Revista CULT (parcial) edição 133

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ANO 12

r$ 9,90

www.revistacult.com.br

DOSSIÊ

O feminismo no pensamento do século 20 ARTIGO

A política cultural de Obama

ENTREVISTA EXCLUSIVA

Marilena Chaui

“É preciso dar um basta à tentativa de caracterizar o presidente como populista” A filósofa discute a crise, o governo Lula e a educação


EDiTOriAL MULHErES O dossiê desta edição, organizado pela filósofa e colunista de CULT Marcia Tiburi, apresenta cinco textos que discutem as perspectivas e contribuições que o feminino trouxe para o pensamento do século 20. O dossiê não esgota o assunto, que é profundo, mas abre a discussão. Para começar, o que é o feminismo? Filósofos como Platão e Kant, por exemplo, discursaram contra as mulheres e foram acompanhados por muitos outros e de várias gerações. Para as mulheres, tudo é mais difícil naturalmente por uma questão de gênero ou as dificuldades foram produzidas, impostas, ao longo dos séculos? “Os direitos das mulheres também são direitos humanos”, disse a sábia Clara Zetkin, levantando a sua bandeira. Sim, existe preconceito, mas vejam o que foi conquistado. A mulher que está na capa desta edição é uma das mais admiráveis personalidades do país. A professora Marilena Chaui é a pensadora que ajudou a difundir a filosofia no Brasil e tem uma participação definitiva sobre os rumos da cultura e da política. Dedicou-se à pesquisa acadêmica voltada à filosofia de Espinosa e de Merleau-Ponty, conquistou o reconhecimento internacional como poucos intelectuais brasileiros. Criou dois filhos, Luciana, psicóloga, e José Guilherme, médico e pesquisador em fisiologia. É vigorosa, divertida, exuberante. Marilena nos recebeu em São Paulo, onde vive com o marido em uma casa confortável e bem organizada, inclusive nos detalhes, com coleções de caixas e muitas plantas e árvores, no dia 20 de janeiro. Assistimos juntos, ao vivo, pela TV, à cerimônia da posse de Barack Obama. Ela fez e serviu café. Delicadamente. Na entrevista, Marilena conta que “foi muito difícil e, talvez, mais difícil para meus filhos, que nasceram quando eu tinha 24 e 26 anos e estava iniciando minha vida acadêmica numa instituição que praticamente desconhecia a presença de mulheres e impunha espontaneamente um padrão de atividade sem dupla jornada de trabalho”. As fotos que ilustram a entrevista fazem parte de seu álbum de família. Uma bela família. Uma vida exemplar. Boa leitura, Daysi bregantini daysi@revistacult.com.br

Diretora e editora responsável – Daysi M. Bregantini Diretor de redação – Marcos Fonseca Editor – Eduardo Socha Editor assistente – Wilker Sousa Repórter – Daniel Marques Revisor – Jorge Cotrin Imagem de capa – Marco Hovnanian Departamento de arte: Editor de arte – Fábio Guerreiro Colaborador – rL Markossa Departamento financeiro – Ana Lúcia P. Silva financeiro@editorabregantini.com.br Departamento administrativo – Dejair Bregantino Assinaturas – Tel.: (11) 3385 3385 assinecult@editorabregantini.com.br Relações públicas – Flávia Moreira eventos@revistacult.com.br Assessoria de imprensa – Andréa Simões andrea@attachee.com.br Publicidade em São Paulo: Gilberto r. rala (executivo de negócios) gilberto@editorabregantini.com.br Júlia Farina (executiva de negócios) juliafarina@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Publicidade em brasília: Front Comunicação – Pedro Abelha pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321-9100 Gráfica – Parma Distribuição exclusiva no brasil (bancas) – Fernando Chinaglia CULt – REVIStA bRASILEIRA DE CULtURA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar Paraíso – São Paulo – SP – CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 – Fax: (11) 3385 3386 CULt ON LINE www.revistacult.com.br Matérias e sugestões de pauta: redacao@revistacult.com.br Espaço Revista CULt espacocult@revistacult.com.br

iSSN 1414707-6 – Nº 133 – MArÇO/2009 – ANO 12



ÍNDiCE

N O 133 MArÇO 2009

16 ENTrEViSTA Marilena Chaui

LiVrOS Marco Hovnanian

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DO LEiTOr

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LiTErATUrA

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CrÍTiCA Coletânea de contos de Tony Monti revela projeto literário em formação

FiLOSOFiA Marcia Tiburi questiona a sobrecarga de significados que a palavra “arte” sofreu ao longo da história

Escrito ao longo de dez anos, Trabalhar cansa, de Cesare Pavese, simboliza a modernização da literatura italiana

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LiVrOS O inédito Wagner em Bayreuth, de Friedrich Nietzsche, e a nova tradução de Minima moralia, de Theodor Adorno

ENTrEViSTA Marilena Chaui: a paciência do pensamento

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MÚSiCA Norman Lebrecht: apesar da crise econômica atual, o governo dos Estados Unidos promete uma verdadeira revolução nas artes

CULTUrA EM MOViMENTO Estreia nos cinemas Palavra (en)cantada, novo documentário de Helena Solberg

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Wagner em Bayreuth, de Friedrich Nietzsche

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COLUNA Para Francisco Bosco, reportagem sobre o caso robinho é cínica e repleta de deturpações morais

Reprodução

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Reprodução

Arquivo pessoal

COLABOrADOrES Ivone Gebara, doutora em Ciências religiosas pela Universidade Católica de Louvain. É autora de O que é teologia feminista?, (Brasiliense, 2007), O que é teologia? (Brasiliense, 2006), entre outros

Marcia tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (record, 2008), entre outros

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Unifesp. É autor de Cinco prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche (Tessitura Editora, 2008)

DOSSiÊ

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Magda Guadalupe dos Santos, professora de Filosofia da PUC-MG. É autora de Margens da alteridade feminina na obra de Simone de Beauvoir Beauvoir, do livro Psicologia e ciência na PUC-MG (Ed. PUC Minas, 2004) Arquivo pessoal

Feminismo e filosofia no século 20

Márcia Arán, psicanalista, professora do instituto de Medicina Social da Uerj. É autora de O Avesso do Avesso: feminilidade e novas formas de subjetivação (Garamond, 2006)

Francisco bosco, ensaísta e escritor. È colunista da revista CULT e autor de

CiNEMA

Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros

Ricardo Lísias, escritor e crítico literário. É autor de Duas praças (Globo, 2005) e Anna O e outras novelas (Globo, 2007)

DOSSiÊ Feminismo e filosofia no século 20 por Marcia Tiburi

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teologia, feminismo e filosofia por Ivone Gebara

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Psicanálise e feminismo por Márcia Arán

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beauvoir e os paradoxos do feminino por Magda Guadalupe dos Santos

É autor de Deus (Globo, 2008), entre outros

Sérgio Rizzo, jornalista, crítico de cinema e professor da Universidade Mackenzie e da Faap

Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, ObrasPrimas & Loucura (record, 2008)

Josadac bezerra dos Santos, professor de

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OFiCiNA LiTErÁriA

Ciências Sociais da UFS. É autor da tese de doutorado Conflito e novas identidades: Feminismo, aborto, homossexualidade e eutanásia (2006)

Arquivo pessoal

Chantal Mouffe e a filosofia política por Josadac Bezerra dos Santos

Juvenal Savian Filho, professor do departamento de Filosofia da Unifesp/EPM.

Arquivo pessoal

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Murat Eyuboglu

A obra do diretor francês Laurent Cantet traz o diagnóstico agudo das crises do mundo contemporâneo

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Bel Pedrosa

henry burnett, músico e professor de Filosofia da


do leitor EDIÇÃO 132 – DOSSIÊ Achei interessante o artigo “Tolstói: a literatura que não é literatura”. A atitude do escritor em questionar os modelos ocidentais reflete o grande pensador que era. Oliveira Simões, pelo site

Lamento não ter sido citada a obra-prima de Tolstói – A morte de Ivan Ilitch – que me parece (e a muitos críticos literários) a mais concisa e impactante obra do autor, especialmente no que tange o tão estigmatizado tema, a morte. Nessa obra, podemos notar seu distanciamento de Deus e sua impiedosa análise da miséria da condição humana. Ivan Brasil, pelo site

COLUNA NORMAN Lebrecht A tarefa atual de Linz é justificar ao mundo o porquê de ter sido escolhida a capital da cultura de 2009. Só nos resta agora ter maturidade para apreciar as maravilhas que a cidade tem a oferecê-lo. Caio Vianna, pelo site Gostei da coluna, contudo entendo que não há melhor data para livrar Linz do espectro de Hitler. As datas significativas são as mais adequadas para purgar o passado. Aliás, a (bela) cidade não tem culpa; sofre, porém, as consequências do fato.

Acompanho a revista desde que comprei a edição com o dossiê sobre o pensamento Max Weber (CULT 125), e não parei mais de ler. Parabéns pelo dossiê “Literatura russa no século 19”. Os quatro principais ícones dessa escola estão muito bem apresentados. A entrevista com Bruno Latour também ficou excelente, ele é um pensador bastante original. Lorenço Gonzaga Alves, por e-mail

O dossiê “Literatura russa no século 19” é excelente e os colaboradores foram escolhidos a dedo. Ensino literatura russa e fiquei surpreso com a qualidade dos textos. Pedro Zino, pelo site

Coluna Francisco Bosco Escrevo para expressar meu desagrado à última coluna de Norman Lebrecht. Pude notar um profundo ressentimento, e até ódio, que o autor tem pelo povo germânico, expressados com informações errôneas e sarcasmos pueris. O autor, não conformado por outra cidade inglesa não ter sido a escolhida como capital cultural da Europa, busca denegrir e passar uma imagem distorcida da cidade de Linz aos leitores brasileiros da revista, tentando vincular uma cidade e toda sua população a uma ideologia política da primeira metade do século 20.

Gostei muito da coluna “Ser provinciano é...”, de Francisco Bosco, porque sempre considerei uma atitude de colonizado colocar nomes de lojas, restaurantes etc. em in­­glês. Usar o inglês para palavras que temos em português pode parecer chique para quem o faz, mas eu considero isso um enorme provincianismo. Rosely Gomes Costa, por e-mail

Thiago Coelho Fontenele, por e-mail

Leandro Rodrigues, pelo site

As cartas devem ser encaminhadas para o e-mail cartas@revistacult.com.br o­ u para o endereço: Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar – Paraíso – São Paulo – SP – CEP 01533-070 Por motivos de espaço, reservamo-nos o direito de publicar parcialmente ou resumir o conteúdo dos comentários e das cartas enviadas à redação

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do leitor EDIÇão ESPECIAL – Escola de Frankfurt

Sorte minha e dos outros leitores. O difícil tema “Walter Benjamin e a tarefa da crítica”, presente na Edição Especial Escola de Frankfurt, foi trabalhado de forma concisa e intensa. Parabéns ao professor Márcio Seligmann-Silva. Silvio Medeiros, pelo site

Cumprimento a revista pela excelente Edição Especial – Escola de Frankfurt, especialmente o ótimo artigo “Quando a música pensa”, de Eduardo Socha, tratando do projeto estético-musical de Theodor W. Adorno. Todavia, gostaria de fazer dois reparos. Como doutoranda, preparando tese sobre a Escola de Frankfurt, senti a ausência de quatro autores nacionais, com trabalhos relevantes: Francisco Antônio Dória, Sérgio Paulo Rouanet, João da Penha e Vamireh Chacon. O segundo reparo diz respeito à falta de um artigo sobre o papel pioneiro do falecido pensador José Guilherme Merquior, divulgando o ideário dos frankfurtianos entre nós há exatamente 40 anos. Mariana Capparelli de A. Passos, por e-mail

TESTE CULT – Edição 132 Os seguintes participantes do teste da edição anterior receberão um exemplar do livro A morte de Ivan Ilitch (Editora 34), de Liev Tolstói. Os vencedores têm até 30 dias para retirar o livro na sede da revista (Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar, Paraíso, São Paulo/SP), de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. - Bruna Lasevicius Carreira - Erika Horigoshi - Erika Siqueira Gomes - Lucas Andrade - Lucius Provase - Luis Miguel Zanin - Paulo Victor Nascimento Berti - Regina Brandão - Sabrina Jacques - Vinebaldo Aleixo de Souza Filho


ENTrEViSTA

MAriLENA CHAUi

A paciência do pensamento A filósofa mais importante do país discute a crise financeira, a popularidade do governo Lula, e afirma a centralidade do ensino da história da filosofia nas escolas JUVENAL SAVIAN FILHO E EDUARDO SOCHA

R

efrear, neste caso, uma declaração talvez mais entusiasmada seria um gesto insensato: Marilena Chaui é, sob vários aspectos, uma das personalidades mais admiráveis do país. Pois não basta dizer que sua trajetória como educadora se confunde com a própria difusão da filosofia universitária no Brasil. Essa constatação, evidente quando se observa a formação de nossos departamentos de filosofia, deriva de apenas uma das linhas de atuação da pensadora. Sua ativa participação nas discussões sobre os rumos da educação brasileira atestam a continuidade do engajamento, que vai além dos muros universitários da FFLCH-USP, onde leciona há 40 anos. Comprovando que também é possível romper com a elitização do ensino de filosofia sem abandonar o rigor que caracteriza a verdadeira atitude filosófica, seu livro Convite à filosofia tornou-se uma introdução surpreendente ao filosofar e referência praticamente obrigatória para o ensino médio. Em razão de sua militância no campo político-partidário – outra linha de atuação –, seu nome hoje integra o panteão dos intelectuais que forneceram as coordenadas teóricas para a consolidação da democracia em nossa história política recente. Membro fundador do PT, teve experiência no Poder Executivo como secretária de Cultura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina; experiência esta que, segundo a própria filósofa, requisitava um jogo de cintura incompatível com o princípio de autonomia da atividade intelectual, esta sim sua vocação declarada. Distante do Executivo, não deixou porém de atuar como conselheira e porta-voz dos ideais emancipatórios e democráticos dos diversos movimentos de esquerda. Como se não bastasse, sua pesquisa acadêmica, voltada à filosofia de Espinosa e de Merleau-Ponty, marcada pela interpretação austera dos textos, pelo respeito filológico ao “espírito de letra” dos pensadores, conquistou o reconhecimento nacional e internacional. Distinções como a Ordre des Palmes Académiques, conferida pela

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Presidência da República francesa (1992), e os dois títulos de doutorado honoris causa, um pela Universidade de Paris 8 (2003), outro pela Universidade de Córdoba (2004), são exemplos que por si testemunham o alcance notável de sua produção. Sim, claro, existem os críticos de seu trabalho. Mas, infelizmente, poucos merecem ser ouvidos ou lidos. Dizemos infelizmente, porque o primitivismo e a esterilidade de grande parte dessa crítica confirmam a precariedade intelectual de nossos debates, de nosso atual estado de coisas. A tais críticas, que tão logo expoem suas fissuras de raciocínio, caberia apenas o riso da indulgência não fosse o espaço midiático que ocupam, não fosse a agressividade de suas manifestações, o preconceito, o ressentimento e o desvirtuamento rasteiro; as atitudes lamentáveis que afinal determinam o modus operandi de uma parcela da direita brasileira. Na entrega do honoris causa pela Universidade de Paris, disseram: “Para alguns, a filosofia é uma carreira universitária. Para outros, mais raros, ela é um combate. Era, certamente, o caso de Espinosa. E é também, sem dúvida, o de Marilena Chaui”. Talvez isso explique a resistência e a polivalência da pensadora em um país com tantas adversidades. Talvez isso justifique também o espírito enérgico pelo qual manifesta suas convicções na educação, na política, em sua pesquisa acadêmica. Mas o segredo maior parece ser o apreço pelo tempo necessário à reflexão. Na mesma cerimônia, Claude Lefort lembrou que a eloquência e a rapidez de sua inteligência não ocultam paradoxalmente o traço que melhor caracteriza a filósofa: a paciência do pensamento. Marilena prepara atualmente o segundo volume de A nervura do real, continuação de sua obra sobre política em Espinosa. Nesta entrevista, concedida à CULT, a filósofa fala sobre a atual crise financeira, a popularidade do governo Lula, a inclusão da filosofia no ensino médio e também sobre sua trajetória de vida.


ENTrEViSTA

MAriLENA CHAUi

Marco Hovnanian

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LITERATURA

CRÍTICA

O absurdo como detalhe doméstico Contos de Tony Monti revelam um projeto literário vigoroso em formação Ricardo Lísias

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Reposição do absurdo O absurdo percorre também muitos dos contos, mas desta vez aparece reatualizado. A propósito, parece-me que um dos maiores ganhos de eXato acidente, em termos literários, é justamente a reposição desse conceito, observado como um elemento básico da paisagem. O absurdo de Tony Monti é parte de um cotidiano espantosamente natural. Uma das melhores mostras disso está no muito bem feito “O atentado ”. O conto se estrutura por meio da divertida acumulação de siglas. A realidade é totalmente distinta da nossa, muito próxima dos textos de ficção científica, mas as siglas vão se aproximando das do cotidiano, até que o absurdo deixa de ser um elemento de espanto, e aparece como trivial. A APEC, a LimP, a UnE e um inspiradíssimo PdF torna tudo muito íntimo e, se não mesquinho, banal. Patrícia Batilani

coletânea de contos eXato acidente mostra que Tony Monti está atingindo a maturidade literária. São 16 histórias de tamanhos e estilos variados, com elementos recorrentes notáveis, o que indica a presença de um projeto literário refletido e consequente. A arquitetura cuidadosa, o trabalho medido e bem pesado e as questões sempre envoltas pela tensão que caracteriza nossa época, nervosa e violenta, demonstram que estamos de fato diante de uma literatura vigorosa em formação. Quase todos os contos tratam da classe média pretensamente ilustrada, e muitos deles se passam em um dos cenários urbanos privilegiados desse estrato: a capital paulista. Mesmo que na maior parte das vezes apareça apenas aludida, é na cidade de São Paulo que se concentram, por exemplo, os pseudointelectuais atrás de um filme de arte, uma das figuras mais bem retratadas pelo livro. O autor demonstra que por trás da postura esclarecida, levemente superior e autoconfiante, estão muita solidão, certa dificuldade para entender os próprios hormônios e uma carga bastante elevada de frivolidade. A melancolia percorre o livro e às vezes se manifesta em um erotismo desavisado e deslocado, como no improvável estudante que, enquanto observa a namorada nua e sonolenta, redige uma crítica a um filme alternativo e vai se sentindo, aos poucos, como se estivesse testemunhando a própria nouvelle vague - em Paris, é claro. Diverte muito ver os paulistanos ilustrados na rua Augusta, descoladíssimos, na fila do novo filme elegante, achando-se propriamente na capital francesa. Parte das personagens de Tony Monti pode ser encontrada nesse ambiente. É difícil saber, aliás, por que o público do circuito alternativo de cinema de São Paulo, representativo da superficialidade de nosso tempo, nunca apareceu na literatura. É provável que a resposta deva conter um argumento meio constrangedor: é esse mesmo público que não apenas consome a literatura contemporânea como, mesmo que adore falar de bandidos e marginais, também a produz.

Tony Monti: consciência dos problemas da técnica literária


LITERATURA Outros elementos recorrentes são o jogo de xadrez – sua ordenação na verdade alucinada – e sobretudo os animais. Tigres e outros felinos servem para denunciar uma evidente filiação literária de Tony Monti, mas vão além: de novo, trata-se de um recurso para mostrar que o absurdo é só um detalhe doméstico. Todos os textos são muito bem-acabados, mas há uma pequena novela extraordinária: “Errabundos, um roteiro em ficha corrida”. Trata-se, sem dúvida, de uma das melhores ficcionalizações da violência urbana brasileira. Dado que quase todos os escritores contemporâneos tentaram o mesmo, habitualmente naufragando em clichês inacreditáveis, o ganho de Tony Monti é dobrado. O texto se refere aos atentados que há poucos anos pararam por um dia a cidade de São Paulo. São fragmentos descolados, pouco precisos e muito tensos, em que se unem a corrupção policial, o crime organizado e fatores da psicologia humana. Tudo construído com muito acerto na escolha vocabular e em uma arquitetura formal rara. De fato, essa novela é uma pequena jóia em meio não apenas à literatura, mas aos rios de palavras que tentaram compreender os atentados da facção criminosa PCC.

CRÍTICA

eXato acidente parece ser mais um argumento para comprovar que a literatura brasileira está finalmente saindo do fundo do poço onde se enfiou nos últimos anos. Já é possível perceber, aqui e ali, com certa timidez e poucos textos, um conjunto mais coeso de obras bem-acabadas quanto à técnica, conscientes dos problemas relacionados tanto ao próprio trabalho literário quanto à sociedade contemporânea. Ou, para ser preciso: conscientes da noção de que ambos não se diferenciam. O começo está sendo melhor que o esperado. eXato acidente Tony Monti Hedra 94 págs. R$ 20

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cinemA

Divulgação

ArTiGo

Cena do filme Entre os muros da escola

tam os alunos, todos usando seus nomes verdadeiros, faz o espectador acreditar que havia câmeras ocultas dentro da sala de aula e em outros ambientes da escola. Entre os muros da escola já se configura – tanto pelos métodos de realização semidocumentais quanto pelo diagnóstico da escola como instituição em crise profunda – como um dos grandes fi lmes em torno da relação ensino-aprendizagem e da responsabilidade social que se atribui ao trabalho dos educadores. Duas perguntas-chave ocupam o pano de fundo o tempo todo, embora ninguém as verbalize: por que estudar e por que ensinar em uma sociedade dividida entre poucos “vencedores” (aqueles para os quais haverá fartura material) e muitos “perdedores” (aqueles compelidos a buscar apenas táticas imediatistas de sobrevivência)? Qual o sentido de transmitir valores libertários, produzir conhecimento e desenvolver a cidadania, expressões-chave do processo educacional, em um meio social que oferece mensagens contraditórias sobre a importância de val-

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ores libertários, conhecimento e cidadania? A rigor, há uma personagem, ao fi nal, que verbaliza, sim, o sentimento jovem de não enxergar o significado do que ocorre cotidianamente “entre os muros da escola”, sobretudo para os fi lhos de imigrantes que ocupam as carteiras da sala de aula recriada por Cantet e Bégaudeau. É um momento duro para o professor, que ouve no último dia de aula uma declaração expressa de seu fracasso e da escola como instituição; é também um momento difícil para a aluna, que supera o constrangimento de se expor diante do mestre (e, por tabela, da instituição) ao admitir um “pecado”; e, por fi m, é um diálogo devastador para o público, ao menos para a parcela que identifica, na escola do fi lme, a incapacidade de as gerações mais velhas proporcionarem às mais jovens perspectivas razoáveis de futuro. A particularidade dessa instituição em crise está em ser ao mesmo tempo vítima e artífice do estado de coisas. Veja o trailer no site

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[DOSSIÊ]

Feminismo no PensAmenTo do século 20

M

arço é considerado oficialmente pela ONU – não custa lembrar – o mês das mulheres e da luta pela igualdade dos direitos. No dossiê desta edição, organizado pela filósofa e professora Marcia Tiburi, apresentamos cinco textos que, longe de esgotar o assunto, discutem algumas das perspectivas e contribuições que o feminismo trouxe para o pensamento no século 20. No texto introdutório, Marcia Tiburi explica as origens iluministas do feminismo e a dispersão de suas diversas correntes na filosofia contemporânea. Ivone Gerbara mostra as bases da teologia feminista, movimento crítico à face masculinizada que perpassa a história da divinização e, ao mesmo tempo, movimento propositivo em favor da dignidade feminina. Márcia Arán parte de duas passagens da história da psicanálise para ilustrar o debate sobre o recalcamento do feminino na teoria psicanalítica. Magda Guadalupe dos Santos escreve sobre os paradoxos da concepção do feminino, historicamente visto como o Outro por oposição ao Absoluto, de acordo com a visão de uma das mais notórias feministas do pensamento moderno: Simone de Beauvoir. Por fim, Josadac Bezerra expõe os traços essenciais da teoria política de Chantal Mouffe, filósofa contemporânea que reconfigura o conceito tradicional de identidade e dá força teórica não apenas ao movimento feminista, mas à articulação conjunta das diversas manifestações de emancipação política.

Índice do

dossiê

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FEMINISMO E FILOSOFIA NO SÉCULO 20 As bases de um problema atual

Marcia Tiburi

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TEOLOGIA, FEMINISMO E FILOSOFIA A teologia feminista é parte de uma revolução cultural que ainda está em seus primeiros passos Ivone Gebara


Acervo Iconographia

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Esposas e mães emocionadas na volta dos pracinhas da FEB ao Brasil, em 1945

PSICANÁLISE E FEMINISMO o feminino como potência crítica às estruturas hegemônicas Márcia Arán

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BEAUVOIR E OS PARADOXOS DO FEMININO A ruptura com a neutralidade da tradição metafísica Magda Guadalupe dos Santos

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CHANTAL MOUFFE E A FILOSOFIA POLÍTICA os conceitos de identidade, política, democracia radical para uma interpretação do feminismo Josadac Bezerra dos Santos


dossiê

Feminismo no século 20

Feminismo e filosofia no século 20 As bases de um problema atual MarCIa tIburI

O feminismo em fase de autojustificação Assim como é preciso ponderar a condição da fi losofia pós-psicanálise e pós-Auschwitz, a fi losofia após a queda do muro no século em que a civilização encontrou de vez a barbárie, é preciso, do mesmo modo, perguntar sobre a existência de uma fi losofia pós-feminismo. Não é possível entender as

Reprodução

Frontispício do documento de reivindicação dos direitos da mulher, escrito por Mary Wollstonecraft, 1792

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transformações da fi losofia no século passado, cujos efeitos ressoam sobre o nascimento do século 21, sem levar em conta o que nele floresceu como feminismo afetando até hoje a construção do pensamento, da história cultural e do cotidiano de homens e mulheres. Não é possível deixar de perguntar se o feminismo afetou a fi losofia ou se o feminismo é um efeito da fi losofia. Que haja um feminismo fi losófico a ser analisado como material para uma história da filosofia não é mais importante do que entender o que ainda pode ser tratado como fi losofia após a crise da razão para o qual o feminismo contribui em grande medida ainda hoje. Como qualquer movimento revolucionário tanto da teoria quanto da prática, o feminismo causa incômodo. Compreendêlo é uma tarefa do nosso tempo, quando seu alcance prático ainda gera efeitos também teóricos. Hoje não podemos mais falar de um feminismo, mas de diversas correntes, posições e autores que ajudaram a levar adiante a causa feminista, inclusive pondo-a em xeque e defi nindo um rumo ainda mais crítico para o pensamento dos nossos dias. Filosofia, feminismo e modernidade Diz-se feminismo para todas as correntes de pensamento que se ocuparam dos direitos das mulheres e que surgiram, sobretudo,


Feminismo no século 20

Acervo Arquivo Geral da Cidade do Io de Janeiro/Augusto Malta

dossiê

A líder feminista Bertha Lutz, candidata a deputada no Rio de Janeiro, em 1934 n°133

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oficina literária Trecho de carta enviada à CULT por Luis Antonio Lisboa Marcondes “Mais uma vez estou eu aqui lhes escrevendo, mas dessa vez de uma forma diferente. Não sei se vão se lembrar de mim. Nos anos de 2006 e 2007 eu escrevi muito a essa revista. Eu estava cumprindo pena em uma penitenciária de segurança máxima, em Sorocaba, e lá dentro comecei a escrever alguns poemas e textos, que editei em livro, ainda não publicado. Também em 2007, fui o único presidiário a participar de uma coletânea internacional ‘’Roda Mundo’’. Uma pessoa da revista Cult respondia minhas cartas e até me mandava alguns exemplares, numa gentileza sem igual em se tratando de um presidiário. Foi uma grande surpresa para mim ser tratado daquela maneira. Estou em liberdade há pouco mais de um ano. Estou enviando um texto e, quem sabe, vocês possam publicá-lo. Agradeço a vocês pelos dias em que recebi os exemplares da revista dentro da penitenciária. Eles me foram de grande valia naquele lugar; me ajudaram a me sentir gente novamente.”

O trecho abaixo pertence ao romance Brasil: O país da pena de morte, que Luis Antonio pretende publicar:

O sistema não reeduca ninguém, isso eu provo. Pelo contrario, só alimenta o ódio todos os dias; estive a ponto de enlouquecer, mas a minha loucura se transformou em alívio para a minha alma e, por isso, sobrevivi. Teve dias em que a morte estava tão perto da minha carne, que sentia o seu hálito me assoprar a face... Quando todos pensavam que eu estava louco, era aí que eu estava mais lúcido do que nunca. Consegui enganar os inimigos dessa maneira, me fingindo de louco. A minha loucura foi a minha salvação. A loucura, aos olhos dos homens de pouco entendimento, foi a minha libertação dentro do cárcere. Quando todos achavam que eu estava maluco, foi nesse exato momento que eu me achei e sobrevivi dentro desse inferno. Estava lúcido e mais acordado do que nunca. Andei sobre cadáveres, pisei sobre sombras, dividi espaço junto aos fantasmas, me alimentei na mesma vasilha dos insetos. Foi eu quem carregou loucos nos braços e falou com os espíritos imundos; fui a muleta de aleijados; ouvidos de surdos e olhos de alguns cegos, fui pai e fui filho. Derrubei lágrimas, mas também tive o meu momento de sorriso. Fui professor e fui aluno, chorei muito. Guardei dentro do meu peito um grito durante anos, grito esse que hoje posso dar sem medo de ser sufocado por uma mão imunda. Quero poder encher meus pulmões de ar e explodir num só cântico e cantar bem alto: Obrigado Deus; estou livre...

Luis Antonio Lisboa Marcondes, 39 anos, é casado e pai de quatro filhos. Atualmente é dono de uma lanchonete em Tamarana, Paraná. Começou a consumir drogas aos 13 anos de idade. Cometeu crimes, cumpriu pena e agora deseja reconstruir sua vida.

A Oficina Literária é uma seção exclusivamente voltada para a publicação de inéditos. Os interessados em publicar seus textos – que serão avaliados pela equipe da revista e não devolvidos – devem enviar seus originais pelo e-mail: oficinaliteraria@revistacult.­com.br ou pelo correio para: Revista Cult – Oficina Literária, Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar – Paraíso – São Paulo, SP – CEP: 01533-070. Os textos devem ser encaminhados inseridos no corpo da mensagem e não anexados. O tamanho não pode ultrapassar três mil caracteres com espaço. O envio de qualquer trabalho para a Oficina Literária implica o reconhecimento do direito não-exclusivo de reprodução da obra pela revista. A autoria e o conteúdo dos textos são de responsabilidade única e exclusiva do participante, devendo ele observar a legislação autoral vigente. Ao encaminhar o trabalho, os interessados devem fornecer os seguintes dados: nome completo, endereço, telefone para contato e e-mail. A Editora Bregantini, ao receber os inéditos, está autorizada pelos autores a publicar o material, de forma integral ou resumida, na Cult ou no site da revista.

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COM A PARTICIPAÇÃO DOS PRINCIPAIS NOMES DO JORNALISMO CULTURAL E DAS CIÊNCIAS HUMANAS

4 a 8 de maio de 2009 das 10h às 17h Local: TUCA

Teatro da Universidade Católica de São Paulo Rua Monte Alegre, 1024 - São Paulo - SP

TEMAS:

O JORNALISMO CULTURAL

A CULTURA NA FORMAÇÃO DO HOMEM

A PAUTA DAS CIÊNCIAS HUMANAS NA UNIVERSIDADE E NA MÍDIA

CINEMA

LITERATURA REPORTAGEM E EDIÇÃO

CULTURA, IMPERIALISMO E GLOBALIZAÇÃO: OS MECANISMOS DE DOMINAÇÃO TECNOLÓGICA

O QUE É A CULTURA E COMO ELA PODE NOS SALVAR DA BARBÁRIE

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