Flor de Algodão, de Santana Filho

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“Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e osso.” “A estrutura da bolha de sabão”, Lygia Fagundes Telles

“Cada um se mata o suficiente para continuar vivo.” “O fogo nas vísceras”, Pio Vargas

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Somos. Até o momento em que, não sendo o que se supõe ser, adquire-se, afinal, alguma existência.

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Eu sobrevoava Flor de Algodão, a pequena cidade entrincheirada pelas montanhas do Lírio D’Água, observando de cima a represa em construção, quando o tecoteco deu pane no motor. A hélice restou destrambelhada feito uma biruta de aeroporto que perdesse o juízo, nos atirando ao léu do voo, a mim e ao avião, e seguimos sobrevoando o município, flanando sem governo para um lado e outro, a dois passos de despencar. Peguei carona na lomba do vento procurando me alinhar a ele, agarrei o manche com as duas mãos e esquadrinhei lá embaixo à procura de alguma clareira entre casas e serras, tentando nos afastar dos telhados e do miolo da cidade, mas só sobrou o largo da igreja onde descer. Embiquei. Todo mundo abriu passagem num piscar de olhos. Tiraram os jumentos da rua, esquiparam os cavalos no rumo das quintas, tangeram os cachorros, tocaram as flor de algodão

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crianças para dentro de casa, e quando o aviãozinho botou o pneu na terra seca levantando o poeirão, os homens arrancaram o chapéu da cabeça, as mulheres acenaram com os panos de prato e a meninada voltou para a rua, peito nu e braços para cima, assanhada ao vento. Até um galo, por nome Menelau, mudo desde a viuvez dois anos antes, disparou a cantar alto e bem-disposto. O sacristão e o prefeito, relógios silenciosos no bolso da calça, ao ouvir o canto de Menelau puderam atualizar o horário da terra: davam quatro horas e dezoito minutos no momento em que a tarde alaranjou lilás na miúda Flor de Algodão, a antessala do fim do mundo. Aí, toda a gente retornou para o meio da rua, se ajuntou ao rebotalho da poeira, danando-se a aplaudir com olhos, pernas e mãos, como tivesse desabado no oco da cidade o Apocalipse. Deve ter sido mesmo o Apocalipse, porque, ao sair do avião portando apenas o lenço branco protegendo o nariz do pó, fui recebido pela população como se assoprasse as cornetas prometidas no Livro Sagrado. O primeiro a me estender a mão foi o senhor Cravo, corpulento e escanhoado, sorriso cordial e a aparência de quem foi untado em talco depois do banho. Fui logo percebendo: era ele quem fazia chover e abrir o sol na região. Nos últimos anos, isso soube depois, seu Cravo andava de rusga com São Pedro, o qual achara por bem desafiar a autoridade dele, comprometendo o relacionamento entre os dois desde que interditaram, lá por cima, as chuvas. Há tempos não caía do céu uma única gota d’água, de 12  santana

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modo que usei a expressão do abrir e fechar o sol apenas para dizer que era a família do seu Cravo quem mandava e desmandava no município há muitas gerações, sendo a ausência de nuvens carregadas a responsável por minha descida no Largo da Matriz, em frente à Igreja de Santa Margarida, naquela segunda-feira de maio. – O céu não tem mandado chuva, mas não deixa de aprontar marmota – ele apertou minha mão e sacolejou nossos braços com entusiasmo, a ponto de transformá-los numa gangorra onde balançaria um par de crianças desembestadas – Você é o engenheiro substituto, acertei? As pessoas me olhavam curiosas, formando uma ciranda em torno de nós. Eu não conhecia ninguém, estava ali pela primeira vez. Ri o riso possível, procurando, com a mão livre do cumprimento, secar o suor no lenço, mistura de susto e calor empapando o meu rosto. Um homem vestindo terno branco de linho amassado veio do outro lado da rua em pernas de tesoura, aproximou-se, tirou o chapéu e estendeu a mão. – Espero que o doutor tenha a mesma destreza com cimento, betão e fio de aço que demonstrou com o passarinho de metal. Sou o prefeito Pelópidas Blue. A cidade lhe recebe de foguete em punho. Apesar da gentileza do comentário, não deixei de relacionar a saudação do prefeito à expulsão do engenheiro que me antecedeu. Ele foi escorraçado da cidade, no buraco da noite, perseguido pela população que tanto atirava para cima com estilingues e espingardas, como soltava rojões para espantar o demônio. Segundo palavras flor de algodão

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enérgicas do seu Cravo, à frente do cortejo, o engenheiro era devotado e prometido a Lúcifer. Ao ser informado desse episódio, finalizando os trâmites da contratação na capital, tentei me colocar no lugar do engenheiro ejetado; não gostei da posição. O delito do engenheiro, até onde tomei conhecimento, foi não ter cumprido a missão de seduzir Hortência, a filha de dona Juliana do Pudim, cuja mão havia sido oferecida a ele. – Acabe de chegar, acomode-se no mosteiro, tome um banho para lavar a poeira, desamasse essa cara e venha jantar na minha casa. Nós tomamos conta desse passarinho que não sabe voar – e seu Cravo bateu com o nó dos dedos na lataria do avião. Ao atropelar a fala do prefeito, logo vi que ele mais exigia do que convidava. Acedi com um menear de cabeça. Ele se dirigiu a um rapazinho de calças curtas e chapéu de palha dobrado embaixo do sovaco, cujos olhos me encaravam com a veneração de quem avistasse o Altíssimo: – Acompanhe o engenheiro até o mosteiro e oriente o irmão Deocleciano para tratá-lo com o polimento dedicado às orquídeas e às vestais. Entrei na camionete. Instalado na boleia, acenei para a gente que não arredava do largo desde a minha chegada. Ergui o olhar, ultrapassei o aglomerado, a praça e a rua de barro. Do lado de lá, debruçada na janela, vi a moça: continha o rosto entre a palma das mãos, os cotovelos apoiados no peitoril da janela. Apesar de não identificar onde se fixavam os seus olhos, percebi pelo semblante, mais suposto do que testemunhado, que eles flutuavam 14  santana

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pelo inusitado da tarde, distantes de qualquer paradeiro. Sem que ninguém precisasse me dizer de quem se tratava, o nome aflorou-me à boca: Hortência, e a afinidade floral entre o nome da cidade, o nome do seu Cravo e a moça da janela fez sentido pela primeira vez desde que decidi fazer de Flor de Algodão a penitência dos pecados que largava para trás, aceitando administrar a construção da barragem do Lírio D’Água. Talvez nem fossem tantos os pecados, mas devastaram o suficiente; vergões pela pele, só eu via. Apesar de ignorados pela gente a me observar desprevenida, haveriam de me incomodar a cada emersão à mente ocupada em mantê-los submersos. O mosteiro estava a poucos quilômetros do Largo da Matriz, nas imediações da cidade, contudo íamos devagar, a ausência de chuva acumulava a poeira por todo lugar. O barro seco formava ondulações na estrada. Ao contato com os pneus, sugeriam desmanchar as peças da camionete na trepidação, fazendo-nos tremelicar na boleia, num arremedo de acessos epilépticos. Com o passar dos dias eu me acostumaria aos desconfortos. Na primeira tarde, tudo parecia impraticável. Cogitei recuar. Impossível. Eu não tinha para onde voltar. Não por enquanto. Aos poucos, a visão das montanhas arrodeando a estrada, algumas escarpadas e tesas, foi se revelando harmoniosa. A falta de horizontes se mostrou providente, descansei. flor de algodão

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