O Escrevinhador Quadridimensional

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O ESCREVINHADOR QUADRIDIMENSIONAL

Graph Waldeyer, traduzido por Renato Pincelli Hypercubic Books 2012


O Escrevinhador Quadridimensional Graph Waldeyer

—V

OCÊ ACREDITA,

Professor Gault, que esse plano quadridimensional tenha vida... inteligente? Ao ouvir a questão, Gault soltou um risinho breve. — Você deve andar lendo muita pseudociência, Dr. Pillbot — sussurrou ele. — Eu até entendo que, como psiquiatra, você esteja mais interessado em mentes, em seres vivos do que em planos dimensionais. Mas eu sinto informá-lo de que você não encontrará mentes para estudar na quarta dimensão. Pois não há nenhuma lá! O Professor Gault fez uma pausa e revistou o laboratório com suas espessas sobrancelhas brancas. Aos seus olhos hipermétropes, a imagem borrada de Harper, seu jovem assistente, parecia ocupada trabalhando em suas tabelas matemáticas. Malhumorado, Gault esperava que seu jovem estivesse realmente trabalhando e não apenas desenhando mais dos seus rabiscos absurdos em meio aos cálculos matemáticos. O Dr. Pillbot interrompeu-lhe os pensamentos: — Sua prova é puramente negativa, Professor! Como pode você saber que não há seres na quarta dimensão, a não ser que realmente entre nesse domínio para ver por si mesmo? O Professor Gault fitou a face gorda e balofa de seu visitante, e disse, bufando: — Eu temo, Pillbot, que você não seja capaz de compreender a impossibilidade de tal transporte. Não é possível para nós superar os limites de nosso mundo de três dimensões. Aqui, permita-me explicar através de uma simples ilustração. Gault tomou um livro e suspendeu-o de modo que a sua sombra caísse sobre a superfície da mesa. — Aquela sombra — explicou — é bidimensional: tem comprimento e largura, mas não tem nenhuma espessura. Agora, para que pudesse entrar na terceira dimensão, em nosso plano, a sombra precisaria “elevar-se” de algum modo até a dimensão da espessura, o que é uma impossibilidade óbvia. Do mesmo modo, nós não podemos entrar na quarta dimensão. Está entendido? — Não! — replicou Pillbot, com alguma irritação. — Em primeiro lugar, nós não somos sombras de duas dimensões e... ei, o que foi aquilo? A forma esguia do Professor Gault enrijeceu-se. Seus olhos de vista curta estavam fixos no laboratório atrás de Pillbot. O psiquiatra virou-se, seguindo o olhar de seu anfitrião. Era Harper. A careta na face do jovem arrancou um gemido de surpresa de Pillbot. Ele descrevia movimentos peculiares no ar com seu lápis. Círculos, espirais, ângulos e súbitas estocadas no ar. Ele curvou-se sobre o papel na escrivaninha, fez uns poucos balanços com o lápis e depois se levantou, riscando o ar para descrever movimentos ainda mais erráticos. Harper parecia estar em transe. Subitamente, Pillbot deu um arquejo abafado. Pareceu-lhe que o braço de Harper havia desaparecido até o cotovelo enquanto ele golpeava para frente, para depois reaparecer. O fenômeno se repetiu mais uma vez.

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Pillbot piscava intermitentemente, esfregando os olhos. Deve ser uma ilusão, pensou. Era... muito... improvável... — Harper! — a voz de Gault soava como o estalido de uma armadilha de aço. Incomodado, Harper pareceu dar um arranque. Ao notar que estava sendo observado, ele corou intensamente e depois correu de volta para suas tabelas. Um murmúrio de desculpas pairou sobre sua mesa. — O que ele estava fazendo? — perguntou Pillbot, estupefato. — Escrevinhando! — respondeu Gault, praticamente cuspindo a palavra de tanto desgosto. — Escrevinhando? — repetiu o psiquiatra. — Pois esse é um termo que usamos na psiquiatria para descrever as garatujas e desenhos que muitas pessoas fazem enquanto estão com a atenção ocupada em outra coisa. É um fluxo da mente subconsciente, como dizemos. Muitas pessoas são “escrivinhadores”. Seus rabiscos são quase sempre um sinal de uma habilidade especial... — Claro! — interrompeu Gault. — São sinais de uma habilidade tremenda para a perda de tempo. E com Harper tem sido cada vez pior desde que o contratei para fazer meus trabalhos matemáticos. Alguma influência neste laboratório (sou obrigado a confessar) parece estar atuando sobre ele. Isso é o que chamamos de “Rabiscos quadridimensionais” porque, como você viu, ele não se confina à superfície do papel! Pillbot pareceu se aborrecer. — Por Júpiter! —, exclamou. — O que eu acho é que você topou com algo novo para a psiquiatria. Esse jovem pode ter alguma habilidade mental desconhecida — uma percepção instintiva da quarta dimensão. Do mesmo modo que algumas pessoas têm um senso inequívoco de direção, Harper talvez tenha um senso de... de uma quarta direção... da quarta dimensão! Eu gostaria de examinar alguns de seus “rabiscos”. Harper olhou alarmado quando seu empregador, coberto de pó, apareceu, seguido pela elevada figura de Pillbot. Ele se levantou e ficou de lado insuspeitamente, enquanto Pillbot curvava-se sob os rabiscos, pipilando de interesse. Harper lançou um olhar aborrecido para o canto. Ele esperava que ninguém notasse seu modelo de argila para análise de estresse que ali estava. Aquilo parecia um pesadelo futurista, com ângulos, curvas e nós apertados por todos os lados. O Professor Gault pode não entender...

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P

planos de se aposentar, Harper estava apostando alto. Havia um prêmio de $50.000 para o matemático sortudo que resolvesse o mistério da "barreira de estresse" encontrada quando os arranha-céus superaram a marca dos 150 andares. Àquela altura, encontraram-se tamanhas pressões e estresses que os cálculos matemáticos e os projetos dos engenheiros não conseguiram solucionar. Harper acreditava que a “barreira de estresse” devia-se a uma curvatura espacial nãodetectada, próxima da superfície da Terra, uma curvatura do espaço maior ainda que a prevista por Einstein. E, se ele estivesse certo, e ganhasse o prêmio, poderia ganhar o prêmio e haveria um casamento e um pequeno bangalô com Judith... O maior temor de Harper era cometer uma besteira que levasse Gault a demiti-lo, o que o afastaria do privilégio de ter acesso às tabelas matemáticas e às máquinas computadoras disponíveis no laboratório. Por isso mesmo, ele esperava que Gault não reparasse naquela estátua ali no canto... ARA ALGUÉM COM

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— Que coisa é aquilo? O coração de Harper deu um salto. O Professor estava mirando atentamente a estátua, como se fosse algo que entrara ali tão misteriosamente como um gato furtivo. Pillbot deu um tempo no exame dos “rabiscos” e também acompanhou Gault até a escultura futurística. Enquanto Gault emitia ruídos estranhos, Pillbot pareceu se interessar: — Como é que... que algumas de suas linhas se parecem com os seus rabiscos? — E feita com a minha melhor argila de modelagem para reprodução de sólidos geométricos! — ralhou Gault. Ele voltou-se para Harper. — Ponha essa coisa para fora daqui! Eu não vou admitir tal lixo em meu laboratório! Ponha no corredor para que o porteiro a leve! — Ss-sim, senhor, gaguejou Harper. Ele aproximou-se da estátua, tentando levantá-la. — Ela... ela não sai! —, exclamou com surpresa. — Hein? Não se mexe? Não é pesada, é? — questionou o Professor. — Não... só pesa uns quinze quilos. Mas não se move! Gault pegou na coisa por um dos ângulos e sacudiu-a violentamente. Ele desistiu com um palavrão e voltou murmurando para a mesa de Harper. De repente, Harper voltou sua atenção para o topo da estátua. Não era possível! Parecia que não estava lá! Ele tinha certeza de que havia mais uma seção no topo, saindo de um ângulo, representando um problema de estresse tangencial. O que havia acontecido com aquilo? Ele acabaria descobrindo mais tarde, quando a situação fosse mais propícia. No momento ele percebia que apenas a presença do Dr. Pillbot evitava que Gault o demitisse. Apreensivamente, observou seu empregador. Trêmulo, ele viu Gault agarrar alguma coisa que estava por trás de uma bancada. Gault puxou-a, segurando-a diante de si. Uma sufocada exclamação de ira saiu dele. Seu longo nariz apontava acusadoramente na direção de Harper, como um dedo que aponta um criminoso. — Era exatamente o que eu temia! — acusou. — Agora também está cortando bonequinhos de papel! — Gault tinha nas mãos uma grande figura humana recortada em papel: um homem alto e magérrimo. — Isso aqui é a gota d'água! — Gault prosseguiu, elevando o tom. — Eu já estou cheio... — N-Não... não fui eu, senhor. — gritou Harper hesitantemente, enquanto via evaporarem o seu emprego e os 50 mil. — Foi o seu sobrinho de dez anos, Rudolph, quando veio aqui ontem. Ele fez o corte e disse... disse que se parecia com o tio... Harper interrompeu-se ao ver que Gault estava a ponto de explodir. Foi então que o matemático deteve-se, com uma expressão de malícia impressa na face. — Hmm — gemeu ele. — Pode ser que eu tenha algumas coisinhas a explicar para o Dr. Pillbot. — Eu tenho que apresentar essa matéria diante da Sociedade Psiquiátrica. — declarou Pillbot, com excitação. — Não há dúvida que você possui alguma faculdade estranha — uma percepção instintiva das leis quadridimensionais... O que foi aquilo, Professor? — Pois eu digo que se vier a esta mesa, lhe explicarei em termos elementares — muito elementares e simples de entender — a razão pela qual você nunca será capaz de estudar seres quadridimensionais... se é que há algum! — A voz de Gault ressoava sarcasmo.

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Pillbot aproximou-se, seguido de perto por Harper, que estava interessado em qualquer explicação sobre a quarta dimensão — mesmo as mais elementares... Com um brilho nos olhos, Gault pressionou a figura achatada na superfície plana da escrivaninha de Harper. — Esse homem-papel, digamos, representa uma criatura bidimensional. Vamos considerá-lo repousando plenamente na escrivaninha, a qual representa seu mundo — ou Flatland1 como nós matemáticos o chamamos. Mr. Flatlander não pode dar uma olhada em nosso mundo. Ele pode ver apenas ao longo do plano achatado de seu próprio mundo. Para nos ver, por exemplo, ele teria que olhar para cima, isto é, para a terceira dimensão, algo que é inconcebível para ele. Agora, Doutor, entendeu porque nunca conseguiremos ver seres quadridimensionais? Pillbot faz uma careta e olhou para cima, perguntando: — E quanto ao ponto-devista dos próprios quadridimensionais? O que impede que eles nos vejam? Harper mal ouviu a tossidela de desgosto do Professor. Esse recorte bidimensional fascinava-o. Uma ideia lhe passou pela cabeça. Agora, supondo que...

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E

NQUANTO GAULT

e Pillbot discutiam, Harper agarrou o recorte de papel e, fazendolhe um vinco, dobrou-o firmemente pela metade. Aí ele elevou a metade superior de modo a torná-la perpendicular à mesa, enquanto a metade inferior mantinha-se firmemente pressionada contra a superfície da mesa. — Agora — disse de si para si — aos olhos de seus conterrâneos, Flatlander pareceria ter desaparecido da cintura para cima, pois sua metade superior está dobrada na terceira dimensão... até onde eles saibam... — E-e-e-e-e-e! Ao ouvir o grito monossilábico, Harper levantou os olhos rapidamente. Pillbot fitava friamente diante de si, em direção ao chão. Harper seguiu seu olhar e... então viu. O Professor Gault havia se desvanecido da cintura para cima. Seus membros inferiores ainda permaneciam diante de Pillbot, balançando levemente, mas a parte de cima estava incontestavelmente desaparecida. Dos grandes pés plantados solidamente no solo, longas pernas se elevavam majestosamente, para terminar em um quadril refinado e anguloso — e dali para cima tudo se desvanecera abruptamente no nada. Era como se a metade superior tivesse sido cortada, exata e precisamente, na linha da cintura. Pillbot tirou os olhos da porção visível de Gault e viu um Harper de queixo caído antes de voltar a ver aquele espetáculo; sua face fofa estava banhada em suor. — Porque? Porque mesmo, meu amigo? — replicou, dirigindo-se àquela meia figura. — Isso... isso é um pouco rude de sua parte, desaparecer assim no meio da minha sentença. Eu, éééé... eu tenho certeza que você vai... ah, volte logo! — Então, como se o fenômeno tivesse acabado de ser inteiramente absorvido por sua inteligência, seus olhos se congelaram e ele se afastou.

Flatland: referência ao “romance de muitas dimensões” homônimo, publicado pelo professor e teólogo britânico Edwin Abbott Abbott em 1884. (N. do T.) 1

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A porção do Professor Gault falhou em dar qualquer indicação de que ouvira o pedido. Lentamente, porém, suas pernas começaram a abrir caminho, como um cego que tenta se orientar ao andar. Harper observava avidamente, com sua face pálida e esbranquiçada. — Não! — ele reagiu, enfim. — O Professor não fez isso sozinho... A culpa foi minha. Eu dobrei o recorte de papel e... e Algo me viu e... me imitou, dobrando o Professor na quarta dimensão! — Harper gemia baixinho, com as mãos tremendo. Nisso, Pillbot ficou um pouco satisfeito com essa demonstração de sua hipótese sobre a vida quadridimensional. Mas em seguida ele olhou assustado para aquela meiapessoa. — Você, éééé... você quer dizer, hã... que estamos sob escrutínio de algum Ser da quarta dimensão? — Isso mesmo — respondeu Harper, com um sorrisinho no rosto — Eu... conheço isso, eu posso sentir isso. Isso se tornou ciente de nossa vida tridimensional de alguma maneira e agora está com sua atenção voltada para o laboratório! O que eu sei é que alguma coisa terrível está para acontecer. — Ele se afastou rapidamente enquanto o par de pernas movia-se em sua direção. Sua retirada foi bloqueada por sua escrivaninha, sobre a qual repousavam duas grandes laranjas da Califórnia, o lanche indispensável para Harper. Para ele, o suco de laranja era uma potente bebida revivificante. Agora ele automaticamente pegava uma das frutas, como um indivíduo mais durão que tomaria um uísque com soda num momento de choque mental. De olhos vidrados na aproximação dos membros ambulantes de Gault, Harper meteu nervosamente suas unhas na laranja, puxado grandes pedaços da casca. Pelo canto do olho, deu uma espiada na mesa. A outra laranja havia sumido!

***PHWUP!*** Logo em seguida, ela caiu no chão, bem diante dos pés de Harper. Mas agora aquilo era uma bagunça (ou bagaça) suculenta, com o interior revirado para fora, aberto como pétalas e com suco escorrendo pelo piso. A outra laranja caiu dos dedos inertes de Harper, rolando sobre a escrivaninha. Harper alcançou aquela coisa encharcada no chão, apertando-a e examinando-a cuidadosamente. Ele levantou os olhos para Pillbot. — Foi virada pelo avesso! E sem romper sua casca! A expressão de Pillbot indicava que sua atitude científica estava lentamente tomando o lugar de seu medo recente. Ele estalou os dedos: — Imitação de novo! — exclamou, meio que para si mesmo. Então se dirigiu para Harper: — Quando você dobrou a figura de papel isso... essa entidade quadridimensional imitou fielmente sua ação dobrando o Professor. Agora, quando você começou a descascar a laranja, sua ação foi novamente imitada — à maneira da quarta dimensão — por essa entidade que virou a outra laranja do avesso. Sua voz caiu, e ele murmurava agora: — Imitatividade... a marca de uma mente de pequena ordem evolucionária, ou... — suas palavras silenciavam, enquanto ele se fechava em seus pensamentos. Harper estava ainda mais pálido e branco: — Você... quer dizer que estou sendo... especialmente observado por esse Ser... Qu’ele... Isso... imita-tudo-o-que-eu-faço...?

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— Isso mesmo. Porque você tem essa estranha percepção dos domínios desse Ser, ele foi especialmente atraído por você, imitando o que quer que faça, mas de um modo quadridimensional. Um ser com poderes e prerrogativas inexplicáveis, com domínios bizarros sobre a matéria, mas com uma mentalidade que pode ser tanto primitiva quant... Harper pulou e soltou um grito ao perceber um toque por trás, vindo do corpo abreviado do Professor Gault. Ao saltar, a laranja às avessas voou de suas mãos. — Tudo o que sei — confessou — é que o Professor Gault quer que eu faça alguma coisa; provavelmente está latindo ordens para mim daquela outra dimensão... Ah, não! Eu larguei a laranja no Professor... ou melhor, onde deve estar o estômago dele! A laranja revirada pousara na área de Gault que era a linha de demarcação entre suas partes visível e invisível. A área que, normalmente, seria ocupada pelo estômago. Ela ficou ali, em plena vista dos dois homens assustados. — É... é melhor que eu a retire — disse Harper, com a voz embargada. Moveuse com uma compulsão assombrada no sentido da meia-figura, estendendo uma mão magra e trêmula para a laranja invertida. Subitamente, a laranja desvaneceu. Harper deteve-se como se tivesse batido contra um muro. Olhando para o nada à sua frente, ele levou suas mãos ao próprio estômago, gemendo dolorosamente. — O que foi? gritou Pillbot. — A... a laranja... tá no meu... es-tô-ma-go! — Viu, só? Não foi o que lhe disse? — exultou Pillbot — Outro ato de imitação. Aquilo viu você derrubar a laranja em Gault — onde devia ser seu estômago — e te imitou colocando a fruta em seu estômago. Isso prova que estou certo quanto a essa Entid... glug! — Com um grande soluço, Pillbot ficou paralisado. Olhou silenciosamente para Harper e então levou lentamente as mãos para junto do estômago. Harper desviou sua atenção para a escrivaninha. — A outra laranja! Se foi! — Para... dentro... do... meu... estômago! — murmurou Pillbot. — Te-tenha muito cuidado com o que faz! Meu Deus, não faça nada! Nem mesmo pense! Esse... essa criatura quadridimensional certamente irá imitá-lo de algum modo esquisito. Esfregando sua barriga, Pillbot percorreu com o olhar os vários objetos que o cercavam. Bradou: — Eu não quero nenhum desses troços dentro de mim! Harper piscou desesperadamente para o semi-corpo, que agora se aproximava do recorte de papel. — Nós... Nós temos que fazer algo para resgatar o Professor.

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S

EM PERCEBER,

ele pensou num restaurante que costumava frequentar e onde sempre pedia torta de limão — e invariavelmente recebia uma de maçã. Com o tempo, descobriu que poderia conseguir limão pedindo por pera. O problema agora era: qual o “pedido” que teria que fazer para conseguir que seu patrão deixasse de estar preso entre dimensões, como um porco que se prende entre a cerca? O que quer que fizesse seria imitado de um modo que poderia se revelar trágico. A porção superior do recorte estava pendurada para trás, com a cabeça caída como uma flor murcha, enquanto a tensão na dobradura diminuía lentamente.

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Juntando todas as forças que conseguiu, Harper decidiu pegar o touro pelos chifres. Ele poderia recuperar o Professor pressionando a porção superior do recorte sobre a superfície plana da escrivaninha. Tremendo, ele a pressionou — e ouviu um grito abafado por trás. Mais ou menos um metro acima do meio-corpo, a cabeça do Professor havia espocado na visibilidade. — Você pressionou apenas a cabeça sobre a mesa — reclamou Pillbot. — Por isso, o Ente colocou apenas a cabeça de Gault de volta no laboratório. Agora, aperte o resto do corpo. Suspensa sobre o próprio corpo, a cabeça do Professor olhava em volta até fixarse com irritação sobre Harper. A boca mexia-se nervosamente, mas não emitia nenhuma palavra. — Professor, não posso lhe ouvir — desculpou-se Harper. — Seus pulmões e cordas vocais estão em outra dimensão. Espere, eu vou retorná-lo por completo. — Ele levou uma mão até o recorte, cujo torso ainda elevava-se sobre a mesa. A cabeça de Gault balançou uma vigorosa negação ao plano de Harper. Sua boca movia-se com o que, se fosse audível, seria uma enunciação entrecortada e cáustica. Como se tivesse tocado um carvão incandescente, Herper recolheu sua mão: — O Professor não quer que eu toque o papel. A cabeça de Gault flutuou sobre o recorte como uma lua fantasmagórica. Abaixou-se sobre a figura recortada, parecendo estudar cuidadosamente sua posição sobre a mesa. Pillbot observava-o à espera de algum sinal de suas intenções ou desejos. Harper andava distraidamente à volta da grande bancada alta. Eureka! Ele poderia distrair a atenção da Entidade, retirando-a de Gault se fizesse outra figura. Ele poderia experimentar com essa segunda figura sem colocar Gault em perigo. Ele teria o cuidado de não fazer essa figura tão alta e tão magra, para que não se parecesse com o Professor em seu contorno. Com isso, talvez ele pudesse forçar a Entidade a soltar a parte restante do corpo de Gault... Ele revirou as gavetas da bancada em busca da tesoura e começou a passar a lâmina por um grande pedaço de papel. No momento seguinte, teve que se levantar, pois Pillbot se aproximava: — Por alguma razão, Gault não quer que sua silhueta seja tocada. Não posso ler muito do dizem seus lábios, mas ele parece temer que alguma sequela permanente possa ocorrer em seu retorno. Ele quer tempo para pensar... Ei, o que você está fazendo? — Fiz outro recorte para experimentar — explicou Harper. — E esse aqui não é parecido com o Professor, não é alto nem magro. Viu...? — Ele levantou o segundo recorte da superfície plana da bancada, suspendendo-o diante de si. — Mas esse aqui é baixo e gordo... — notou Harper, perdendo o fôlego. Não fazia sentido continuar falando com o ar. Pillbot evaporara-se por completo. Onde a figura do eminente psiquiatra havia se colocado, não havia nada agora, nem mesmo uma metade de homem. Tarde demais. Harper se deu conta de que, ao puxar a figura de papel da superfície da bancada, o Ente imitou-o “puxando” Pillbot para a quarta dimensão. Inconscientemente, porém, ele sabia que o recorte que segurava tinha um contorno que lembrava Pillbot. Harper andou para lá e para cá nervosamente, carregando a figura. Ele esforçava-se para não abaixá-la, por ter medo de ver algum segmento de Pillbot caindo na realidade. Ele não sabia o que fazer.

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Finalmente, ele resolveu suspendê-la em uma pequena armação, onde ela balançava à menor perturbação do ar.

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costas de seu assistente com uma expressão plácida, que mudou para uma satisfação sardônica quando percebeu que Pillbot estava tão enrascado quanto ele — ou talvez até mais. De repente, fez uma careta e um meneio com a cabeça, e Harper interpretou o fato como se, lá do outro lado, Pillbot havia localizado o torso de Gault. Também de modo súbito, Harper entendeu que ele próprio deveria entrar no domínio quadridimensional. Um estranho instinto lhe indicava que era lá que estava a solução — meio como a intuição de uma mulher, que a impele a agir de certo modo mesmo sem saber por quê. Mas como chegar lá? Com outro pedaço de papel? Ele buscou o Professor, com suas pernas ocupadas e, nadando sobre elas, a cabeça do homem. Uma cabeça que o observava com uma expressão selvagem. Não, concluiu Harper, não poderia haver mais recortes. Embora a criatura quadridimensional distinguisse entre os contornos de uma silhueta magra e uma gorda, algo intermediário, como a própria forma de Harper, poderia ser demais para ela. Ele mesmo — Harper — é quem precisaria tomar o lugar de seu próprio recorte! A cabeça de Gault levantou-se, enquanto olhava fixamente para seu assistente. Sentado na beira da mesa, o jovem balançava as pernas e depois deitou-se completamente. Ao repousar, estava lá, em Flatland — sobre seus pés. Era como se tivesse mesmo saltado para outro mundo. Não estava mais no laboratório. Até onde podia perceber, não estava nem mesmo sobre chão algum. Seus pés apoiavam-se no nada — mas ainda assim, parecia haver uma espécie de tensão sob ele. Como se fosse a tensão superficial da água. Ele estava — o pensamento lhe invadiu — de pé num segmento de espaço curvado! Havia uma linha espacial ali, que agia como um sólido sob seus pés! Harper olhou “para cima” — isto é, ergueu a cabeça. Não havia nada ali, além de grandes pedaços de vazio. Então ele viu que aquela vacuidade era alinhada e enlaçada com umas estrias transparentes, como celofane. Elas tinham uma estranha similaridade com seus “rabiscos”, como se houvesse mesmo aquela estranha faculdade de perceber esse lugar da quarta dimensão. Instintivamente, Harper soube que aqueles laços eram os limites de um imenso claustro — um claustro quadridimensional, cujas paredes consistiam de um ajuntamento misturado de dobras espaciais. Abruptamente, ele sentiu um movimento. Ele tornou-se ciente de que havia uma solidez por sobre ele. E que essa solidez estava se movendo. Harper soube que estava mirando um ser da quarta dimensão — sem dúvida, era a Entidade que causara os fenômenos no laboratório, e que o trouxera para a quarta dimensão, e que agora mesmo estava observando-o com sua visão quadridimensional! Havia uma forma sobre ele que lhe manchava os olhos, dando uma vaga noção da Forma que estava além de sua compreensão. Harper mal percebeu que Pillbot estava ali, ao seu lado, sacudindo-o. O que ele percebeu foi que subitamente compreendera uma lei fundamental do estresse espacial e, tomando papel e caneta, estava rascunhando a fórmula matemática dessa lei. Agora ele via porque os arranha-céus se deparavam com uma “barreira de estresse” a certa AULT MIRAVA AS

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altura. Ele entendera aquilo como se fosse uma pessoa com habilidade musical inata e que, ouvindo uma melodia pela primeira vez, era capaz de entender as leis da música. — Cuidado, está se mexendo! Está descendo! — gritou Pillbot em seu ouvido. — Está prestes a agir. Ficou ativo no momento em que trouxe você para cá. Aliás, como você a induziu a te trazer para cá? — Hã? — surpreendeu-se Harper, levantando os olhos de seu caderninho. Depois ele explicou rapidamente como havia induzido o Ser a agir sobre ele mesmo. — Então foi isso! — discordou Pillbot, em alto e bom tom. — Você mudou o padrão de imitação do Isso... Você trapaceou para trazê-lo para cá. Por isso, ele está com raiva... — Raiva? — Harper agarrou-se a Pillbot, quase perdendo seu bloquinho, enquanto havia um repentino aumento na invisível tensão superficial sobre a qual se apoiavam. Um violento tremor lançou-os ao “chão” e agora Harper via o torso de Gault, a poucos metros dali, aparentemente flutuando acima da superfície. — Sim, com raiva! — Pillbot estava pálido — Enquanto você só lhe deu algo que imitar ele estava pacificado. Mas agora ele reconhece oposição, um esforço para sobrepujá-lo devido à sua mudança no padrão de imitação. Sua condição é perigosa... está prestes a reagir violentamente. Nós temos que sair daqui. Você deve conhecer algum caminho... Harper estava novamente rabiscando em seu caderninho: — Assim que eu terminar essa fórmula... Pillbot lhe deu um chacoalhão fortíssimo: — Você não entende?? Essa Criatura é um paciente mental do tipo violento. Nós estamos em um manicômio quadridimensional! — Pillbot olhava para cima, temendo uma massa descendente. — O padrão de suas ações ajusta-se perfeitamente. — prosseguiu. — É algum tipo violento de insanidade, combinado com mania de grandeza. A menor oposição causará uma explosão de fúria. ‘Isso’ vê oposição no modo como você o usou para trazê-lo para cá. A princípio, pensei que fosse uma mentalidade primitiva, mas agora sei que é uma criatura altamente desenvolvida, porém insana. Pensa que é Napoleão e quer conquistar o plano tridimensional que de alguma forma lhe chamou a atenção... Também olhando para cima, Harper parecia perplexo: — Essa coisa conhece o Napoleão? — Claro que não, seu besta! — bradou Pillbot — O que ele tem é o Complexo de Napoleão: se identifica com algum grande conquistador de sua própria dimensão. E agora está alvoroçado. Nós temos que cair fora daqui... — Agora era ele quem se agarrava a Harper, enquanto outra elevação da superfície os derrubava.

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EVANTANDO-SE,

HARPER guardou suas anotações. Seus cálculos estavam completos. Agora ele poderia mostrar aos engenheiros como construir edifícios mais altos, usando o estresse espacial como vantagem e não tentando lutar contra ele. Pela primeira vez, o perigo de sua situação tomava conta de sua consciência. Ele olhou ao seu redor... e seus olhos pousaram sobre uma estranha e familiar projeção, elevando-se do piso invisível a alguns centímetros dali. Era a parte de sua escultura de argila que havia sumido! Sumira porque sua forma peculiar de alguma maneira lhe empurrara para dentro da quarta dimensão! Mas porque ele não conseguira movê-la? O Professor Gault movia-se livremente.

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Ele e Pillbot foram até aquilo e tentaram movê-lo. Uma leve teia bastante tênue em torno da projeção atraiu o olhar de Harper. Agora ele entendia. O Ente havia de algum modo fixado a projeção naquele ponto, como se pudesse usá-lo como referência para localizar o laboratório. Deve ter sido essa projeção que atraiu a atenção do Ser para o mundo tridimensional, uma vez que, ordinariamente, ele nunca poderia ter notado a presença de vida tridimensional — do mesmo modo que seres humanos não poderiam notar a presença de vida bidimensional, se tal existisse! Ao ouvir um gemido de Pillbot, Harper voltou a olhar para cima. Sobre eles, um súbito jogo enfurecido de cores e formas. Vastas massas pareciam trocar de lugar em justaposições ensandecidas e agora desciam rapidamente na direção em que estavam. — Rápido — reagiu Harper, agora completamente excitado e gritando para Pillbot — Desça através dessa projeção! — Descer através disso?? — Sim, há uma condição fluida do espaço no ponto onde ambas as dimensões se encontram. Abraçando seus contornos, você vai emergir no laboratório... Assim espero! Nervoso, Pillbot deu uma espiadela por cima do ombro e depois experimentou se forçar para baixo da projeção. O pé desapareceu. Com um grito de alívio, Pillbot enfiou-se até ter apenas os ombros e a cabeça visíveis. Depois, isso também desapareceu. Apoiando-se sobre o piso do laboratório, Pillbot ajudou Harper a voltar, puxado seus pés para a base da escultura. — Rápido — ele alertou. — A Criatura estará totalmente enfurecida a essa altura, com a nossa fuga de seus domínios. Uma explosão maníaca certamente vai ocorrer. Nós temos que resgatar Gault de alguma maneira e abandonar o laboratório. Enquanto corriam para a forma abreviada de Gault, o laboratório tremia. Cordas invisíveis pareciam estar amarrando e apertando as paredes para dentro. Harper alcançou a escrivaninha onde se encontrava o recorte, com sua seção entre o pescoço e a cintura ainda arqueada para cima. Enquanto Harper pegava o papel para aplainá-lo, os olhos de Gault estavam esbugalhados, sua boca abria-se num grito oco de oposição. Harper hesitava. — Não ligue para ele — apressou Pillbot — Aplaine essa figura! Harper a aplainou. Por um instante, o laboratório parou de tremer terrivelmente. Então o corpo de Gault voou pelos ares e caiu sobre uma parede — mas pelo menos era um corpo inteiro. — Mais sinais de violência. — alertou novamente Pillbot — Mas essa ação não vai apaziguá-lo... Nós temos que sair daqui... Enquanto ele falava, havia um ribombar de rachaduras. Harper sentia-se a si mesmo voando por aí, e por um instante verdadeiramente vertiginoso, não distinguia cima de baixo. Parecia haver forças que o despedaçavam. Ele sentia-se como se fosse um pedaço de ferro sendo atraído simultaneamente para diversas direções por poderosos eletromagnetos. Então, houve uma explosão de luzes coloridas, uma detonação ensurdecedora — e ele sentiu-se sem fôlego, como se tivesse sido nocauteado de encontro a uma parede. Levantou-se e olhou à sua volta.

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ele via aquela parede sul do laboratório tão familiar. Ao norte, leste e oeste havia... ar livre! Ele estava na seção do piso do laboratório que ficava junto da parede. Sua escrivaninha estava a poucos metros dali, bem na beira do piso. Gault e Pillbot estavam agarrando-se a um dos lados da mesa. O par olhou por sobre a borda do piso e recolheu-se, abraçando-se e rolando para dentro. Harper arrastara-se até poder observar a borda, recuando rapidamente. Centenas de metros lá embaixo, o trânsito da cidade rugia! Gault dirigiu-se para a porta da única parede, abriu-a e fechou-a depressa, empalidecendo: — O laboratório foi virado pelo avesso! — gritou. — Nós estamos no lado de fora! — Nós temos que nos afastar daqui. — ponderou Pillbot. — Qualquer espasmo da criatura vai nos derrubar na rua! Momentaneamente, Gault deixou de lado sua apreensão para lançar sua ira sobre Harper: — Isso é tudo culpa sua. Foi você, com seus rabiscos absurdos, que atraiu a atenção de Alguém da quarta dimensão! Em sua raiva, ele ignorava o fato de que acabara de contradizer sua antiga opinião de que tal ser seria incognoscível. — O laboratório está em frangalhos — prosseguiu. — e isso nem é o pior de tudo! Ele aproximou-se de um Harper amedrontado, encarando-o bem de perto: — Você sabe — vociferou — porque eu não queria ser resgatado imediatamente? Porque eu não queria que você me trouxesse de volta alisando o recorte de papel? Seu imbecil, você já tentou reparar um vinco em um pedaço de papel? — E-eu não compreendo... — murmurou Harper. — Aquele boneco de papel foi vincado, não foi? — explodiu Gault, em uma explicação irada — Uma vez que um pedaço de papel tenha sido vincado, não pode ser perfeitamente aplainado de novo. No vinco, uma minúscula seção continua encurvada — na direção da terceira dimensão no caso do papel. Na quarta dimensão no meu caso! Eu também fui rasurado, bem na linha em que fui dobrado na quarta dimensão! Ou será E UM LADO

que você está cego??

Harper deu um passo para trás e então percebeu: havia uma tênue linha horizontal de luz brilhando através do corpo de Gault. Atravessava inteiramente suas roupas e tudo o mais. — Eu vou ter que passar o resto da vida com isto. — resmungou Gault. — Tudo graças aos seus rabiscos imcompreensíveis, que nem você entende. Andar por aí com um vinco de luz brilhando através do meu corpo. Você está demitido! — Senhores — interrompeu Pillbot, também elevando o tom. — A Entidade... Nós temos que fugir. Certamente haverá mais um espasmo... Harper discordava. A poucos metros dali, ele notara algo: sua escultura. Ela estava inteiramente ali, inclusive com a parte que deveria estar na quarta dimensão. A Entidade perdera seu “ponto-de-referência”. Harper não acreditava que ela poderia localizar novamente essa área particular da terceira dimensão. O grito de uma sirene de incêndio invadiu a sala. Enquanto uma escada apoiavase sobre o piso projetado, Harper lembrou-se de procurar o caderninho com a fórmula

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em seu bolso. Ao senti-lo, deixou de se aborrecer com a demissão. Ele já sonhava de novo com uma casinha no campo e a companhia de Judith... Evidentemente, ele deveria ter mais cuidado com seus futuros “rabiscos”. Ele não poderia arriscar-se a atrair mais uma vez a atenção de Alguém do mundo quadridimensional — pelo menos não enquanto Judith estivesse por perto...

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QUEM FOI GRAPH WALDAYER? (a.k.a Grath Waldayer) É UM DOS AUTORES mais obscuros da era de ouro da Ficção Científica (aprox. 1920-1960). Mesmo o ISFDB (Internet Speculative Fiction Data Base) tem apenas uma pequena lista de suas obras, mas nenhuma nota biográfica. Além de O Escrevinhador Quadridimensional, Waldayer (que bem pode ser um pseudônimo) escreveu outros quatro contos entre 1939 e 1943: Cosmic Cube, Beings Like These, The Dummy that Saved Earth e The Answer out of Space. Todos esses contos foram publicados em pequenas revistas de FC, como a Comet Stories de julho de 1941, de onde traduzimos O Escrevinhador (título original: The 4-D Doodler). O texto original e a ilustração que abre esta edição estão disponíveis no Projeto Gutenberg: http://www.gutenberg.org/files/22227/22227h/22227-h.htm.

QUEM É RENATO PINCELLI? O TRADUTOR DE Graph Waldayer não é menos obscuro que o autor americano. Dele, sabese apenas que tem 20 e poucos anos, uma calvície precoce, estuda jornalismo e traduz contos de FC pouco conhecidos por hobby. Há quem diga, entretanto, que se trata do mesmo sujeito que escreve o blog Hypercubic [http://scienceblogs.com.br/hypercubic].

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