crítico e a vontade de aprenderem foram determinantes para hoje serem quem são. “O Filipe Quaresma está, do meu ponto de vista, mal aproveitado pelo nosso país. Para mim, é um dos melhores violoncelistas que existem em Portugal. Acho que a partir de uma certa altura devia ter perdido um pouco da humildade que tem. Enquanto a Joana ainda está numa fase de continuar a provar, ele já não precisa de provar nada”.

Academia de Música e Dança do Fundão: “o sistema educativo continua a criar grandes incompatibilidades às escolas de música” João Correia, director pedagógico da Academia de Música e Dança, no Fundão, não hesita em afirmar que, actualmente, é o próprio sistema educativo que cria entraves ao desenvolvimento das escolas de música. Ao contrário de outros países da Europa, muito mais desenvolvidos, deparamonos actualmente com um “sem número de obstáculos que impedem que os nossos jovens sigam de forma mais facilitada a carreira de músicos”. “Em 2001, a Academia abraçou o ensino integrado, isto é, aqui os alunos podem ter todas as disciplinas e abraçarem simultaneamente a vida artística. A escola tenta assim responder às exigências artísticas de uma carreira que não é de todo apoiada pelo nosso país”. A Academia segue duas linhas pedagógicas orientadoras que, para João Correia, são fundamentais para o êxito da escola: “por um lado, numa primeira fase, o contacto com a música e, por outro lado, o equacionar as condições e a vontade de se fazer da música carreira”. Com crianças desde os quatro anos, a Academia tenta “acompanhar o próprio crescimento da criança, fomentando o seu encontro e familiarização com a música.” Certo é que, para João Correia, apesar da Academia já se ter destacado no panorama nacional e internacional com alguns alunos, “a humildade continua a ser a característica principal de um bom músico. Cada um destes jovens tem à sua frente um percurso longo, duro, repleto de obstáculos e em constante aprendizagem. Existem sempre outros que conseguem fazer melhor, por isso há que fomentar e abraçar uma grande vontade de trabalho.” Para João Correia, a máxima a seguir é feita das palavras que uma das professoras da Academia, Tâmara, diz todos os dias aos seus alunos: “apesar do talento devem ser exigentes consigo próprios e, sobretudo, trabalhadores. A música é um trabalho diário”. [x] GRANDE TEMA // 13


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Pagar para parar

Texto | Pedro Leal Salvado Fotografia | contiudo.com | Pedro Seixo Rodrigues e António Supico

As placas rectangulares com o enorme P que indicam o início das “zonas de parqueamento pago” têm nos últimos anos brotado por todo o lado nos pólos urbanos do Interior. Defendidas como inevitáveis e necessárias pelas autarquias, estas zonas revelam uma outra realidade preocupante: diminuição da qualidade de vida dos habitantes desta região. 14 // DOSSIER CIDADANIA


A A23 analisou os parqueamentos pagos de quatro cidades do Interior – Castelo Branco, Covilhã, Fundão e Guarda – tentando responder à pergunta: “é realmente necessário pagar para parar no Interior?” Massificados nos finais da década de 80 e princípios de 90, nos grandes pólos urbanos do país, o chamado “estacionamento pago” apresentou-se como a única via possível para disciplinar o trânsito cada vez mais caótico que tomava conta de cidades como Lisboa ou Porto. Inicialmente utilizados em empreendimentos privados rapidamente o uso dos parquimetros foi visto pelas autarquias para além de um elemento disciplinador do trânsito e dissuasor do uso descomedido do automóvel na cidade, como um meio gerador de receitas. No Interior, os parquímetros começaram por aparecer timidamente em meados da década de 90, em pequenas zonas, principalmente nas zonas históricas. No entanto, nos últimos anos, as autarquias do Interior adicionaram os parqueamentos subterrâneos à lista de obras indispensáveis, gastando milhões de euros na sua construção. Mas serão assim tão indispensáveis?

Castelo Branco – um mal necessário Na capital de Distrito, o parqueamento subterrâneo encontra-se inserido no projecto que repensou e reconstruiu o centro da cidade e foi realizado ao abrigo do programa POLIS. No caso de Castelo Branco, o problema do estacionamento era um problema real, onde centenas de carros se amontoavam ao longo dos passeios e em estacionamentos improvisados constituídos em lotes por construir. “Às vezes era às meias horas que andávamos às voltas para encontrar um lugarzito”, referiu-nos um dono de um estabelecimento comercial.

Covilhã – resolução de um problema com danos colaterais O centro da Covilhã encontrava-se também desde há muito estrangulado em termos de transito automóvel. Às dificuldades de estacionamento do quotidiano acresciam aquelas emergentes do enorme tráfego provocado pelo turismo de Inverno na Serra da Estrela, altura em que centenas de pessoas de todo o país acorrem à neve e às valências turísticas oferecidas pela Serra. O problema da disciplina do trânsito automóvel no centro da cidade foi inicialmente atenuado com a construção de um silo auto privado – no Shopping Sporting – mas depressa se revelou insuficiente para o fluxo de novos automóveis que invadem a cidade durante todo o Inverno. Inserida também no programa POLIS, a Covilhã aproveitou os fundos destinados à requalificação e recuperação do centro para construir um projecto ambicioso de estacionamento subterrâneo com 250 lugares, que representa do ponto de vista da construção e de engenharia uma obra notável. Com a construção do silo auto ficaram resolvidos definitivamente os problemas de estacionamento no centro da cidade. A autarquia dotou ainda toda a zona envolvente do centro de parquímetros, sendo hoje praticamente impossível estacionar sem pagar, embora segundo uma projecção avançada pela C.M. da Covilhã, o executivo camarário afirme que na cidade existem 559 lugares de estacionamento não tarifado, para 169 pagos. Já em fase de concessão encontra-se um novo silo auto construído na Estação, não se sabendo ainda se os estacionamentos até agora gratuitos na área envolvente passarão a ser tarifados. A taxa de ocupação situa-se próxima dos 70%, sendo superior durante o Inverno, principalmente devido ao turismo. De novo ao ouvirmos os utentes, o principal problema apontado foi o preço das tarifas e a falta de alternativas gratuitas. No entanto, se por um lado se resolveu o problema do

Mesmo perante tal evidência, o Município aprovou recentemente a implementação de parquímetros na cidade. Estar-se-á a criar uma necessidade que na realidade não existe, ou essa implementação será condição sine qua non de concessão a privados? De qualquer modo, é um facto que, pelo menos actualmente, a necessidade de pagar para parar ainda não se faz sentir de maneira a ser considerada uma opção pela grande maioria dos condutores fundanenses, sendo a única justificação possível para a implementação de parquímetros, e que resultará numa clara perda da qualidade de vida dos cidadãos, a simples criação de mais uma fonte de receitas, municipal ou não. Terá o Município do Fundão que atentar nas experiências vizinhas e retirar as ilações necessárias, ponderando os prós e contras da criação de um regime de parqueamento tarifado e as repercussões que o mesmo poderá ter a nível da qualidade de vida dos habitantes da cidade e no comercio local, restando saber se estarão esses mesmos habitantes e comerciantes dispostos a pagar por algo cuja compensação não foi até à data explicada.

Guarda – uma questão antiga A discussão em torno do parqueamento pago na cidade da Guarda é um assunto que desde há algum tempo tem movido a sociedade civil daquela cidade. Nesta capital de distrito o mote para a discussão partiu dos comerciantes, mormente dos que possuem estabelecimentos comerciais no centro da cidade, concretamente no Largo de S. João – Largo do Cinema – e Rua Mouzinho da Silveira que, em 2004, se organizaram e entregaram à autarquia um abaixo-assinado tendo em vista a criação de mais lugares de estacionamento tarifados, nomeadamente com a colocação de mais parquímetros no aludido centro. Alegavam os referidos comerciantes que eram grandes as dificuldades de estacionamento naquela zona e que tal facto prejudicava o comércio.

Parque de estacionamento do Fundão em hora de ponta.

Com o programa POLIS a autarquia albicastrense retirou por completo os automóveis do centro, construindo uma ampla praça pedonal dotada de jardim e inúmeras infra-estruturas culturais, de recreação e de restauração. Para o estacionamento foi construído no subsolo daquelas infra-estruturas um silo auto com 386 lugares e para o trânsito foram abertos túneis, de modo a retirar por completo os automóveis da praça central. É um facto que os habitantes de Castelo Branco, mormente aqueles que residem no centro, viram diminuída a sua qualidade de vida no que toca ao estacionamento gratuito dos seus veículos. A compensação foi um novo centro livre de carros e completamente revitalizado, tendo renascido uma zona de lazer que há muito desaparecera. Toda a zona histórica foi também dotada de parquímetros, facto que criou algum desagrado. O silo auto tem uma taxa de ocupação de cerca de 70% e contribuiu para disciplinar o trânsito outrora caótico do centro da cidade, ao mesmo tempo que revitalizou e requalificou esse mesmo centro. Embora os habitantes que ouvimos serem praticamente unânimes na necessidade que Castelo Branco tinha de um silo auto, a grande maioria disse à A23 que as tarifas são demasiado caras e que as alternativas ao estacionamento pago são poucas ou nenhumas.

estacionamento e se disciplinou o trânsito, na medida em que é possível fazê-lo numa cidade com as características físicas da Covilhã, a obrigatoriedade de pagar para parar no centro da cidade teve um efeito colateral negativo no comércio desse mesmo centro: a menos de 5 minutos do centro da cidade existem várias grandes superfícies comerciais dotadas de parqueamento grátis, sendo uma delas dotada de estacionamento coberto, gratuito, o que afastou muitos consumidores do comércio tradicional, principalmente durante o Inverno.

Fundão – um investimento para o futuro Também a cidade do Fundão se encontra dotada de um parque de estacionamento subterrâneo pago com capacidade para 300 veículos – desde há vários anos que é utilizado um outro silo auto sito no Pavilhão Multiusos, gratuitamente, embora de modo condicionado. A obra, finalizada em Agosto de 2005 e orçada em dois milhões de euros, faz parte do projecto de requalificação do centro do Fundão. Das cidades abordadas, o Fundão é a única onde a criação de uma zona de parqueamento pago se apresenta mais como um investimento de futuro do que solução para um problema actual. O que poderá indiciar a desnecessidade actual de um parqueamento pago na cidade do Fundão encontra-se na taxa de ocupação daquela infra-estrutura: cerca de 2%.

No entanto, tal proposta não foi acolhida unanimemente por todos os comerciantes, pois muitos levantaram a questão de ser economicamente insustentável o pagamento de estacionamento durante todo o dia (por eles comerciantes), face à inexistência de alternativas gratuitas, tendo sido sugerido inclusive por alguns a criação de um silo auto, de maneira a minorar os custos de tal parqueamento diário. Perante a inegável necessidade de disciplinar o trânsito automóvel no centro da cidade, numa localidade em que o uso de automóvel se torna impreterível face aos duros Invernos, o Município optou pela colocação dos parquímetros naquela zona, não tendo construído qualquer silo auto de raiz, sendo actualmente o centro da cidade servido pelo parque coberto do Teatro Municipal da Guarda. Num país onde cada vez mais se discute o “parar para pagar”, nomeadamente com a questão da criação de portagens nas SCUT´s, no Interior parece estar a tomar forma um outro problema: o “pagar para parar”, considerado por muitos um “mal menor” e, em muitos casos, sendo uma inevitabilidade, é, no entanto, um factor de diminuição de qualidade de vida dos habitantes do Interior que, não dispondo ainda de redes de transportes públicos equiparáveis – quer em quantidade quer em qualidade – aos dos grandes pólos urbanos do Litoral, continuam a necessitar de se deslocar nos seus automóveis. [x] DOSSIER CIDADANIA // 15


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A Dupla Vontade de Monsieur Ramos

Sou um homem muito estranho e com terríveis e abissais formas de emoção que às vezes quando se manifestam à superfície podem chocar muita gente. Vivi e assisti a inúmeros casos desses (claro que me deixaram sempre incomodado, uma vez em Nice abracei-me a uma palmeira pensando abraçar a Catherine Deneuve!) mas a história que eu vou contar passada toda num bairro típico de Lisboa é das mais sintomáticas pois como duas irmãs gémeas que entram num cemitério vazio de província ela lembra que a vida é mais singular e mais forte que a imaginação. Durante os quatro primeiros anos em que regressei ao país da confusão depois de um longo e produtivo exílio aconteceu-me passar longos meses fechado no meu pequeno apartamento a escrever tendo como única companhia o Tejo. O meu objectivo era regressar ao primeiro plano da literatura e foi assim que sacrifiquei muitas amizades. Durante o ano de 2002 mergulhei voluntariamente num longo romance sobre a minha cidade natal e durante esse período de tempo a minha concentração foi tão coagulante como a minha solidão. Saía só para meter cartas no correio, pagar alguma factura e claro, fazer compras em qualquer supermercado. Foi pois num desses pequenos supermercados de bairro que encontrei Sandra. Sandra, a comovente Sandra, sempre com a bíblia sagrada na mão, bíblia de Petrópolis, 49ª edição, testemunha de Jeová, mas nesse dia eu não vi nada só sei que ela me engatou como um robalo numa rede de arrasto. Andava eu a fazer compras com o meu carrinho vertiginoso quando observei que uma mulher loira de meia-idade me perseguia. Para onde eu ia, ela seguia também. Se eu ia para a prateleira dos produtos biológicos ela conduzia para aí. Se eu ia para a prateleira dos produtos de limpeza doméstica ela derivava para aí. Se eu ia para perto das arcas dos produtos congelados ou para as prateleiras das latas de conserva ela aparecia logo mais pertinente que a lua do meu Tejo. Para experimentar onde até ia o seu descaramento resolvi destravar-me até à secção dos vinhos e aí pus-me a escolher pacientemente um vinho alentejano. Pensam que ela desistiu? Ninrien. Acercou-se de mim, olhou resolutamente para o meu carrinho e pôs-se a imitar-me. Lia até ao fim todas as etiquetas dos vinhos alentejanos para ficar consciente de todas as potencialidades do néctar que 16 // CRÓNICA

transtorna as cabeças mais racionais. Tinha que lhe falar, talvez ela quisesse um conselho para comprar um vinho para o marido que lhe bateria depois de ter bebido sozinho a garrafa e foi precisamente isso (essa particularidade tipicamente portuguesa, a violência doméstica, em cada três mulheres uma é espancada) que me impediu. Foi pois ela que naturalmente me dirigiu a palavra. Via-se que estava interessada pela minha pessoa. «Monte Velho ou Duas Herdades, o que é que escolheria?» perguntou-me ela resolutamente. Sabia que o Monte Velho era um vinho forte, poderoso, e que uma vez deglutidos dois copos o seu marido estaria apto para passar ao soco. Assim aconselhei-lhe o outro que não conhecia mas que não poderia atingir a potência do vinho tão conhecido dos arredores de Évora. Ela riu e colou-se a mim com a garrafa na mão: «Tem um saca-rolhas em sua casa que me empreste, que o do meu marido foi para o lixo?» disse ela toda empenada. Achei tanta graça a esta proposta original que fiquei de repente sério a olhar o meu carrinho. E desatei também à gargalhada. É que no meu veículo sem carta cheio até ao cimo havia duas unidades de cada produto. Era o poder erosivo e encantatório da literatura. Mais tarde, já em minha casa, estendido o sofá da Moviflor, e ela já nua, ela reservava-me uma grande surpresa. Pois, acreditem ou não, ela tinha duas vaginas. Foi ela própria que mo disse ao fim do nosso primeiro “ round “. E eu, cada vez mais espantado com a senhora, já longe da literatura, achando piada à situação pus-me a procurar a vagina número dois. Lá a achei facilmente e pus-me a gozar nela. Era uma sensação esquisita essa, era como um morto que ressuscita para fazer amor com duas esplêndidas gémeas numa paragem de autocarro em plena capital. Ou então como um fervente pedestriano que tem duas estradas só para escolher sendo ambas auto-estradas forradas de pele de bacalhau. Mas como o género humano se habitua a tudo, e sendo eu um homem de muitas experiências, nessa mesma tarde ri da situação enquanto ejaculava em duplicado. Tinha um vago pressentimento de que ela me tinha escolhido a mim porque vira a minha duplicidade, a minha dupla personalidade, estampada em produtos efémeros e miseráveis. Pergunteilhe. Ela riu e disse que sim, que isso lhe lembrava o seu corpo sempre ávido...

INÉDITO Manuel da Silva Ramos

“Era uma belíssima rapariga do povo com os seus 18 anos remolhados e que tinha escapado à fábrica e ao pai saltando pela janela porque este dizia que ela era uma mulher da má vida...e era, só que era virgem!”


© Maria Sofia Xavier

Andei três meses com Sandra e um dia cortei as nossas relações porque já não tinha tempo para nada. Nem para meter cartas, nem para escrever. Vocês não sabem o que é uma mulher com duas vaginas, não se tem um fimde-semana livre, nem domingos, nem feriados. É-se um autêntico escravo. Os jornais, que eu lia com voracidade, deixei-os de ler e o mundo para mim resumia-se agora à tremenda complexidade de duas vaginas que molhadíssimas como os pinheiros do Caramulo no inverno se tornaram autênticos labirintos mitológicos. Quanto a ela, depois da doutrina sexual, quis endoutrinar-me religiosamente. E abrindo o livro de Petrópolis lia-me a batalha de Gelboé e a morte de Saul, Siceleg destruída e a inobservância do sábado, ou a elegia sobre a ruína de Jerusalém, Elias anuncia uma seca ou Jesus e Nicodemos... Terminámos quando ela um dia me começou a ler o Tobias, que é um dos sete livros deuterocanónicos... Hoje que já vai longe esta história e que a minha obra ganhou consistência e está mais patente ao público em todas as livrarias rio de toda esta aventura e lembro-me de outra Sandra, «a puta virgem», que eu conheci na Covilhã nos finais dos anos 60. Era uma belíssima rapariga do povo com os seus 18 anos remolhados e que tinha escapado à fábrica e ao pai saltando pela janela porque este dizia que ela era uma mulher da má vida...e era, só que era virgem! Lembrome de uma vez, eu, o Marquês, o Paiva e o Xavier que era mais cómico que o São Sebastião varado, a termos levado ao Paúl num citroen boca de sapo e lá, eu a ter despido completamente e a ter colocado num altar ao ar livre que servia para as festas de verão. Fomos corridos de caçadeira por um velho sacristão mas como foram boas as trutas dessa pândega! Mais tarde encontrei-a em Lisboa e continuava virgem e na má vida. A virgindade, fruta condenada, não sei se durou muito ou pouco tempo... Se estás viva, onde estás tu hoje Sandra? Hoje, enquanto bebia café sem açúcar, entre dois capítulos de um novo romance, pensei que a vida é sempre mágica e defensável, co-autora fiel e volante, como os conirrostros que voltam todos os anos ao sítio das nossas recordações sem fim... [x]

CRÓNICA // 17


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Portfolio

Rui Dias Monteiro Instantes


Natural de Castelo Branco, Rui Dias Monteiro tem já um futuro promissor na arte da captação dos instantes. A frequentar o Curso Avançado de Fotografia da ARCO – Centro de Artes Visuais, viu, neste ano de 2006, o seu trabalho exposto na Estufa Fria, em Lisboa, em Badajoz e no Boavista 132. Para trás fica já a publicação de um portfolio na revista “Magazine Artes”, bem como outras exposições, inclusive ao nível internacional, em Torun, na Polónia. No coração de Nova Iorque, surge um prazer contemplativo para os nossos olhos. Uma cidade que nos é dada a ver pelos olhos debruçados sobre um mundo onde o ruído se cruza com o silêncio. Inexplicavelmente, vemos Nova Iorque imbuída de uma espessa camada de silêncio. Uma sensação de captação do tempo que o fotógrafo lhes conseguiu imprimir. Nesses momentos, sem ontem ou amanhã, parece-nos ouvir, lá longe, o burburinho da cidade. E na espuma suja dos dias, a cidade ganha vida e o tempo corre.




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Chico Buarque

O músico que escreve livros Entrevista | Ricardo Paulouro Fotografia | Magda Fernandes

Em São Paulo, na sua adolescência, Chico Buarque era conhecido como «o carioca». O cd homónimo, Carioca, assinala o seu regresso à música depois de se ter repensado na escrita com o último livro, Budapeste, aclamado pela crítica. Falar de Chico Buarque é descobrir a riqueza de músicas, poemas, dramaturgias e romances construídos e vividos ao longo de cerca de 60 anos. O autor de «A Banda» é um contador de histórias, sempre trabalhadas por uma poderosa imaginação e marcadas pela cultura popular brasileira. Definindo-se como “um músico que escreve livros”, Chico entregouse à literatura e ao romance em 1991, com a publicação de Estorvo. Quatro anos depois seguiu-se Benjamin e em 2003, com Budapeste, consagrou definitivamente o trabalho de artesão da palavra que já se vinha esboçando. 2007 será o ano da adaptação mundial para teatro do seu último romance, numa produção no Teatro Nacional D. Maria II, com dramaturgia do espanhol José Sanchis Sinisterra. As palavras cirúrgicas, meticulosamente dispostas como num puzzle, o discreto humor de quem gosta de se surpreender com a escrita e com a leitura, justificam, por exemplo, o sucesso deste seu último romance, traduzido em mais de 20 línguas. A música, tal como a literatura, é, para Chico, uma reaprendizagem constante. Ambas as vertentes da sua obra são como um mosaico, um fio que se vai tecendo com o rigor e o engenho dos mestres. Carioca é por isso uma homenagem ao Rio de Janeiro. Um presente para a cidade daquele que é uma referência obrigatória da música brasileira mas também já da literatura. 22 // ENTREVISTA

Disse recentemente: “Não escolhi a música como carreira, a música é que me escolheu”. Quando é que a música surgiu no seu percurso? CHICO BUARQUE – Sou um músico que escreve livros. Tenho conseguido alternar os dois trabalhos que, para mim, são bastante diferentes. Nesta fase já não sei se distraio o compositor escrevendo livros ou vice-versa porque o tempo e a minha cabeça ocupam-se igualmente das duas coisas. Mas sempre separadamente. Quando é que o Chico Buarque sentiu essa atracção pela literatura? Esse interesse vem desde muito novo. A literatura talvez não seja anterior à atracção pela música, mas a ideia de ser escritor surgiu antes da vontade de ser músico. Quando era muito jovem escrevia em jornais de colégio, escrevia crónicas, cheguei mesmo a publicar um conto (Ulisses) no Estado de S. Paulo. A intenção de me tornar um escritor já estava aí, de algum modo, presente. No entanto, em São Paulo, a cidade onde estudava, não havia uma boa escola de Letras que me tornasse um escritor. Curiosamente, eu sou filho de um escritor. O meu pai era professor, foi director de um museu, foi crítico literário... Mas a verdade é que o trabalho que mais ocupava o seu tempo era aquele que não era remunerado. No Brasil é difícil viver da escrita. Foi esse conjunto de circunstâncias que o levou a ingressar num Curso Superior de Arquitectura? Sim, a escola de Arquitectura era uma instituição séria e, de alguma forma, ligada ao mundo das artes. Já nessa altura tocava violão e a Arquitectura não me impediu de fazer música. Certo dia gravei algumas canções que me transformaram num músico e num compositor profissional. Mas eu não me preparei para isso, nem tinha conhecimentos técnicos que fizessem prever que me fosse tornar músico. Só o tempo e a experiência permitiram aperfeiçoar a minha técnica musical. Talvez estivesse mais preparado para escrever do que para fazer canções!

Disse uma vez que a música o tinha roubado à literatura... Acho que isso aconteceu um pouco com toda a minha geração. Aquele momento da música popular brasileira foi marcante. Possíveis vocações literárias, cinematográficas ou teatrais convergiram para a música. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e tantos outros da minha geração estudavam nas áreas mais diversas, desde Engenharia a crítica de cinema, como era, por exemplo, o caso do Caetano Veloso. Todos eles foram atraídos pela Bossa Nova e por João Gilberto. Também eu abandonei a ideia de escrever. Ainda escrevi para teatro mas considero essa vertente um complemento ao meu trabalho musical. Os diálogos eram uma espécie de costuras entre canções. O escritor ficou adormecido durante todo este tempo. Eu nunca imaginei voltar à literatura, à excepção de uma novela escrita em 73 ou 74 chamada Fazenda Modelo, que foi escrita como um “desafogo”... Esse desejo de liberdade era motivado pela censura que se vivia no país? Sim, a censura era muito rígida, mas mais direccionada para a música, televisão e cinema. No entanto, não existia censura prévia na literatura. A Fazenda Modelo acabou por ser um artifício para dizer coisas que não podiam ser ditas através da música. Este é, por isso, um livro com uma motivação política muito evidente. Mais tarde, quando escrevi o meu primeiro romance, Estorvo, a motivação foi muito diferente. Nada me motivou a escrever o livro senão a própria literatura. Em Budapeste cria um José Costa fascinado pela palavra. Também no romance é a melodia da palavra que lhe interessa? De facto, a música e a literatura estão absolutamente separadas no tempo. Eu não ouço música quando escrevo mas não posso deixar de reconhecer que a música está presente na minha literatura. Acredito que haja uma lógica musical na escrita mas mais até do que escrever, o meu grande prazer é ler. O trabalho


de escrita é um trabalho quotidiano. Todas as noites, antes de dormir, o meu verdadeiro momento de prazer era ler o que tinha escrito. Prazer ou não... [risos] porque, fechada a oficina, impresso o trabalho atentamente lido na cama, o dia seguinte revelava um texto todo ele reescrito ou rasurado. Este é quase um critério de músico... É isso mesmo. As palavras estavam lá, a história também mas havia uma insatisfação motivada por uma palavra a mais ou a menos, o ritmo errado. Nessa altura recomeçava o dia a remexer nesse quebra-cabeças. Esse trabalho de depuração é mais facilmente conseguido no verso ou na prosa? Na realidade a prosa é um processo de criação completamente distinto do verso. Só escrevo versos para uma música já existente e não o contrário porque os versos existem apenas para se encaixarem na melodia. No caso da prosa, é um processo quase instintivo. Apenas sei que algo me incomoda e me compele a reescrever porque quer na prosa, quer no verso, sou movido por um rigor sem contornos muito definidos. Um livro da sua juventude que o tenha especialmente marcado como leitor. Eu li muita coisa, de forma indisciplinada, fora do tempo, na minha juventude. Eu tinha uma ambição literária desde muito novo. Talvez por morar numa casa cheia de livros. Tinha a impressão de que queria ler aqueles livros todos! [risos] Lembro-me de ler o Monteiro Lobato, tal como todas as crianças brasileiras. Na escola li a Moreninha, Machado de Assis, A Cidade e as Serras de Eça de Queirós... Numa fase seguinte, lembro-me de ficar entusiasmadíssimo pelo facto de conseguir ler e entender livros em francês. Ter chegado, por exemplo, ao fim dos seis volumes de Guerra e Paz foi para mim uma proeza! [risos]

“Não ouço música quando escrevo mas não posso deixar de reconhecer que a música está presente na minha literatura.” Também encontra esse prazer da leitura na construção dos seus romances, isto é, diverte-se com a sua escrita? Divirto-me mais quando leio do que quando escrevo. É curioso porque muitas vezes algumas passagens de livros meus, considerados sombrios, como é o caso de Estorvo, provocam-me o riso. Alguém disse que escrevemos para nos surpreender. É extraordinário quando lemos aquilo que escrevemos e conseguimos achá-lo cómico, bonito ou poético. É claro que até se chegar a esta fase existe um trabalho de reescrita muito grande onde chegam a ser eliminadas dezenas de páginas. Como para mim este é um ofício muito solitário, às vezes não sei se vou terminar o livro que estou a escrever ou se valerá a pena todo aquele trabalho. O seu último romance, Budapeste, foi um trabalho de maior fôlego... Demorou dois anos a ser escrito, o dobro do tempo em relação aos livros anteriores. Acho que a grande diferença entre a canção e a prosa, deste ponto de vista, é que a canção demora uma semana, o máximo um mês a ser feita e logo que terminada é mostrada. Porque a canção é exibicionista, quer-se mostrar e permite-nos, de imediato, com esse feed-back, perceber se está ou não bem feita. No caso do romance são dois anos sem o poder mostrar, chegando quase a ser angustiante. Em Budapeste, por exemplo, há uma ironia muito subtil em relação ao mundo literário, enquadrado num contexto quase mediático... Às vezes acho até quase salutar que os escritores saiam dessa

espécie de toca onde se refugiam mas há que encontrar a medida certa para essa exposição. No momento em que o escritor começar a competir com os artistas do show business perdem-se algumas das características da criação literária. Costumo dizer que a literatura não precisa de se exibir, ao contrário de outras artes. Recentemente têm surgido muitas leituras públicas, motivadas sobretudo por uma influência anglo-saxónica. A primeira vez que estive numa dessas sessões foi na Alemanha, em Colónia. Li um trecho do Estorvo, em Português, o tradutor leu o mesmo trecho em alemão e a plateia estava atenta, como se fosse quase um espectáculo [risos]. No caso específico de Budapeste, a vaidade e a inveja são dois temas muito presentes mas é claro que não são exclusivos da literatura porque estão presentes noutros circuitos artísticos. Talvez no meio literário tenham uma força maior por causa dessa necessidade de aplausos que não existem habitualmente. Ao contrário da música ou das artes plásticas, na literatura um livro é não só escrito como também lido individualmente. É sempre um acto solitário.

“Sempre que começo a escrever não venho de uma experiência literária anterior mas de um período de criação musical. Assim, quando inicio um livro não tenho nada planeado mas sim uma grande vontade de escrever.” O poeta Mário de Sá-Carneiro disse: “Eu não sou eu nem sou o outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Através da palavra, o eu, mesmo que ficcional, é sempre o outro, um duplo? No caso de Budapeste, o facto de o narrador ser um escritor aproxima-me ainda mais da personagem. Eu não só o entendo como partilho muitos dos seus pontos de vista. ENTREVISTA // 23


Se não conseguirmos chegar desta forma à personagem ela provavelmente não andará. Até começar o livro propriamente dito, não sei quem será o narrador. Talvez porque sempre que começo a escrever não venho de uma experiência literária anterior mas de um período de criação musical. Assim, quando inicio um livro não tenho nada planeado mas sim uma grande vontade de escrever. Antes de ter começado a escrever a primeira frase de Budapeste estive cerca de três meses em preparação, pesquisando, tentando descobrir qual seria o tom do livro e quem seria a pessoa que o iria escrever. A personagem do escritor, em Budapeste, não surgiu logo de início. Depois de muita reescrita surgiu inexplicavelmente aquele momento que é a chave da história. Nesse instante peguei a mão do escritor e passei a ser esse intermediário: não sou eu mas na realidade também não sou o José Costa. É o ghost writer do José Costa.

“Mesmo que eu escreva a quatro mãos, em parceria, o momento da escrita é solitário.” José Saramago disse a propósito de Budapeste que esta obra gira em torno de duas grandes questões: o que é a realidade? Quem sou eu? Esta é a grande busca de quem escreve? Não sei... Acho que apesar de ser meu leitor nunca fico com a ideia do livro como um todo, na medida em que o trabalho como se fosse algo artesanal, um mosaico. Acontece-me muitas vezes mexer nessa peça e aperceber-me que, por algum motivo, ela não funciona. Descubro então que esse mau funcionamento se deve a algum problema anterior e o meu papel é o de consertar, reescrever. Trabalho assim mais a minúcia do que o geral. Quando a linguagem não está boa, a história tem que ser mais trabalhada. Mesmo tendo um roteiro de escrita, esse roteiro é infringido sempre e, logo, existe uma busca constante – a busca pela palavra. 24 // ENTREVISTA

Em Budapeste, no Estorvo e em Benjamin existe, até mesmo do ponto de vista formal, uma sensação de vertigem e fuga muito forte. Do que é que as personagens fogem? Nunca pensei muito nesse aspecto mas de facto as personagens estão sempre em trânsito... Acho que pode ser tanto uma qualidade como um defeito. O escritor exige sempre muito do leitor. O leitor menos atento ou interessado não vai certamente seguir esse fluxo e acaba por perder a história. No entanto, isto é algo que também me preocupa porque a pouca vontade de explicar certas coisas enquanto escrevo acaba por dificultar a leitura a muitas pessoas. E é sempre difícil exigir do leitor essa atenção porque na leitura existem paragens, as pessoas vão lendo e integrando o livro nos tempos livres do seu quotidiano. Ás vezes pensava que estava a escrever como quem escreve uma canção ou uma partitura que determina o andamento de como aquela música vai ser executada. No entanto, não há um manual sobre como ler um livro. A escrita é, para si, um ofício solitário? Absolutamente. Até mesmo a própria escrita de canções. Mesmo que eu escreva a quatro mãos, em parceria, o momento da escrita é solitário. Tem ideia do número de línguas em que está traduzido o Budapeste? O número exacto não sei mas em mais de 20 línguas. O Estorvo foi editado em quase toda a Europa Ocidental. Budapeste foi um pouco mais além, para o leste europeu, Israel, Japão... Costuma acompanhar a tradução dos seus livros? Durante o ano seguinte à saída do livro no Brasil acompanho as traduções das línguas que sei, em francês, inglês, italiano e espanhol. Nestes casos posso sugerir, dar palpites, identificar alguns equívocos de compreensão. Noutras traduções, como é

o caso da tradução húngara, já não posso ajudar. No entanto devo dizer que a melhor tradução de capa do Budapeste é a húngara! [risos] Para além da música e do romance, Chico Buarque tem também uma vertente de cronista, lembrando as crónicas sobre futebol que escreveu... Essas crónicas foram escritas para a Copa de 98. Antes disso tinha escrito alguma coisa para o Pasquim, um jornal de uma cooperativa de jornalistas brasileiros de oposição à ditadura. Durante o período em que vivi em Roma colaborei pontualmente com este jornal. Por ocasião da Copa de 98 contrataram-me para escrever sobre futebol, o que para mim foi um prazer poder assistir aos jogos na tribuna. Tinha de escrever apenas uma vez por semana mas ao meu lado estavam todos os outros jornalistas desportivos que escreviam diariamente. “Cada vez que volto não sei mais onde estava, é um recomeço”. Este é agora um recomeço literário ou musical? A certeza com que fico depois de escrever um livro é que tenho de fazer música, até reaprender. É algo penoso porque demora a apanhar novamente o jeito mas é bom porque tenho a impressão de que recomeço sem vícios. Neste momento, as canções que procuro agora escrever têm pouco a ver com aquelas que escrevi há cinco anos atrás. [x]

Ás vezes pensava que estava a escrever como quem escreve uma canção ou uma partitura que determina o andamento de como aquela música vai ser executada.


Texto | Manuel Halpern

Carioca, Chico Buarque Ele faz canções, ele é o tal O álbum chama-se Carioca, mas é dedicado a São Paulo, porque era assim que chamavam a Chico quando viveu na cidade mais populosa da América do Sul. Mas procurar um conceito que una este disco é puro exercício de retórica. O que aqui conta são as canções. Como sempre. No seu todo, talvez seja um dos álbuns mais heterogéneos do seu percurso. O que na escala de Chico não significa uma esquizofrenia de estilos, à moda de Zeca Baleiro, mas apenas ligeiras flutuações na linha rigorosa e perfeccionista com que tem desenhado a sua carreira. Todavia, não deixa de ser surpreendente encontrar opções tão díspares como o rap-baião de Ode aos Ratos (música de Edu Lobo) e a obtusa e incantável peça de peça de Jorge Hélder, Bolero Blues. Quase todas estas doze novas canções se encaixam directamente no reportório de Chico, como se sempre tivessem existido. Numa exímia adaptação da letra à melodia, muitas delas, mais do que agradar os ouvidos, inscrevem-se na alma dos seus fãs. Encontram-se pormenores geniais. Outros Sonhos, o mais melodioso de todos os temas, é uma utopia política e social que desagua na mais bela declaração de amor: «E por sonhar o impossível, sonhei que tu me querias». Os três minutos e meio de As Atrizes condensam a nostalgia de um Cinema Paraíso, com «peitinhos assaz, bundinhas assim». E só Chico para se lembrar de cantar algo tão difícil de dizer como «presentemente represente muito para mim». Em Subúrbio, novamente uma perspectiva social, numa viagem a um «lá» que «não tem turistas» e de que «não sai foto nas revistas». Recorre ao calão, sem sombra de brejeirice, numa suprema elegância, no uso justo da palavra para a cadência pretendida: «É pau, é pedra, é fim da linha, é lenha, é fogo, é foda». Talvez o tema mais exemplar seja Ela Faz Cinema, em que canta: «Não sei se ela realmente sente o que mente para mim». É que este exercício cénico da verdade da mentira comum a diferentes artes é um campo onde Chico é sublime. Fernando Pessoa deixou bem claro que o poeta é um fingidor. Nesse jogo de enganos, que em nada lesa o público, torna-se apetecível procurar nas entrelinhas a alma do criador. Mas, pessoalmente, o que mais conta é que tantas vezes sinto o que Chico realmente mente para mim.

O 25 de Abril cantado por Chico Buarque Dedicou a música Tanto Mar à Revolução dos Cravos, em Portugal. Como foi escrever sobre a liberdade de um povo quando o Brasil ainda passava pela noite da censura? Eu ia a Portugal com alguma frequência. Estive lá com o Vinicius de Moraes e a Nara Leão fazendo concertos, em 66 estive em Portugal com o grupo de Morte e Vida Severina. Nessa data de 74 ia para Itália de barco. Lembro-me que a bordo havia um boletim informativo. Quando aconteceu o movimento dos Capitães de Abril eu estava em viagem. Atracámos alguns dias em Lisboa. Por pouco não chegava no dia da revolução! Fiquei muito sensibilizado com todo aquele ambiente e com a repercussão dessa revolução. Os acontecimentos em Portugal eram muito importantes no Brasil. A música que compus foi um abraço a Portugal e, simultaneamente, um incentivo à reivindicação aqui no Brasil. Tanto Mar foi verdadeiramente uma canção de esperança.

Tanto Mar* Chico Buarque/1975 (1ª versão)

Tanto Mar* Chico Buarque/1978 (2ª versão)

Sei que estás em festa, pá Fico contente E enquanto estou ausente Guarda um cravo para mim

Foi bonita a festa, pá Fiquei contente E inda guardo, renitente Um velho cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá Com a tua gente E colher pessoalmente Uma flor do teu jardim

Já murcharam tua festa, pá Mas certamente Esqueceram uma semente Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar Tanto mar, tanto mar Sei também quanto é preciso, pá Navegar, navegar

Sei que há léguas a nos separar Tanto mar, tanto mar Sei também quanto é preciso, pá Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá Cá estou doente Manda urgentemente Algum cheirinho de alecrim

Canta a primavera, pá Cá estou carente Manda novamente Algum cheirinho de alecrim

* Letra original, vetada pela censura; gravação editada em Portugal, apenas em 1975.

ENTREVISTA // 25


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Dave Mckean

O ilustrador de sonhos Texto | Pedro Leal Salvado Fotografia | contiudo.com | David Duarte

O Festival IMAGO, subordinado à temática da BD, trouxe este ano a Portugal Dave McKean. Verdadeiro “homem dos sete instrumentos” no que toca ao trabalho de imagem é hoje apontado como um dos mais criativos e originais ilustradores da actualidade. No entanto, o seu trabalho não se fica pela ilustração. Fã convicto de Luis Bunuel e de Salvador Dali, confessando ser “Un Chien Andalou” o filme da sua vida, Dave Mckean, exímio contador de histórias pela imagem, é hoje considerado como um dos melhores ilustradores da actualidade, quer pela novidade das suas técnicas, quer pela sua abordagem original, bizarra e provocante a temas do quotidiano e do imaginário comum, mostrando categoricamente que uma sua imagem vale mesmo mais que mil palavras e que lhe valeu recentemente o titulo de “o artista inglês mais absurdamente talentoso da actualidade”. Herdou a paixão pela banda desenhada de seu pai, funcionário de uma empresa aérea que desenhava nas horas vagas, que perdeu cedo mas cuja memória tão comoventemente imortalizou na banda desenhada “His Story”. Em 1982, ingressou na Berkshire College of Art and Design, que frequentou até 1986, onde, através de trabalhos de José Munos e Bill Sienkiewicz, percebeu que era possível conjugar varias técnicas para se contar um história. Experimentando de tudo um pouco, desde colagens a pinturas, passando por sobreposições aleatórias feitas numa fotocopiadora, assume que o apelo era primordialmente dirigido aos sentidos e não tanto a uma história, usando a sua arte como um portal de viagens por entre texturas, cores e imagens, um pouco à semelhança do som psicadélico e progressivo da sua banda musical preferida de sempre, os King Crimson. Apesar de centrar o seu trabalho na ilustração, Mckean nunca esqueceu a sua primeira paixão, a banda desenhada, tendo desenvolvido e aprofundado as suas técnicas nos “quadradinhos”, nos anos que frequentou a Berkshire. Mas continuava a faltar algo às suas imagens, “um roteiro” nas suas palavras.

Dave Mckean e a BD É em 1986, após finalizar o seu curso, que Mckean conhece o então promissor jornalista/guionista Neil Gaiman e juntos criam “Violent Cases”, uma estranha história sobre a relação de um pequeno rapaz e o osteopata de Al Capone. A edição inglesa publicada em 1987, que por razões económicas foi editada a preto e branco, foi aplaudida pela crítica e por nomes estabelecidos da BD inglesa como Alan Moore e Clive Barker. O estilo misterioso e excêntrico das imagens de Mckean materializava com exactidão as palavras obscuras e o refinado humor negro dos textos de Gaiman, nascendo assim aquela 26 // CULTURA

que se revelou uma união perfeita e que perdura até hoje. Nos finais da década de 80, Mckean, juntamente com Gaiman, torna-se conhecido do grande público, após a gigante americana da banda desenhada DC lhe entregar as ilustrações das capas de “Sandman” – 75 ao todo –, que número após número contribuíram para a formação de uma verdadeira legião de fãs do estilo inovador do ilustrador. Graças ao sucesso do seu trabalho com a série “Sandman”, Dave continuou a trabalhar com a DC, tendo realizado ilustrações de capa para várias séries, mini-séries e especiais da editora, em títulos como “Hellblazer” e “The Dreaming”. Mas embora a sua arte se direccione naturalmente para ilustrações de capa, Mckean quis provar à editora americana que as suas ideias eram igualmente quadriculáveis e, com os textos do escocês Grant Morrison, criou “Arkham Asylum”, uma nova abordagem de Batman, numa historia que explora um lado mais pessoal e intimista do cavaleiro das trevas mergulhado no famoso hospício para criminosos, abordagem que da parte de Mckean seria a única possível pois nunca foi grande fã deste tipo de super-heróis - “não percebo porque alguém se vestiria de morcego, com uma capa e andasse depois por aí nessa figura atrás de bandidos…”, refere. Novamente em parceria com Neil Gaiman, Mckean cria, em 1992, “Signal to Noise”, uma historia negra em que o leitor sabe a hora exacta do fim e é levado a deambular por todas as implicações que esse conhecimento traz; em 1994, juntos recriam a história tradicional de “Mr. Punch”, um perverso personagem que “basicamente é um serial killer, não obstante ser uma história que contamos às nossas crianças e que supostamente tem uma moral esquisita qualquer”, historia esta que adaptou para o grande ecrã no formato de uma curta-metragem violenta e caótica, com um trabalho exímio de representação e realização. Ainda para a DC e com Neil Gaiman, criou, em 1998, a mini-série amplamente aclamada pela crítica, “Black Orchid”. Realizando um sonho de sempre, Dave Mckean, em 1998, publicou a premiada “Cages”, uma mini-série de banda desenhada dividida em 10 volumes, onde para além das ilustrações foi responsável pelos textos, assumindo assim todo o trabalho de criação da obra. “Cages” evoca o mito da Criação, contado a partir das relações que se desenrolam num edifício urbano, tendo como centro inúmeras personagens que vão desde artistas, passando por escritores e até um simples gato preto. Ainda em parceria com Neil Gaiman, Mckean ilustrou vários livros para crianças, como “The Wolves in the Wall” (2002), “Carolin” e (2001) e “The Day I Swapped My Dad For Two Goldfish” (1996), este último “um grande sucesso no dia do pai (risos)” e cuja capa teve que alterar nas edições seguintes pelo facto de o vocalista dos Counting Crows ter gostado de tal forma da ilustração que a quis usar como capa de um dos seus CD´s.


Dave Mckean e as outras artes O nome Dave Mckean não é sinónimo de qualidade apenas no mundo da banda desenhada. De facto, actualmente, Mckean disse-nos que deixou a banda desenhada como profissão. Continua a ser a sua grande paixão, mas deixou de aceitar ilustrar guiões fornecidos pelas editoras, “deixei de ver qualquer sentido nisso, acho que não estava a acrescentar nada de novo”, confessou. A sua mais recente aventura deu-se na 7ª arte, com a longametragem “Mirrormask” (2005), uma produção “low-budget” da Jim Henson Studios, cujos cenários Mckean idealizou e realizou. O argumento é, como não poderia deixar de ser, de Neil Gaiman. “Mirrormask” é a primeira longa-metragem de Dave Mckean e nela encontramos todo o imaginário das suas ilustrações a par das suas qualidades como realizador. A crítica recebeu bem o filme que, embora não tenha sido um “blockbuster”, fez parte da Selecção Oficial do Sundance Film Festival 2005 e ganhou o prémio do público no Sarasota Film Festival 2005. Dave Mckean realizou já diversas curtas-metragens. Entre outras, “Sonnet nº 138 (Shakespeare)”, cujos versos poderíamos ouvir de Mckean e tomá-los por seus, tal é a similaridade entre aqueles e as concepções deste acerca da importância da memória e da analise do passado com a experiência acumulada do presente; “The Week Before”, onde Dave nos transporta numa hilariante viagem à semana que antecedeu a criação do Mundo e onde retrata o quotidiano de Deus, na pesca, num jogo de cartas com o seu vizinho (o Diabo). Aqui, o espectador é ainda confrontado com um daqueles momentos de total falta de inspiração de um qualquer criador, a que Deus não foi excepção; destacamos ainda “Mr. Punch”, uma curta-metragem com uma violência que nos impressiona de inicio e que depois nos cativa, com um trabalho de excelência a nível de realização e de representação. Encontramos depois o trabalho de Mckean nas mais variadas áreas. Na música, além de estar à frente da Feral Records que gere com o saxofonista Iain Bellamy, desenhou, ilustrou e fotografou mais de 150 capas de CD´s de músicos como Bill Brufford, Michael Nyman, Fear Factory, Skinny Puppy, Tori Amos, Frontline, Counting Crows e Rolling Stones, tendo ainda desenhado e realizado um videoclip do estranho Buckethead, “um músico que actua com um balde do KFC na cabeça…e que recentemente se juntou aos Guns and Roses…personagem bizarra…”, referiu. Na fotografia, o trabalho de Mckean não consegue esconder o fascínio do ilustrador pelo surrealista Salvador Dali, sendo grande parte do seu portofolio autênticas odes à pintura do grande mestre, que vão desde encenações a montagens e manipulações digitais. Finalmente, na área da publicidade, onde o ilustrador criou a imagem e o design para marcas como a Nike, Kodak, British Telecom, Eurostar, Smirnoff, BMW e Sony Playstation 2 e para publicações como a New Yorker, a Mojo, a Playboy e a Penthouse. [x] CULTURA // 27


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Voar

Texto | Pedro Fiúza

Estou neste momento a planear uma outra investida ao mundo dos fantasmas do teatro. Há imagens que aparecem na cabeça. Vozes. Movimentos. Corpos. É tudo como num jogo de estratégia onde não há um objectivo definido, um jogo em que o objectivo se vai construindo a si mesmo, se vai cavando, se vai revelando. Aquilo que procuro num texto de teatro é uma revelação, um momento íntimo, daqueles que nos atiram de repente para um outro tempo, que nos fazem saltar para dentro das coisas. O que me interessa no teatro é chegar à estrutura, Muller usa a imagem do esqueleto, fascina-me o despir da máscara, tirar as camadas, esgravatar. Quando se chega ao centro chega-se a uma verdade, é a dramaturgia da morte, é a dramaturgia da vida. Não existe teatro sem questão, sem conflito. O actor combate com a angustia do seu próprio fracasso, mas isso não importa, o público é carnívoro, quanto mais o actor voa mais o público quer a queda, depende… estou a divagar dentro das minhas próprias questões. Isto do teatro anda a custar-me demasiado, não vai sendo justo. Preciso do teatro grande. Preciso daquele salto sem rede, daquela verdade louca, daquele momento de vida que parece fugir cada vez mais destas salas, dos cafés, das relações, das imagens. Porque para que serve o teatro se não for para nos voltar a dar um pouco de humanidade? Durante um curto espaço de tempo em que tudo se condensa, tudo se torna mais do que aquilo que é. Tudo é. Falo do ser. O dentro. O actor. O grito. O silêncio. Mas depois fico à janela!!! Para quê? Fico debruçado na janela a fumar um cigarro e a ouvir música, penso no teatro, penso mais no teatro, farto-me de pensar no teatro, ando com a cabeça em círculos, a planear grandes obras, a reinvenção do clássico, grandes cenas teoricamente perfeitas, imagens quase épicas… e não faço nada!!! A relação do teatro com a preguiça devia ser estudada. Quero voltar a acreditar. Estou neste momento a estudar o Quarteto do Heiner Muller, consigo inserilo na minha estética ou na estética que procuro, porque sou demasiado novo para ter uma estética definida, ele consegue reinventar o clássico, dar uma força brutal aos seus textos, vai ao fundo, é comprometido, está pessoalmente implicado em todos os seus textos. Agarra no clássico e procura-lhe as linhas, o cerne, mas sempre inserido no seu tempo e na sua vida, é como se ele procurasse a semelhança da situação, o paralelo, e procurasse uma explicação de si, um exorcismo, uma consciência. Este é o meu projecto para o próximo ano. Agarrar em dois actores com o peso necessário e partir para o problema. Mais uma vez a base é a relação homem-mulher. O texto é denso. A imagem que tenho na cabeça é uma visão romântica do teatro, voltar ao clássico, voltar ao clássico… assumir a forma, procurar a estrutura que define o teatro, não gosto de formas híbridas. Não acredito que a reinvenção do teatro passe pelo cruzamento, acredito que tem de voltar a aceitar aquilo que o define para redescobrir a sua força única. É preciso agir. A manutenção está a acabar com o risco. O teatro está fechado. O público tem dúvidas. Voar. Esta é a imagem que mais me percorre. O teatro está na beira do abismo e não salta. Medo. Não sabe se voa ou se cai. Prefere andar ao longo da fórmula. Sim, talvez eu esteja a falar de coisas específicas. Não quero desistir, não quero ser um empregado do teatro, não quero. Quero ser feliz. Quero trabalhar, talvez esteja na altura de correr riscos, é agora ou nunca, é a vantagem de ser novo, há um longo caminho para percorrer, tanta coisa para aprender, tanta coisa para explorar, ir descobrindo a forma, ir descobrindo o próprio caminho. Porque há tanta coisa para fazer e o tempo urge e para quê esperar? O teatro insiste-se na cabeça e precisa de sair. Este texto tornou-se de repente demasiado pessoal mas não podia ser diferente. É o compromisso. Estou farto de coisas que nos atravessam muito e não nos tocam nunca. Não conheço o futuro e não sei o que nos espera. Estou farto da minha janela. A vista é o horizonte. O horizonte talvez projecte demasiado. Lá fora está o mundo com todas as suas possibilidades e todos os seus enganos e toda a sua beleza. O teatro anda por aí algures e espera que o agarrem para que possa acontecer. Acreditar é o caminho. [x] 28 // CULTURA

Debaixo de Olho //

Jean Marc Vallée Do Canadá para o Mundo Texto | Pedro T. Ramos

O Canadá é definitivamente um dos países a ter mais em conta neste início do século XXI. À diversidade e qualidade musical de músicos ou bandas tão diferentes quanto indispensáveis, como os Pink Mountaintops, Junior Boys, Broken Social Scene, Final Fantasy, Bell Orchestra, Wolf parade, Feist, Tiga, Rufus Wainwright ou os grandiosos Arcade Fire, junta-se agora uma fornada de jovens e menos jovens talentos cinematográficos que começam a invadir os vários terrenos por onde se movem os cinéfilos. Se David Cronemberg, Atom Egoyan, Guy Maddin ou Dennis Arcand só vieram provar que com a idade estão cada vez melhor, se Mary Harron se posiciona cada vez mais como um caso à parte e Paul Haggis surpreendeu meio mundo com dois Óscares como argumentista e realizador, em 2005 e 2006, respectivamente, a verdadeira nova estrela da companhia chama-se Jean-Marc Vallée e é absolutamente indispensável conhecer “C.R.A.Z.Y.”, o único filme fresco e surpreendente que me foi dado a ver este ano. Apesar de se tratar de uma história muito localizada (a religião, as paisagens, o tipo de família classe média), o filme transcende fronteiras como no caso de “Cidade de Deus” ou “Amores Perros”, filmes muito vinculados aos locais onde ocorrem mas de absoluta leitura universal. Será talvez porque se trata de um filme sobre emoções e não existem territórios específicos para as emoções. Mas porque é que “C.R.A.Z.Y.” é um filme especial dentro da avalanche recente de filmes centrados em histórias sobre a homossexualidade? Precisamente pelo facto da sua personagem principal ser homossexual e de não ser determinante para a história que se quer contar. É um filme basicamente sobre as diferenças e sobre o facto de as aceitarmos ou não. Jean Marc Vallée dedicou 10 anos da sua vida a esta obraprima e isso nota-se. Um argumento com um ritmo frenético e apaixonante, uma direcção artística primorosa, uma selecção musical de primeira água, um casting e direcção de actores acertadíssima. Tudo foi pensado e trabalhado para fazer de “C.R.A.Z.Y.” um dos objectos fílmicos mais estimulantes dos últimos anos.

Olhando posteriormente para o filme com mais distanciamento e frieza também me pus a pensar como é simples fazer bem com poucos recursos, não renegando as idiossincrasias subjacentes e conseguindo alcançar uma leitura universal. Tudo o contrário do que acontece com os filmes portugueses. Veja-se o caso do sobrevalorizado “Rapace” de João Nicolau (recentemente exibido no IMAGO e agora em exibição comercial) que, partindo de um bom tema, se perde em preciosismos pretensiosos não conseguindo transmitir a mínima emoção. Prova disso é a baixíssima receptividade que o público do festival lhe concedeu atribuindo-lhe uma das piores classificações no prémio do público. Como é que um filme destes ganha o prémio do Júri Internacional de Vila do Conde é um mistério que provavelmente nunca será resolvido. Já o jovem Diogo Camões, com “Morrer”, mostra um potencial que merece ser seguido com toda a atenção e que mereceu a mais alta distinção por parte do público e do júri da competição Under 25 do IMAGO. Não tenho a mínima dúvida de que há muitos e grandes talentos entre os jovens cineastas portugueses que se mexem à margem dos esquemas de produção sorvedores dos dinheiros públicos para o cinema. Urge uma tomada de posição radical por parte das instituições para que os dinheiros sejam distribuídos de outra forma, os esquemas de produção sejam mais diversificados e permitam que mais gente vá filmando. O Canadá é um bom exemplo disso e seria tão bom se dentro de alguns anos pudéssemos estar a falar com o mesmo entusiasmo de um Jean Marc Vallée português. Até lá esperemos que alguma distribuidora se lembre de estrear “C.R.A.Z.Y.” em Portugal. [x] Mais info em: http://concours.canoe.com/concours_crazy/ http://www.excessif.com/news.php?15117 http://www.arcadefire.com/flash.html http://www.curtasmetragens.pt/agencia/p/filme.php?fil=151


Parabéns, Ballet Gulbenkian! //

Texto | Luiz Antunes

Quinze meses após a extinção abrupta do Ballet Gulbenkian, o balanço que se pode fazer é que esta abalou a cultura do país e empobreceu significativamente o panorama artístico português, em troca de nada. A origem do Ballet Gulbenkian está intimamente ligada à visão de Anna Mascolo que depois de ter reconhecido potencialidades de futura companhia profissional ao Grupo Experimental de Ballet do Centro Português de Bailado, do qual era Directora Artística não remunerada (bem ao gosto português, pois os artistas alimentam-se de ar e vento, e sobrevivem de promessas e sonhos, não precisam orientações claras quanto aos seus deveres e prescindem de protecção dos seus direitos) demite-se do cargo e apresenta em Assembleia-geral do Centro Português de Bailado uma moção aprovada pelos associados que o transforma em Grupo Gulbenkian de Bailado, ex-Ballet Gulbenkian. Nos 40 anos de existência da companhia fez-se história, e se esta se pode qualificar de melhor ou pior…aos olhos da maioria, foi da melhor. No início era uma companhia de repertório clássico, tendo sido alterado o seu rumo estético, pelas mãos do jugoslavo Milko Sparemblek e acentuandose sob a direcção do português Jorge Salavisa, aquando da abertura da Companhia Nacional de Bailado na década de 70. Numa perspectiva de consolidar uma arte da dança de raiz portuguesa, o Ballet Gulbenkian foi encorajando a revelação e o desenvolvimento da carreira de novos coreógrafos (portugueses ou residentes em Portugal), permitindo-lhes assumir uma dimensão artística de referência nacional e internacional: Carlos Trincheiras, Armando Jorge, Vasco Wallenkamp, Olga Roriz, João Fiadeiro, Vera Mantero, Paulo Ribeiro… Pelos estúdios, nos subterrâneos do edifício da Fundação, passaram os melhores mestres, coreógrafos e colaboradores de diversas áreas artísticas, de todo o séc. XX, enriquecendo de alguma forma o mundo da dança e contribuindo para a sua história. São de referir nomes como Serge Lifar, Leonide Massine, Anton Dolin, Lar Lubovitch,

Birgit Culberg (fundadora o Culberg Ballet, na Suécia), Hans van Manen, Maurice Bejárt, Jiri Kylian, Nacho Duato, entre outros. Desde o início, sempre com uma grande componente plástica nas suas produções, o Ballet Gulbenkian fez apelo à colaboração de artistas portugueses bem conhecidos, estimulando vários deles a, pela primeira vez, trabalharem para uma cena teatral: criaram cenários e figurinos para a companhia alguns nomes, como Júlio de Resende, Nadir Afonso, Espiga Pinto, Cruzeiro Seixas, Nuno Carinhas, Vera Castro, António Lagarto, Paula Rego, José António Tenente e muitos mais. E a estes nomes vieram juntar-se os de alguns estrangeiros com prestígio no mundo das artes cénicas, como André Acquart e Germinal Casado… O mérito destas produções de excepção, no aspecto plástico, foi recompensado, em 1973, com uma menção honrosa da XII Bienal de São Paulo. Expressamente destinadas ao Ballet Gulbenkian foram encomendadas obras aos compositores portugueses Joly Braga Santos, António Victorino d’Almeida, Constança Capdeville. Como artistas convidados actuaram com a companhia os pianistas Tania Achot, Pedro Burmester, Jorge Moyano, Jorge Peixinho e o guitarrista Carlos Paredes. Depois de um período de maturação é nos anos 80, com um reportório de excepção e estilisticamente moderno e contemporâneo, que é considerada uma das cinco melhores companhias de dança do mundo, actuando de Norte a Sul do país, bem como nas melhores salas do mundo, com digressões regulares. Muito disto deveu-se aos excelentes bailarinos que passaram pela Fundação e contribuíram com o seu enorme talento e domínio técnico, alguns deles oriundos Curso de Formação Profissional de bailarinos que funcionava em anexo à Companhia. Bailarinos como Gagik Ismailian, José Grave, João Afonso, Allan Falieri, Jermain Spivey, Romeu Runa, Graça Barroso, Barbara Giggi, Elisa Ferreira, Sandra Rosado e os “quatro Cavaleiros Apoteóticos”: Francisco Rosseau, Benvindo Fonseca, Luís Damas e Rui Pinto (com uma técnica arrebatadora e uma expressividade emotiva absolutamente

lusa, provocando no público feminino e até no mais insensível dos homens sensações absolutamente… artísticas!), fizeram acontecer dança, em momentos inebriantes. Que aconteceu realmente? Que disseram as notícias? Pelo lado dos factos, isto: NADA… ninguém soube realmente o que levou ao encerramento das portas da companhia. A responsabilidade deste encerramento morreu solteira. Do lado das conclusões, o que importou à comunicação social foi noticiar não os factos, mas sim as lágrimas dos muitos que choraram este fim, e o valor das indemnizações pagas aos bailarinos pelo despedimento. As opções estratégicas e as que dizem respeito à cultura escaparão sempre à democracia, mas devemos discutilas e entendê-las. A Fundação Calouste Gulbenkian na pessoa do seu presidente do Conselho Administrativo é soberana, mas será certamente capaz de entender, que “ uma obra cultural”, tal como um quadro, e tal como o Ballet Gulbenkian, a partir do seu momento de encantamento, passa a ter vida própria e uma “pertença cultural” universal. Sem pôr em causa a soberania referida, poderíamos sempre dizer que, uma grande diferença e uma grande semelhança existem entre o quadro e o Ballet Gulbenkian: se no primeiro jamais podemos acrescentar uma pincelada, já no Ballet Gulbenkian seria sempre possível aperfeiçoá-lo. A grande semelhança é que a ambos a destruição deveria sempre ser interdita. Parafraseando Anna Mascolo: “enquanto no nosso país a Dança não for encarada com a admiração e o respeito que merece, enquanto não formos capazes de alicerçar uma tradição profissional, a Dança, como alta expressão de um povo e forma de expansão da sua cultura no mundo, não poderá singrar entre nós.” Em tempo de comemorações dos 50 anos de existência da Fundação Calouste Gulbenkian e 40 anos da sua orquestra, o Ballet Gulbenkian, que teve um papel crucial na história da dança em Portugal, como na projecção do nome da própria fundação e do país, parece ter sido completamente esquecido. [x]


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O arquitecto

da memória Texto | Margarida Gil dos Reis Fotografia | contiudo.com | Pedro Seixo Rodrigues e Arquivo Centro Cultural Raiano

Nos últimos anos tem-se desenvolvido uma actividade interessante em torno das questões da recuperação da cidade contemporânea e da preservação de espaços. Ao longo da modernidade, a metrópole assumiu-se como um dos temas centrais das sociedades modernas. Transcender a lógica efémera do mercado e valorizar a permanência da arquitectura e da cidade são hoje, cada vez mais, duas necessidades. O Arq.º Luís Marçal Grilo foi responsável por algumas das intervenções mais bem sucedidas na região da Beira Interior. Falamos, em primeiro lugar, do Cine-Teatro Avenida, em Castelo Branco. Danificado por um incêndio, em 1986, o CineTeatro, projectado pelos arquitectos Raul César Caldeira e Alberto Cruzeiro Galvão Roxo, é hoje um dos ex-libris da cidade. A recuperação esteve a cargo de Marçal Grilo que preservou a fachada original, mantendo a harmonia com os restantes edifícios que o rodeiam. Na Idanha-a-Nova, Marçal Grilo assinou o projecto do Centro Cultural Raiano. Há já quem considere este centro o último Castelo Raiano, devido à sua sólida e granítica volumetria, com poucas aberturas para o exterior. A questão das relações transfronteiriças é bem visível nesta obra maior, onde todos os pormenores são relevantes e nada foi deixado ao acaso. Destaque ainda para o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, inaugurado em 2000, um importante marco de intervenção cultural. [x] 30 // ARQUITECTURA


Cine Teatro Avenida e Centro Cultural Raiano Texto | Luís Marçal Grilo_ Arquitecto

Embora com finalidades semelhantes, a abordagem à elaboração dos projectos destes dois edifícios destinados a actividades no âmbito cultural, foi totalmente distinta. No caso do Cineteatro Avenida tratou-se de um projecto de recuperação para um edifício perfeitamente integrado na malha urbana da cidade, inaugurado em fins de 1954, e destruído em Agosto de 1984 por um violento incêndio que consumiu todo o seu interior. Durante três décadas o Cineteatro foi, sem dúvida, o centro de actividades culturais mais importante de Castelo Branco. Projectado pelos Arquitectos Raul Caldeira e Albertino Roxo, o edifício de indiscutível qualidade com uma arquitectura característica dos anos 50, contribui de forma significativa para uma valorização não só da zona em que se situa como da própria cidade. Nesta perspectiva, a abordagem ao projecto teve o cuidado e a preocupação de não interferir com a solução volumétrica e arquitectónica evitando adulterar a identidade do edifício e a apagar a própria memória do local. Por isso, as alterações introduzidas centraram-se fundamentalmente numa reorganização dos espaços, em particular na área de palco, dependências de apoio, instalação de equipamento cénico e melhoria das áreas públicas, procurando uma solução que permitisse dotar Castelo Branco de um equipamento cultural com capacidade de resposta às diferentes solicitações dos dias de hoje totalmente diferentes das que se verificavam nos anos 50. Relativamente ao Centro Cultural Raiano, o projecto foi concebido de um modo totalmente diferente, já que se tratava de um edifício de raiz baseado num programa bem estruturado com definição clara dos objectivos a atingir – museu e serviços de apoio, exposições temporárias, auditório e apoios, salas polivalentes, instalação para investigadores e serviços administrativos. Aqui houve liberdade para articular os diferentes espaços do modo que julgamos mais funcional, com um esquema de circulação de leitura muito fácil em torno de um páteo central o qual permite ao edifício obter iluminação natural no seu interior. Esta solução permitiu desenvolver os alçados com muito pouca fenestração, o que aliado à utilização de pedra de granito nas fachadas, conferem ao edifício uma identidade própria com uma forte integração na paisagem local. [x] ARQUITECTURA // 31


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Constância

ao sabor dos rios Texto | Paula Nogueira Fotografia | contiudo.com | Pedro Seixo Rodrigues

“Todas as terras que têm rio têm uma beleza especial. Esta tem dois. Por isso tem uma beleza a dobrar”, diz-nos Carlos Dâmaso, sentado à nossa frente, no seu restaurante. Um espaço de bom gosto e de bons paladares, cujo nome, “Remédio d’Alma”, bem podia ser o novo slogan de Constância. “Há aqui um aconchego. Um aconchego que vem destes dois rios” explica-nos o nosso anfitrião, um albicastrense que há oito anos veio parar a Constância para dar aulas de música, que toca com Pedro Barroso e que há seis anos resolveu aceitar o desafio da mulher. Ela, uma açoriana apaixonada pela cozinha das ilhas, quis abrir um restaurante, cujo ambiente casa com a harmonia que se respira quando saímos porta fora, de estômago reconfortado, à descoberta desta vila, abraçada pelo Rio e pelo Tejo. Sim, pelo Rio e pelo Tejo. Porque aqui “o rio” é o Zêzere e o Tejo é o Tejo. “O Rio é o Zêzere porque era de lá que as pessoas tiravam a água para casa, para cozinhar, regar, lavar a roupa. Era uma água limpa, via-se o fundo. Por isso o Zêzere é o rio afectivo, porque nos dava a água. O Tejo metia medo. Mas as pessoas da vila viviam dele, do transporte fluvial. Por isso Constância explorava o Tejo e amava o Zêzere”. Quem assim fala é o cónego José Maria Oliveira. Para além de guardião da fé dos seus paroquianos, ele é também o guardião das estórias que ajudam a fazer a história do último século de Constância. Da sua casa, situada no cimo da vila, ao lado da Igreja Matriz (cujo tecto guarda pinturas de Malhoa), a vista alcança os dois rios. Mas é sobre o Tejo que desfia as suas memórias. Filho e neto de arrais (homens que comandavam embarcações) a sua família viveu do transporte fluvial, actividade a que se dedicava a maioria da população de Constância, até à década de 50 do século passado. “O transporte de mercadorias era a grande força da vila”, conta. Do Norte vinham as mercadorias agrícolas, o que também fazia dela um importante entreposto comercial. Do Sul, os barcos traziam produtos químicos, combustível, produtos alimentares e também o sal. 32 // VIAGEM


Quando o rio era a auto-estrada

Com um pé no rio e a cabeça na lua

As praias dos dois rios também serviram de estaleiros navais e ali se construíam uma grande diversidade de embarcações, consoante o fim a que se destinavam. Batelões, lanchas de passagem, catrafuso, desalijo, bateira, varino, barco d’água acima, lancha praieira. Barcos que o cónego José Maria Oliveira já não vê da sua casa, nem da praça de onde “se avistavam só os mastros tal era a fundura do Tejo, na altura. Hoje o rio está assoreado e da praça vimos o casco dos barcos”. Mas a memória desta vila, fervilhante de vida e de comércio à beira Tejo, não se esgota nas histórias do cónego José Maria. O Museu dos Rios e das Artes Marinhas é depositário desses tempos, mesmo que os barcos já só sejam de miniatura. Acolhedor e pedagógico, vale bem uma visita. E uma ampliação. A construção da linha da Beira Baixa, refere o cónego José Maria, “levou a que o transporte de mercadorias passasse a fazer-se pela ferrovia e pôs fim ao transporte fluvial”. Constância passa a viver dos comboios e das fábricas, sobretudo da celulose do Caima, cuja instalação “foi vista como uma divindade”. Mas a divindade de antes tem hoje custos elevados, para uma terra baptizada também de “vila museu”. O monstro que se ergue na margem Sul do Tejo continua a dar emprego e a ser uma das empresas mais importantes do Concelho. Mas, como refere António Mendes, presidente da Câmara de Constância “não estraga só a fotografia”. A dimensão da fábrica, o fumo que sai das suas chaminés, a água de cor amarelada que lança para o rio atestam um impacto ambiental difícil de contornar, e que António Mendes gostaria de minimizar. O autarca fala-nos da existência de uma celulose, em pleno centro da cidade finlandesa sede da Nokia, “e de que não se dá conta”. O Caima, diz, “também devia ser assim”. Por isso está nos seus planos dar um salto até lá para conhecer o projecto e tentar que a empresa deixe de estragar a fotografia e o resto. A verdade é que, mesmo com a celulose a ver-se do lado de Tejo, Constância preserva quase intacto o seu encanto. Ou “aconchego”. Aqui tudo parece estar no seu sítio, desde a harmonia dos edifícios, às flores que brotam em quase todas as janelas, aos inúmeros terraços e recantos onde apetece ficar: a ler um livro, a namorar, a ouvir o burburinho suave das vozes e dos pássaros, ou simplesmente a contemplar os rios. Aqui não se pode vir com pressa. É preciso percorrer as ruelas, entre casas bem caiadas, apreciar os arcos, as fachadas das casas solarengas ou mais humildes, deter-se diante de uma janela. E ir descendo. Até aos rios, claro. Cá em baixo, um passeio marginal de quase dois quilómetros, cujo projecto obteve, em 1995, o primeiro Prémio Nacional do Ambiente, sugere, para começar, um passeio. Com a água quase aos nossos pés podemos depois fazer um piquenique no parque de merendas, beber um copo ou almoçar numa das esplanadas, estender a toalha na areia e dar um mergulho (se o tempo estiver de feição), acampar, alugar um kayak, pescar. Ou ainda esperar que chegue a hora de Sérgio Silva fazer uma das suas muitas travessias diárias para transportar os munícipes que utilizam o barco da Câmara para atravessarem o Tejo.

Foi o que fizemos. Era sábado de manhã e por isso fomos os únicos a embarcar. À semana este meio de transporte é utilizado pelos funcionários da celulose e pela população da aldeia de Santa Margarida, nas suas deslocações à vila. Leva 20 pessoas e foi feito pelo próprio Sérgio Silva que, para além de ser barqueiro, também é construtor de barcos. Aponta para a margem, onde estão atracados quase uma dezena e diz: “aqueles foram quase todos feitos por mim”. Aprendeu com o pai e com outros pescadores, que também faziam barcos até que começaram a pedir-lhe para os consertarem. E um dia atreveu-se a fazer o primeiro. Os seus clientes são pescadores da vila, de Tancos ou da Barquinha, que têm de esperar algumas semanas, porque só depois do trabalho de barqueiro é que pode refugiar-se na sua pequena oficina para se dedicar a uma arte, também ela em vias de extinção. Enquanto o passeio se prolonga, rio abaixo, rio acima, Sérgio lamenta que o rio não esteja desassoreado. “Isso era bom para o turismo fluvial, mas assim não é possível.

enorme língua de areia e fazer a maior pista de pesca desportiva de rio do País, dando assim continuidade ao plano de ordenamento e de valorização das margens dos rios. Um plano que ficará completo com a construção de um açude e espelho de água, que permita ordenar as margens, desta vez do Zêzere, e tornar a zona mais atractiva para banhistas. Mas este passeio por Constância não ficaria completo se não nos afastássemos da vila e dos seus rios, para seguir as setas que indicam “Centro de Ciência Viva-Parque Temático de Astronomia”. Só até Agosto deste ano já tinha acolhido 13 mil visitantes. Feita a visita percebe-se porquê. Para além do planetário e do observatório astronómico, que às quintas-feiras está aberto até às 23horas, os módulos exteriores, de dimensões atractivas, convidam miúdos e graúdos a uma aventura à descoberta do universo. Aqui os visitantes andam à volta da terra, passeiam pela

Este barco leva 20 pessoas mas só posso transportar 10, senão ele bate no fundo”. O passeio continua, agora Tejo acima. Vista da água, a enorme língua de areia com cerca de dois quilómetros, depositada ao longo dos anos pelas empresas de extracção de inertes, é bem mais aterradora, do que a visão que tínhamos tido por terra, numa visita guiada, dias antes, pelo presidente da Câmara de Constância. António Marques admitia então que esta era, a par da poluição dos rios a sua “maior dor de cabeça”. E o seu tom sereno de imediato endurece para apontar o dedo à administração central: “Autorizam a extracção sem ter em consideração a opinião de quem aqui está a vive”. A extracção de areias no seu concelho ”inutilizou cerca de 50 por cento do leito do Tejo e há empresas que estão a trabalhar à margem da lei”, denuncia. Agora pôr fim a mais este atentado ambiental vai custar uns milhões de euros. António Marques já sabe o que quer fazer, logo que consiga financiamento: destruir aquela

esfera celeste, sentam-se num carrossel que nos põe a girar com a terra e com a lua, medem o diâmetro do sol, entre outras actividades que, sob a orientação de uma equipa multidisciplinar, dão um cunho particular à visita, onde o lúdico se harmoniza com a descoberta e a aprendizagem. Máximo Ferreira, um homem da física e da electrónica que há muitos anos se começou a interessar pela divulgação da astronomia, é o pai deste centro. Um pai visivelmente orgulhoso com a sua obra, que nasceu de uma conversa com o presidente da Câmara da sua terra natal. Depois de vários anos a trabalhar no Planetário da Gulbenkian e de ajudar a implementar alguns pólos de astronomia em vários pontos do País, veio para Constância dar o corpo e alma a este projecto, que abriu as portas há seis anos e onde para além das visitas são também realizadas acções de formação, destinadas a professores e outros amantes da astronomia. Com os olhos nos rios, nas flores, ou nas estrelas vá. Porque Constância é mesmo uma “Vila poema”. [x] VIAGEM

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A poesia está na rua Alexandre O’Neil foi um dos poetas deste nosso tempo que se deixou seduzir pela harmonia de Constância e ali montou casa, onde passava temporadas. Após a sua morte, a família decidiu oferecer o espólio do poeta à Biblioteca Municipal que tem hoje o seu nome. A presença da vila na poesia de O’Neil ficaria registada num pequeno poema a que deu o título de “O Barqueiro de Constância”: “…e com a fome ninguém se meta!/disse o barqueiro aproando ao peixe/que, sobre brasas, virado, revirado/da margem o tocava para almoçar”. Mas um outro poeta tem o seu nome inscrito na vila. O seu nome, a sua estátua e até um Jardim-Horto, um dos recantos mais inspiradores da vila, que merece igualmente visita demorada.

Trata-se de Luís de Camões e, dizem os estudiosos, que terá sido obrigado a vir para o Ribatejo alegadamente para o afastarem de uma dama cujo amor não era bem visto na corte. Ainda hoje não se sabe com certeza se Camões terá vivido em Constância. Mas o facto de nos seus poemas ter feito várias referências aos dois rios, a descrição que faz da paisagem e os amigos íntimos que tinha na vila, levam a crer que sim. Obra da fundadora da Associação Casa memória de Camões, Manuela Azevedo, o Jardim-Horto tem a assinatura do arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles e percorrê-lo é penetrar numa atmosfera quase mágica, onde a beleza se associa a uma reconfortante sensação de tranquilidade, que convida a estar, a ficar.

Guiados por Ana Maria Romãozinho, uma das técnicas responsáveis pelas visitas a este verdadeiro jardim poema, cheiramos as folhas da árvore da canela, da segurelha, ficámos a saber como é a árvore da pimenta, a planta da cânfora, vimos tamareiras. Ao todo estão ali representadas as 52 espécies botânicas a que o poeta faz referência, quer em Os Lusíadas, quer na sua lírica, e alguns dos versos onde as plantas são referidas encontram-se afixados em placas no meio das plantas. Ana Maria Romãozinho segreda-nos que a melhor altura do ano para apreciar o jardim em todo o seu esplendor é no mês de Março. Nós fomos já no final do Verão e podemos assegurar que a magia do lugar, para lá do ciclo de vida das plantas, merece uma visita em qualquer altura do ano. [x]

Onde Ficar QUINTA DE SANTA BÁRBARA Turismo de Habitação t. 249 739 214 Constância 2250 Constância

RESIDENCIAL JOÃO CHAGAS t. 249 739 403 Rua João Chagas, 1 2250 Constância

VIVENDA S. JOSÉ Aluguer de Quartos t. 249 739 575 Rua Cândido dos Reis, 45 2250 Constância

ADEGA TÍPICA RESTAURANTE D. JOSÉ PINHÃO Encerra á 4ª feira t. 249 739 960 Rua Luís de Camões, 5 - 5 A 2250 Constância

REFEITÓRIO QUINHENTISTA Encerra à 2º feira t. 249 739 214 Quinta de Santa Bárbara 2250 Constância

CASA DE PASTO AIDA t. 249 736 459 Estrada Nacional 118 2250 Constância

RESTAURANTE DA ODETE t. 969 669 910 Praça Alexandre Herculano 2250 Constância

REMÉDIO D´ALMA Encerra à 2ª feira t. 249739405 Av. das Forças Armadas 2250 Constância

RESTAURANTE TRINCA - FORTES Encerra à 2ª feira t. 249 739 221 Av. das Forças Armadas 2250 Constância

O ZANGARILHO Restaurante - Cervejaria t. 249 736 528 Aldeia 2250 Constância

RESTAURANTE O FALCOEIRO t. 249 739 421 Constância 2250 Constância

O PALÁCIO Turismo de Habitação t. 249 739 224 Rua Francisco da Costa Falcão, 1 2250 Constância

Onde Comer


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Restaurante Marisqueira

Bela Vista Uma bela vista para o sonho, para o paladar e para o calor humano Texto | Jacinto Galeão de Tormes Fotografia | contiudo.com | David Duarte e Nuno Lages

Marisqueiras são feiras húmidas de sonho. E até inventaram uma nova categoria humana: os chupadores. Com sons infernais. Aqui a vida nunca pára embora o efémero seja aqui o reino proposto. Um efémero que nos satisfaz. Animais de carapaça baça, outros com tentáculos esquisitos e fantasmagóricos, outros com olhos galáxicos, esperam e desprezam os humanos em águas imortais, sossegadas. Esta vida aquática, misteriosa, letárgica, sempre fascinou. A escritora M.F.K. Fisher fez o melhor livro sobre ostras onde ela devolve e desenvolve segredos incalculáveis destas conciliadoras do amor. Uma vez em Lisboa na Cervejaria Portugal também observei os perigos das marisqueiras. Era uma época festiva e uma família tinha reunido algumas economias e levara até a avozinha para compartilhar algumas sapateiras. Pois acreditem ou não, entre dois potentes golpes de martelinho, a avozinha foi atingida. Uma casquinha voadora entrou-lhe no olho ainda vivo. Pânico nas hostes com remelas na boca. Felizmente que o hospital de S. José estava ao lado. Quando voltou, ao lado de uma montanha de cascas, comeu um prego. Marisqueiras são, felizmente, uma especialidade portuguesa. Poucas vi através do vasto mundo e elas vão de encontro ao nosso “fare niente”. Nelas no Verão abre-se a chalaça, ri-se e chora-se de riso, passa o tempo despressurizado com a sua asa de ave migratória. As marisqueiras desenvolvem o calor humano e quando uma abre ou se destaca, temos automaticamente que lhe tirar o chapéu pegando nos nossos dedos glutões, no martelinho ou nos pequenos garfinhos que nos conduzem indiscutivelmente ao cerebelo do sonho invertebrado. No Fundão temos agora o do senhor Alfredo. Este homem calmo, afável e que conhece tudo das vidas aquáticas, tem um passado atrás dele. Quantas vezes não nos regalámos no seu pequeno mas formidável restaurante da rotunda Eugénio de Andrade, cantinho único de cozinha familiar requintada. Agora o senhor Alfredo trespassou a sua simpatia para a rua do Parque Desportivo. Com a sua mulher Isabel, que faz milagres numa cozinha espaçosa e brilhante, propõem o mar à beira da Gardunha. Na verdade, o belo panorama sobre a serra rejuvenesce-nos a boca e as árvores acolhedoras deramnos uma personalidade num pequeno caminho de intimidade que conduz ao alto templo dos sabores. Fomos lá comer numa sexta-feira fria e o nosso coração saiu de lá a bater de alegria. Faltava no Fundão um local marítimo acolhedor. Ei-la, a única marisqueira no Fundão com viveiro. Na sala confortável, brilhantíssima, bem iluminada com tons modernos e quentes, instalamo-nos ao lado do aquário central que divide ao meio o restaurante. E começámos a comer um delicioso e untuoso queijo fresco (o melhor que comemos nos últimos tempos) e mastigámos um bom e cheiroso pão caseiro do Souto da Casa. Vieram depois umas petingas de escabeche que nos entonteceram. Claro, podíamos ter escolhido outros petiscos como carapaus em molho de escabeche, salada de polvo, mexilhão, búzios, etc, salada de grão com bacalhau ou de atum com feijão-frade. Ou enchidos. Porque os enchidos

do senhor Alfredo são famosos. Mas acampámos nas petingas porque as petingas só existem em Portugal, é a nossa especialidade filosófica, o nosso humanismo. Chegámos por fim ao centro do nosso apetite. A escolha era imensa, embaraçosa. Se, por um lado, tínhamos os lavagantes, as sapateiras, as santolas, as navalheiras, os lagostins, os camarões da costa, as canilhas, as amêijoas, os mexilhões, que nos tentavam extraordinariamente, o peixe fresco não era menos apelativo. Tamboril, salmão, robalo, dourada, linguado, cherne, tudo vindo expressamente de Peniche e de Aveiro. Optámos por um arroz de tamboril que se revelou ser tão bem confeccionado como nos restaurantes algarvios mais cotados. Estava simplesmente divino. Mas antes comemos umas lulas com camarão, tão tenrinhas, ligeiramente alouradas, que nos enviaram logo para o paraíso. Provámos entretanto duas açordas (de camarão, de marisco) que, magníficas, nos consolidaram todas as vértebras. Neste restaurante stevensoniano podemos também ter uma dupla personalidade. Em vez de termos adoptado o mar, podíamos ter mergulhado num restaurante normal e comido as especialidades regionais: o cabrito, o ensopado de borrego, as belíssimas carnes de vitela. Estes pratos do dia, como explicámos, podem-nos tornar também monstruosamente satisfeitos. É só pedir à dona Isabel. Avançámos para as sobremesas. Escolhemos o soberbo arroz doce (é o meu éden!) mas havia papas de carolo, variedades semifrias, leite de creme. Continuámos com uma fatia de queijo da serra, ímpar com um gosto de alturas. Aqui parámos para respirar. Tínhamos atingido os pináculos. Olhámos a mesa. Tínhamos bebido bem, e à nossa maneira: escolhendo o melhor vinho. Numa carta de vinhos sumptuosa (onde brilha o Douro com a Quinta da Leda, o Alentejo com o Mouchão e a Cartuxa e o Dão com a Casa de Santar) os brancos estão também presentes em fileiras dignas de sonho. Despedimo-nos do senhor Alfredo e perdemo-nos satisfeitos na noite. Com o frio a lua tinha minguado lá para os altos da Gardunha. Caro leitor desportivo, se no próximo verão quiser perder muitas calorias, vá fazer squash no Parque Desportivo e depois instale-se na esplanada do senhor Alfredo diante de uma imperial com uns mariscos e regale-se com a brisa serrana. Mas você, caro leitor gastrónomo, não perca tempo. Vá desde já ao Alfredo (Marisqueira da Bela Vista). O restaurante do senhor Manaia é uma fonte de sabores. E saiba ser efémero e feliz. E no final olhe para eternidade da serra que, como um monstro marinho, nos observa silenciosamente com a ternura dos eleitos. [x] Preços Médios 15 - 20 Euros Almoço – pratos do dia (7 - 12 Euros) Restaurante Marisqueira Bela Vista Rua do Parque Desportivo 6230 - 411 Fundão Tlf.: 275 771 920 GASTRONOMIA // 35


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Alforge

De Maria Anunciação Salvado Forte Edifício Acrópole, Loja 11, Piso 0 6230 Fundão Tlf. 275 772 824 | Tlm. 967 424 070

A tradição com muito estilo Escolhemos alguns presentes a pensar em si. Estilos de roupas e acessórios que marcam a diferença porque são verdadeiras obras artesanais. De olhos postos na moda, crie a imagem que melhor reflecte a sua personalidade. Dê um toque de poesia à sua imagem e ao espaço do seu lar um toque de bem-estar. Porque ser e parecer podem andar de mãos dadas e a elegância é a marca deste início de novo ano.

Saia bordada com poema de Eugénio de Andrade e motivos de Castelo Branco

Vestido e casaco tecidos em tear

Linha Estátuas Santo Sentado: Figura do artesão Ribom. Artistas vários, Júlia Ramalho, entre outros

Ao lado do artesanato convivem várias obras plásticas de artistas de renome nacional e internacional. Poderá encontrar no Alforge peças únicas de: - Armanda Passos - Manuela Pinheiro - Noronha da Costa - Mário Alberto - Cargaleiro - José Pádua - José Freire - Dália Almeida, entre muitos outros 36 // VÍCIOS

Vestido de lã composto com motivos de tecelagem Carteira de lã com patchwork


Linha dos namorados Chávenas, lenços bordados e objectos vários com o motivo dos versos dos namorados

Linha de cerâmica (conjunto de café, pratos, velas, jarras, motivos decorativos) de Olga Marques, pintada à mão com versos de Eugénio de Andrade

Linha Bordados/Cerâmica de Eugénio de Andrade e Fernando Pessoa Bordados artesanais de Olga Burmarante, com tecelagem de Vila Verde. Linhos bordados de Bogas. Sacos bordados com poemas de Albano Martins. Colchas várias com bordados de Castelo Branco. Prato em cerâmica pintado de Fátima Mendes

Presépios de Carlos Baraça, J. Pias, Eugénia Cavaca, Olga Marques entre outros

VÍCIOS // 37


Teatro das Beiras no Teatro Nacional //

O reconhecimento de uma companhia do Interior Texto | Ricardo Paulouro

É já no próximo ano (2007) que o Teatro das Beiras levará ao palco, numa co-produção com o Teatro Nacional D. Maria II, a peça do conceituado dramaturgo Manuel Martinez Mediero, “Longas Férias com Oliveira Salazar”. Em 1997, numa co-produção com o Distrito de Castelo Branco / Capital do Teatro, o Teatro das Beiras estreou no Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova, uma produção que é, antes de mais, uma estreita colaboração com o teatro espanhol, mais precisamente o extremenho. Com cenografia de José Manuel Castanheira e adaptação e encenação de José Carretas, o Teatro das Beiras prepara agora a reposição da peça de um dos maiores dramaturgos europeus, permitindo, mais uma vez, que o trabalho que tem desenvolvido nos últimos anos ao serviço do teatro e da cultura na Beira Interior e ao nível internacional seja, mais uma vez, reconhecido. A obra dramática de Mediero é uma obra deveras inquietante pela forma como formula questões sobre o destino do Homem e a Liberdade. O extremenho de Badajoz é um observador atento do quotidiano, consciente dos deveres e obrigações da cidadania. “As Longas Férias com Oliveira Salazar” fazem conviver a aventura criadora com História com a desumanização progressiva da sociedade. De algum modo, acabamos por nos reconhecer como personagens dessas tragédias colectivas. Mediero sabe, como poucos autores, envolver os espectadores no mistério da representação e mergulhá-los na consciência da servidão humana. O cenário de José Manuel Castanheira, arquitecto e cenógrafo cujo trabalho tem abrangido um notável leque de dramaturgias, quer ao nível nacional, quer internacional, capta na sua essência

aquela que é, acima de tudo, uma reflexão sobre o poder e os atavismos próximos da sua natureza. Apercebemo-nos como podemos quase eleger o universo doméstico do salazarismo a um paradigma nacional, ao cariz provinciano de um país. Mediero tem por isso a rara capacidade de olhar para Portugal derrubando qualquer fronteira e fomentando a cooperação cultural entre os dois países. No final, apetece-nos sorrir, como Mediero, um sorriso aparentemente distanciado sobre o fascismo à portuguesa, sobre a pobreza mitigada pelo céu quando “o caldo e a côdea” eram prescrição alimentar do salazarismo.

Teatro das Beiras, nos palcos há trinta anos O Teatro das Beiras foi fundado a sete de Novembro de 1974, com a denominação de Grupo de Intervenção Cultural da Covilhã (GICC), com o objectivo de produzir espectáculos teatrais com regularidade. O Teatro das Beiras estreou-se, no entanto, só em 1976 com uma encenação colectiva de “A Farsa do Mestre Pathelin”. Em 1977 é cedido ao grupo um espaço sede onde desenvolve feiras do livro, exposições de pintura, escultura, serigrafia, desenho, além de diversos espectáculos de música e dança. Ao todo, o espaço permitiu a realização de mais de 400 espectáculos, tornando-se o centro cultural da Covilhã. Em 1981, realizou pela primeira vez o Ciclo de Teatro de Outono, que se prolongou durante dez anos consecutivos e por onde passaram muitas companhias profissionais portuguesas. Só em 1994 passou a Companhia profissional mas para trás ficaram

espectáculos de António Aleixo, Tankred Dorst, Ângelo Beolco, Aristófanes, Fernando Dacosta, Gil Vicente, Antoine Saint-Exupéry, Fernando Paulouro Neves, António Gedeão, Anton Tchekov, entre tantos outros. Em 1996 foi retomada a organização do Festival de Teatro então denominado Festival de Teatro da Covilhã. Em Janeiro de 1998 a companhia consegue o Diploma de Utilidade Pública. Um verdadeiro projecto de descentralização da Beira Interior, mais uma vez comprovado pelo Festival de Teatro organizado este ano, com mais de duas décadas de existência, por onde passaram, entre 12 a 25 de Novembro, um total de 13 peças interpretadas por outras tantas companhias. [x]

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Alternativos de todo o mundo, uni-vos

Fotografia | Mário Raposo

O Boom Festival tem atraído, desde 1997, milhares de pessoas a Portugal. Nas margens da lagoa de Idanhaa-Nova, na Herdade do Torrão, fãs da música trance, de vários pontos do mundo, encontram-se erguendo a bandeira da defesa ambiental. Este ano, reuniram-se cerca de 20 mil pessoas, de 63 países diferentes. Já lhe chamam o «maior festival de entretenimento visionário mundial», onde reina a música, mas também actividades de meditação ou terapias orientais. Mário Raposo, senhor de uma lente humana e apaixonada, esteve lá e traz-nos a fotoreportagem deste trimestre.


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memória

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filme

Blow-Up Michelangelo Antonioni

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Vista parcial da Praça do Município da Covilhã em 1942. Igreja da Misericórdia, ainda antes do restauro da década de 40 do século passado. Posto de Turismo

curiosidade

© Arquivo Foto Cidade - Covilhã

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Filmado em 1965, Blow-Up justifica um regresso ao cinema de Michelangelo Antonioni. Lançado agora numa edição cuidada em DVD, Blow-Up conta a história de um fotógrafo de moda, numa Londres fashion. Este filme conquistou em 1996 os prémios de Melhor Filme e Melhor Realizador da National Society of Film Critics e tornou-se numa obra obrigatória e exemplar da técnica de desnorteamento e intriga paranóica. Thomas, interpretado por David Hemmings, ao revelar as fotografias inocentes que tirou a um casal no parque (a mulher misteriosa é Vanessa Redgrave), apercebe-se de um assassínio em curso. Thomas faz várias ampliações e descobre numa delas algo que se assemelha a um tiro e um corpo por detrás de um arbusto. Nessa mesma noite, regressa ao jardim e confirma a presença do cadáver, mas as fotografias desapareceram do seu estúdio. No jogo entre o acaso e as evidências, as fronteiras entre o real e a ficção tornam-se cada vez mais permeáveis. O jogo da ampliação fotográfica esconde um mistério e uma história que desperta no espectador a vontade de a designar quase como uma não-história, mas tão estranhamente apaixonante como outras obras de Antonioni como Profissão: Repórter. Mais uma vez, a deambulação é uma das características deste cinema e os cenários são meros espelhos da condição das personagens. Uma Londres do final dos anos sessenta, com o seu amor livre, as modas , as paixões, as festas e a música (a banda sonora é da autoria de Herbie Hancock, e podemos mesmo ouvir os lendários Yardbirds em alguns momentos), onde uma estrada nunca tem fim e uma viagem é sempre sem destino.

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livro

MONA LISA

SHALIMAR, O PALHAÇO

Uma das maiores obras-primas da pintura de todos os tempos, Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, foi um dos primeiros retratos da história da arte ocidental a incluir as mãos do modelo. Até então, os retratos mostravam as mulheres apenas do busto para cima. Mona Lisa (também conhecida como La Gioconda ou, em francês, La Joconde é um dos quadros mais questionados, valiosos, elogiados ou reproduzidos. Leonardo começou o retrato em 1503 e terminou-o três ou quatro anos mais tarde. A pintura a óleo sobre madeira de álamo encontra-se exposta agora no Museu do Louvre, em Paris, e é a maior atracção do museu. O sorriso contido da Mona Lisa, obra-prima da pintura universal de todos os tempos, é um enigma. Várias hipóteses foram levantadas para explicá-lo, desde a tristeza de mãe pela perda do filho pequeno até a uma dor de dentes. Muitos historiadores da arte acreditam que o modelo usado para a pintura pode ter sido a esposa de Francesco del Giocondo, um rico comerciante de seda de Florença e uma figura proeminente no governo florentino. Mas, recentemente, há mesmo quem defenda que a Mona Lisa seja um auto-retrato de Leonardo, porém, vestido de mulher. Esta teoria baseia-se no estudo da análise digital das características faciais do rosto de Leonardo e os traços do modelo que coincidem de forma quase perfeita.

de Salman Rushdie Editora Dom Quixote, 2006 Los Angeles, 1993. Este romance tem início quando Max Ophuls, um ex-embaixador dos Estados Unidos na Índia e líder do antiterrorismo americano é assassinado pelo seu motorista, um muçulmano conhecido como Shalimar, o Palhaço. O que à primeira vista parece ser um crime é afinal um caso passional. A França ocupada pelos nazis, o Paquistão, mais precisamente Caxemira e, sobretudo, os radicalismos islâmicos servem de pano de fundo a esta tão aguardada obra de Salman Rushdie. Uma história onde o cruzamento das paixões, o amor, a traição ou o terrorismo exprime bem as controvérsias do nosso tempo. Diríamos mesmo, uma intriga de carácter quase épico que tem lugar num mundo onde as fronteiras são cada vez mais permeáveis, nomeadamente entre o Ocidente e o Oriente e as etnias se confundem. PUB




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