Um mergulho na Alma

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Um mergulho na alma Relato de Jane Machado1

Retornar ao Capão dessa vez foi uma experiência distinta, profunda, inusitada... Olhar para dentro de si e perceber a força, a potência, as fragilidades e as relações. Pela primeira vez fiquei hospedada na casa de quem vive no Capão! E não há experiência mais significativa do que olhar o local com os olhos dos que vivem nele para ampliar o olhar de forasteiro, de turista. Acordar cedo e aprender com Meire a não colocar a batata e a banana na água para cozinhar, e sim pô-las no vapor para não perder os nutrientes. A alimentação orgânica, o cuidado com as plantas, as rodas de memórias afetivas através das fotos de mãe e filho, nora, neto e amigos partilhando saberes vividos na relação.

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Jane Machado é educadora, membro da equipe que realiza ações no Projeto de investigação em cooperação, que envolve 2 escolas públicas na Zona Rural, 1 escola pública na zona urbana, 1 escola privada na zona urbana, no Brasil, e uma Instituição do Reino Unido – Sightlines Initiative. É uma ação desenvolvida pela RedSOLARE Brasil e cofinanciada pelo Conselho Britânico, que se estende de abril de 2016 a março de 2017.


Ahhh, o cheiro e o sabor das pitangas comidas diretamente no pé...

E, um sonho que eu sempre tive depois que meu irmão faleceu: trabalhar no circo! Estar com essas pessoas, nessa comunidade e conhecer o trabalho que eles realizam no circo do Capão me fez querer ainda mais “viver” no Capão! As danças, os malabares, as apresentações, as histórias e Magno, Maria e suas delícias veganas, o carinho e afeto através de cada ação conosco e com o ambiente em que vivem são lições diferentes do cotidiano em que vivemos.


Só isso, já teria valido a pena. Mas, fomos para um encontro em investigação em cooperação com as educadoras das escolas locais. E desde a preocupação com a chegada tardia de Dani ao foco da investigação, tudo nos aproximou e nos fortaleceu ao olhar as cachoeiras próximas à escola com olhar de indagação, de contemplação, de cumplicidade, integração e cura. Ao pôr meus pés na água gelada, senti adormecer a dor que havia sido um questionamento de pessoas próximas se eu iria aguentar ir para o Capão. Eu também me questionei se daria conta, mas ali, com meus pés dentro daquelas águas escuras senti que mais do que aguentar eu necessitava dessa experiência para continuar. E mesmo o encontro na Escola Brilho de Cristal tendo sido muito significativo, nada se compara às experiências de relação que vivemos naquele lugar: encontro consigo mesmo, com os outros, com o ambiente... Com a água... Fonte de vida e cura do corpo e da alma.

Nos encontramos todas juntas na pizza do Capão à noite e, essa experiência não teria sido tão profunda se não fossem essas pessoas, juntas, inteiras e disponíveis para as outras. Que grupo forte, sensível, potente, curativo com as águas. Como disse antes, as pessoas – todas – fizeram a diferença, a profundidade, leveza e riqueza da experiência. Fomos a uma trilha pouco visitada do ponto de vista do turismo - Ponte Velha do Rio Preto (acho que é assim). Como estava a sentir muitas dores no auge da crise da coluna, me perguntava se daria conta de fazer essa trilha que Yuri dizia ser de umas 2h e 30


min. Eu me perguntava e todos também se perguntavam sem palavras. E iniciei de carro com Celo, Malu, Leti, Iauã e Geiza. As crianças e sua potência me ajudaram a olhar para a minha criança e minha potência em múltiplas linguagens. Assim, a vara que Malu conseguiu para andar passou a ser minha simbologia para seguir guiada e amparada. Chegamos a um espaço de bifurcação onde paramos para o descanso, a mamada de Iauã e para esperar Dani, Yuri, Adriana e Candy que vieram a pé da Vila ao nosso encontro. Assim que eles chegaram, voltamos a caminhada em trilha íngreme, estreita, onde daquele ponto em diante não víamos mais pessoas circulando. E tempos depois, minha coluna já parecia paralisar. Candy e Geiza pararam comigo e os da frente gritavam para não nos afastarmos. Agora com as duas varas não mais simbólicas, mas humanas – Candy e Geiza – eu era praticamente arrastada por elas. Com um amor, carinho, força e crença no meu potencial além de respeito ao meu ritmo bem mais lento a cada hora de caminhada. A parte da subida foi dura, pesada, quase desisti, mas pensava na força dos meus amigos e que valeria a pena. Ao começar o percurso da descida, as lágrimas desceram dos olhos à coluna, pois a vista dizia de longe que a dor e o esforço valeriam a pena. O lugar é um paraíso quase secreto e sagrado. E para uma caminhada de duas horas, levamos quase 4h. Com a gratidão e tolerância dos pares a esperar pela retardatária e suas duas varas/muletas. Chegar no objetivo foi tão profundo, tão forte, que as palavras sumiram. E como uma combinação coletiva, um acordo tácito, cada um de nós procurou um espaço na cachoeira e fez seu mergulho nas profundezas de sua alma. Me desconectei dos arredores por um tempo e tive a sensação de que todos também o fizeram. Mergulhei nas águas escuras e cheia de minerais da nossa chapada logo depois de Adriana e fui procurar “ o meu espaço sagrado” ali. Não faço ideia de quanto tempo fiquei dentro de mim,


mergulhada em minha alma, em contato direto com a água e a coluna debaixo da cachoeira. Talvez uma meditação mais profunda, não sei. Sei que quando voltei a ter consciência do externo, ao abrir os olhos, vi Geiza pertinho, vi Adriana, vi Yuri, Leti e Iauã na cachoeira perto, vi Candy e Dani, Celo e Malu ainda mais distante um pouco... Senti que foi um mergulho em cada ser no primeiro momento e, naquele instante, nos demos conta dessa força e potência curativa que estávamos construindo juntos, na relação, na força curativa daquelas águas. E só aí começamos a conversar, calmos, serenos, tranquilos. Ali era nosso espaço, nosso tempo, e tinha somente as pessoas necessárias. Ali éramos pequenos e éramos gigantes e assim, senti que minha coluna não doía mais. Como? Doeu tanto na vinda, em menos de uma hora imersa naquele lugar teria reduzido a nada? Seria mágica? Havia acontecido um milagre? Se fosse em outra pessoa, talvez eu houvesse julgado que a dor não teria sido tão grande, mas era eu. Estava muito além do meu limite há pouco tempo. Não se dizer o que houve, mas sei que algo aconteceu. Sei que no regresso, vim acompanhando o grupo no tempo do grupo, sem paradas nem nas subidas e nem nas descidas e, mais uma vez, ao concluir o percurso esse grupo diz, em palavras e gestos o quanto foi curativo e generoso em um abraço coletivo de “ conseguimos!” É, nunca mais eu serei a mesma. Aquele ditado de que a água do rio nunca é a mesma água porque ela se movimenta e porque nós também somos diferentes após um mergulho como este, se aplica bem à minha experiência. Nos dias seguintes fizemos outras trilhas mais leves, todas com encontros consigo, com o outro e meditações. E, mais um encontro lindo que tive a oportunidade de ter por meio de Paolo: Magno – um


deficiente físico que fica trancado em casa a maior parte do tempo e que só sai quando Paolo o busca para que ele “ voe” no circo. Assim ele me disse: “ lá em Vôo” - e voamos juntos naquela história com toda a imaginação e emoção possível, naquele ser curador que me tornei ao ser curada pelas águas e pessoas. Bruxas ou fadas? Eis a questão! Parafraseando Shakespeare, percebo que foi nesse meio de tão profundos seres e relações que mergulhei em busca da cura do corpo e da alma. Um mergulho que muitas pessoas não têm oportunidade de fazer, e eu sou grata ao universo por ser uma Escolhida... Não importa se bruxa ou fada.


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