PROTASIO VARGAS. Contos do Final do Milênio VOLUME 3

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Contos Literários e Jurídicos

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Contos do Final do Milênio

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VOLUME 3 – (66-85) JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS UFRGS Versão 2, de 09/11/2000

Resumo Em quatro volumes, os 107 contos, escritos no final do inverno e início da primavera do ano 2000, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, apresentam uma variada temática de abordagem, com personagens inventados em um cotidiano ora reflexivo, ora bastante cinético, movimentados em cenários variados de enredos bastante simples. O autor se vale da ironia na maioria dos enfoques, sem descurar da crítica, inclusive de cunho político, social, econômico, ideológico, filosófico, religioso, enfim, jurídico, de espraiada modalização. A ordem dos contos é a ordem de sua criação, inclusive na cronologia posta. O volume 3, com 17 contos, vai do conto 46, “Tributo a Coronel”, ao conto 85, “Fórmula Geral do Amor”.

Modo de Citação VARGAS, João Protásio Farias Domingues de. Contos do Final do Milênio. Vol. 3/4. Porto Alegre: digitado, 2000.

Apresentação . Os contos foram escritos entre 19/06/2000 e 02/10/2000. Metodologia de escrita: construção à medida que digita; tática principal: escrever muito para aperfeiçoar o estilo; estratégia geral: ter acúmulo de texto que possibilite uma seleção para divulgação. Estratégia específica: escrever de modo que os Contos possam evoluir, naturalmente, para escritos maiores, de gênero diverso: o romance e a novela. Limite inicial da tática: 100 Contos. O autor mistura trechos de fatos observados na vida observada no cotidiano com emendas da imaginação, de modo que nada do que está escrito represente realidades postas. Eles não têm essa vocação. Por isso que tudo quanto possa ser semelhante a fatos da vida constitui mera coincidência e não pode ser levado a sério. Trata-se de mera ficção e, como tal, devem os escritos ser encarados. Podemos chamar de contos-momento, construído na espontaneidade da inspiração. Alguns são longos e outros muito curtos, quase beirando à crônica; outros tangenciam o ensaio, mas sem nunca perder o ar ficcional. Todas as personagens, são fictícias e, na realidade de cada conto, adquirem a vida que lhes coube pela imaginação do autor.

Sumário


RESUMO. MODO DE CITAÇÃO. APRESENTAÇÃO. SUMÁRIO. CONTO 66 - TRIBUTO A CORONEL; CONTO 67 - DO CHIFRE AOS CASCOS; CONTO 68 - AS GÊMEAS; CONTO 69 - UMA CASINHA NO CAMPO; CONTO 70 - DIALÉTICA RAULIANA; CONTO 71 - REPETIÇÃO DE BÊBADO; CONTO 72 - SÍNDROME ALPINOCICLISTA; CONTO 73 - CANTO E FLAUTA; CONTO 74 - VAI COM CALMA, MIGUEL; CONTO 75 - OS DEUSES DE VIK; CONTO 76 RONDA DOS OLHOS; CONTO 77 - MESTRE CASTOR; CONTO 78 - IR É PRECISO: CONTO MALDITO DA LIBERDADE ENCARCERADA; CONTO 79 - POEMINHA DO CONTRA; CONTO 80 - DINHEIRO FÁCIL; CONTO 81 - SUCO DE LARANJA; CONTO 82 - RAZÃO DE CASSANDRA; CONTO 83 - BARATA DE SARTRE; CONTO 84 - EXÉRCITO DE EINSTEIN; CONTO 85 - FÓRMULA GERAL DO AMOR. ÍNDICE ANALÍTICO

Conto 66, de 22/08/2000, terça

Tributo a Coronel João Protásio Farias Domingues de Vargas

O velho Coronel era muito respeitado naquela pequena cidadezinha do interior, na fronteira sul. Os mais antigos criaram mitos em torno de sua imagem. Tinha fama de homem mau. Diziam que atuou na "guerra"; que degolava soldados, erguia criancinhas para o alto e aparava na baioneta, junto com bandos armados, em várias revoluções. O apelido militar demonstrava muito disso, no significado da patente: comandava homens! Homem alto, forte, de olhar direto e firme. Chamavam-lhe, os mais íntimos, "Corunija". Não era de muitas amizades; falava manso e poucas vezes mostrava os dentes, quando sorria. Era homem que dormia pouco, estilo espartano, no pala estendido no chão, sentado ou em pé, sempre com a adaga e o berro na cintura, pronto para qualquer peleia. Era como se estivesse sempre de prontidão. Dourado era diferente. Homenzinho de baixa estatura, meio careca, sorriso fácil e bom de prosa. Jogava tava; sempre envolvido com questões de terras, quadras, sesmarias e carreiras de cavalos de raça. Chamavam-lhe "Doro", o homem do ouro. Era bom, exceto no tocante a dinheiro. O respeito que conquistava dos outros era muito diferente. Os amigos eram de fama, influentes para além das fronteiras locais. Os dois homens eram muito diferentes e, no entanto, tiradas as diferenças marcantes, muito parecidos. Nunca se encontravam, porém eram inconcebíveis separados. Um protegia o outro, de uma distância a perder de vista. Todos os dias vinha o ônibus que ia ao interior do interior. Malas, sacos, sacolas iam e vinham sozinhos ou com pessoas. Lá estava ele, sempre no mesmo horário, quatro da tarde, esperando a ida; ou, às dez da manhã, como chegada. Era em frente do portão que as coisas e pessoas se avolumavam, numa espera recorrente, ano após ano, sempre com o mesmo motorista. O jeito do ônibus era conhecido: barulho e cheiro chegavam juntos com a buzina, indicando parada. Trinta e cinco lugares, bancos estofados de vermelho salpicado de dourado, verde na lataria e face levemente fatigada eram tudo que se podia colher, olhando firmemente para aquela máquina de transporte. Doro e Corunilha podiam ser observados todos os dias por ali mesmo, de qualquer lugar das esquinas. As pessoas, sempre por perto e olhavam, como que com olhos de criança, contemplativos, essas figuras lendárias que os mitos reforçavam nas conversas de bares e grupos. Houve um dia que Corunilha e seu cavalo morreram, na periferia da cidade, quase na beira do rio. Doro e seus campos, também se foram. As lendas ficaram, reforçadas pela ausência histórica de seus corpos e mentes, andantes e falantes, naquele ponto específico da pequena cidade de fronteira. - Não está morto quem peleia – dizia o velho Coronel, sempre que alguma coisa dava errado e exigia reparo imediato. Era como se fosse hino, canto, uma máxima de vida. Era o “cogito, ergo sun”, de Descartes. Eta cartesiano Coronel! Como esquecer de uma figura bárbara e lendária como essa? Impossível! Sempre é preciso um Tributo a Coronel.

Conto 67, de 23/08/2000, quarta

Do chifre aos cascos João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Salgar a carne é preciso, Juliana; senão apodrece logo. Só se come carne morta de animal matado são. O corte tem que ser preciso, senão o fel estraga tudo. Por isso a faca tem que estar bem afiada, uma navalha. Tudo se aproveita do boi, dos chifres aos cascos. Faz-se charque e se usa aos poucos. A maior inimiga é a mosca varejenta. Ela põe os ovos dentro da carne e os corós vão comendo por dentro,


apodrecendo em volta; começa com a liberação de líquido e depois vem o cheiro desagradável. Por isso se salga; se esbanja sal grosso em todo canto, como mantas moles estendidas nos porretes, dentro da gaiola. Martimiana ia mostrando à filha a arte milenar de carnear e salgar o gado. As mãos delicadas da moça, avermelhadas nas palmas, pelo calo feito pelo cabo, demonstravam a destreza na lide. A família vivia disso, do gado. Comiam carne como boi como pasto; era o pasto do homem, na terra dos vivos. - Eu não sei fazer isso, mãe; eu sou de cidade; eu estudo para ser médica, não para ser dona de casa ou governanta de fazenda. Não quero aprender a carnear e nem a salgar - disse, enfática, a filha, saindo do anexo. - Filha, aprende enquanto sou viva; depois de morta, vais ter de fazer tudo sozinha; o que aprendeu, aprendeu. Evita de passar trabalho na vida enquanto é nova, aprendendo isso. Nós não vamos ficar prá semente e tudo isso aqui, da casa às cercas, esse mundaréu de terras, vai ficar prá ti. - Até parece que vocês vão morrer amanhã! - Vai demorar um pouco, mas nunca se sabe o dia de amanhã! - Vou para o meu quarto. Não quero fazer menoscaso de sua arte, mas respeite o meu desinteresse por essas coisas. Chega de cadáveres! Lá eu passo cortando gente; aqui ainda tenho de cortar gado! Vê se pode?! Martimiana tinha de fazer o serviço. Uma negra de seus setenta anos ajudava na lide. Todos os dias era a mesma coisa; a rotina da fazenda não era fácil. Acordar às cinco da manhã, ordenhar as vacas, soltar o gado, envasilhar o leite, carnear ovelha, salgar a carne, proteger o charque; tudo isso mulher também fazia. Agora, essas mocinhas de cidade não querem saber nada de nada. Só sabem namorar, dar o rabo e ler livros! - Pensa que eu não sei o que elas moças de hoje em dia fazem nas cidades? Elas vão prá lá prá gente não ficar sabendo das sem vergonhices delas. Aqui, o falaredo seria um só, de puta prá fora! - Calma, dona Gui. A geração dela é outra. Nóis semo da moda antiga e vamo morrê logo. Deixa eles vivê a vida como Deus qué! - disse Benedita, retalhando a carne para preparar o almoço. - Benedita, bem que tu fez, não teve filhos! Essas crias só dão gasto e encomodação! Vê essa aí; tem de tudo e não dá valor para nada. Parece que tem um rei na barriga. Acham que são melhor que os outros só porque tiveram um estudinho a mais na cidade grande. Não era prá ela ficar do nosso lado, sempre ? Afinal, somos seus pais. Quem pode ser mais importante para uma pessoa que seus pais e filhos? Ninguém. Mas, essa aí, não, dá mais valor para os professores e amigos do que para nós! Não sei quem foi que ela puxou, prá ficar assim, tão desamorosa! Já tá uma mulher fieita, com 22 anos de idade. Acha que é grande coisa ser médica! Não vê o Dr. Funaro, de Pedras Brancas, quase morre de fome o vivente; mal ganha prá alimentar os filhos. É médico! - Deixa ela vivê a vida dela, muié! Os fio são feito pro mundo, num prá nóis mandá o tempo todo. Eles são arisco como periquito novo. Vôo, vôo, vôo e depois vorta cansado pro ninho da mãe. É assim a vida, ingrata uma barbaridade, umas quanta vez; inté parece que Deus - cruz-credo! - nem existe; se existe, não olha prá baixo! - É verdade, vivente! Vou deixar a changa fazer o que bem entender e terminar esse serviço antes que seja tarde. O Paulito deve estar entrando no potreiro de baixo, com as ovelhas abichadas. Vou pegar o negovon e levar até a porteira; ele pediu e fica zangado quando as coisas não acontecem na moda dele. - Vai com Deus, muié! Te apressa! Leva o azulão duma vez antes que o páo coma! Dá-lhe laço, si facilitá. - Já volto, Benedita. Diz prá Juliana sair daquele quarto e vir te ajudar um pouco! Quem sabe ela se acerte contigo, pois comigo não dá certo. Acho que é o meu sistema; afinal, mãe nunca presta para os filhos! Benedita ficou pensando nas últimas palavras da patroa e sorriu, como quem diz desse mal eu não sofro; não botei cria no mundo. Deu um grito da janela, chamando Juliava. - Vem conversá um pouco cuá nega preta, aqui. Eu faço o serviço e tu me conta da cidade grande. Vêm. A tua mãe foi ajudá teu pai na portera, lââââ longe! Tô sozinha e Deus. Vem fazê companhia prá preta véia que tê cuidô desde novinha, vem! Juliana veio toda arrumada. Um vestido branco de rendas, um colar de pedrinhas cintilantes, parecia uma fada, uma princesa. Os grandes olhos azuis do pai dela brilhavam como duas bolitas lindas. Os lábios bem rosados e a face empalidecida faziam o contrates com tudo que estava ali, da mesa cheia de carne à pele negra, retinta, da velha empregada da família. - Eta moça bonita, sô! Isso é que é muié e não aquilo que tenho lâ in casa! Não é assim que os ômi dizem por aí, quando gostam da gente? - perguntou, fazendo um agrado à moça, que era tida por ela como uma verdadeira filhal. - O que é que tu queres saber, Bene? Pergunta e eu respondo; fica mais fácil para mim. - Me fala, aí, de qualqué cosa; dus namorado tá bom. Cumecemo pur aí. - É "qual-quer" e não "qualqué"; "coi-sa" e não "cosa"; "dos" e não "dus"; são "na-mo-ra-dos", com "ésse"; o correto é "está", e não "tá";' começemos", e não "cumeçemo". È "por" e não "pur". Fala um pouco certo, Bene; dói os ouvidos! Parece caipira! - E, nís semo, memo! - respondeu sorrindo, com muita naturalidade. - É! Não adianta mesmo! Vão morrer assim, analfabetas, vocês todas, aqui, nesse cú de mundo, longe de Deus e de tudo. Credo, menina! Não usa o nome de Deus em vão, que não presta. Nem fala nome feio, que papai do céu não gosta! - disse, em um ar quase maternal. - É cú de mundo, sim! Ou acha que isso aqui vai prá frente? Nada muda aqui. Tudo é igual desde que eu era criança. Faz quatro anos que estou na capital e nada mudou aqui; tudo igual. Nem tu, Bene, mudou; é sempre a mesma; do mesmo jeito! - Do jeito que Deus me deu, minha filha! E sou muito feliz assim. Eu tenho serventia, como bem e durmo tranqüila todos os dias. - Viu, tu sabe falar corretamente. Fica aí, se fazendo de doente prá ganhar sopinha de colher, não é mesmo! Foi tu quem me ensinou a ler, não lembra mais? - Eu sei falá certo, minha filha; mas, se eu falá certo, me corrigem! Tenho vergonha de falar certinho. Outro dia usei uma palavra de um dos meus livros; prá que! Parecia que o mundo ia desabar. Era a dona e o marido caindo de surra em cima de mim. Onde é que já se viu falar assim, estranho? me dissera e tive de ficar quietinha. - Não pode se envergonhar de saber as coisas, Benedita. Tem que se orgulhar disso! Tu me ensinou a


gostar dos livros! Se não fosse tu, eu não teria ido para a Faculdade; tu sabes disso! Eu sou muito grata por isso. Do contrário, teria ficado aqui, como todo mundo, na graxa de porco e no esterco de vaca, limpando chiqueiro e varrendo piso, até que conseguisse marido! - Não abusa da sorte, mocinha! Crê em Deus, que ele é pai! Os teus sonhos vão de fazer feliz, mas tens que ser boa e dedicada. Trata melhor tua mãe; ela merece; é a única mãe que tu tens. O pai, a mesma coisa. Fala com ele, com jeito. Eles te amam muito e não tem dia que não falem em ti, com saudades, preocupados com o que possa estar de acontecendo. - De bobos! Sabem que estou bem - respondeu, interrompendo o sarau. Eu e o Manoel vamos muito bem, obrigado. - Então é esse o nome do moço? - perguntou, aproveitando o mote, olhando sorridente e maternal para a filha. - É. - Ele é bom para ti? - Um anjo que caiu do céu, vó! Eu gosto muito dele e ele de mim. Somos muito felizes. - E..., as coisas já aconteceram?... - Que coisas? - Ora, tu és uma moça inteligente e meias palavras bastam. Aquilo, aconteceu já ou tá guardando para mais tarde? - Ah, entendi; aquilo! Sim, aquilo já aconteceu há muito tempo, aqui mesmo no campo. - Credo! Nem fala isso que a patroa fica uma fera. - Ah, o que que tem? Isso é uma coisa muito normal hoje em dia. - É! Não aqui. Gente de respeito não faz isso sem mais nem menos. Deus castiga a fornicação, minha filha! - Que fornicação, Bene? Trepar é uma coisa muito simples e boa; faz bem para a pele e para o espírito. As pessoas ficam mais leves e gera mais paz. É melhor se amar do que ficar se matando nas esquinas, não é mesmo? - É verdade; o amor é a mais importante das coisas. - Como eu estava contando, Bene, o Manoel é o melhor homem do mundo. Ele é carinhoso, bonito, inteligente, meigo, gostoso, atencioso, um gato e tanto! - Isso é muito bom, filha; que Deus te guarde e conseve isso sempre assim. A felicidade é cara para uns; outros, têm abundancia de tudo. Deus te agraciou com isso: alegria, beleza, inteligência e sorte! Isso tu tens desde pequena! Peralta que dava dó, mas uma boa menina, mesmo assim! - Manoel é estudante de medicina, como eu. Só que ele estuda na federal e eu na católica. Ele não paga nada; eu, uma fortuna todo mês! - Por que a diferença? Não dava prá tu ter de graça, também? - Dava; só que era mais difícil passar no vestibular. Eu fiz e rodei; na católica, não; fiz de cara e já passei. - Quem paga os estudos do namorado? Ele trabalha? - O governo paga tudo nas federais! Ele só estuda; os pais mandam grana todo mês de São Paulo. - Ah, ele é doutro estado. Não são meio geniáticos esses paulistas. Tinha um aqui na cidade que era um nojo; homem chato uma barbaridade; parecia um príncipe. Não cumprimentava ninguém! Nem olhava prá gente. Era irmão do Chico, o marido da Julieta, da Estér, lembra? - Não; o Manoel é uma doce criatura. Estudioso que dá gosto, vó! Ele quer ser cardiologista. Eu vou ser pediatra. Vamos nos casar assim que nos formarmos e vou embora prá São Paulo com ele. - Não faz isso, minha guriazinha! Vai matar os velhos do coração e não há médico que faça sarar! Fica conosco. Volta prá cá, abre o teu consultório e casa com um moço bonito daqui! São Paulo é tão longe... - Não dá, Bene! Aqui não tem campo? - Como não tem?! E isso aí tudo, o que é? - Não falo de terra. Isso é o que tem de mais aqui. Falo de campo de trabalho. Aqui no sul o mercado tá saturado. Tem médico demais! Eles se pecham todo dia em todos os lugares. Tem mais médico do que paciente, acredita? - Tanto assim? - Tanto assim. - Bom, seja o que Deus quiser; ele é grande e é pai; há de iluminar os teus caminhos, por onde quer que passe. Eu vou morrer por aqui mesmo; estou no fim da vida. Quero ser enterrada ali, bem ali, naquele morrinho - disse, apontando para o ponto vermelho, longe, reto, do outro lado da estrada -, onde estão os meus pais. - Deixa disso, Bene; tu estás forte como um aço. Bugre não morre tão cedo! - Bugre, não! Também não esculacha a raça. É negro. Negra é que sou! - Tá bom, minha negrinha do coração! - disse, beijando a testa da Benedita e saindo em direção à sala, cantarolando uma canção da cidade. A negra ficou ali, entretida com a comida, cozendo, a carne que salpicara ainda há pouco. Pensava na tentativa da patroa de ensinar a médica a salgar a carne; saber inútil, para ela. Que fazer com o saber carnear e charquear? Nada. Só para contar para os amigos, como é a vida aqui no interior. Os carros, as buzinas, a fumaça, o metrô, aquele mundaréu de gente se atropelando pelas ruas lotadas. Não ia ser fácil prá ela, viver lá. As imagens da cidade grande, vistas na TV, passavam em sua mente, tentando construir uma idéia de como seria a vida da moça, naquele estado distante. Salgar a carne; do chifre aos casco, tudo se aproveita.

Conto 68, de 24/08/2000, quinta

As gêmeas João Protásio Farias Domingues de Vargas


Sentados num banco, no pátio de uma universidade, duas amigas conversavam sobre coisas corriqueiras da vida. - Joana, a inveja daquela fulana ali, que vai passando, toda empinada, é insuportável. - É, mas eu acho que ela não é invejosa, mas cobiceira, Ana Paula. - É? Não são a mesma coisa? - Não. Na Psico eles distinguem os dois conceitos. - E como são? - Ah, é longo o papo. Quer ouvir? Demora, mas eu explico; tenho um tempinho ainda, antes de começar minha próxima aula. - Eu também; agora, só amanhã; o Titiar não veio e fiquei de folga nos dois próximos períodos. Vou para casa estudar para a prova de amanhã. Fala, que eu te escuto. - Parece aquele programa da televisão. Bom, quanto à cobiça e à inveja. Tem até filme sobre isso: Sete pecados capitais, com o gatíssimo Brad Pitt. Você viu? - Vi. Ele tava o máximo, não é mesmo? As cenas eram muito chocantes. A cena do gordo, no início, me deu ânsia de vômito, até. - Voltando. A cobiça é positiva e a inveja é negativa. Vou dizer por quê. Tem-se cobiça quando se deseja algo que não se tem e outra o já tem. A gente fica querendo ter aquilo também. A palavra "também", aqui, é muito importante. A gente permite que o outro tenha a mesma coisa; só que queremos tê-la, também. Por exemplo, colar grau é um desejo saudável; nós cobiçamos a colação dos formandos, não é mesmo. Isso é muito positivo. Ter um par de brincos bonitos que vemos nas orelhas de uma pessoa que nos pareceu linda com eles, é muito saudável. - E a inveja? - Ah, bom; essa é diferente, ainda que parecida, em parte. Por isso as pessoas confundem tanto uma coisa com a outra. Temos inveja quando não queremos que uma outra pessoa tenha algo consigo, tenhamos ou não a mesma coisa, queiramos ou não a coisa só para nós; queremos tirar algo de alguém apenas para que ela não tenha aquilo! É maldade pura. A inveja é perniciosa, viu? Chamam de olho-grande a pessoa invejosa. - A cobiça é coisa boa e, a inveja, má. É isso, Joana? - Foi o que eu acabei de dizer, Ana Paula. Está prestando atenção? - Não está vendo, mulher? Estou prestando atenção. Sou toda ouvidos. Continue. - Chata de galocha, eu vou continuar; mas, pára de fazer gracinha, tá legal? Quando queremos uma pessoa para nós, como objeto de amor, e ela já está com alguém, não há como cobiçá-lo, a menos que aceitemos a divisão, o compartilhamento, um time-shering, por assim dizer. É inveja, se queremos ela só para nós! O olho que botam no nosso namorado é um olho invejoso, no mais das vezes. Se quer tirar só uma casquinha, é cobiça. - Então, é a exclusividade do uso, a diferença específica entre uma coisa e outra. - Sim, dona aristotélica, dona cartesiana, é isso mesmo! - Aristotélica é a vovozinha, Joana! Vai te catar! Olha alí, passando!... Uuuaaauu! O gatão da engenharia! Vamos curtir um pouquinho o passo do gato! Que patinhas, meu Deus! Que lábios! Que homem!! As duas ficaram secando o moreno que se dirigia ao Pavilhão 12. Calmamente, com alguns livros seguros pela mão esquerda, encostados na virilha, fumava tranqüilo, enquanto olhava através de seus óculos escuros. - Uuuau! Me dá até calafrios, esse homem! Que homão, amiga! Que omão! Um desses tá faltando lá em casa prá alegrar a baia! - Te acalma, Ana Paula; o cara já é comprometido! - Com aquela sirigaita? Duvido que dure. Eu ia fazer ele muito feliz, se estivesse comigo. - Corre atrás, então, se o quer tanto assim! - disse, voltando os olhos para a amiga. - Não dá; ele nem me olha; nem sabe que eu existo. - Tá cobiçando ou invejando? - Acho que... as duas coisas ao mesmo tempo. - Impossível! Uma ou outra. Ou quer ele um pouquinho só e cair fora; ou quer que a outra perca para você o rapagão. - É; isso. Primeiro um pouquinho só, compartilhado, para ver se é bom mesmo; depois, todo só prá mim! - São essas as duas opções táticas que pensou? Te manca, Ana Paula! Não te ocorreu que de repente o cara tá muito feliz com o corpo e a alma da sirigaita que tu diz? Pode ser que tu destrua a felicidade do cara só para ter um pouquinho daquilo que tu pensa que ela tem e tu não. - Ah, e daí? Que é que tem? Ela é uma galinha mesmo! Tá com tudo quanto é cara; nem respeita os namorados da gente. Fica se refestelando toda, com aquelas roupas justinhas, aparecendo a bunda, peito prá fora e rebolado idiota! O homens ficam babando pela imbecil. Não sei o que vêem nela! Enfeitiça os caras. Deve fazer milagre na cama! - Tá com ciúmes da mulher, agora? - Eu, hein! Ciúmes daquela pechereca? Nem morta, minha filha! Eu é que sou mais eu, tá sacando? Não tenho ciúmes coisa nenhuma! Eu tenho é ódio dela; se pudesse, dava um cano legal e sampava fora! - Credo! Agora virou tirânica, bandida. O que é que ela te fez para merecer tanto ódio assim, de uma só vez? Quero ser tua amiga para sempre; eu, hein! - Ah, sei lá! Ela fica ali, com aquele rabo abanando para todos os caras que vê, que nem uma cadelinha no cio; isso me incomoda muito; acho que não está certo dar em cima de todo mundo. - Eu não vejo assim a Cristina. - Cristina?!? É esse o nome dela? Como sabe? É tua amiga, por acaso? - Eu faço uma cadeira com ela. Ela me parece legal; nunca conversei com ela, mas, não me pareceu tudo isso que está pintando; o quadro tá um pouco exagerado, amiga. Ela é muito simpática. A beleza dela é que incomoda tanta gente; e os caras ficam babando por ela, é verdade. Ela, pelo que vi, tá sempre na dela; não dá bandeira e gosta muito do namoradinho, o Paulão. Não tem culpa de ser uma mulher bonita e gostosa e, o que é pior, loiríssima! - De farmácia, tá na cara. Agora, tá do lado dela ou do meu, amiga da onça?


- Nenhum nem outro! Não estou defendendo ela e nem o cara; estou simplesmente dizendo o que penso. Não posso ser injusta com uma pessoa que não me parece ser assim, no quadro que tu estás pintando agora. Ela é uma graça de pessoa. Não quero dizer que ela seja uma santa, pois não a conheço bem; é só uma colega de aula em uma cadeira. É óbvio que estou do teu lado, mas não vou ser injusta com a imagem da mulher. Ela não é como tu estás pensando. Ela é muito diferente. - Me achas invejosa por isso? - É claro que estás invejando o namorado dela! É uma inveja daquelas, das grandes! O que tu imagina da namorada do cara serve mais para ti do que para ela. - Pode parar! Chega! Agora deu prá ofender, não é mesmo? - É o que eu penso; só isso e nada mais. - Eu não sou uma frustrada como tu, que não consegue namorado de jeito nenhum; vive sozinha, trancada, com essas porras de livros! Intelectual! - Graças a Deus! Me lembrei que tenho um compromisso urgente e já estou atrasada. Adoraria ficar na tua adorável companhia, mas não posso. Adeus, Ana Paula. - Cachorra! - Pilantra! - Mesquinha! - Eu?! Te olha no espelho, lambisgóia! - Puta! Vadia! - Santinha do pau-oco! - Paranóica! - Esquizofrênica! - Gardenal! - Mediquinha de meia tigela! - Advogadinha de porta de cadeia! - Chega! - Imbecil! Fez-se silêncio no banco, vazio. A Cobiça sempre dialogou, deu-se bem e fez-se passar pela Inveja, suma irmã gêmea; univitelinas, nascidas do ventre da ignorância, tendo por pai a irracionalidade.

Conto 69, de 25/08/2000, sexta

Uma casinha no campo João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Felicidade é uma casinha branca no campo, com cerquinhas azuis, no sopé de um morro, rodeado de flores e planta, mata virgem, córrego de águas cristalinas e um grande pomar, com muitos pássaros, borboletas e animais silvestres; harmonia com a natureza; paz e tranqüilidade. Isso é felicidade, para mim. - Érica, credo, não tem seres humanos nesse teu conceito de felicidade? - Ora, Oscar, eu pressuponho nela eu e você, seu bobinho. - Felicidade, para mim, é um pou-qui-nho diferente. Um big apartamento no centro de uma grande capital, com vista para o mar, arejado, muito bem decorado, com sol batendo o dia inteiro, muitos elevadores, porteiro vinte e quatro horas, uma mulherzinha bonita, meiga, carinhosa, inteligente e gostosa, que trabalhe o dia inteiro, ganhe muito dinheiro e seja apaixonada por mim! - Mas, isso tudo tu já tens, meu bem! Está satisfeito com esse mundinho daqui, gatinho lindo... Que legal que te sente feliz desse jeito. Mas, eu queria isso e mais a casinha branca de cerquinhas azuis; uma casa de campo, para fugir um pouco do mar. - Eu, como vivi quase minha vida inteira em uma casinha azul de cerquinhas brancas no campo, prefiro esse maravilhoso apartamento aqui, sem sentir saudades daqueles velhos tempos. - Qualidade de vida, Oskar; é isso. Essa poluição me incomoda muito, querido. Barulho de carro, fuligem de ônibus, burburinho de pessoas; essa esquizofrenia do dia-a-dia é uma loucura só. Tu eras feliz e não sabias, não é mesmo? - Não! Eu tinha a casinha dos teus sonhos e não era feliz; feliz, para mim, eras tu, que tinhas o apartamento com vista para o mar dos meus sonhos. - Me dá a casinha, que eu te dou o apartamentinho e vamos ser felizes para sempre. - A casinha é tua, meu bem, não se lembra; tudo que é meu é teu, meu bem, meu bem, meu bem. - Mas eu não moro lá e nunca fui visitá-la. - Fica uns 3.000 quilômetros daqui apenas. Dá para ir num pulo só! - De avião é rápido, mas não dá para ficar lá e aqui, ao mesmo tempo; eu queria ficar só lá. Me leva para o sul, gaúcho; me leva, vai. - Calma, carioquinha do meu coração. Eu te levo, mas não agora. Quando der, tá legal? - Tá legal, gauchinho; tá legal. Eu espero; tu sabes, eu sou pacienciosa, mas sempre consigo o que quero. - É, eu sei; mas não quero morar lá nas terras da minha infância. Não volto mais para morar lá, nem morto. - Ah, que pena! Eu gosto tanto do campo, da natureza. Um dia tu muda de idéia e vamos ser felizes; mais felizes, tu vais ver só. Toca o telefone. - Alô! Dr. Oskar, por favor! - É ele. Quem fala?


- É Maninho, o irmão de Érica; ela está? - Só um momento; vou verificar. - Érica, é para você; o irmão - disse, passando o aparelho sem fio. - Antônio!!! Há quanto tempo, cara! Que bons ares o fazem ligar para essa humilde e esquecida irmã? Fala, maninho! - Érica, vou ser rápido; estou num telefone público e o cartão está no fim. Estou em um "m" daquelas! Dá prá me ajudar de novo? - De novo, Toni?! De novo, não! O que é dessa vez? - A martinha, a do meio, caiu e quebrou a arcada dentária, no meio; preciso de grana para a cirurgia, implante e tratamento. Custa uma fortuna e estou descapitalizado. - De quanto? Eu também estou mal de grana; mas, sempre se dá um jeito. - Dois. - Dois, o quê? Desembucha, homem. Dois mil? - Dois milhões. - Impossível. Não tenho isso nem para mim, que dirá para outros! Exagero! Quer pagar todas as dívidas e comprar casa na praia... Quer ficar rico nas minhas costas, irmaozinho?? - Não é nada disso, Érica; a martinha tá mesmo mal. Vai ter que pôr uma nova arcada dentária; duas, na verdade; uma em cima e outra em baixo. Foi um desastre; uma fatalidade. Ela tem cinco anos e o tratamento, para ficar bom mesmo, só nos esteites. - Como? Nos Estados-Unidos? No Brasil dá prá fazer isso tão bem quanto o yankees e por muito menos! Quem é o cirurgião dela? Já procurou os professores da federal daí? - Já. Eles é que aconselharam ir. É em Massachusetts; hospital universitário. Tudo computadorizado, mas uma fortuna. Oitocentos dólares por dia, no hospital, fora o aluguel da aparelhagem e a mão de obra da equipe médica. - E o resto do dinheiro, vai fazer o que com ele? - Comer, ora; comida, hospedagem, deslocamento e medicamentos. - Por quanto tempo? - O que for necessário. Uns seis meses, mais ou menos. Dois milhões dá um milhão de dólares americanos, mais ou menos. É pouco dinheiro; penso até que pode faltar. - É muito dinheiro, quando é tu quem está emprestando. Pouco porque não sai do teu bolso, não é? - Pelo amor de Deus, mana; não tenho mais a quem recorrer. É a tua sobrinha; é para ela que estou pedindo. E não é dado; é emprestado. - Como os outros todos? A fundo perdido. Tu não paga nem os juros, meu caro. Vou pensar. Me dá uns dias para pensar, conversar com o Oscar e ver o que vamos fazer. Se acabar o cartão, liga a cobrar, certo? Mais alguma coisa, irmãozinho? - Só mais uma coisa. O pai está bem e a mãe, daquele jeito que tu conhece muito bem. Minas tá pegando fogo de tão quente! Bom é aí, no Rio, não é? Numa beleza de apartamento, sem ver a miséria do povo daqui! - Batalhei para isso, mano! Não é luxo; é conforto, apenas. - É, eu sei. Manda um abraço ao maridão; diz que eu gosto muito dele e assim que pudermos vamos visitá-lo; mas, não sem antes receber vocês em nossa casa, certo? - Certo. Tchau. Te cuida, viu? Abraços a todos - disse, pondo o fone de volta ao aparelho. Parou um pouquinho, pensativa, voltando-se para o marido. - Qual é o problema, Érica? É grave? Pela cara, não deve ser coisa muito boa. - Não, não. Tá tudo bem. Uma das filhas do mano está com os maxilares quebrados, os dois; vai ter que fazer cirurgia e ele queria alguns conselhos. - Conselho agora se chama dinheiro. Eu ouvi muito bem. Dois milhões. De onde vamos tirar isso tudo? Nem pensar. Eu sou contra emprestar. Ele não tem como pagar quantia tão grande. - É, mas, se não for assim, a menina vai ficar deformada; pode até morrer. Como é que a coitadinha vai se alimentar; não poderá levar uma vida normal. Temos que ajudar. Não com uma soma tão grande, mas com alguma coisa. Vê se pode acionar os teus amigos médicos dos Estados Unidos. - Posso tentar; sabe como são os americanos; tudo é à base das verdinhas. Não são como nós, bondosos. Tudo é dinheiro. Favores? Nem pensar. Eles não fazem isso. Mas, vou tentar; eu prometo. - E, com essa, os nossos sonhos de felicidade parecem tão imbecis, não é mesmo? O que é felicidade, agora, nesse momento, para a menina, se não uma arcada dentária nova? Que conceito caro, esse, de felicidade, quando se trata de salvar coisas, satisfazer privações, corrigir ou imitar o que a natureza dá de graça, com o corpo, desde o nascimento? - É; barra, né? Vamos dar um jeito. Ela vai ficar boa, você vai ver. Vamos ajudar como pudermos. Afinal, é tua sobrinha; é teu irmão quem está pedindo. A propósito, esse apartamento não vale nem o que ele está pedindo emprestado. - Muito menos, meu bem! Muito menos! Que droga, né? Ainda bem que não estamos lidando com doença alguma aqui. Que bom! Mas, vamos esquecer um pouco, esse problema, tá? Não vamos nos preocupar mais do que o pai dela, certo? Não adianta nada. - É. Vamos ver um filme!? - Boa idéia. Qual é o cardápio? - Está passando um muito bom, no Shopping Marraquesh. Vamos vê-lo? Quer saber sobre o mesmo? - Não. Vamos sair um pouco desse apartamento. De repente ele ficou pequeno demais. Está me sufocando. Vamos embora, já. - Vamos. Saíram. O que entendemos por felicidade não parece mesquinharia diante do que é necessário para certas pessoas ficarem felizes? É. Dureza, leitor. Felizes somos nós, que precisamos de tão pouco para ser felizes! Um filme, muitas vezes, ajuda ou desajuda nossas consciências infelizes... ou felizes! Fugir não vale o dia para ter só pesadelos. Essa frase eu escrevi, muitos anos atrás, num poema de adolescência. Um filme pode muito bem substituir o filme da nossa realidade, quando ela está dura demais e não resistimos a uma única cena recorrente. Faça assim, leitor, veja um filme quando o filme não puder mudar na sala de projeção de sua consciência. Mas, não esqueça; filme é filme; sempre tem fim.


Conto 70, de 26/08/2000, sábado

Dialética rauliana João Protásio Farias Domingues de Vargas

Estava pensando num trecho de uma música de Raúl Seixas. A frase dançava em torno da cabeça, dentro dos ouvidos, em volta dos neurônios, nas descargas dos dentritos, nas moléculas de lítio: "Agora eu vou dizer o oposto do que eu disse antes". - Eu não tenho medo de ser contraditório, meu caro - disse João Carlos, olhando as unhas, nos dedos dobrados sobre a palma. E repetiu: - Não tenho medo nenhum! - Eu, de voltar a trás - afirmou José, olhando os olhos e as unhas levemente descuradas do amigo, preocupado com alguma coisa, absorto. - Acho que todos os dias da vida estamos diante de comportamentos e falas contraditórios. Muita coisa não pode ser conciliada com a lógica formal; a lógica das coisas é outra; uma lógica diferente. Mudando a lógica, muda-se o julgamento lógico. O que era contraditório, deixa de sê-lo. Muitas vezes é preciso mudar o paradígma para mudar o paradígma para se resolver problemas aparentemente insolúveis. - Paradígma. Palavra mágica. Princípio. Modelo. - Tudo na vida tem um paradígma, um modelo que lhe é próprio, ínsito, interno, que faz fazer sentido o que quer que seja - disse João Carlos. - O que importa, antes de tudo, é descobrir o paradígma da coisa. De qualquer coisa, mesmo. O paradígma está no olho de quem vê, na cabeça de quem pensa, ao mesmo tempo em que está na própria coisa, para o intérprete. É como se estivesse na coisa ou é como se estivesse na cabeça; ou, inda, é como se estivesse o paradígma tanto na coisa quanto na cabeça? - Acho que a última colocação está mais correta. A mente está sempre direcionada para as coisas, internas ou externas, para as coisas que constituem relações entre coisas, em suma, sempre para um ponto específico, não é mesmo, José? - Acho que sim. E como falar, então, em mudança de paradígma? O que isso significa? - Se, José, paradígma é um modelo, ele serve para muitas coisas; é abstrato. É uma estrutura que permite ver, como um par de óculos, como as lentes pelas quais se vê a coisa. Óculos de alguma coisa nos permite ver uma coisa de um determinado modo, segundo o modelo ou paradígma imanente à própria lente. Se quero ver diferente, ou ver outra coisa, na mesma coisa, preciso mudar as lentes, mudar o modelo, o paradígma. Para ver uma coisa juridicamente, preciso de um modelo jurídico; para ver sociologicamente, preciso de lentes de sociólogo, e assim por diante. - Lentes de jurista não permitem ver sociologicamente uma coisa. É essa a tese que estás afirmando, João Carlos. - É; não dá. Por isso é que, para se poder saber o que se está vendo, antes de tudo é preciso se perguntar qual a natureza do par de lentes que se está usando. Se ele estiver errado, vê-se o que não se quer e, se não se percebe o erro, confunde-se as coisas; troca-se uma pela outra. Uma ilusão é ótica, diria, redutivamente. - Há alguns discursos, João, que evidenciam, com termos técnicos, precisamente isso. Falam em recorte diferente, olhar diferenciado, novo corte epistemológico, novo traçado, outro redesenho, visão singular. A expressão que melhor me apetece é olhar diferenciado. Efetivamente, há muitas maneiras de olhar uma mesma coisa. Dependendo do jeito, tira-se conclusão diferente. - Se quer alguma mudança, descubra o paradígma atual e encontre um novo paradígma para substituílo. Enquanto não mudar o paradígma, não durará as coisas. - Eu penso do mesmo modo, companheiro José. Agora, um parêntese. José é nome bíblico, não é? - É judaico. É esse um dos paradigmas do nome. A pergunta pressupõe um paradígma, não é mesmo? - Qual? - perguntou João Carlos. - Quando não se sabe qual é o paradígma, o paradígma é um enigma. Um paradígma enigmático. Não se consegue dar uma resposta pela falta do paradígma. Descoberto ele, enche-se de significado a coisa e resolvemos o problema. A pergunta já dá a pista, traz o índice - para usar uma expressão da semiótica peirceana; no caso, a expressão "origem bíblica". Trata-se do pedido de confirmação sobre a origem religiosa do nome. Poderia ser outro o paradígma buscado. Por exemplo, quem te deu o nome, o pai ou a mãe? - Estás perguntando ou apenas falando? - Falando. O paradígma seria a origem familiar do nome; quem deu a idéia; quem deu o molde, o modelo. A resposta poderia ser o pai. O nome José teria paradígma dado pelo pai. O modelo do pai era bíblico, sabendo ou não disso. - Complicado isso tudo. Então, a tese agora é a de que uma coisa possui muitos paradigmas? - Sim. Cada coisa possui infinitos paradigmas, conforme o recorte do olhar, o que se busca na coisa. Por isso o paradígma está, ao mesmo tempo, na coisa e na cabeça do intérprete. - E o paradígma do paradígma, qual seria? - perguntou João. - Um terceiro paradígma, que se resolve numa petição de princípio. A coisa que gera a coisa, que gera a coisa, que gera a coisa e assim até o infinito. Mas esse é apenas o paradígma da legitimidade ou da genética. Poderia ser outro qualquer. Cada pergunta denuncia seu paradígma ou modelo que permite a formulação feita. É o paradígma o que dá o significado genérico para as coisas. Cada ângulo constitui um paradígma determinado, singular. - Algumas pessoas falam como se houvesse apenas um paradígma possível para cada coisa, que desse o que Aristóteles chamava de essência da coisa, distinguindo isso do que ele chamava de acidental ou existencial. Para mim, cada detalhe acidental constitui outro paradígma. A essência ou facetas da essência constituem novos paradigmas. Cada paradígma influencia, condiciona, outros paradigmas que estiverem em jogo. O que tu pensas disso? - O mesmo que tu; é isso mesmo. Cada coisa, cada paradígma. Quanto mais conhecemos uma coisa, tanto mais paradigmas dispomos dela. Podemos conjugar paradigmas formando sínteses paradigmáticas,


que constituem novos paradigmas. - Qual é vantagem, então, em chamar cada conhecimento, cada saber, de paradígma. São sinônimos. Um jeito intelectualizado ou dificultoso de usar uma palavra comum. - Nada disso. Paradígma e conhecimento específico de uma coisa são coisas distintas, ainda que o próprio paradígma constitua um conhecimento. Só se encontra um paradígma quando se tem a diferença específica de cada coisa, no recorte do olhar de quem vê. - Tá confuso. E sobre a causa formal, não teríamos um paradígma causal formal? Paradígma formal material, eficiente, e assim por diante? - Sim e não. Sim, porque tem razão; cada saber, um paradígma que lhe corresponde. Não, porque sem descobrir o paradígma de comparação, não sabemos distinguir uma coisa de outra. Duas laranjas postas sobre a mesa. Cada laranja, um paradígma. A identificação "laranjas" advém de um paradígma externo, de um conhecimento formal e material diferenciado, que nos permite identificar as laranjas como sendo de uma mesma espécie e, ao mesmo tempo, distinguir uma da outra. Assim, por dizer, a da direita e a da esquerda. São iguais e diferentes, ao mesmo tempo. Daí dizer sim e não, com aparência de contradição; contradição formal, mas não material. O contraditório para a lógica formal pode não o ser para a lógica dialética. - Então a noção de paradígma só se entende mediante a lógica dialética? - Isso mesmo. A lógica do movimento das coisas é que nos ensina a identificar os paradigmas que a lógica formal esconde, porque é cega quanto ao andar das coisas. Ela não permite o uso da variável tempo e espaço, ou seja, dar a dimensão histórica. A formal é ahistórica, estática. - Isso me lembra os seus princípios básicos: tudo se transforma, tudo se relaciona, a luta dos contrários contraditórios e o salto qualitativo. Em novas palavras, princípio da transformação universal, princípio da conexão universal, princípio do contraditório e princípio do salto qualitativo. Quer ouvir sobre eles? - Pode falar. Ajuda muito. O que entendes pelo último? - O princípio do salto qualitativo demonstra que quantidade gera qualidade, que as coisas não progridem apenas paulatinamente, mas dão saltos de qualidade, em suas transformações. A água, adicionando calor até uma certa temperatura, gera um salto de qualidade, transformando a água em estado líquido para água em estado gasoso. Resfriando, tirando quantidades de calor até o graus celsius, a água congela, gera a qualidade de estado sólido. Tudo isso em CNTP - condições normais de temperatura e pressão. - E o primeiro princípio? - Tudo se transforma. Todas as coisas estão em permanente movimento, transformando-se em coisas diferentes, ainda que isso possa ser imperceptível. Só na aparência as coisas não mudam. O homem, nasce, cresce e morre. Há um movimento permanente em tudo. De letra em letra formamos palavras, a letra e a palavra são qualidades diferentes. Damos um salto de qualidade, pelo significado. Daí que um princípio se realiza com a participação dos outros. - E o princípio da conexão? - Esse é muito importante. Tudo se relaciona. Há uma conexão possível do que quer que seja com outra coisa qualquer. Sempre há relações. Nada está isolado. O próprio ato de perceber constitui uma conexão, uma relação entre o sujeito e a coisa. Teclado está relacionado com monitor e com torre de um computador. Apertando uma tecla, vê-se uma letra sendo escrita em um texto que imita uma folha de papel. É como se houvesse uma caneta dentro, na tela do computador. Dizendo isso, relaciono tela com folha de papel, com caneta, com outras coisas. O estabelecimento da relação é, ao mesmo tempo, subjetivo (sujeito pensante) e objetivo (coisa externa, diferente, singular). O homem-criança é o mesmo homem-velho, havendo milhares de relações possíveis entre um e outro. - E o princípio do contraditório, como é? - Esse é especial. A tese e a antítese geram uma síntese, que não é mais nenhum dos dois anteriores, mas um terceiro, singular. Tudo na vida possui o seu oposto e está em contradição com ele. Assim, se a tecla é a tese, a pressão do dedo é a antítese, gerando a síntese, uma nova qualidade, posta por um salto, relacionado e transmutante, que chamamos letra, no programa editor de texto, na tela do monitor. Se o nariz é a tese, o ar que é sorvido é a antítese, gerando a síntese respiração. Se o homem é a antítese e a mulher a tese, o filho é a síntese. E, assim, por diante. - Muito bem, João. Sabe tudo de dialética, hein? - Que nada, José. Isso é apenas o beabá, mas sem isso não se consegue encontrar nenhum paradígma nas coisas, i.e., aquilo que és estável e característico em cada coisa. - Isso eu concordo. A mudança de paradígma também passa pela apresentação de um paradígma que lhe sirva de antítese, de modo a surgir o terceiro paradígma, o novo, resultado da mudança. É da contradição estabelecida entre os dois paradigmas que surge o novo. A mudança é operada pelo embate dos dois. Podemos dizer, também, que a consciência do paradígma e a sua crítica pode levar à assunção de um novo paradígma, emergente da vontade e da crítica postas. - Os modelos tendem à estabilidade, na mudança. Só se vê mudança se houver um modelo explicativo que permita enxergar e explicar um fato como sendo a mudança. - Isso me lembra um ditado que uma pessoa me disse outro dia. - Qual? - "Se pode olhar, vê; se pode ver, repara". Não sei de quem é, mas se adequa muito bem à nossa discussão. Há dois paradigmas na máxima: paradígma do olhar o paradígma da reparação. Esse só é possível se houver aquele; aquele só é possível se levar em consideração um terceiro, anterior, o paradígma da visão. São três, e não dois, portanto. Um existe em função do outro e, assim, sucessivamente. Não sabemos qual é o paradígma anterior ao da enxerga e nem qual é o posterior ao da observação. Sabemos que há, mas não os conhecemos. Para que isso seja possível, é preciso completar, complementar e suplementar a máxima. Com isso estaremos criando uma outra máxima, que não é mais aquela; uma nova, resultado da contradição entre dois velhos para o surgimento do novo; do atual e do aditamento, gerando o atual aditado. Foi José Saramago quem trouxe essa questão à baila, no início de seu livro "Um ensaio para a cegueira", e que achei muito oportuno citar agora. - Então, de posse desses conhecimentos trazidos à baila pelo debate, podemos dizer que Raúl Seixas estava certo. Dizer o oposto do que se disse antes é profundamente dialético; trata-se de um falseamento do antigo, uma mudança radical de paradígma. - É isso aí, a Dialética Rauliana.


Conto 71, de 27/08/2000, domingo

Repetição de bêbado João Protásio Farias Domingues de Vargas

Nunca soube ao certo a razão pela qual os bêbados se tornam repetitivos. Pode ser que a medicina toxicológica ou a psiquiatria freudiana expliquem, dentre outras tendências, mas, sinceramente, nunca fiquei satisfeito. Algumas vezes acho que não escutam direito o que dizem e por isso têm a impressão de ainda não terem dito o que tornam a repetir. Outras vezes, penso que é pelo fato de que o bêbado acha que o outro não ouviu o que disse e, por isso, repete de novo. Uma terceira hipótese é aquela que insiste em afirma que o bêbado repete pelo fato de que não ouve o que diz e pensa que o outro não escuta a sua fala; seria uma espécie de surdez causada pela lentidão dos pensamentos, quando todos os neurônios pedem socorro, morrendo afogados, uns agarrados nos outros, cada qual tentando se salvar. - Es-cu-ta!... Tá...Tá ou-vin...do? Tá ou-vin-do, eu... disse? - insiste o bebum - Estou ouvindo perfeitamente, senhor - responde o garçom, já impaciente. - Bo-ta mais um co-po, aí, que que-ro dá um go-lão pro san-to! - Pro Santo?! Que santo é esse? O senhor tá acompanhado? - Sim. Esse aí, na tua fren-te; o an-jo da guar-da! E-le é ti-nho-so, viu? - responde, tentando ser enfático. - Ou-viu? - Sim, senhor. O santo é quem bebe; não o senhor; é isso? - E-xa-ta-men-te! Hic! É o san-to mais be-bum - hic! - que já vi na mi-nha vi-da. Ah, e da fa-ce da terra tam-bém. Hic! Be-be que nem um con-de-na-do, viu? A-go-ra vai lá den-tro e traz lo-go o go-le do santo, gar-çon - de - mei-a-ti-ge-la! Vai! An-da, ho-mem de deus! Cor-re! Per-nas prá que te que-ro, que o san-to tá com se-de e fi-can-do ir-ri-ta-do! O garçom estava dando as costas, quando o bêbado o chama de novo. - O que é agora, senhor? - Hic! Já te pe-di uma be-bi-di-nha - hic! - pro meu - hic! - san-to a-qui? Es-se, de pa-la to-do bran-co? Hic! En-tão, tô pe-din-do. O garçom, quieto, voltou-se para ir lá dentro, quando, de novo, é chamado. - Hic! Gar-çon! Uma be-bi-da, por fa-vor! - Eu ouvi. O senhor já pediu três vezes a mesma coisa - disse o garçom, já se irritando. - Hic! En-tão, que tá es-pe-ran-do a-in-da a-qui? Hic! Essa ficou com jeito de piada, não é leitor? É, mas não é, não. É Conto assim mesmo!

Conto 72, de 28/08/2000, segunda

Síndrome alpino-ciclista João Protásio Farias Domingues de Vargas

Imaginando um diálogo muito interessante, com duas figuras históricas bem conhecidas. João Paulo conversava com Simone um papo muito filosófico, sobre a idade da razão. - Quando as relações se deterioram a tal ponto de não ser mais possível qualquer forma de convivência civilizada, os envolvidos só tem duas alternativas. - Ainda há alternativas em um caso desses? - Sempre há alternativa; a questão é alternativa para o quê. - E quais são as duas? - Ou pioram as coisas juntos ou rompem a relação em definitivo, com absoluto distanciamento. A mais fácil é a primeira; a segunda, somente se um deles conseguir. - Por que é mais fácil; não me parece; afinal, temos o livre arbítrio. - É verdade. E, por que será que é mais difícil saltar fora de uma relação? - Eu não sei; a tese não é minha. Responda você - disse Simone, alisando o cabelo e observando as pontas agrisalhadas. - Respondo pela tese. Falo de uma relação a dois, homem e mulher. Se as relações estão deterioradas e não conseguem se afastar, algum problema há que está acima da vontade de um ou dos dois. A questão primeira é descobrir qual é o super-problema existente. Na maioria das vezes ele se torna invisível aos olhos de quem já não suporta mais a relação de opressão que se estabeleceu, mas não vislumbra saída; não consegue ver os caminhos paralelos e os cruzamentos. A única via existente parece ser a larga avenida em que se movem. Uma cegueira toma conta da vista; é como se a relação gerasse uma catarata progressiva e o único ponto de apoio fosse o próprio algoz. Um mal menor. É típico de uma relação de


opressão a vítima enxergar no opressor um fiel amigo para encontrar a saída. Há uma hipnose viva, atuante e permanente. A escravidão, a servidão que se estabelece com grilhões invisíveis e poderosos só termina quando a catarata terminar; e isso pode durar a vida inteira. Uma cultura de tolerância que se transforma num sadomasoquismo bárbaro. - Então, a vítima se submete masoquistamente e perde as forças que poderiam lhe impulsionar à mudança de vida. É isso? Mas, o que estás dizendo é que a vítima não tem opções senão permanecer onde, como e com quem está? Lá fora seria bem pior, na cabeça do oprimido. A ignorância sobre os outros caminhos existentes é a base da permanência e conservação da relação deteriorada. O problema comunicacional se torna cultura; de agudo vira crônico. Isso só tende a piorar. Quando acaba? - Não sei; varia de pessoa para pessoa. Deve haver outros valores que possam estar em jogo e que sejam mais importantes do que a liberdade ou a tranqüilidade de quem não se sente livre e está sempre a perigo. - Chamo isso de Síndrome do Alpinista. Faz todo o esforço possível para ir em frente, mas sabe que ao chegar no topo, terá de voltar atrás. A única saída é subir, pois é subindo, escalando perigosamente que ele se afirma como tal. Ele é empurrado para cima por si e pelo outro. O alpinista é a vítima de si mesmo e da montanha que escala, sua algoz. Ele não se reconhece fora dela; seu desafio e possibilidade de ruína a cada instante. A perícia da sobrevivência lhe garante os segundos e, ao mesmo tempo, a certeza de que tudo não passa de um meio, cujo fim nunca termina; nada se conclui senão pelo meio mesmo de estar onde está, e do modo em que encontra. Trata-se de uma relação perigosa; de um viver perigosamente, na solidão dos dois; ninguém por perto para socorrer, que possa ser visto; se vê, não consegue ser escutado. Fica-se sozinho, isolado, num objetivo que se sabe sempre inacabado; um eterno retorno ao mesmo lugar. A montanha nunca termina. - Que estarrecedor! E a segunda alternativa; essa me parece mais simpática. Como se estrutura? - Trata-se da Síndrome do Ciclista. Está sempre indo em frente, e corre para chegar primeiro. Domina o trajeto; sabe onde quer chegar, vitorioso ou não; entretanto, sempre dá muitas voltas pelo mesmo lugar, como se andasse em círculos. Dependendo da pista, o trajeto nunca é igual. Sempre vai em frente até um ponto de chegada. Mas, pode ir além dele e não parar mais; pode romper com o meio e ir em frente, só parando onde desejar. Está em grupo, mas anda sozinho; está por si. Depende da bicicleta, mas pode se desfazer dela e seguir com as suas próprias pernas. É ele quem leva a bicicleta, mas também é ela quem o carrega. Ele depende dela para objetivos comuns, mas pode mudar de rumo. - Ora, os apetrechos do alpinista, a montanha e seu equipamento também fazem as fezes da estrada e da bicicleta. As duas síndromes me parecem muito parecidas nesse tocante. São, também, ambos, competidores solitários; um escala montanhas; outro, o asfalto, a estrada; um sobe e volta; o outro vai e vem. Num caso temos a escala vertical; no outro, a escala horizontal. Num, cordas e argolas; noutro, rodas e correias. Ambos dependem do que carregam; cada um tem as suas próprias malas, o seu próprio peso. - É isso mesmo! A mudança implica, em qualquer dos casos, em desistência ou em vitória. Ambos desafiam a si mesmos e aos outros. A escalada depende de tudo, de todas as variáveis. A diferença é que o alpinista precisa confiar na montanha como sendo sua amiga, mesmo sabendo que ela pode traí-lo a qualquer momento, e isso será fatal. A estrada também pode fazer isso, mas não haverá um tombo tão grande que possa por em risco, em definitivo, a sua vida. Andar junto ao chão, firme, tem suas vantagens. Num caso, há risco grande em subir; mas o risco de descer é sempre bem maior; e isso porque só se pode descer de costas e a favor da gravidade; descer na mesma trilha pode ser mais perigoso do que escolher um novo caminho; a trilha de subida dificulta o retorno. Na montanha, a força que se vence é a da gravidade; na estrada, a do atrito. - Depois de iniciada a subida, é mais difícil a desistência; o esforço de descer é tão grande quanto o de subir; a sensação de derrota é mais evidente para o alpinista do que para o ciclista- disse Simone, seguindo a linha de raciocínio do interlocutor. - O suicídio é muito mais fácil para o alpinista do que para o ciclista - completou João Paulo. - Quem sabe por ser tão fácil, seja mais difícil ao alpinista tentá-lo do que para o ciclista. Esse tem menos oportunidades de por fim ao mundo; já, para aquele, o mundo está sempre por um triz. - O que o portador da síndrome de alpinista não vê são as coisas piorando; já o portador da síndrome de ciclista não vê é que as coisas estão se rompendo. O sonho de todo alpinista é ser ciclista e viceversa. Na verdade, a SA exige uma contrapartida da SC; assim como não há masoquista sem sádico, não há alpinista sem ciclista. Se há um alpinista, pode ter certeza, o homem ou a mulher que o acompanha é um ciclista. O alpinista faz a continuidade e o ciclista faz a ruptura; aquele conserva, esse tenciona; aquele desliza, esse tropeça. O alpinista está no fim do horizonte; o ciclista está no começo do céu. São antípodas que se complementam. Na dialética hegeliana, o alpinista é a tese e o ciclista a antítese. Qual é a síntese? - Estás perguntando, João Paulo? - É isso aí, Simone; perguntando. - O cáos equilibrado; um exige perícia, cálculo e paciência; o outro, liberdade, direção e velocidade. Um equilíbrio caótico é o que constitui a síntese dessa barbárie. - Quem tem a síndrome de alpinista e não tem, ao seu lado, alguém com a síndrome do ciclista, está fadado a ficar sozinho, e vice-versa. - Os opostos se atraem enquanto um não contaminou o outro a tal ponto que se igualem; quando isso acontece, passam a se repelir, assumindo o exato oposto do outro. A imantação das trocas fixa a temporalidade da relação. É a Física invadindo o terreno social. Que disparate! - Não há ninguém aqui para defender a Sociologia! - disse, sorrindo, JP. - Não fica nem rubrada ao jogar a Física contra a Sociologia! Afinal, somos filósofos, não é mesmo? - É. Vamos tomar um café? - Onde. No centro; em qualquer lugar. Estou cansado de discutir a minha tese. Acho que não ficou boa. Fui convincente? - Um café ajudaria muito. Saem os dois. João Paulo pegou um charuto novo e, Simone, o novo chapéu. Ao descer as escadas, o sapato novo dele rangia, denunciando o seu primeiro uso. - A tese das síndromes é boa, mas não se adequa ao problema inicial, João Paulo. - Também acho. Olhando bem, vejo que a saída deu noutra coisa. Bem, tanto faz. Retomamos depois e tentamos outra saída, está bem? - Está. Melhor aglutinar as síndromes. Que tal síndrome ciclo-alpino? Melhor: síndrome alpino-ciclista?


Ele não respondeu nada de imediato. Acendeu o charuto, com uma grande baforada, antes de ganharem a porta de saída, e respondeu: - Síndrome alpino-ciclista fica melhor para caracterizar a relação entre os dois contrários complementares. Poderia ser gato e rato e não mudaria muito; a caracterização é a mesma. A alameda estava toda florida, no Maine. Havia um cheiro agradável no ar e o sol brilhava como nunca, naquela manhã.

Conto 73, de 29/08/2000, terça

Canto e flauta João Protásio Farias Domingues de Vargas

Foguinho era um camarada que veio estudar na capital, no final dos anos 70 e ficou na cidade grande. Era magro, muito pálido e tinha cabelos vermelhos. Usava uma flauta doce enquanto cursava o segundo grau. Tinha fama de galinhão, de batedor e bebia feito um condenado. No início da década de 80, andava sempre junto com um outro, chamado Carioca, baixinho, moreno e conversador. Aquele estudava; esse fazia política. Não era por acaso que se davam tão bem. Vindo de origens tão distintas, costumavam dividir o resultado da pilhagem social que o vandalismo amoroso sempre proporcionava. No final das tardes, ficavam sentados em frente à 1005, o local onde costumavam estar, antes de partir para os campos da Redenção, local de caça certo, na época. Atacavam todas e sempre arrastavam pelo menos duas. Um garrafão de vinho, cigarro e música de rádio era tudo de que dispunham como atrativo para o encanto das prendas, além, é claro, da lábia de sempre. Eram famosos e sempre estavam em todas as bibocas. As festas das casas eram os locais de predileção. Ninguém tinha dúvidas da perdição. Eram como que predadores natos; matavam por matar. Colecionadores e contadores de estórias. Ser um bom narrador dava bom status; fosse verdade ou mentira, entretiam a todos, sem muito sensacionalismo. Mas, sempre se saíam bem. Eram heróis de si mesmos. - Eu sou um Átila - dizia Foguinho. - Não. Tu és o cavalo de Átila - corrigia, de pronto. - Não sou o cavalo; tu és o cavalo. Eu sou o Átila - retrucava. - Prefiro outro personagem, tipo Asdrúbal, o Terrível. - Que nada, Carioca. Tu és as patas do cavalo de Átila! - Acho que o apelido se adequa melhor a ti. Veja bem. Podemos dizer que tu és as patas do cavalo de Átila; onde tu passas não cresce nem pasto! Não é assim que tu te portas, arrasando tudo? Por onde passa não fica pedra sobre pedra. Não sou e nem quero ser Átila, o Rei dos Hunos! - Queres ser, então, quem? - perguntava, infantilmente, ao amigo. - Eu sou Ghengis-Khan, o Mongol. - Há, há, há, há! Átila e Khan! Grande dupla! Gostei. Ghengis-Khan também era um bárbaro; pior, até, do que Átila. Ele é que não deixava pedra sobre pedra por onde passava. Era o terror do Oriente, até onde sei. - Ficou bem. Olha só: Átila Foguinho e Ghengis-Khan Carioca! Dá até para fazer uma dobradinha caipira de canto sertanejo! - Eu canto e tu flauteia. Fica bom assim? - Canto e flauta... Hum! Pode ser. Ficavam assim, ali, tergiversando enquanto a tarde caía na alameda, no centro da cidade grande. Entretiam-se com os próprios sonhos, aspirando a liberdade que longe dos pais conquistaram. Pareciam irmãos, exceto pela aparência. Almas gêmeas vindas de tão longe. A intensa amizade não durou muito. Certa feita se desentenderam por pouca coisa e nunca mais se falaram. Foguinho roubou os melhores livros estrangeiros de Carioca e, esse, consumiu com flauta doce, terminando com os sonhos e as ilusões da época. Ambos casaram, cursaram faculdade, tiveram filhos e viraram funcionários públicos. Nenhum dos dois se reconhece mais pelos seus apelidos. Semana passada tive a rara oportunidade de passar por ambos, em lugares e tempos diferentes. O que era gordo virou magro; o que era magro ficou gordo. Nenhum me viu passar, felizmente, mas o relance do encontro visual permitiu essa doce lembrança daqueles tempos idos. Na verdade, tudo era flauta, mesmo o canto de Carioca. A orquestra de canto e flauta durou pouco, mas o tempo, naquele tempo, parecia eterno.

Conto 74, de 30/08/2000, quarta-feira

Vai com calma, Miguel João Protásio Farias Domingues de Vargas


Estava lembrando da famosa lei de Murphy enquanto se dirigia à casa, pela Av. Sarmiento Leite, na subida da Engenharia para o Rosário, em direção à Rodoviária. Riu um pouco da expressão, lembrando-se da cara do amigo, quando lhe formulou a lei pela primeira vez. É verdadeira a expressão. A gente sempre pensa que o pior é o limite, mas não é. Sempre há um modo de ficar mais ruim do que já está. Tinha em mente os dois volumes de Arthur Bloch, traduzidos pelo Millôr Fernandes e ilustrado pelo Jaguar, editados pela Record. São duas partes: " A lei de Murphy e outros motivos por que tudo dá errado" (12 ed) e " Mais motivos por que tudo dá errado (7 ed). Ao seu lado vinha uma moça, ligeiramente apressada, no mesmo sentido e direção, tentando ultrapassálo, compenetrada, sem olhar para os lados. De repente, o atropelo. - Desculpa, moço. Estava com pressa e tão absorta que nem percebi a sua presença na calçada - disse se desculpando e desacelerando. - Não tem problema; às vezes eu também ajo assim - disse, em sua calma habitual. - Como se chama? - Etelvina; e você? - Miguel Soares. Muito prazer - disse, erguendo a mão para o cumprimento. A moça apertou a mão e sorriu, como que, por encanto, se despreocupasse, por um momento. - Vejo que está muito preocupada. - Dá para perceber? É, estou com um pepino dos grandes; mas, não vem ao caso. Está indo em direção à Independência? - É, vou até ela. Quer uma carona? - Quero. Esta Avenida é tão escura à noite. Tenho até medo de andar por ela; mas, o que fazer? É o caminho mais perto até à parada de ônibus no Rosário. - A violência não está fácil, hoje em dia, não é? Ninguém está à salvo dos assaltos. Fazem isso até durante o dia, em pleno centro. - Eu estou ressabiada; fui assaltada três vezes; uma foi ali na Oswaldo, na saída da Faculdade. Dois caras me abordaram e levaram a bolsa; não deu nem para ver a cara deles. Saíram correndo, um para cada lado. Corri para dentro da Reitoria, loca de medo; os guardas me acudiram. - Estuda o quê? - Eu estudo arquitetura, mas não como aluna; sou professora da disciplina Decoração de Ambientes. - Deve ser muito interessante a matéria. Nunca imaginei que isso pudesse ser conteúdo de disciplina. Desculpa a ignorância; é que sou de outra área. - Qual é a tua área, Miguel? - Eu leciono Epistemologia. - Amarrado num Thomas Kuhn, hein?! - disse, brincando. - Nem tanto Kuhn, nem tanto Popper; sou mais Lakatos. Conhece a área? - Não; tenho um amigo que escreveu uns volumes sobre o tema e, certa época, conversamos muito sobre o assunto. Ele era da Filosofia. - Quem sabe eu conheça; é da Federal? - perguntou, demonstrando grande interesse. - Era; não sei se ainda é. Ele lecionava História da Filosofia, no Campus do Vale. Chamava-se Toni; só conheci ele pelo apelido. Mas, isso faz uns dez anos atrás. - Não conheci; pelo menos, hoje, não está lá. - É; eu acho que ele está na Europa, fazendo o pós-doutorado. Há uns dois anos me mandou um e-mail. Acho que era a Sorbonne 4 a universidade. Era apaixonado pela semiótica de Peirce. A paixão dele era estudar nos EUA, mas não conseguiu bolsa para lá. Estavam chegando na pracinha, quando o papo da semiótica entrou em cena. Atravessaram a avenida, na altura do monumento da esquina. Ele foi acompanhando a professorinha, em direção ao ponto de táxi que havia ali. - Mas, o que a preocupava tanto, ao me encontrar? - Estava com medo de você. Vi apenas um vulto à minha frente e quis passar rápido. Nunca se sabe, né? Pode ser gente boa, mas não se deve arriscar a essa hora da noite. Como a gente se engana com as pessoas? As aparências enganam muito. - De costas, parecia bandido? - perguntou, aflito. - Não, não; nada disso. Eu é que tenho uma imaginação fértil. Quando termino minhas aulas, saio correndo por esse mesmo caminho. Estou com o carro na oficina há quase um mês e raramente consigo carona. - Casada? - Sim; com dois lindos e maravilhosos filhos. E você? - Isso é bom. Eu sou solteiro, ainda; mas, pretendo casar um dia e ter muitos filhos lindos e maravilhosos. - Filhos são bons, mas dá trabalho; felizmente os meus já estão grandinhos; não preciso me preocupar tanto com eles. Ficam com a empregada durante o tempo que estou no trabalho; só os vejo pela manhã e à noite. Estudam aqui nessa escola - disse, apontando para o prédio em frente à praça. - Boa escola. Quantos anos têm? - Eu? Trinta e um; por quê? - Já que disse, obrigado; havia perguntado a dos filhos. - A menina tem nove; o menor tem sete. - Começou cedo, hein. - Cedíssimo. Tive de parar tudo nos primeiros anos; mas, isso já passou. E, você, quantos anos tem? - Trinta e três anos bem vividos - respondeu, olhando para o táxi vermelho estacionado bem na esquina. - Como é jovem! Pensei que tivesse muito mais; aparenta mais idade. Era a idade do meu marido, quando nos separamos, há dois anos. - Eu nunca me casei, mas já tive a experiência conjugal; aprendi que ela não é eterna e dura pouco se não houver atenção específica à própria relação. - É isso mesmo. Aliás, mesmo que se dê atenção a ela, sempre tende a findar. Eu e Pedro Oscar nos amávamos muito; num belo dia ele disse que ia fazer o doutorado dele na Espanha e se foi, deixando todos os encargos nas minhas costas. Dois anos depois ele me mandou um e-mail com uma história de conseguir um emprego e nos levar para lá. Cheguei até a acreditar, mas não quis ir morar. Um dia, de surpresa, comprei passagem e fui visitá-lo. A separação veio no mês seguinte. - O que aconteceu na Espanha? - Nada de mais. As praias de Barcelona são lindas. Ele estava muito bem; muito bem mesmo. Só não deu para continuarmos. Ele mora lá até hoje. Cristina, a mais velha, foi passar as férias do último verão com


ele. Não gostei do estilo de vida deles; ele mudou muito. A distância separa qualquer pessoa, se dura muito tempo. Hoje ele é cidadão espanhol. - Verdade? Descendência? - Não; casou-se! - Ahhhh. Entendi. Deve ter sido barra para ti. - Muita barra! Engoli em ceco a histórico deles. Já viviam juntos quando fui visitá-lo. Ela lecionava História em Salamanca; nativa do local há muitos séculos. Muito bonita, a mulher; ele tem bom gosto! Hoje têm até filhos! - Ainda gosta dele? - Como não gostar do pai dos meus filhos? Isso é uma droga; mas, ainda gosto muito. Não do mesmo jeito que antes, como marido e mulher; gosto dele como pessoa. Sempre fomos muito bons amigos. E ainda somos grandes amigos. Sempre que ele precisa de ajuda, eu ajudo; e vice-versa. Sou eu que trato das coisas dele no Brasil. - E o marido atual não fica com ciúmes? - Que marido? Não falei em marido. Sou solteirinha da silva; livre e descompromissada, mas indisponível. - Indisponível? Não entendi. Quando disse que era casada, pensei agora que estivesse casada de novo. - Não, não; nem pensar. Casamento de novo nunca mais! Um é sempre o bastante para a gente aprender que ele só é bom uma única vez. Não pensa assim? - Não sei; nunca me casei. Acho que tenho medo do casamento, ou algo assim. Um dia eu encontro a minha cara-metade. - É, ela sempre aparece, mais cedo ou mais tarde; mas, tem que dar chance às pessoas. Não pode fazer como eu faço hoje, afastando todo mundo que se aproxima. - Faz isso? - Acabei de dizer! - É verdade; termina afastando as pessoas com muita facilidade. - Como sabe disso? - Acabou de dizer. - Não, digo quanto à facilidade. Disse alguma coisa desagradável? - Não, não; não disse nada demais. Não foi nem um pouquinho brusca na entonação da voz, quando deu a resposta "acabei de dizer!". Parecia uma cena de um personagem que falava repetidamente "tolerância zero". Acho que a afirmação minha foi, de fato, um pouco impertinente. - Não foi, não; me desculpa. Nem me dei conta; saiu sem querer. Às vezes faço isso. - Acho que vem vindo um lotação; é aquele? - Acho que é. - Bom, vou andando. Tchau! - disse, detendo-se um pouquinho, como que esperando por algo, olhando dentro dos olhos da jovem senhora que conhecera há pouco. - Tchauzinho; foi um prazer te conhecer. Como posse te encontrar outra vez? Era o que ele estava esperando. Deu um largo sorriso de satisfação, meteu a mão no bolso do casaco e puxou um cartão, oferecendo às pressas, pois o lotação já havia parado. - Obrigada, Miguel - agradeceu, lendo o nome no cartão. - Agora sei como te encontrar. - É isso aí; boa sorte e felicidades às crianças; elas têm uma ótima mãe. Cristina é o nome, não? - É - disse já dentro do lotação, acomodando-se num dos bancos da frente. Miguel ficou olhando o coletivo alaranjado se deslocar em direção ao bairro. A Avenida estava muito bem iluminada naquele local. Soprava um ventinho frio, mas a noite estava agradável mesmo assim. Voltou na direção oposta, em direção ao Centro, pegar o carro na garagem. Estava passando o Centro Comercial Independência, quase no posto de gasolina, onde pegaria o carro, quando toca o celular. - Alô! - Alô! É Miguel? Oi, Miguel. É Etelvina de novo. - Oi, Etelvina; o que é que manda? Que bom que ligou. - Agora sabe o meu número; pode ligar quando quiser. Estou ligando para te fazer um convite. Gostei muito do nosso papo; acho que podemos ser bons amigos. Amanhã eu dou aula aqui no centro, de novo; ali, na Arquitetura. Saio às vinte e duas horas e um pouquinho. O que tu achas de a gente tomar um vinho por aí? - Acho ótima idéia; eu sei de um lugar dez! - Qual? É perto dali? - Não, não é; mas, o local é muito dez. É um café novo que abriu na Cidade. Não é muito cheio, é freqüentado por gente como nós, que transa cultura, o atendimento é muito bom e tem de tudo. Chama-se Café Adolphus e fica na Cavalhada, perto da Faixa Preta. Sabe onde é? - Não, não sei. Fica muito longe. Como é que eu vou voltar para casa depois? Não posse me demorar muito, você sabe. - Eu te dou carona; te pego e te levo em casa; combinado? - Tem certeza de que não tem um bom lugar mais perto? - Não tenho, não; mas lá é muito bom e você vai me agradecer pela indicação. Posso até arriscar tudo dizendo que ele é a tua cara. Precisa ir lá para saber se eu estou te agradando ou te ofendendo agora. - Tá legal. Às vinte e duas e trinta, no Bar da Filô, pode ser? - Me liga quando estiveres indo para lá? - pediu Miguel. - Que mordomia, hein? Ligo sim. Até mais. Um beijo. - Outro - disse, desligando o celular, muito alegre. Estava parado em frente ao posto, sem se dar conta de onde estava. A alegria era tanta que o funcionário Mário notou a diferença e brincou com ele, dizendo, com uma ginga elegante, que tinha mulher bonita no pedaço do doutor. Miguel sorriu e disse que sim e que era daquelas! O carro já estava pronto. Entrou e deu a partida, em direção à independência. Enquanto dirigia, ficou pensando em algumas cenas da presença inusitada da mulher e de quanto se deram bem e tão rápido. Achava ela uma morena muito bonita. Só não gostou que tivesse filhos, e grandes. Lembrou do pensamento de Murphy e concluiu que ele estava errado. - Nem sempre as coisas pioram, meu amigo Murphy - disse, em voz alta, sozinho, pondo uma música para rodar. - Nem sempre pioram! Deus é grande; não joga, mas fiscaliza! Se tem aquela, também deve ter outra: "Nada é tão ruim que não possa melhorar!" Estava feliz; até havia esquecido os problemas do dia, das turmas, do carro, da viagem e do partido. Estava nas nuvens, volúvel como era!


- Vai com calma, Miguel; vai com calma! - disse consigo mesmo, em tom de auto-aconselhamento e cautela.

Conto 75, de 31/08/2000, quinta-feira

Os deuses de Vik João Protásio Farias Domingues de Vargas

José Saramago, importante escritor português da atualidade, na obra Um Ensaio Sobre a Cegueira, antes de iniciar a fala, cita um adágio muito apropriado para a temática de nossa tratativa atual. Diz ele: "SE PODE OLHAR, VÊ; SE PODE VER, REPARA" Há um ditado atribuído a Confúcio: "Como pode querer tirar o cisco do olho de alguém, se tem uma tábua atravessada no seu olho?" A direção dos conteúdos são diferentes, entretanto, encontram-se em algum ponto da cadeia dialética de relações que possamos entabular. Efetivamente, primeiro resolva os seus próprios problemas, depois os dos outros; primeiro trate de sua própria cegueira, depois da do outro; uma tábua no seu olho é pior do que um cisco no olho do outro. Olhar e ver são coisas diferentes, profundamente diferentes; assim como ver e reparar diferem muito. Pode-se olhar; é impossível não olhar, tendo-se os olhos abertos, essa câmera biológica que tudo registra. Entretanto, é possível olhar sem ver. É nisso que consiste a cegueira de que fala Saramago: o olhar sem visão. É a primeira cegueira possível. Há uma segunda, a visão sem reparação, sem recorte, sem detalhe, sem especificidade, sem direção. Podemos, assim, falar em cegueira da vista e em cegueira da visão. Não basta poder ver; é preciso reparar.

¤¤¤ Em um café, num Shopping Center, à beira do lago Guaíba, em Porto Alegre, parte mais meridional do Brasil, dois homens e duas mulheres conversavam entre si, enquanto esperavam a hora de chegada para irem assistir à estréia de uma importante peça de teatro que estava em cartaz. Os ingressos estavam comprados e havia duas horas de espera, devido ao atraso do elenco. - "Mudar completamente o destino da vida" não é tarefa fácil em sua compreensão prática e nem em sua compreensão teórica. Saramago joga todas as fichas na capacidade do olhar; Confúcio, na capacidade de ajudar. Sem visão e ajuda, como mudar o destino da vida? É disso que queremos tratar, ainda que com brevidade, nessa pequena interlocução. - Cigano, não acha que o papo é muito pesado para uma discussão de Shopping? Vê essas pessoas bonitas circulando pela livraria? Elas estão procurando algo para comprar. Esse tema não é mais importante do que mudar o destino da vida? Discutir Saramago e filosofia chinesa da época dos Mandarins tem alguma coisa a ver com isso? - Ora, Vik, é claro que tem - atalhou Maritânia. O que Cigano quer dizer é precisamente isso, que tudo pode ser discutido envolvendo a questão do olhar, inclusive o consumismo da classe média e a produção da beleza burguesa ditada pela moda dos países ricos. - Maritânia tem razão, Vik - disse Orlando, de olho no relógio e cocando os pelos bastos do braço. A vida é muito complexa; tão complexa que contém tudo o que quisermos tratar, seja do que for. Mudar o destino da vida é mudar qualquer coisa, por mais insignificante que possa parecer a alguém. Há milhares de micro-revoluções na vida das pessoas a todo segundo. Michel Foucault, na Microfísica do Poder, tenta demonstrar isso com muita propriedade. Fala aí, meu guru - arrematou, olhando sorridentemente para Cigano. Ele é o meu bruxo, sabiam?? - Assim, vocês me deixam encabulado - asseverou Cigano, fazendo um trejeito na face, fungando e coçando o nariz. - O papo não é sério gente! É muito descontraído e corriqueiro. Tratar da mudança de vida é muito trivial em qualquer lugar do mundo. Tudo está mudando a todo instante; a diferença é o salto qualitativo das mudanças que queremos que ocorram e que demoram para se realizar; temos, então, uma aparência de ausência de mudança; mas, é só aparência. As coisas novas que surgem não param nunca de mudar; elas já nascem morrendo a todo instante, enquanto se vão transformando em um novo algo novo. O novo surge do velho que já foi novo e assim por diante. - Isso me lembra uma frase dita em um filme a que assisti ontem na TV, enquanto descansava um pouco e interagia com o mundo normal. A protagonista, uma física americana, falava de um acontecimento científico, uma descoberta que poderia mudar completamente o destino de nossas vidas. Fiquei pensando em quais acontecimentos podem mudar completamente os destinos da vida. Eu tive um fato que fez isso: quando eu passe no vestibular e entrei na faculdade de jornalismo - disse Maritânia. Parou um pouquinho, tomou mais um gole de café e continuou a falar, descontraidamente. - Posso continuar? Não estou enchendo o saco com o papo? Está bom. Eu, antes de me formar, nunca havia sido jornalista e hoje minha vida inteira gira em torno do meu trabalho, coisa mais importante do que todas; até, porque, é dele que tiro o sustento de minha vida. Meus amigos, meus amores, meu dinheiro, minhas viagens, meus conhecidos, meus camaradas, vocês todos, tudo isso eu consegui através do meu trabalho como jornalista. Se não tivesse passado naquela droga de vestibular, não estaria aqui; se não tivesse passado em cada uma das provas finais, em cada disciplina, também não estaria aqui; se não tivesse estudado cada um dos conteúdos, para passar, também seria diferente o meu destino; o retardo


do acontecimento de algo também é uma mudança do destino. O destino não está escrito, como dizem erroneamente as religiões, mas é escrito a cada instante; estamos a todo segundo construindo a nossa biografia, não é mesmo, gente? - A Maritânia disse tudo - atacou Cigano, olhando ternamente a jovem mulher. - Eu não acho, gente - atacou Vik. Eu discordo de todos vocês. Acho que o destino está escrito sim, pelas divindades que acreditamos. Eu não sou igrejeira ou templária, mas percebo que quando algo tem que acontecer, acontece. A gente vai em uma cartomante ou faz um mapa astral e está tudo ali. Basta ver e seguir. Ele está pronto e não podemos mudar o destino. Alguém, deus ou a natureza, decidiu por nós o que somos e o que seremos adiante. Se a divindade não quiser, nós não iremos ao Teatro hoje, daqui a uma hora, por mais que queiramos; pode acontecer um desastre, pegar fogo no Teatro, morrer um dos atores, atrasar o vôo deles, acontecer uma tragédia aqui e agora. Tudo é insegurança; não podemos prever nada; temos de nos sujeitar ao destino. Há fatalidade em toda parte, vocês não vêem? - Credo, Vik, que pessimismo, hein! Vira essa boca prá lá! Eu, hein! Cruz, credo! Tá conseguindo mudar o destino da nossa conversa; isso não é prova maior de que podemos mudar as coisas, independentemente da vontade dos deuses, mas sim pela vontade dos homens; melhor, de alguma mulher? - disse, debochadamente, Maritânia. - Tudo é o destino. Se os deuses quiserem que esse papo chato continue, ele continuará; do contrário, não; mas não sou eu quem decide. Os deuses decidem através de nós. Somos marionetes nas mãos escrupulosas deles. - Isso é antiguidade pura, querida! - disse Orlando, irritado. - Todos concordariam contigo, entre 500 e 2000 anos antes de Cristo, na Grécia Antiga, exceto alguns poucos filósofos, como os sofistas. Platão entraria em orgasmo com a tua colocação. Mas, por outro lado, Aristóteles, já teria suas dúvidas. O papo daqueles que hoje acham que estão transando pós-modernidade é mais ou menos esse. Eles ressuscitam o passado e dizem que isso é tudo novo; que nunca existiu. É claro, a história terminou para eles; não têm condições de perceber os acontecimentos da linha do tempo e no processo histórico que lhe deu origem. O pós-moderno atual é atrasado mesmo! É do tempo das cavernas! É uma involução cultural! Moda ditada por cegos para cegos! - Calma, aí, Orlando. A Vik não deixa de ter razão - disse Cigano. - Viu, babaca! Eu também tenho razão - disse Vik, olhando furiosa para Orlando, enquanto simulava dar-lhe um beliscão no braço, infantilmente. - Explica isso, Cigano; eu quero entender a verdade da cegueira da Vik - redargüiu Orlando, olhando dentro dos olhos da Maritânia, num evidente flerte cobiçoso. - Explico - disse Cigano. A pós-modernidade é sinal de mudança, assim como ter acesso às informações de búzios, tarôs, cartas, mãos, pais-de-santo, etc. Efetivamente, o destino está traçado pelos deuses e não podemos mudar a vontade deles! Surpreendo vocês com essa afirmação? Era o que eu queria. - Não há contradição na afirmação? - perguntou Maritânia, que estava quieta, toda ouvidos. - Sim e não. Respondo me valendo da lógica formal e da lógica dialética, conjugadas. Só pela formal, você teria razão, pois ela é cega para o movimento das coisas; é lógica do estático. Só pela dialética, não veríamos as coisas individualizadas, fora de seu movimento, pois é cega para as estruturas individualizantes. A conjugação das duas nos permite dizer que Vik tem razão. Tomou um gole de chopp e continuou. - Os deuses de Vik é a História total, com todos os seus personagens, com seus processos, eventos, episódios, momentos, fases, trechos, capítulos. Se olharmos para trás, história abaixo, na linha hipotética do tempo, de qualquer arremate ou ponto que nos fixarmos, veremos que seguem uma certa trajetória. Se quisermos dizer, agora, que os fatos já passaram, que era para que isso acontecesse mesmo, e quiséssemos dar um nome ao autor da obra do destino de alguém, o que nos impede de darmos o nome a essa hipotética pessoa de Deus ou deuses? Nada nos impede. Estaria errado? Não. Trata-se de uma metáfora histórica, de uma comparação abreviada apenas. Estamos dizendo a mesma coisa. Cigano acendeu um cigarro, deu uma baforada, olhou o relógio e continuou. - No início da fala, Vik queria falar sobre o presente imediato, sobre a observação possível sobre o que está se passando aqui e agora no Shopping. Isso é também fazer história. É o reparar de Saramago. Vik estava aplicando o princípio de Saramago, ainda que sem o saber, penso eu, correndo o risco de estar errado. Estávamos com duas orientações conjunturais de ação diferenciadas; dois projetos, duas propostas politicamente distintas. Uma convidava à análise abstrata de princípios e, a outra, à análise concreta dos fatos da vida ao alcance dos olhos. Escolhemos a primeira, ainda que sem perder o fio da meada do presente. Tanto o é que estamos de olho no relógio, controlando o tempo, buscando fazer a história conjunta de nós quatro para daqui a pouco, não é mesmo? Ir ao teatro juntos é fazer um minúsculo pedacinho da história de nossas vidas uma história comum, precisamente em um fato que planejamos e vamos realizar. Agarrou a mão de Maritânia, num sinal evidente de carinho. - Nós podemos mudar o destino das coisas sim; assim como podemos atribuir a mudança que operamos a alguma divindade, através da crença religiosa que tivermos. Isso importa, mas não muda substancialmente a realidade. Pode não parecer tão científica a explicação de Vik, mas ela não deixa de ter razão histórica e científica. Importantes pesquisadores dedicam suas vidas para provar que o que estamos pensando está errado; como dizer que eles estão errados, se sempre podemos correr o risco de olhar para trás e corrigir os entendimentos que entendemos havidos superados, equivocados? Não temos como. Puxou Maritânia mais para perto de si, arrastando levemente a cadeira, pondo o braço sobre os seus ombros. - Pode ser que a história nos revele, daqui a alguns dias, que irmos juntos ao Teatro não foi uma boa idéia; é o contrário do que estamos pensando agora. Como saber do erro, se não formos dar as caras nas coisas? Quem sabe faz a hora, não espera acontecer, já dizia o tio Vandré, nos tempos da Ditadura. Nós estamos aqui para fazer acontecer, gente! Vamos à luta, que não está morto quem peleia! Não é assim que dizem, por aqui, no Sul, enfrentar as batalhas da vida? Estão convencidos do que disse? A fala foi persuasiva? Posso começar tudo de novo, com outros recortes e provas, se for necessário! - Não! Não! Não! De novo, não! Chega de processo histórico abstrato. O cara já tá agarrando a Maritânia com aquela lábia, ali, e ninguém percebeu; é um prestidigitador! E, o pior, é que ela está hipnotizada pelo papo do cara! Acorda, Mari, acorda, mulher! - disse, passando a mão em forma de círculo, bem em frente aos olhos de Maritânia. - Viu? Nem se mexe. - Está na disputa, Vik? - perguntou Orlando, rindo. - Vai em frente e muda o processo histórico.


Enquanto o cara falava sobre o passado, estava agindo no presente com muita eficácia; estava construindo o futuro deles. E nós, o que fazíamos, Vik? Ouvíamos, apenas. - Aí que tu te enganas, Orlando! Pensa que não percebi. Estavas cantando a Maritânia, mas não levou. Pensa que não vi as secadas e os sorrisinhos! Era paquera no duro, cara! Perdeu o processo histórico, diria Cigano. Todos riram muito. Poderíamos dizer que Cigano pôde olhar e viu; vendo, reparou, nos dois sentidos da palavra reparar. Isso operou mudança qualitativa na vida do grupo, naquele momento. Orlando viu, mas não reparou, por isso perdeu a hora. Vik, olhou, viu e observou, mas não reparou. Enquanto o observar é passivo, a reparação exige ação externa: é re-para-ação! O grupo deixou o Café da Livraria e ganhou os corredores coloridos do Shopping, em direção aos elevadores. Estava quase na hora do Teatro. No elevador, em direção ao estacionamento do terraço, Pacheco pensava na análise acurada de Vik. Ela, mais uma vez, a seu modo, tinha razão. Os Deuses de Vik tinham razão! Eu estava reparando. E bota reparando nisso! Sentia os dedos finos de Maritânia presos fortemente aos seus, quentes, suados e levemente trêmulos.

Conto 76, de 01/08/2000, sexta-feira

Ronda dos olhos João Protásio Farias Domingues de Vargas

Um dia Marcílio voltou ao velho quarto da casa de estudante, onde morou por longos anos, antes dos vinte. Era uma peça muito pequena; um tudo-em-um, como dizia: sala, quarto, cozinha, biblioteca e área de serviço. Estava tudo abandonado. O azul da parede descascada ainda estava ali. Vários poemas, frases e desenhos decoravam as quatro paredes e a porta cor de vinho. Ao longo da cama, junto à parede, havia o desenho, a bico de pena, de um corpo nú de mulher, deitada de bruços, com a cabeça de cabelos longos e negros escorada no braço direito. Não se podia ver o rosto, mas o corpo era belo dali até os pés. Todos os amigos e visitantes que ali chegavam deixavam seu recado escrito na parede. Eram centenas de dedicatórias, impressões, dizeres, observações e palavras de ordem. Até recados para outros havia. As datas iam atravessando os anos. Algumas se reportavam ao final da década de 70. Não sabia mais quem representava cada nome; lembrava só de alguns, e com muita nitidez. Sua alma sorria com aquela visita de saudade, tal qual os visitantes da época em que ali estava. Era o "Treblinka", como costumava chamar o esconderijo. Voltou os olhos novamente para o desenho da mulher, com suas curvas sinuosas, num belo nú; lembrou-se do quanto amara ali, naquela mesma cama. Ergueu os olhos um pouco mais, até o teto, onde viu um trecho de poema escrito em letras grandes e estilizadas, a cera negra: ......Ronda dos Olhos "Agora rondam meus olhos Outros olhos que não são os teus; E esses olhos que me miram, E que sempre me procuram, Não estão dentro dos seus; Só nos meus olhos se encontram". Os versos não rimavam muito bem, mas tinham boa sonoridade e cadência. De imediato vieram à memória os significados diversos que davam para o poemeto. Ele tinha sua própria versão. Muitos gostavam; outros, menos.

¤¤¤ Explicou, certa vez, muitos anos atrás, a um vizinho que o visitava constantemente, no mesmo dia em que o escrevera. - O poema saiu inteiro, assim, ali na parede; não mudei nada; ele diz o que diz e mais do que isso; permite que cada um veja o que lhe convém. O que vê ali? - Ora, Marcílio, diz que há um novo olho no pedaço. Acho mais; acho que o poema está dando um chute em alguma mulher. Parece uma forma elegante de dizer adeus e que há outra mulher na parada. É isso? - É. Vou explicar. O poema diz que naquele momento havia uma outra mulher procurando ele, e que não era ela, a mulher com quem estava conversando. O poema explica que os olhos da mulher que estava olhando para ele não eram os olhos da nova mulher. E termina dizendo que os olhos da nova mulher não olham para a mulher que está ali, com quem está terminando, mas sim para ele apenas. Queria dizer que a nova mulher não conhecia a mulher da despedida, ou que não se importava com ela, mas apenas com ele. - Hum, bastante criativo; bem metafórico. - É! Mas tem uma versão que eu gosto mais do que a minha própria. Foi uma garota quem deu. Não lembro mais o nome dela. Ela disse que entendeu que o cara não estava terminando com a garota que estava com ele, mas sim fazendo um ciumezinho. Ela interpretou que o cara estava reclamando atenção


da garota e por isso disse que tinha uma mulher que estava interessadíssima nele, que não tirava os olhos dele. Dizia que os olhos que estavam procurando mais ele não estavam dentro dos olhos da garota que estava ali, na frente dele (dentro dos seus); que não era o coração dela que estava atrás dele, mas o coração de outra. Enfim, dizia os olhos dele estavam começando a reparar a presença do novo olhar e que estava gostando disso; que estava se encontrando com o novo olhar. - Faz sentido. Acho até a explicação da outra bem melhor do que a tua. Quem sabe tu não tenha conseguido botar no papel exatamente o sentimento que estava sentindo; ou, conseguindo isso, não era exatamente o sentimento que estava tendo, inconscientemente, no momento em que escreveu. O poema estava revelando a tua alma, mesmo sem tu saber disso. - Pode ser, Romualdo; pode ser. A verdade é que eu nunca copiei esse poema. Vou fazer isso agora. Pegou uma caneta e o caderno e, rapidamente, transcreveu os versos, com título e tudo. Deu-se conta de algo e voltou a falar. - Percebe que os versos "outros olhos que não são os teus" e "não estão dentro dos seus" se referem a uma mesma pessoa, mesmo que o pronome possessivo difira, em segunda e terceira pessoas, em tu e ele? - É; difere; é o que faz a rima. - Acho que o poeta estava tentando demonstrar um distanciamento que estava ocorrendo naquele momento, ao tratar a mesma pessoa de "tu", mais proximamente, e "ele", mais distante, como se a pessoa presente já se fizesse ausente. - É uma sutileza muito grande; quase imperceptível. Um professor de Língua Portuguesa diria que o poeta é semi-analfabeto, pois não sabe usar para uma mesma pessoa o mesmo pronome, aproximando e distanciando, ao mesmo tempo. - E está correto; só que o poeta dobrou a Língua para extrair um novo significado; a poesia tem dessas coisas. Não é crível que "esses olhos", do terceiro verso, queiram se referir como sendo os mesmos olhos de "dentro dos seus", do quinto verso. Senão, seriam olhos que vêem e que não estão dentro dos seus próprios, i.e., dos mesmos. Seria uma contradição. A menos que quisesse dizer que os olhos são cegos, que não vêem; não me parece que seja o caso. - O sexto verso, "Só nos meus olhos se encontram", é muito sugestivo. Quer dizer, pelo menos, duas coisas. Uma, que os novos olhos olham para os dele, poeta; segundo, que esses olhos se encontram, se acham, encontram apoio, guarida, segurança, nos olhos do poeta. Ele fala da sua nova cara-metade. É isso? - perguntou Romualdo. - É isso; há um encontro de olhares novos e um encontro de vidas novas; uma nova paixão surgindo em substituição à antiga, com quem o poeta está conversando quase em tom de desabafo. Ele está dando um fora na mulher e dizendo a razão: a existência de uma outra mulher. É isso; simplesmente isso. - O poema, nos terceiro e quarto versos, afirma que os novos olhos "miram" e "sempre procuram", demonstrando que são olhos interessados nele, poeta. Os olhos estão direcionados para ele e, se não o encontram, procuram por ele insistentemente. O poeta parece estar seguro de que os novos olhos gostam muito dele. - Muito bem, italiano. É isso mesmo. O poeta estava convencido que a nova mulher amada seria melhor do que a antiga, que parecia já não dar mais bola para ele. Tanto é que diz, como que reclamando atenção, que a nova era melhor, porque estava atenta para ele, que demonstrava maior atenção a ele. Marcílio fez uma pausa, serviu mais uma rodada de vinho e prosseguiu, fumando e falando calmamente para o amigo de colônia. - Olhos dentro dos olhos, é isso o que está no quinto verso. Os olhos da nova mulher não só não estavam dentro dos olhos da mulher antiga, como também os novos olhos não eram como os olhos dela; eram diferentes. O poema joga com o jeito do olhar, dando significados novos, para o jogo de mesmas palavras que utiliza. - E o significado do título do poema, Marcílio? Quer dizer alguma coisa além do que diz: "Ronda dos Olhos". Ronda é uma palavra tipicamente militar; rondar é estar de vigília, cuidando de alguém, atento, principalmente à noite. Trata-se de alguém em guarda; olhos em guarda, protetivos. - O poeta se sente protegido pelos novos olhos, coisa que não sente pelos olhos antigos, que estão, naquele preciso momento, na sua frente. Por isso é apropriado o título: ronda dos olhos, segurança dos olhos, no novo olhar. E está reclamando a perda do olhar da mulher que amou, já de início, nos dois primeiros versos: "Agora rondam os meus olhos outros olhos que não são os teus". Ele é meio cruel e ceco nessa parte. É a afirmativa principal. Depois vem a explicação, o como das coisas. O poema dá o como pelo por quê, também. A razão existencial do novo amor é o desinteresse do amor antigo, causa da ruptura que está ocorrendo naquele preciso momento. O poema narra o término de uma relação de amor e noticia o surgimento do novo. - Grande poeta Marcílio! Um brinde ao poema! Ele está muito bom, mesmo. Na discussão nossa eu percebi a riqueza do mesmo. Na primeira leitura, não me pareceu tudo isso. Agora eu compreendi muito bem e gostei. Só fiquei sem saber se a mulher do desenho é a nova ou a velha que se refere o poema. Marcílio ficou quieto e não respondeu. O italiano fez que não viu e sorriu, respeitando o hiato do amigo. Fizeram o tintilar dos copos e beberam um grande gole cada um, olhando para a parede escrita.

¤¤¤ Reminiscências! Reminiscências! Que época boa, pensava, enquanto estava ali, em pé, no mesmo lugar onde se passara aquele diálogo, muitos e muitos anos atrás. Os escombros do quarto ainda guardavam a ternura da época, em sua lembrança. Abriu uma das portas do armário embutido. Caiu a porta, toda carcomida de cupim. Era um buraco só. A casa inteira estava abandonada; o quarto, mais ainda. Era como se as lembranças fizessem descaso do presente, sem se preocupar com o lixo que se tornara o local. Marcílio ajeitou o colarinho, olhou por uma última vez a parede e o poema, ciente de que precisava ir. Olhou o relógio; foi quando percebeu que estava suando. Tinha uma sensação gostosa dentro do peito. Eram os amores da época. O poema estava inteiro em sua cabeça, como se tivesse recém inventado e escrito; fresquinho na mente. Olhou pelo buraco da janela do saguão em frente, observando a parede do edifício ao lado, e desceu, com cuidado, as escadarias apodrecidas. Passou as duas três câmaras escuras e ganhou a luz do dia, pela porta da frente. O dia estava lindo, como o poema, bailando em sua cabeça, claríssimo e apaixonado.


O novo amor bem que mereceu o desenho ao lado da cama. O poema conta uma história de amor e desilusão. O que um belo par de olhos pode fazer na vida de um homem!! Era a Ronda dos seus Olhos.

Conto 77, de 02/09/2000, sábado

Mestre Castor João Protásio Farias Domingues de Vargas

No Colégio de Formação de Novos Castores (CFNC), havia um professor muito religioso, ideologizado, partidarizado e funcionário público de Castorlândia. Ele lecionava sobre o entendimento da constituição daquela pequena cidade. Lidava, na cidade, com as questões de finanças. Seu maior problema era como fazer com que a cidade arrecadasse mais com o menor custo, em sua função pública; porém, como professor, ensina o inverso, como fazer com que o Estado fosse o menor possível, arrecadasse o menos possível e incentivasse as empresas a fazer o máximo possível sobre tudo aquilo que antes era função da cidade. Na infância, o seu apelido era castor, não apenas pelas feições do rosto, envolvendo olhos, cabelo e dentes, como também pelo fato de que estava sempre fussando alguma coisa, roendo alguma coisa, trancando alguma coisa, tentando mudar o curso d'água para se beneficiar. Na sala de aula, sempre usava microfone, ainda que não fosse necessário. Gritava e gritava os conteúdo ministrados daquilo que entendia como se fosse certo. Como lecionava para animaizinhos muito novos, todos, em geral, ficavam impressionados com o seu discurso e iam logo obedecendo, cedendo aos seus pedidos. Sempre combatia a lavagem cerebral que os homens da guerra fria fizeram para muitos, mas não tinha olhos para perceber aquela que ele próprio patrocinava. Castor jurava que era verdade todas as vezes que contava que viu uma santa muitas vezes em procissões religiosas. Era um homem pio, como dizia de si mesmo, além de casto. Sua vida era dedicada à cidade, tanto na defesa dos cofres como no ensino da interpretação dos estatutos máximos daquela civilização local. Além disso, gostava de se fazer de entendido na vida política da castorlândia. Certa vez até se candidatou por um partido, para refazer os estatutos da cidade, mas foi preterido em muitas vezes. Vivia grande parte de sua vida no porão de um certo templo ou capela, bem no centro de uma grande represa, não muito longe de onde estava naquele momento que o encontramos, conversando com algumas ovelhinhas muito ingênuas.

¤¤¤ - Mestre e Dr. Castor, qual é o melhor partido político? - pergunta uma das ovelhinhas, buscando encontrar uma tocha de virtude em algum. - Nenhum, minha filha. Partido bom é aquele que não chega a se formar. - Mestre, qual é o tamanho ideal da cidade, envolvendo todos os seus poderes? - perguntou a outra, com olhos cândidos e ar de quem está fazendo uma pergunta muito importante. - O mínimo possível. Tem que se diminuir, diminuir, diminuir até que não possa mais ser menor; quando chegar a isso, estamos diante do tamanho ideal; só quando não dá para ele ser menor, quando não conseguirmos deixá-lo menor, depois de todas as tentativas possíveis e imagináveis, aí, então, ele está de bom tamanho. Vai-se diminuindo do mesmo modo em todos os poderes e setores, como quem esvazia uma bola de futebol ou um balão. - Mestre, qual é a virtude típica do político? - perguntou um cordeirinho bem novinho, que parecia recém ter saído do ventre da mãe. - Político não tem virtude; só tem defeitos. Tem todos os imagináveis e inimagináveis. A política corrompe qualquer um, sempre, a todo momento. Mas, eu não me corrompi; fiz de conta que era político, mas nunca fui, hoje eu percebo; tanto é que não me elegeram. Ouvindo isso, uma ovelhinha um pouco mais crescidinha, que estava mais ao canto, no fundo, ouvindo aquilo, pediu para se manifestar. - Nem todos os políticos são corruptos, Mestre; se não fosse assim, como justificar a presença deles em todas as partes do mundo? - Você é muito jovem para saber dessas coisas meu filho; a humanidade está doente; a civilização inteira está doente. Como todos são doentes, ninguém percebe que há doença; acham que a doença é normalidade. Mas, eu percebo a doença; devo não ser o único, mas não conheço ninguém mais que consiga perceber o mal da humanidade. - Besteira, o que está dizendo, Mestre! Meu pai é político e posso assegurar que não é corrupto. Mestre Castor fez uma pausa e voltou ao ataque. - Qual é o cargo do teu pai? - Ele é deputado. - Se tu asseguras que ele não é corrupto, eu acredito. Então ele é uma das grandes exceções; sempre há exceções que justificam a regra. Qual é o partido dele, meu filho? - Ele é do PC. - Partido Comunista? Impossível ser santo; todos eles querem matar criançinhas e tirar os bens dos outros; são contra as leis da natureza, que cria a desigualdade natural, que permite as relações de ajuda entre as pessoas. Você é um comunistinha, pelo visto, também? - Sou comunista, não comunistinha, Mestre; está me ofendendo. O senhor não tem o direito de emitir juízos desse tipo das pessoas; é um agir vedado pelas normas políticas da cidade.


- Essas norminhas foram feitas pelos comunistinhas da cidade, meu filho; eu não sou obrigado a obedecê-las, se eu pensar diferente dela, certo? - Está ensinando a desobediência civil, Mestre? Uma cruzada contra os comunistas? - Eu não ensino nada de política; só ensino o que é direito, meu filho. O senhor pode pensar o que quiser a partir do que eu falo; eu digo o que penso e sem medo de ser feliz; sou contra comunistas e políticos de todo tipo; só os apolíticos que fazem política, eventualmente, merecem crédito. - Como o empresariado que faz lobby para fazer passar algum projeto que os beneficie? - Alguma coisa contra isso, meu filho. Ah, tinha esquecido que é filho de comunista; que é contra o progresso, o desenvolvimento, contra a tecnologia, a ordem amadurecida, e a favor do retrocesso, da miséria de todos. Se todos não podem ser ricos, que sejam todos pobres e só os políticos da cidade sejam ricos. Não foi assim que se ergueu o império comunista que caiu em 1989, juntamente com o muro de Berlim? Fala! O rato comeu a tua língua, menino? Comunistinha! Comunista não crê e não deixa crer em Deus, sabiam, meu aluninhos queridos? - Credo!! - disseram, em coro, vários dos que estavam ali, vidrados nas palavras do Mestre, e fizeram logo o sinal da cruz, em torno do peito, dos ombros e da face. Estavam horrorizados com a petulância do pensamento do colega, tão diferente do professor, que tudo sabia. Foram os alunos se afastando da ovelhinha, como se ela não fosse branca como eles, e fizeram uma roda em torno do professor, deixando a ovelhinha dissidente de fora, em sinal de visível reprovação. - Comunista! Comunista! Comunista! - disseram, como se estivessem dizendo um grande palavrão de profundo desprezo ao dissidente. Não sentindo acolhida, voltou as costas e foi-se embora, indignado com a situação, sentindo-se profundamente humilhado e sem argumentos para rebater o que estavam afirmando. Só sabia que era um disparate tudo aquilo e que as leis da cidade estavam do seu lado. Castorlândia não era a cidade inteira, mas sim apenas o pedaço de seguidores ingênuos do tendencioso mestre. - Viram, meus filhotes! Não sejam como ele! Se desviou do rebanho; mas a ovelha desgarrada sempre volta ao rebanho, mais cedo ou mais tarde. Eu estou sempre de braços abertos para todos vocês e só prego o que é certo e o que é bom. Comunismo é mau! Mau! Mau! Ouviram? É como se fosse um verme que estraga as maçãs boas em um mesmo cesto; é preciso apartar as ruins das boas, senão o valor da cesta inteira diminui. A aprovação era unânime das palavras do mestre, não estando ali a ovelhinha negra, que ousou duvidar da palavra do mestre. Ele ficou muito satisfeito com a reação positiva da maioria, seguindo os passos que sempre ensinou; nunca se misturar com o que não estiver à direita de qualquer coisa. A esquerda é a posição do demo, do que é ruim, do que não presta. Era isso o que ensinava todos os dias, numa cruzada incessante contra os vermelhinhos.

¤¤¤ Mestre castor entrou no seu carrão e foi em direção à casa. Estava satisfeito com mais um dia de pregação. Gostava da idéia que acalentava de si, um missionário anticomunista. Estava convencido de que o mal da humanidade estava no marxismo; o liberalismo, o sumo bem da humanidade, estava constantemente em risco por aquele. Eram o bem liberalismo contra o mal marxismo. Essa mentalidade maquineísta era tida por ele como uma grande virtude, mesmo que os tempos da guerra fria tivessem terminado há muito tempo. Era o que ensinava aos seus pupilos, no entendimento das seis e nas posturas perante a organização das coisas públicas. Não entendia como sendo um preconceito, mas sim como uma posição garantida pela posse da verdade histórica e da noção de bem comum. Era a Santa Inquisição trabalhando nas Cruzadas contra os Orientais, os inimigos da Igreja; a forma continuou a mesma, mudando apenas o conteúdo. A cruzada se tornou contra todas as formas de esquerda, os inimigos do Liberalismo. Não havia meio termo; ou estava do lado do novo cristo ou contra o novo cristo. Como a fogueira estava proibida desde há mais de uma década na cidadezinha, no seu lugar, mestre Castor assumiu uma forma simbólica, a torração política, o maltrato das imagens pessoais, as desqualificações técnicas dos inimigos por ele identificados , a tentativa de demonstrar que há uma máscara pérfida por trás de toda posição que não seja aquela apregoada como a boa e sã do liberalismo que ele pregava, em sua nova versão, qualificada pelo "new" estrangeiro, - de onde vinham todas as coisas boas do mundo, naquela atualidade -, e com uma voracidade maior e efetivamente mundial, global.

Conto 78, de 03/09/2000, domingo

Ir é preciso: conto maldito da liberdade encarcerada João Protásio Farias Domingues de Vargas

Prisioneiro de si mesmo e do Estado, o preso 630630 olhava a parede da cela com o olhar absorto, percorrendo as imagens dos desenhos que fizera ao longo dos anos de encarceramento. Um ratinho branco e uma barata vermelha eram seus únicos companheiros. A fala em voz alta sempre deu alento à idéia de que não estava só, mesmo quando se ausentava de si mesmo. Naquela manhã estava inspirado. Um facho de luz clara entrava pela fenda da pequena janela, no alto da parede norte. Quando era livre, tinha uma vida boa, nível superior, tivera família, filhos e trabalho permanente. Era um livre pensador, mesmo tendo cursado faculdade de Filosofia. A tragédia da vida imita os gregos, desde sempre. Às vezes a liberdade de ir e vir se torna pouco importante, principalmente quando se pode dispor dela sem se dar conta de seus limites.


¤¤¤ - Como eu sou a única personagem desse conto maldito da liberdade encarcerada , posso me dar ao direito de dizer o que penso sobre o que quer que seja, independentemente da vontade limitadora dos outros. E vou falar, de novo e mais uma vez. Deitado na cama, alisava o coro superior do rato, enquanto falava, como se contasse ou ensinasse o amigo sobre coisas de sua experiência de vida. - Nunca sabemos onde começa ou onde termina um rio, se não seguirmos o seu curso. Então o problema primeiro é sabermos onde estamos, no curso de um mesmo rio. Se não souber o que é um rio, pior para você; estará deveras perdido. Pegou o maço de cigarros que estava debaixo do travesseiro. - A maior prisão é aquela que está dentro de nós; se estamos atrás das grades da nossa consciência, montamos um tribunal que constantemente nos acusa e nos condena, sobre cada uma e todas as coisas, sem direito de defesa eficaz. Os advogados não são conhecidos nesses tribunais. Abriu a carteira e pegou um cigarro. - Eu fui traído muitas vezes e por muitas pessoas; mas, não há nenhuma traição que tenha pesado tanto quanto aquela na qual nós sejamos os nossos próprios traidores. Eu traí a mim mesmo centenas de vezes e me arrependo de nunca ter confiado suficientemente em mim, mesmo quando a verdade era minha fiel companheira e me carregava pela mão, feito criança. Pegou o isqueiro verde, no bolso do macacão. - Quando um homem trai a si mesmo, trai todas as pessoas do mundo. Eu sempre fui um traidor em todas as coisas da vida. Nunca confiei em nada e em ninguém. Minha sombra sempre teve receio de ficar junto a mim; e, como eu, escrava e escrava muitas vezes, não teve coragem de se libertar. No escuro da noite, sombra sempre se sentiu livre. Bastou um facho de luz e a consciência de sua prisão se denunciava nas paredes e ruas por onde andei. Colocou o cigarro sobre a boca, empunhando o isqueiro com a mão esquerda. - A vontade humana, como diz o ditado, sempre se mete de pato a ganso para se dar mal. Eu quis e quis tudo e a todos, com as garras felinas dos meus interesses imperialistas. O egoísmo é uma maça medieval de cravos pontiagudos, girando em torno de nossa cabeça. Todos os desejos perversos maceram os olhos da alma que, impotente, não tem chance de se esquivar. E golpeamos, golpeamos e golpeamos a nossa própria cabeça, como num desejo embriagado de autodestruição cotidiana. O movimento do polegar sobre o cilindro móvel fez chama aparecer feito fogo. Ergueu o braço à altura do peito, encostando o bastão branco e fino na lateral da chama ardente, queimando o papel e soltando uma fina fumaça esbranquiçada, liberando o odor característico do fumo. Era o cigarro em sua primeira queimada. Deu uma longa e dedicada tragada, incandescendo o bastão e encurtando o destino. - Todo traidor não suporta traição. Profissão: traidor. Pensar o mundo e a vida é trair o mundo e a vida muitas vezes. Esses dois seres não suportam a menor reflexão e sempre pedem que se suspenda o pensamento, que os deixemos em paz. Nunca os deixei em paz; nunca fui piedoso com o mundo ou com a vida. Sempre os coloquei no centro do palco no teatro da minha cabeça. Não que não quisesse; nunca consegui abandoná-los ao seu alvedrio. Deu outra tragada e a cinza endurecida e mole apareceu na ponta do cigarro. Os dedos trêmulos acariciavam, mais uma vez o imóvel ratinho posto entre seus dedos, beliscando leve a pele carente de sol. - Julgar é trair a si e aos outros. Profissão: julgador. Sempre fui pago pelo Estado para julgar os outros, sem ter necessidade de ser julgado pelos meus atos de julgamento. O julgamento moral é suave perto do julgamento jurídico; a massa crítica se encontra, como a água pesada, no centro de todas as bombas atomizadas, venenosas, perigosas, ativas. Julgar é puxar o gatilho da arma que detona sempre um pedaço da vida de qualquer pessoa. Certo ou errado, julgar é sempre preciso; era preciso trair para não se sentir traído. Absorto em seus pensamento, a cinza caiu sobre o cobertor escuro e ali ficou, imóvel, desfazendo-se em seu formato frágil. - Sempre que eu me sentia gigante, fragilizava alguma coisa em minha vida. A pressão do sucesso sempre teve um efeito atroz em mim. Não o buscava; mas não conseguia fugir dele, mesmo quando o conceito pudesse ser falseado e afastado da idéia de qualquer idéia de felicidade social. Deu mais uma tragada, olhou ao derredor, o chão, o teto, a fresta de luz. - Somos dirigidos pelas gerações passadas! Os mortos mandam e desmandam em nossas vidas; somos prisioneiros de qualquer passado. O presente não existe. O futuro não existe. Só passado é real e, por incrível que pareça, também não existe mais, a não ser em nossa cabeça animal. Nossa existência está na inexistência cósmica de nossa presença imperceptível. É como se um grão de areia movimentasse suas moléculas e átomos na alea que deforma qualquer matéria. Somos o nada do nada; por isso o tudo do todo. A fumaça havia tomado conta da cela, feito neblina nas manhãs de primavera. - Um pedaço de carne que ganhou movimento próprio e aprendeu a andar; somos árvores andantes com seivas de sangue, compostas pela morte do outro. Matamos para viver, todos os seres vivos que não nos causam mal. Somos um estômago ambulante, da boca à bunda; tudo o que botamos prá dentro, de alguma forma, botamos prá fora, mais cedo ou mais tarde. Por isso a nossa vida está na morte das plantas e animais que comemos. Somos assassinos da natureza e, no entanto, profundamente natureza. Não sabemos porque somos assim; somos assim e ponto final. Uma nova tragada no cigarro cedendo ao seu próprio fim era um gesto automático de matar mais uma vez os mortos caprichosos entupidos no canudo de cigarro. O cheiro de filtro queimado ganhou um novo espaço da miscelânea de odores local. Uma externa voz grave, direta e violenta gritava: - Prisioneiro meia-trinta-meia-trinta! Visita! Abram a cela 23! Rápido! Dois guardas fardados de cinza entraram para conduzir o prisioneiro. Fortemente armados e com cacetetes na mão esquerda, postraram-se nos dois lados da porta, enquanto um terceiro punha as algemas de corrente de meio metro, de argolas entrelaçadas, nos pulsos e nas canelas. - Quem me visita? - perguntou 630630, numa mescla de ceticismo e curiosidade. - Não interesse, prisioneiro! Verá quem é na sala de visita. Está pronto? Conduzindo o prisioneiro


630630! Visita é obrigatória!

¤¤¤ - O advogado está providenciando os papéis do divórcio, meu bem. Precisa ser forte e paciente. O editor está ainda lendo os manuscritos; ainda não deu notícia. Há duas semanas liguei, mas não consegui falar com ele. A Juliana está moça, já. Por que me impede que venha aqui? É um direito meu estar contigo, não lembra? Trouxe torta de chocolate, que tanto gosta; foi Estela quem fez e mandou lembranças. Disse que no dia em que sair daqui vai dar uma grande festa na tua chegada. - Não gosto de festa! - Não seja rude consigo mesmo, Piva! Sempre gostou de festa. Fizemos muitas festas antes daquele incidente... - Não precisa lembrar o incidente; a minha inocência não precisa ser provada por advogados; ela fala por si própria. - Eu sei disso, mas precisamos de ajuda técnica para que possas sair daqui. Do contrário, ficará mofando na cadeia a vida inteira. Não sei se agüento ficar tanto tempo sozinha. - Não deve ficar sozinha. Deve procurar alguém que te faça feliz. Eu na cadeia não posso de fazer feliz! - Eu te amo, Piva! Nunca esquece que eu te amo muito! Nós todos te amamos e queremos que saia daqui o mais rápido possível, retome a tua vida e viva como um cidadão igual aos outros. - O estigma da prisão será uma marca que terei de carregar para o resto de minha vida! - Que nada, Piva! Isso, como tudo na vida, passa. Mudamos de cidade; de país, se for preciso! Recomeçamos nossas vidas em qualquer lugar que dê para ficarmos juntos! - E os meus filhos, como estão? - A mulher não deixa eu falar com eles. Ela ainda está com aquele homem de que te falei; acho que era o médico dela ou de um dos teus filhos. Parecem felizes. Não cuido da vida dos outros, mas, como me pede para repará-los, de vez em quando dou uma espiadela pelas grades do portão. Parecem bem. O maior está um homem feito, quase. É a tua cara, sabia? Por que eles não te visitam? - Não sabem que estou aqui; pensam que estou morto. Márcia concordou em que não me visitaria e nem diria às crianças de minha situação; prefiro que eles acreditem que estou morto há muitos anos. - Isso é incrível! Não deveria fugir da singularidade de tua situação; é irrealismo esconder a tua situação de prisioneiro; isso te priva do privilégio de ser tido como o pai que é deles! - Não quero discutir isso agora. Fala sobre ti, um pouco. - Nada de muito especial. Faz um mês que vim aqui. Daquela vez te contei que estava com uma nova turma, agora de Psicologia Infantil, como sempre desejei. Consegui. Estou realizada lecionando aquilo que gosto e que escolhi fazer. - Bom para ti. E o Tribunal? Como estão todos? - O Juiz Cassel está muito doente; acho que com câncer. - Que pena! Gosto muito do Cassel. Diz a ele que quando sair vou beber aquele cavalo branco com ele, numa madrugada qualquer, comentando casos antigos. - Eu digo. Uma voz, ao fundo, anunciou o fim do tempo regulamentar. Era a hora da separação. - Cuida dos papéis do divórcio, com o advogado. - E os bens? Como faço? - Deixa tudo com ela. Não precisamos daquilo. - Não concordo com isso, sabe disso! Não vou te deixar sem nada! Tem direito à metade de tudo e não é pouca coisa! - Deixa a minha metade para os filhos, então! - Os dela ou os meus? - Com todos eles! Me manda mais folhas brancas, canetas de tinta preta e cinco tubos de tinta para a impressora! - Que mais? - Dez pacotes de cigarro e um boné. - Eu faço. Até à vista. - Até.

¤¤¤ Em cinco minutos, estava de novo no cubículo que limitava o mundo aos desenhos, folhas e pensamentos. O juiz expiava por um crime e a justiça pública nunca descobrira a sua tão propalada inocência. Matar não é um direito; é um privilégio dos maus e deve a sua liberdade suportar a privação social. - Não, não, não é isso! Livre é quem pensa que é livre; justo é quem se pensa justo; bom é quem se pensa bom. Platão tinha razão; tudo está em nossa cabeça. Acendeu mais um cigarro e deu uma longa tragada. As malas estavam prontas para ir embora, como se o dia de sair fosse amanhã; um amanhã que sempre ficou prometido para o seguinte. - A vida é ingrata com os justos! É isso! Ser mau é critério de acerto! É vergonhoso ser justo! Somos vítimas do nosso próprio sistema de justiça! Como Danton, somos julgados pelo nosso próprio tribunal, o tribunal que criamos e sustentamos! E não adianta mais desmascará-lo; já não precisam dos nossos conselhos; somos inconvenientes para os novos, posto que lembramos o velho que eles querem se livrar! Uma nova tragada devolveu novo pensamento. - Justa é a injustiça dos justos? Essa pergunta ficou sem resposta. A cela não sabia responder a essa ordem de questionamento, com isenção; o ratinho e a barata, também não. Por isso deu mais uma tragada no cigarro, já terminando.


Conto 79, de 04/09/2000, segunda Poeminha do Contra João Protásio Farias Domingues de Vargas

Paulo Oscar olhava a janela do apartamento, de frente para o Leblon. O mar calmo e a Avenida, naquela hora, eram convidativos a algum tipo de reflexão. O cálice de vinho tinto à mão balançava entre um passo e outro na sala iluminada. O CD estava à sua frente: "Quintanares & Cantares". Capa azul e branco, com a face do poeta rabiscada, a bico de pena leve, no céu, junto às gaivotas flutuantes. Abriu a capa e retirou o invólucro, curioso, para ler no seu interior. Dentre centenas de palavras, o trecho de um poema se destacou diante de seus olhos: "Passível de judicial sentença o que na casa alheia se intromete Só nos falta uma lei que aos inoportunos vete a entrada em nossas almas sem licença." Noutro dia, em um bar, o autor das músicas relatou que a capa havia ganho um prêmio internacional, como uma das capas mais bonitas do mundo. Não era improvável o fato. Inédito é o fato de que ele só veio a saber muito depois do julgamento e ainda não havia ido à Europa receber os louros da vitória. Aberto o caderno, foi olhando as colunas de poemas, correspondendo às faixas de músicas, cantadas por mulheres cantantes e conhecidas na cidade, há tempos. Um asterisco, no alto, à direita, obrigou estacionar os olhos: "Poeminha do Contra* Todos esses que aí estão Atravancando o meu caminho Eles passarão... Eu passarinho!" Ao pé da página, a tradução do asterisco: "* Último registro da voz do poeta". Lembrou-se da face do homem, velho, doente, no hotel, ali perto, perto de tudo, com a enfermeira e a parente, sempre presente. Lembrou-se da bela mulher, paixão de toda vida do poeta, hoje velha, também, em alguma parte do mundo. Lembrou-se de Magda relatando o comportamento da loira apresentadora, entrevistando, anos atrás, um importante astro de cinema, desses que fazem filmes de massa, com temas afrancesados, músculos retesos, enredo gostoso e muita ação. - Ela se tornou muito vulgar, na entrevista. Atirava-se em cima do homem; literalmente cantava o homem. Van Dame deu uma resposta simples e direta, afirmando que gostava de sua mulher e tinha uma vida sexual muito bem resolvida. A lembrança logo se desligou desse diálogo e veio-lhe à mente as palavras de uma advogada negra, tempos atrás, que sempre repetia os dois últimos versos: - Eles passarão; eu passarinho! Dizia isso quando algo não estava ao seu contento. Ela bebia muita cerveja e falava sobre tudo. Foi uma grande companheira durante alguns meses; depois... bem, depois, o tempo passou; a amizade e o trabalho conjunto também. Ela era funcionária pública e dirigia os versos aos funcionários que exerciam cargos de confiança naquela autarquia municipal.

Conto 80, de 05/08/2000, terça

Dinheiro fácil João Protásio Farias Domingues de Vargas

Dinarte estava com a caneta-tinteiro rabiscando um desenho, enquanto conversava com o novo empregado, filho de um conhecido e estudante de publicidade. A empresa era pequena e funcionava no centro da cidade; girava com um bom capital, mensalmente. A conversa era boa e chovia muito lá fora. O cigarro sobre a mesa, a fumaça no ar; os computadores ligados exibiam a tela de proteção com o logotipo da empresa. - Como se faz para ganhar dinheiro sem muito esforço, Dinarte? - perguntou o jovem aprendiz ao professor de publicidade. - É simples, Gustavo; basta querer ganhar dinheiro e ir atrás dele - respondeu, de imediato, o publicitário.


- Querer é poder? Como assim, ir atrás dele? - Querer não é tudo, mas é o primeiro passo para tudo. Quanto a correr atrás do dinheiro, é isso mesmo; eu explico melhor. Ganhar dinheiro é coisa fácil; basta trabalho. Mais dinheiro, mais trabalho. Mesmo que não seja sempre assim, a fórmula se aplica muito bem aos profissionais liberais como nós, publicitários, que vivemos da arte de melhor exibir as coisas dos outros. - Eu não compreendo; muita gente trabalha muito, dá duro o dia inteiro, e não ganha sequer o suficiente para manter a si próprio, que dirá à sua família, também. - Se você trabalha para terceiros, em um negócio que não é seu, ocorre o fenômeno que estás demonstrando. Engrandecemos, nesse caso, o patrão; ficamos cada vez mais pobres. A festa é sermos nós os patrões de nós mesmos! - Nem todos podem fazer isso; há profissões que confinam o profissional na qualidade permanente de empregado, de assalariado, ainda que bem remunerado. - É verdade, também. Mas, não estamos falando desse tipo de profissional; estamos falando do profissional que monta o seu próprio negócio, não é mesmo? Somos desse tipo de empreendedor; felizmente o nosso curso possibilita isso. Assim, também, o médico, o advogado, o arquiteto e o engenheiro. Claro que podemos ser empregados; está cheio de publicitário empregado, por aí. Eu mesmo emprego vários deles; o negócio é meu e eles trabalham para mim. Tudo o que fazem é para o meu negócio; eles não possuem outro negócio que não o meu; é claro que, nessa relação, sou eu quem melhor se dá bem. Empreender é um bom negócio, ainda que tenha lá suas desvantagens, como ter de pagar todas as contas, coisa que os empregados não precisam se preocupar; se temos dinheiro, eles pagam; do contrário, não; e o problema é unicamente nosso, do patrão e ponto final. - E esse negócio de perdedor e ganhador, no mercado, como é? Muita gente fala assim: ah, fulano se deu bem; beltrano se deu mal; a empresa do sicrano está falindo, etc. - No mercado capitalista, há ganhadores e perdedores; um não existe sem o outro; trata-se de um jogo em que alguns devem perder para que outros possam perder. O que acontece é que perdemos algumas paradas e ganhamos outras; somos ganhadores agora, perdedores depois. A questão é contabilizar mais vitórias do que derrotas, pois as derrotas são inevitáveis e fazem parte do riso de qualquer empreendimento. Ser realista é levar em conta a possibilidade de que podem os nossos projetos não darem em nada ou darem negativo; mas, essa previsibilidade é sempre necessária; somos profissionais porque temos a possibilidade de prever resultados com as nossas ações técnicas; os amadores podem fazer tudo o que fazemos, até melhores, algumas vezes; o que eles não conseguem fazer é exercitar a previsibilidade profissional; quando o conseguem, viram profissionais. - Dinheiro fácil é o sonho de todos. - Ganhar dinheiro não é fácil; adquirir dinheiro é mais fácil; mais difícil de tudo é transformar coisas e ações em dinheiro. Ganhar pode ser pela loteria esportiva; adquirir pode ser através de salário-emprego; fazer dinheiro exige empreendimento, negociação, colocar um produto ou serviço na praça. Dinheiro pode ser adquirido através de delitos, como o roubo, o furto, o assalto, etc. Trata-se de dinheiro suado que não pode ser mantido por muito tempo impunemente; falo em situações normais, não na de corrupção Conto, onde as coisas podem ser diferentes. - E a moral do dinheiro, como é que é, Dinarte. - Olha, Gustavo, há muita norma moral envolvendo a questão do dinheiro. Como se trata do principal instrumento de troca de nosso sistema econômico, naturalmente que as pessoas vão inventando regras morais sobre ele. Assim, por exemplo, há o adágio popular que diz que "não se empresta dinheiro aos amigos, pois se pode perder o dinheiro e o amigo". Com certeza, esse adágio não se aplica aos bancos, mas sim às pessoas, visando evitar que elas ajam como banqueiros, i.e.s, agiotas, se houver juros na parada. Acho até que o adágio foi criado por algum banqueiro, para os outros, valendo-se do ditado: "faz o que eu te digo e não faz o que faço". Dinheiro não tem moral, assim como qualquer coisa; quem se vale de regras morais são as pessoas, em função de suas relações inter-pessoais e com as coisas mesmo. "Cão que muito late não morde", diz outro ditado, referindo-se às pessoas que falam muito das coisas que não poderão ou não puderam fazer ou realizar. - Dizem que os saltimbancos têm códigos morais muito rígidos; isso é verdade? - Olha, Gustavo, nunca fui saltimbanco para saber disso, mas imagino que, como em qualquer grupo que vive em situação de risco muito acentuado, os códigos morais que são obrigados a desenvolver exige uma tratamento muito severo no seu cumprimento. A moralidade grupal pode ser pretoriana, caso o risco seja de vida; o descumprimento das regras pode implicar na morte, como ocorre em tempos de guerra, dentro dos parâmetros militares. Um pelotão de assalto militar e um pelotão de assalto a banco podem ter muitas coisas semelhantes: uma missão, divisão de tarefa entre membros, previsão de cenários, cronometragem programada, divisão dos riscos e resultados. - Durante a globalização estatal feita por Portugal e Espanha há mais de quinhentos anos, a busca do ouro era a base de tudo; porque o ouro não tem mais o valor que tinha naqueles tempos? - Quem disse isso? É claro que tem um valor ainda maior; o que ocorre é que a fase do metalismo, no limiar do sistema liberal, que vai dar origem ao capitalismo, não existe mais com a ênfase da época. O ouro ainda é o metal mais valioso em termos de trocas; basta andar pelas ruas e verificar as plaquetas postas nas costas dos exibidores: "compro ouro". Ainda existe o chamado "lastro em ouro", que é usado para comparar a riqueza econômica dos países; há estoques de ouro em cada país, feito pelos próprios órgãos públicos encarregados disso: o "Federal Reserve", o "Banco Central", etc. Ouro concentra valor, pois têm grande valor de troca. A quilatagem é muito importante: ouro de 24 kilates tem valor maior do que o comum de 18 kilates; trata-se do grau de pureza do metal. A sua maleabilidade é tão importante como condutor que é usado bastante e cada vez mais na micro-informática mais sofisticada, na organização dos chamados "ships". - Dinheiro compra tudo, até felicidade? - Sim e não. Sim, porque pode comprar tudo o que estiver à venda, inclusive o que pode ser importante como símbolo de felicidade para as pessoas. Não, porque nem tudo está à venda e muitas coisas que nos fazem felizes podem estar fora de nosso alcance monetário. Ter mais dinheiro significa poder comprar mais coisas e de melhor qualidade, bem como garantir a felicidade nossa e de outras pessoas. Quer um exemplo? O dinheiro pode salvar vidas, através de transplantes de alto risco; deve-se pagar pelo órgão e pelo serviço médico-hospitalar. Quem pode dizer que não torna uma pessoa feliz o fato de lhe garantir mais tempo de vida? É isso aí: felicidade pode comprar, sim, felicidade, ainda que nem todas as formas de felicidade. - Dizem que os homens ricos são muito infelizes.


- Acredito que possa ser infelizes, mas não o tempo todo; a felicidade, com certeza, não está na miséria. A questão é que, quando estamos na merda, o pouco que conseguirmos garantir para a nossa sobrevivência física tem um toque de felicidade. Aquele conjunto, "Mamonas Assassinas", tem uma música que, em certo trecho, afirma que "a minha felicidade é ter um crediário nas Casas Bahia". Quando a pessoa conseguir o crediário, a sua felicidade se realiza e, com certeza, outra meta assumirá o lugar do crediário, na pauta de felicidade dela. Com isso, quero dizer que a felicidade está sempre projetada para o futuro, nas coisas que poderemos realizar; uma vez realizadas, a felicidade se realiza e, outras felicidades são projetadas para cima. - Certas religiões afirma que o dinheiro é coisa do demônio. Como é que é isso? - Metafísica braba? Não acredito. É concretíssima a questão. Nenhuma delas resiste ao dinheiro; estão sempre pedindo aos fiéis o dízimo, o centésimo, a oferenda, cobrando serviços, etc. Algumas religiões dizem isso e pedem que os fiéis, nos cultos, joguem dinheiro aos pés do pastor. Lembro de uma fala que dizia assim: "- Meus caríssimos irmãos, vamos construir o nosso templo e precisamos da tua colaboração. Jogue aqui, no palco, nos meus pés, o que tiver em tua carteira; não dê de um, não dê de cinco, nem de dez; dê de cinqüenta, dê de cem e Deus te dará em dobro, ainda durante essa semana que vem. Vamos lá, minha gente, quero ver esse palco forrado de notas coloridas, para a glória de Jesus! Aleluia! Aleluia!" - E jogavam dinheiro, mesmo? - Jogavam e muito; em questão de minutos, não se via mais os sapatos do pastor; só o seu sorriso de intensa felicidade. Vinham os empregados, outros fiéis, e recolhiam o dinheiro aos abraços, assim como se abraça um monte de folhas secas embaixo de árvores; punham tudo em grandes sacos de cinqüenta quilos e levavam os volumes para uma sala, à direita do palco. Isso acontecia em todas as sessões ou cultos e nunca foi construída a tal de igreja ou templo; mas, a casa do pastor, sim, e muito belíssima. Afinal, o pastor merecia uma casa belíssima; se não dava para o tempo de todos, pelo menos para o templo dele deu e muito bem. As horas estavam passando. Dinarte olhou através da janela e já era noite. Precisava fechar a loja e ir. Virou o cinzeiro sobre o vaso de lixo, arrumou alguns papéis que estavam sobre a mesa, fechou o encarte que estava preparando, levantou-se e foi até o banheiro. Lavou o rosto, olhou-se no espelho, secou a face e voltou à sala para pegar sobretudo e guarda-chuva. Nisso, toca o telefone. - Alô! Sim, é Dinarte. O que deseja? Simone já saiu; era só com ela? Pode deixar recado, se quiser. Com quem estou falando?... Desligou! Estranho, não?! - Ás vezes acontece - disse Gustavo, dirigindo-se à porta de saída. - Pode ser algum admirador secreto que não quis se identificar. - De Simone? Duvido. Ela não é disso; o caso dela é com mulheres, não é isso mesmo? - É o que parece, chefe. - Não me chama de chefe, que não gosto; me chama pelo nome; é mais elegante. - Tá certo, chefe. - Olha, aí; de novo, chefe; não disse para não usar essa palavra, no vocativo? - Certo, ... Dinarte; certo! Ganharam a rua escura e chuvosa, em direção ao outro lado. Dinheiro não é tudo, mas a felicidade de Gustavo, no final do mês, dependia do salário que pudesse receber de Dinarte, o comprador dos seus serviços. Naturalmente que isso não era tudo, mas, seria menos, se não houvesse a possibilidade do mesmo. Nesse sistema, dinheiro não compra felicidade, mas contribui uma barbaridade para a sua realização. Dinheiro fácil, gasto fácil; dinheiro difícil, gasto difícil? Nunca se sabe ao certo; a única coisa que é certa é o gasto, a roda viva do sistema; sem gasto, a economia não anda e o sistema quebra. - Então, a felicidade do sistema está no gasto; o seu custo é a produção, essa companheira difícil de manter, por muito tempo, em casa. Economizar quebra o sistema – afirmou o aprendiz de feiticeiro - Nem sempre; mas isso já é outros quinhentos, meu amigo! – respondeu o mago da publicidade.

Conto 81, de 06/08/2000, quarta

Suco de laranja João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Faltam duas coisas em sua personalidade: tolerância e empatia. Tente ser uma amiga humana para ela. - Sou tolerante e empática até demais, viu! Agora, ser uma amiga "humana" é coisa mais difícil, quando se exige tratamento igualitário nas relações. - Raiva não é qualidade humana, Menelvina! - Eu babo, por acaso, quando falo? - Nunca senti um respingo. - Então!? Por que está dizendo isso? Ora, tolerância! Ora, empatia! A minha personalidade está completa. Nunca te ocorreu que a minha tolerância pode não ter o mesmo grau da dos outros e que ser empático é uma questão de percepção? - Acho. Percepção e caráter são coisas distintas, dizem os entendidos em psicologia. - Falta de caráter; é isso o que está querendo dizer, para piorar as coisas, mãe? - Na disso, filha; só estava querendo ajudar. - Me agredindo, me ajuda? Diz que tenho uma personalidade que tem falta de duas coisas, que ajo como um animal com os outros e, agora, fala em caráter? Não preciso desse tipo de ajuda que só nos põe para baixo. - Caráter é traço externo da personalidade; todas as pessoas possuem caráter e personalidade. Dizem,


alguns, querendo agredir, que falta caráter em alguém quando querem dizer que faltam algumas virtudes por eles valorizadas como boas ou positivas. Tanto o é que o plural de caráter é "caracteres". Moral, tudo isso é moral; boa ou má, mas moral. - Agora vem com esse papo, de novo, de que a personalidade se forma até os seis anos de idade? Isso eu não agüento! Sinto que não está sendo tolerante e nem simpática comigo! Quem tem falta na personalidade, eu ou tu? Afinal, sou filha de vocês; o que eu não tenho é culpa de vocês, pois me educaram assim. Está me cobrando algo ao mesmo tempo que está comprovando que isso tudo está faltando é em ti, e não em mim, como afirma! Moral de cuecas, mãe; é isso o que está parecendo! - Entendi e peço desculpas; estou envergonhada com o que disse a teu respeito. Ainda que a minha intenção fosse boa, saiu mal o que disse e no modo como disse. Vamos encerrar esse assunto, antes que a situação do agora piore nossas relações. - Agora, está fugindo da raia! Sabonete; é o que está parecendo. Gostaria que me ensinasse mais sobre tolerância me tolerando um pouco mais! Gostaria que me ensinasse mais sobre empatia, sendo um pouco mais simpática comigo! E, tem mais! Gostaria de ser tua amiga "humana", se me trata-se um pouco mais humanamente! A crueldade é uma característica boa ou má? Não sou nenhuma miss simpatia e nem tenho saco de elefante para tudo suportar, mas, pelo menos, consigo suportar a insuportabilidade de teu tratamento cruel maquiado de benevolência. - Credo, Menelvina! Que linguajar atrevido! Não pode falar assim com a tua mãe! - Posso sim, se sou tratada assim. Isonomia, não é disso que sempre está falando? - Eu te trato bem; sempre te tratei bem, meu amor! - Bem, prá cachorro! Tratamento "humano"! - Essa língua é do teu pai; eu não te ensinei a ser atrevida e mal educada, assim! - Cristina, sempre me tratou assim; agora é que não se lembra mais. Mas, eu, nós, pequenos, sempre nos lembramos de tudo; vocês, adultos, sempre esquecem do que fazem para nós. - Tu não és mais criança; és uma moça; tem vinte e cinco anos de idade! - Grande coisa, a idade; estou mais perto da infância do que tu. - Está me chamando de velha, agora? - E, não é, por acaso? - Chega, Menelvina! Chega! Agora partiu para a agressão incondicional! Está insuportável conversar contigo. Vou te deixar aí, com o teu mau humor, nessa cama nojenta! - Nojenta, por quê? É a minha cama; não é a tua, viu! Agora está dizendo que durmo com todos os homens do mundo, não é? Pois é isso mesmo; eu dou para Deus e todo mundo! Tá satisfeita, agora? Santinha do pau-ôco! - Chega, minha filha; mudemos a linha de diálogo. Não quero discutir a tua sexualidade; mas, bem que poderia ser um pouco mais comedida, mais comportada! - Como tu eras, na minha idade? Ora, mãe! Dava para o primeiro que aparecesse na tua frente! Era quase uma ninfomaníaca! As tuas amigas mesmo dizem isso e não fazem a menor questão de esconder! Traçava todos os namorados das outras; era o perigo de todas! - Isso não é verdade! Tive uma vida sexual livre e muito ativa, é verdade, antes de conhecer o teu pai! Depois tudo isso mudou! - E, por que razão não posso eu, nessa mesma idade e muitos anos depois, em outra geração, mais avançada, mais civilizada do que a da tua época, ter uma vida sexualmente livre e muito ativa? - A vida é tua; os acertos e os erros são teus! As pessoas inteligentes aprendem com os próprios erros; as sábias, com os erros dos outros. - E as burras, como eu, não aprendem nunca lição alguma; é isso o que estás querendo dizer? - Não estou te chamando de burra; acho que teu comportamento é muito normal para as moças de hoje em dia; antigamente era diferente e tu sabes disso! - Antigamente!! Sempre, antigamente! Eu vivo é no presente, e não no passado! - Pensa, ao menos, no futuro! - Quer que eu seja como tu, que putiou o que pôde e depois caçou um ricaço desprotegido e fácil? Dosa, é o que tu és? É isso o que te tornou! Dosa! Dosa! Dosa! - Grande coisa; dosa! Há dosas felizes, para o teu partido, se ainda não sabes. Eu sou dosa, sim, e daí? Foi uma opção de vida! Sou dosa, mas sou feliz! Há muita dosa por aí que desfila de cientista e não sabe um ovo do que diz! - Agora, está debochando da minha profissão, do curso que escolhi e concluí! Está com inveja ou com ciúmes de mim? Diz prá mim, mãe! Confessa que sente ciúmes da vida que tenho e que não podes mais ter! Não tem a minha idade e nem a minha época para curtir a vida! Está presa na redoma de vidro da encubadora de vida que criou em torno de nós! Tudo está na aparência; debaixo dos panos, pode-se fazer o que bem quiser! Que moral é essa, Cristina? É isso o que me ensinou para eu viver bem? High society é isso? - Pilantra! Bandida! Mal agradecida! Não te criei para dizer isso! - Agora, tá dando para ofender! - Bem que tu merecias umas boas palmadas a mais, quando criança; pena que não pensei que pudesses ter tornar assim! Que pena! Uma moça tão bonita e assim, desbocada e porca! - Porca, eu ?! Me chama de gorda, me chama! É isso que quer dizer, não é? Me chama de baleia! Sinto muito, mamãe, mas não pude ser a miss Brasil que tu sempre sonhou para mim! Esse era o teu sonho; não o meu. Por que não virou miss tu mesmo. Não posso realizar os teus sonhos, pelo simples fato de que são os teus sonhos, e não os meus. Tenho outra linha de planos para minha vida! - Como ficar atirada nessa cama, o dia inteiro, sem banho, sem ânimo, nesses dias lindos de verão? - Estou deprê, e daí! Nunca esteve assim antes? Te olha um pouco no espelho e vais ver a mulher que tu és; somos muito diferentes. Os teus quase cinqüenta contrastam com os meus quase vinte! - Correção: quase trinta! - Que seja! Quase trinta, quase vinte, que diferença isso faz? Vamos todos envelhecer de qualquer modo. Pelo menos eu não fico escondendo a minha idade com plásticas e cremes importados! Teu rosto parece um muro acimentado de tanta maquilagem! Te olha, mãe! Não me apurrinha o saco, tá legal? - Ainda vai chegar na minha idade e sofrer o preço da idade! - Vai te achar jovem hoje, quando olhares para trás, adiante, do alto dos teus oitenta, e pensar o quanto era boba, achando-se velha, quando era até muito jovem! - É verdade, minha filha; é verdade. A gente fica se achando velha e não pensa que sempre se pode e se estará mais velha amanhã. Temos de aproveitar o dia. Carpe diem, dizem os italianos.


- Carpe diem! É a frase do filme "Sociedade dos Poetas Mortos". - É; é isso mesmo. Carpe diem! Quer um suquinho de laranja, filha? - Quero, mãe! Me desculpa, tá? Estava chateada e descarregando em ti. Não queria te magoar! Me desculpa! - Tá bom; agora descansa um pouco mais; vou preparar o suco e já trago, tá legal? Tu vais ficar muito bem depois que isso tudo passar! Sempre haverá oportunidade para eu ser avó! - Não tinha condições de criar o filho, mãe! Eu não concordo com o aborto, mas era a única alternativa que eu tinha. - Eu sei disso e acho que fez certo, ainda que eu não concorde com o ato, em si. As tuas razões são boas, mas dava para lidar de outro modo com a situação. Eu gostaria de criar meu neto, se não quisesse ficar com ele. - Nem pensar; quando eu puder, eu terei meu filho e eu mesmo vou criá-lo. - E, eu vou poder ajudar? - Vai e com muito prazer; vou precisar muito da tua ajuda. - Que bom que pensa assim! Agora, descansa um pouco mais! Vou trazer o suco. É um segundo só. - Obrigada, mãe! É muito tolerante e empática! - Tu, também, filha do meu coração; eu sempre vou estar do teu lado, estejas tu certa ou errada! És a minha filhinha, lembra? - Lembro de tudo; tudinho. - Iria ser menino ou menina? - Não quero falar sobre isso; acho que menino; pelo menos foi isso o que o médico disse depois do ... - Vou buscar o suco. Cristina saiu do quarto com os olhos cheio de lágrimas e foi em direção à cozinha. ¤¤¤ Como era ampla aquela cozinha! À volta de todas as paredes, armários e mais armários. No centro, uma espécie de grande mesa ou tablado, alta, onde ficavam instrumentos de cozer, com um degrau abaixo, na circularidade do módulo. Mais próximo da porta, uma mesa retangular, baixa, de doze cadeiras de fórmica, encerrava o conjunto do que visivelmente podia ser visto em centralidade. Cristina foi até o fogão, ao fundo, posto ao lado da pia e acendeu uma das seis bocas, com dois cliques. Colocou a chaleira com água sobre a chama. Um chá lhe faria bem, naquela hora. Foi à sala ao lado, buscar as laranjas para o suco da filha. As laranjas, grandes, amarelo-avermelhadas estavam sobre uma tulha, em uma pequena cesta de vime. Pegou meia dúzia com suas pequenas mãos muito brancas. As palavras da filha pululavam em sua cabeça, repetidamente. A aspereza do diálogo inicial e a suavidade quase cúmplice do final, demonstravam uma contradição que ela compreendia há muito tempo. Era o contrapeso da vida familiar. O açúcar do dia e o fel de todas as tardes. Abriu uma das portas do armário e tirou o espremedor de frutas, pondo-o sobre o tablado central. O plug foi posto na tomada horizontalizada; o aperto na chave fez vir o som forte do girador. Uma faca afiada, com mãos hábeis, cortou uma a uma, em doze pedaços quase idênticos. As mãos apertavam a esfera, mudando o som do ambiente. A repetição dos gestos fez-se suco. Encheu um copo de vidro e pú-lo sobre uma bandeja, adrede preparada. Abriu a porta de outro armário, agora na parte baixa do tablado redondo e dele retirou uma linda torta de maçã. Cortou uma fatia e colocou a mesma sobre o pequeno pires metálico da bandeja. O apito da chaleira demonstrava o grau e foi até o fogão desligar o fogo. Colocou a água em uma caneca de cerâmica, com um pequeno saquinho de chá. A infusão lembrou a infância e os gestos da mãe. Sentiu-se como que protegida e protetora; era a filha de outrora, a mãe de agora. Sabia que não poderia repreender de todo Menelvina, pois ela era muito parecida com a moça que fora antes de casar. Era quase um retrato de sua rebeldia de outrora. Dava saudade, é verdade; mas, muita coisa ruim também restou como saldo daquelas atitudes passadas. O tempo muda muito dos fantasmas das coisas. Subiu as escadas, pé por pé. Quando chegou ao quarto da filha, a mesma estava dormindo profundamente. Era, ainda, a sua criança. Para os pais, os filhos são sempre crianças. Não sabia se isso era bom ou ruim; era, apenas. Colocou a bandeja sobre a cômoda da direita e voltou aos seus próprios aposentos, certa de que a conversa que teve com a filha teria um bom resultado, como acontecia com todas as conversas francas, ainda que ásperas. Não sabia se a filha iria tomar o suco de laranja durante a noite ou quando acordasse. O certo é que, fosse como fosse, ele estaria lá, disponível, lembrando a conversa e a intenção de mãe, que é sempre ajudar, tanto quanto pode. Todas as incompreensões do mundo são encarnadas nos pais; não é sempre que os filhos têm razão, mas nunca deixam de ter alguma. Estava com sono; era tarde. Deitou-se, apagou a luz e dormiu.

Conto 82, de 07/08/2000, quinta-feira

Razão de Cassandra João Protásio Farias Domingues de Vargas

Cassandra, na mitologia grega, tinha o dom de prever o futuro e a agonia do descrédito; sem forças para impedir sua realização nefasta, as pessoas a quem contava suas previsões não acreditavam nela, seu dom se transformava em uma arma contra ela mesma. - Há muitas Cassandras, na vida, Pedruca - disse Guido, empinando mais um martelinho com limão e bitter. - Sim, mas é mais difícil encontrar com o Complexo de Cassandra. Isso não quer dizer que quando


somos capazes de prever o futuro, muitas pessoas fiquem do nosso lado, sustentando nossas previsões. É muito comum enxergarmos com clareza certos fatos da vida e ninguém acreditar na gente. Ficamos sozinhos, como bestas, atirados, isolados. As pessoas não gostam muito daqueles que vêem as coisas. Se querem saber, preferem um cigana ou cartomante, no sentido clássico do termo. - É verdade, companheiro. Esse é o Pedruca que conheço. Mais um brinde. Agora a todas as Cassandras da vida! Ergueram os copos e brindaram. Guido deu uma cuspida para o lado e acendeu mais um cigarro, não sem uma certa dificuldade para centrar a chama no bastão de fumo. - Escuta, Guido. Ouviu falar de Valquíria, aquela moça do Bom Fim que prevê as coisas? Dizem que é muito boa nisso. Ela vê tudinho, prá frente e prá trás, cara. Vários amigos foram lá e voltaram dizendo que a mulher é incrível. Ela conta o que aconteceu com detalhes impressionantes. Chamam de retrocognição a leitura histórica ou de passado. Ela sabe também o que está acontecendo no presente e o que vai acontecer no futuro. Gostaria de ir lá? - Não; não quero saber do que não vi. Prefiro dispor dos meus próprios órgãos para saber das coisas. Saber muito pode não ser um bom negócio, muitas vezes. Saber pouco é mais seguro, amigo. Tem gente que pira com essa coisa de previsão. E, essas mulheres de visão podem enganar. Lembra o conto do Machado de Assis, "A Cartomante". Deixa o cara feliz da vida e ele está indo para a maior enrascada de sua vida, com bilhetinho e tudo no bolso. A vida não é fácil, cara. Se o amigo não tivesse ido à cartomante, pode ser que a sua racionalidade desse novo rumo à história. - A diferença é que as cartomantes de hoje não são cassandras; as pessoas acreditam no que elas dizem, com os seus baralhos esquisitos. O mesmo se diga das quiromantes e das frenólogas. Bom, esse papo está muito para Paulo Coelho e quero ficar por aqui na viagem. Senão, daqui a pouco vamos dissertar sobre discos voadores e achar tudo isso muito normal. - Bobagem. Existe mais coisa entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia imagina. Shakespeare tinha razão. Pascal, também, ao dizer que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Um outro brinde, que hoje é sexta-feira, 13! - Á sexta-feira, 13, amigo Guido! - Ao 13, Pedruca! À sexta, também. Dia de bruxas. No creo em bruxas, pero que las hay, las hay, diziam os correntinos nos tempos da Ditadura. Ergueram os copos mais uma vez e beberam de um gole só o conteúdo ora esbranquiçado de limão, ora amarelado de bitter. - Minha mulher tem o tal complexo, cara! - disse Guido, tomando mais um gole. - Não acredito. A Dulce é cassandra? Nem parece! Quem diria! E, ela prevê o futuro? Tu estás roubado, meu amigo! - É verdade; dura vida. Ela previu essa conversa que estamos tendo agora. - Essa aqui, do aqui e agora? - É; isso mesmo. Disse que beberíamos até o amanhecer e que brigaríamos ao final, por bobagem e que somente viríamos a nos falar vinte e cinco anos depois, quando nossos filhos, que vão nascer, tornassem-se amigos. É claro que não acredito nisso, mas é o que ela disse, antes de eu sair de casa. - Disse isso com o intuito de que não viesse ao boteco beber com os amigos. - Não; disse com sentimento, cara. Precisava ver a cara dela; estava calma, paciente, lúcida e tranqüila. Não me advertiu; como sempre, disse em tom até jocoso. Brincava com o futuro. - Não acredito nisso! Se vamos brigar, qual vai ser a razão? - Não tenho nem idéia; se é verdade, algo vai surgir no curso do nosso papo. Estou pagando prá ver. - Eu, também. Mulher é coisa doida, meu. Elas estão sempre inventando umas! Tiram da cabeça e dizem, sem a menor preocupação, tudo o que vem na telha. Complicam as coisas com a fala. Intriga, meu amigo, intriga e das brabas! - Dulce sempre foi assim!? - Está dizendo ou perguntando, Guido. Pois, se está perguntando, não gostaria de falar sobre o assunto; a mulher é tua. Ela era muito diferente quando foi minha namorada, naquele curto espaço de tempo. - Ah, havia esquecido que tinha sido tua namorada, cara. Ah, isso me incomoda muito. Seria melhor que não tivesse sido; teríamos uma amizade mais tranqüila. - Nossa amizade é tranqüila. Te incomoda o fato de eu também ter sido namorado da tua mulher? Não; pois é! Não deve te incomodar. Foi há muito tempo e hoje estamos muito mudados. Manoela mudou muito nesses anos. E como era amiga de Dulce, né? - Eram muito amigas. Aliás, nos conhecemos com pares trocados. - É; terminamos casando com a namorada do amigo, tu e eu. Nos ferramos, cara! Até hoje paira a desconfiança de que a história do outro não terminou nunca. - Deixa disso, cara; tudo terminou naquela época. Ou tenho algum motivo para pensar que tu ainda gosta da Dulce? Claro que não! Lembra quando mandamos gravar a placa de bronze: "Guido & Manoela e Pedro & Dulce estiveram aqui". Como no Moby Dick. - Não gostei da lembrança. Onde está aquela placa, hoje em dia? - Não tenho nem idéia; acho que o Alfredo ficou com ela e deu um sumisso. Lembra o quanto era apaixonado pela Manoela. Depois foi fazer aquelas manobras na África e nunca mais tivemos notícias dele. Acho que está morando no nordeste ou algo assim. - Bá, Guido, vamos mudar de papo. Não gosto nem de lembrar desse cara. Ele incomodou muito as nossas vidas. - É verdade. Vamos beber mais uns? À nossa saúde, um novo brinde! - Um novo brinde. Viu, a Cassandra não sabe de nada! - Não sabe de nada; que bom que não sabe de nada. - Mas, Guido, confessa aí, não sobrou nada pela Manoela, mesmo? - Gosto muito da Dulce; a Manoela foi aquele casinho que tu conheces muito bem. Que coisa, cara; isso não é coisa que se pergunte tantas vezes. Nunca te conformou com o namoro. Por acaso devo ficar pensando que possa haver alguma coisa entre tu e a Dulce, hoje? Acho que não! - Quer saber, mesmo, Guido? Acho que a história de vocês dois não terminou nunca. Pensa que eu não percebo o jeito que ela te olha, quando vamos à tua casa ou vocês vão na nossa? É ciúmes, eu sei, mas isso me incomoda muito. - Calma, Pedruca; acha que eu tô te levando prá corno? Longe de mim, cara; eu gosto muito da tua mulher, mas como amiga e comadre. Tu também és meu compadre; somos amigos, cara, lembra disso?


- Vocês ficam conversando horas e horas; caminham juntos na praia, ficam falando e rindo entre si... - Amizade, amigo; é isso e nada mais. - Amizade coisa nenhuma. Acho que tu tá comendo a minha mulher. Pensa que eu não sei; eu não sou bobo. Eu percebo as coisas! - Bebeu demais, cara. Vamos parar com isso. Vamos embora. Está muito tarde. - Não. Quero que me diga a verdade; toda ela, por mais doída que seja. A história terminou ou não? - Claro que terminou. - Quando? Quando? Diz, aí! - Quando nós brigamos, aquela vez. Tu terminou com a Dulce e trocamos de namoradas. Tu com a minha e eu com a tua. Essa troca permanece até hoje. O fato de tu saberes que eu trepava com Manoela era tão notório quanto o fato de eu saber que tu trepava com a Dulce. Águas passadas não movem moinhos, meu amigo! - Me diz isso de novo olhando nos meus olhos, que eu quero ver a verdade deles! - Não vou fazer isso. Minha palavra basta. Tem minha palavra, se te serve de consolo. - De consolo? De consolo? - começou a berrar Pedruca, descontrolado. - Calma, cara; calma. Não vamos brigar por isso. Eu comi a tua mulher quando ela era solteira; assim como tu comias a minha. Isso é passado. Agora somos casados, temos filhos, temos família. Somos compadres. Batizamos os nossos filhos. Estamos envelhecendo juntos; todos juntos. Somos amigos, cara. Pára com essa nóia de vez! Desse jeito não dá para suportar. Não somos mais crianças. Deixa o passado de lado. - E, a Marcela, de quem eu gostava tanto; por que é que deu em cima dela, naquela festa, àquela vez, se sabia que ela estava comigo? - Bá! Ainda lembra disso? Ela era muito gostozinha e estava a fim de ficar com ela; dei em cima e ela topou. Foi isso. Não tenho a culpa se ela te chutou. Eu nem estava a fim de ficar muito tempo com ela. Foi uma vezinha só! - Crápula! Eu gostava dela. Se eras meu amigo, por que não respeitou o fato de estamos juntos? - Bem, naquela época, muito jovens, disputávamos as mesmas mulheres, lembra? Tu ficou com a Carmem e nem por isso eu estou reclamando disso. Eu também gostava da Carmem e fiquei frio quando ela resolveu ficar contigo, no coquetel da casa do Fiapo. Fiquei me remoendo por dentro, mas esfriei. A nossa amizade era mais importante do que ficar brigando por mulher. - E a Corina? Por que deu em cima da Corina, também? - Quer saber? Quer mesmo saber? - Quero. Diz, aí, na minha cara, mesmo depois de quase trinta anos! - Ela tava dando em cima demais e eu cedi, só isso. Era a mais bonita e tava a fim. Depois, a Corina ficava com todos, não lembra? Ela era a mais dadinha de todas. - Garçon, outra rodada aqui. - Chega; eu não quero mais beber. - Eu quero mais um gole. Então, a Corina era a putinha da vez, era isso? - Era e tu sabia muito bem disso. Depois ela ficou com tantos que nem lembro mais os nomes. Pintava um cara diferente no bando e lá estava ela, se refestelando prá ele. Deixou muito cara puto da cara. Era o jeito dela; gostava de fazer isso. Ficava com um e com outro e largava sem avisar. Tu só ficava sabendo que havia dançado quando pegava ela aos beijos com outro, sem a menor cerimônia. Ela também mudou muito; tá aí, cheia de filhos e naquela que tu sabes muito bem. Achou a cara-metade dela e se aquietou! Todos fazem isso um dia. Nós fizemos isso. - Não está convencendo, Guido. E a Tereza, a Mônica, a Luíza, todas elas; eu não podia pegar uma mulher e lá estava tu, dando em cima. Isso me deixava puto da cara contigo. - Não era bem assim! A Fernanda e a Mariana, com quem eu tive casinhos, tu também ficou com elas depois. - Disse bem; depois; não, durante. - Nem eu, meu! Sempre fiquei depois de ti. Não amarelei nenhuma história tua. O que aconteceu, aconteceu. É passado! Somos amigos há tantos anos; não vamos estragar tudo isso e dar confiança ao Complexo de Cassandra! Além do mais, está começando a clarear. Vamos cair? Eu gosto muito da Dulce e Manoela é a mulher do meu melhor amigo, madrinha da minha filha! Eu respeito muito vocês dois e sei que vocês dois nos respeitam muito! Temos lá os nossos desentendimentos, de vez em quando, mais isso tudo sempre passou. Não vamos desconfiar da lealdade recíproca que temos há tantos anos! - Garçom, a conta! E traz rápido, antes que eu resolva tomar mais um! Então, a Manoela, nunca mais! - Nunca mais! E, com a Dulce, também nunca mais? - Nunca mais. - Jura por tudo que te é mais sagrado? - Juro. - Então, está jurado. - Está jurado. Veio a conta. Guido pegou o talão de cheques e começou a preenche-lo, com certa dificuldade na escrita. Os garranchos faziam as vezes de letras e números. Os pássaros cantavam lá fora. As cadeiras estavam todas de patas para o alto e os funcionários já haviam jogado água sobre o piso, passando seus panos e rodos por todos os corredores. O enorme salão estava todo enfumaçado. ¤¤¤ - Os dois amigos saíram abraçados do bar, cantando uma canção muito badalada na época de estudantes. Dulce estava errada? Nunca se sabe. A verdade é que os amigos nunca mais se encontraram; cada um tirou as suas próprias conclusões da conversa e dos acertos de contas. Não sabemos a razão do fim da amizade mas, a verdade é que aquela foi a última conversa que tiveram no meu bar. A mesa predileta dos dois, aquela ali - disse, apontado com o dedo -, sempre ficou reservada, mas nunca mais voltaram aqui. - Papai morreu no último verão, em Santos. Tio Guido mora no Rio, aposentado. - Eram grandes amigos, Pedruca e Guido. Meus pêsames, garoto. - Obrigado, Fernando; ele sempre falava em ti, quando morávamos em Cuiabá. Tinha curiosidade por conhecê-lo. Na primeira oportunidade que tive de vir a Curitiba, não perdi a hora e cá estamos. - Fiquem à vontade, que a casa é de vocês; o que precisarem, estarei por perto, é só pedir. Agora preciso trabalhar um pouco. Moça, como se chama? - Daniela.


- Bonito nome. Daniela, cuida bem desse moço, ele vale ouro! - Pode deixar, eu cuido. - Até mais - disse o dono do bar, voltando para os fundos da copa, com um cigarro entre os dedos. - Cara legal; contou toda uma conversa sobre os nosso pais. Que história! - Que história! Eles nunca contariam para nós o que houve naquela noite. Que bom que viemos aqui, hoje, ouvir o que foi falado. Compreendo um pouco mais a todos nós! Grandes amigos também podem se remoer com histórias mal resolvidas! Será que nossos pais tiveram uma história depois? - Se houve, nunca saberemos! - É; também, o que importa isso hoje, quase cinqüenta anos depois? Quase nada. Mais é curiosidade nossa. O importante é que estamos aqui, na mesa onde eles sentaram e beberam como amigos pela última vez. - Cassandra tinha razão!

Conto 83, de 08/08/2000, sexta

Barata de Sartre João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Inspiração. inspir-AÇÃO. INS-pir-AÇÃO. InsPIRAÇÃO. - Sem inspiração? Reza e parodia um pouco, Érico. Vou te ensinar como pode fazer. Rezando: Padre nosso, que estais no céu, dai a nós pecadores o pão nosso de cada dia. Agora, parodiando um pouco: Pai nosso, se estais na terra, dai a nós escritores a inspiração nossa de cada dia. - Resende, me basta a falta de inspiração, mas buscá-la em religiões é desgostoso prá caramba! Não vou à bíblia carregar o que posso ter sem metafísica. - Ler um pouco sempre ajuda - disse Érico , coçando a sua cerrada barba agrizalhada e dando um leve sorriso de escárnio. - Acha que não leio nada, ou estás querendo sugerir alguma leitura em especial? - Não estou sugerindo nada, Resende. O negócio é que falta de inspiração, para mim, é uma grade frescura. Se não há inspiração, não há vontade, mas sim obrigação em produzir algo. Precisa resgatar os processos de vontade pessoal. Acho que tu te obrigas a escrever e, mesmo não tendo nada a dizer, quer, ainda assim, dizer alguma coisa. Qualquer coisa é potencialmente inspiradora. Para usar uma palavra moderna e já remontando a Aristóteles, uma virtual inspiração. - Uma boa dose de determinação sempre ajuda, companheiro, na produção do que quer que seja. Busco um estímulo para iniciar; inspiração é inspiração; existe ou não existe no momento. Agora, por exemplo, a inspiração é o tema que quero trabalhar. Falta inspiração para escrever sobre a própria inspiração. - Resende, imagina que a inspiração seja uma mulher com quatro faces, uma medusa ou medéia, seguindo o rastro da ênfase silábica que deste no início de nossa conversa. Vou enumerá-los: 1) inspiração, 2) inspir-AÇÃO, 3) INS-pir-AÇÃO e insPIRAÇÃO. - E, o que faço com elas, Érico? Trata-se de um simples jogo de palavras. - Ora, Resende. Simples e cristalino feito água de interior. Vamos por parte. Trata-se de uma Teoria da Inspiração. Advinha de quem é a autoria? Acertou. Isso demonstra que estás conectado; plugado na coisa. Fala moderna, hein! Vamos lá. A primeira inspiração de que falo vou denominá-la nua inspiração ou inspiração despida. Grafamos inspiração como inspiração, sem outra ênfase que não o negrito inclinado. Todas as letras e sons apresentam a mesma horizontalidade, um mesmo patamar semântico. Semioticamente dizendo, tem um interpretante energético comum. É sorver o que quer que seja, como se faz com a fragrancia de uma flor diante das narinas dilatadas: muito ar e perfume. - Érico, a tua nua inspiração é a inspiração de todos, a mais comum de todas. Qualquer coisa inspira e qualquer pessoa pode se inspirar. É a inspiração do senso comum? É o que me parece. Viu? Estou entrando na tua teoria de cabeça. Vamos em frente, amigo. E a segunda tipologia, qual é? - Resende, a segunda é a de segundo grau, um pouco superior à primeira. Trata-se da inspirAÇÃO. A ênfase é dada á AÇÃO. O dinamismo de sua expressão é a tônica do ato. Trata-se de uma oitava acima da inspiração despida. Aberta a mente, mesmo com o coração fechado, a inspirAÇÃO vem com tudo e toma conta dos nossos pensamentos. É uma inspiração racional, cartesiana, weberiana até. Tudo pode inspirar, até mesmo a Barata de Sartre. Chamo essa modalidade de inspiração generosa. Por vezes, também digo inspiração cartesiana, inspiração existencial, inspiração cerebrina, weberiana, idealista, etc. Gosto, ainda, de chamá-la inspiração estética. - Como assim, a Barata de Sartre, Érico? Nunca ouvi falar dela, assim desse modo. Onde foi pesquisar sobre isso? Em que obra se encontra? - Uau! Uma bateria de perguntas! Vamos devagar, gentil homem. Agora, falando sério, Resende. A inspirAÇÃO é a motivação principalmente do corpo, que dá o dinamismo necessário para o fazer prático. Uma sensação de calor é um convite para tirar a roupa, assim como a de frio para colocá-la. Um olhar demorado, um convite para chegar mais perto; para se aprochegar, como dizem os doutos do sul, misturando o francês aproximativo com a chegada portuguesa: Te aprochega, vivente, como dizem lá. O ato de ir à batalha, vencendo o marasmo da letargia, do desânimo, tem o dedo da inspirAÇÃO. A pesquisAÇÃO é modalidade de campo que requer inspir-AÇÃO. - E a Barata de Sartre? Falou sobre tudo, menos nisso. De onde vem essa aí, meu amigo? Agora estou curioso demais para desistir da idéia de ouvi-lo imediatamente. - A Barata de Sarte. Pois bem,... a Barata de Sartre... - Não enrola, Érico. Vai logo ao que interessa. Desembucha, homem. Está faltando inspirAÇÃO? - Não. Agora o que está faltando é INSpirAÇÃO. É o terceiro, na ordem da tipologia da nossa peculiar Teoria da Inspiração. Como inspiração rima com conspiração... Percebe? INSpirAÇÃO e CONSpirAÇÃO. Esse


terceiro é a inspiração malvada, pesada, combativa, engajada, meledicente, bandida. É a inspiração incidental dos processos da vida. O recorte do olhar clínico se dá e desce a maldade inspirada, dirigida, consciente, segura, sem malestares de consciência. Eu chamo essa modalidade de inspiração bandida. Tem outros nomes, também, mas eu prefiro esse mesmo. Gosto, também, de jacobina ou engajada. Deu uma pausa brevíssima, como que respirando, e continuou. - Se a inspirAÇÃO é cartesiana, racional, a INSpirAÇÃO é profundamente sentimental, emotiva, graciosa, onerosa, certeira. Ela tem sempre alvo certo e sabe muito bem onde quer chegar. Um homem INSpirADO é um homem circunstancialmente perigoso. A paixão circula nas veias pulsantes. Trata-se de modo profundamente político, envolvido, cúmplice, atolado até à testa no meio em que está metido. A racionalidade da INSpirAÇÃO é outra. Aqui é Blaise Paschoal quem dá as cartas e dirige a carpeta. É o coração quem fala mais alto e a razão obedece, servil e situada. Traz a bandeja das coisas, curvando o joelho e a cabeça em um gesto único e sincrônico, como sincera reverência e submissão. - Sim, e daí? O que tem isso com a Barata de Sartre, meu caro? É disso que quero saber. Acho que tem alguém me enrolando. - Não, não; ninguém está enrolando ninguém. A Barata de Sartre está aí, à nossa volta. Veremos sobre isso, a seu tempo. Sabemos que inspiração gera inspirAÇÃO, que gera INSpirAÇÃO que, por sua vez, gera o quarto gênero ou modo de inspirar. - Qual é? - A insPIRAÇÃO. - InsPIRAÇÃO? Como é que é isso? - É o devaneio total da razão e do coração. É a loucura tomando conta de tudo, sem controle, sem barreiras, sem motivos e com todos os motivos do mundo. A insPIRAÇÃO é qualquer coisa ensandecida. Chamo o modo de inspiração dos gênios. Trata-se de uma mistura de inspirAÇÃO com INSpirAÇÃO. Inspiração generosa e inspiração bandida, cartesiana e pasqualina, juntas, gera a loucura que é capaz de produzir as grandes obras que a humanidade conheceu até hoje. Beethoven foi um insPIRADO. Érico fez outra pequena pausa e prosseguiu. - Mas há contraponto. Ela, também, produziu os gênios negativos, é certo. Alguns chamam de inspiração divina. Não gosto muito da expressão, pois se apóia em postulados metafísicos. Também chamo de inspiração artística. Ela é mundana sim, mas tão forte e grandiosa e só raramente vemos estar presentes em alguma obra ou pessoas. Nietzsche foi um insPIRADO também. Sócrates, Aristóteles, Dante, Descartes (mesmo que seu nome designe uma modalidade anterior, com duas oitavas abaixo, como falamos antes), Sartre, D´Vince, Dostoievski, Einstein, Luis de Broglie, etc. Com toda a razão, podemos dizer que esses homens foram uns loucos, no bom sentido da palavra. - Posso riscar no teu quadro? - perguntou, pegando os pincéis coloridos e pondo-se a rabiscar uma tabela no longo quadro magnético que ocupava quase a metade da parede da sala. É isso? Como coloquei no quadro, Érico?

Os quatro tipos de inspiração Quanto ao grau

Inspiração

inspirAÇÃO

INSpirAÇÃO

insPIRAÇÃO

primeiro grau

segundo grau

terceiro grau

quarto grau

Denominação

nua

generosa

engajada

genial

Codinome

estética

intelectual

política

artística

- É isso aí, Resende. Tu és bom nessas coisas de esquemas, não é mesmo? Afinal, ser professor é outra coisa! Eu, de minha parte, nunca fui bom didata; sempre reclamaram de minha incapacidade para explicar em palavras simples idéias complexas. Acho que sou adepto do adágio: "Por que facilitar, se podemos complicar?" Sou palestrante, não professor; eu digo, não ensino. - Fazer esquemas é sempre uma forma de simplificar. A simplificação ensina a idéia, o contorno, a forma, facilita a memorização, mas, naturalmente, corta um monte de coisas, faz, como se diz, uma abstração; abstrai, retira algo, faz uma seleção do que parece mais importante. Mas, voltemos. E a Barata de Sartre, vai valar sobre ela ou não? - Vou falar sobre. Ela. Eu não lembro mais a fonte de leitura. Foi em uma de suas obras. Pode ser um livro de contos, como O Muro, ou outra qualquer. O que lembro é o seguinte. Ah, uma advertência, antes. Pode ser que, de tanto repetir, tenha modificado um pouco a coisa e não quero fazer injustiça ao filósofo do existencialismo ateu, da filosofia engajada do século XX. Pegou um cigarro e pôs-se a fumar vagarosamente. - Ela me lembra o Kadafi, um amigo antigo, da Sociologia. Foi ele quem primeiro me contou sobre a Barata de Sartre. Conta-se que um dia, Sartre, perdido em suas reflexões existenciais, estava no quarto de uma pensão, no centro de Paris. Todas as janelas estavam fechadas e o sol ardia lá fora. Algumas frestas de luz atravessavam as grandes janelas do quarto. Ele estava sentado em uma cadeira, em um dos cantos, olhando absorto o piso irregular de madeira. Fez uma pausa e voltou, de imediato, à narrativa, dando mais uma tragada. Enquanto falava, a fumaça saía de sua boca e narinas, como que fumegantes. - Estava em uma crise existencial daquelas! A vida já não fazia sentido em sua normalidade, que dirá em situação de crise pessoal! Devia ter acontecido algo entre ele e a Simone; um desentendimento, talvez; ou algo com o PCI, coisa do tipo. A sensação de vazio, de náusea não passava. Não queria beber, fumar ou falar. Isolado do mundo, sem sair dele, pensava, com a mente solta no universo congnitivo de sua internitude. Num desses momentos, uma barata atravessou o quarto na diagonal oposta. Ela passou indiferente, totalmente indiferente à sua presença, ignorando-o totalmente. Ele se sentiu menos do que um verme; menos do que um inseto. Não era notado nem pela barata que por ele cruzava. Nesse momento, percebeu que a vida fazia sentido justamente por não ter sentido algum; era a falsidade do sentido o seu próprio sentido possível, limite, extremo. Ao sentir-se menor do que a barata, menos do que um inseto, percebeu que podia ser um homem e fazer sentido na vida. A náusea passou a fazer parte de seu cabedal intelectual, e não apenas de seu inventário pessoal de sentimentos amorfos sobre o mundo, as pessoas. as idéias e as coisas. Fumou mais uma vez e retomou a fala, concluindo.


- Era a Barata de Sartre dando inspiração, de barato. - Essa barata lembra nós, do Terceiro Mundo, ou quarto, seja lá como for. No quadro geral das categorias de inspiração, a Barata de Sartre está posta em que grau, a teu ver? - Não sei. - Como não sabe, se as categorias são tuas? - Simplesmente não sei, Resende. Por acaso, deveria sabê-lo? - Sim, pois referiu a expressão dentro de um contexto categorial. Não está lembrado disso? - Acho que penso que a Barata de Sartre está no ponto da inspiração de segundo grau, na inspirAÇÃO. Ela é generosa, energética, observativa, racional, cartesiana. Não sei se ela fica apenas nesse tipo ideal ou transpassa todos os demais. Aliás, na verdade, não são quatro categorias, mas sim três. A primeira delas é a banal, a simples, a comum, a de dicionário. Os três tipos seguintes é que são quentes, qualificadores. Mas, pode deixar como está no quadro; assim está bom. - Uma coisa simples inspirando uma coisa grande. É algo assim, não? A Barata de Sartre pode ser o Eureka de Pascal. Coisas nada a ver nos dão estalos e conseguimos resolver, por vezes, problemas complicados. É assim que interpreto a metáfora sartreana da barata. - É isso, aí, Resende; é isso, aí. Agora entende porque não gosto de parafrasear o que as igrejas pregam como palavras santas. A santidade respeitável é a vida humana; essa sim é um templo verdadeiro. Um templo, para eles, profano, mas um templo mesmo assim. Se não há inspiração, precisamos evoluir um grau a mais ou superar uma oitava, como no teclado de piano. Érico deu mais uma baforada de cigarro, levantou-se, pegou o casado e despediu-se de Resende. As horas haviam voado e já estava na hora de cumprir o compromisso agendado. Enquanto descia os lances de escada, uma barata vermelha, grande e morta, de pernas múltiplas para o ar, emborcada, num canto, lembrou de novo a conversa. Sentiu vontade de fazer algumas retificações na narrativa da metáfora, mas entendeu que assim, como dissera, estava bom. Desceu o lance, ignorando o inseto. A luz da rua estava forte, o sol alto e o burburinho convidava para concluir os afazeres do dia.

Conto 84, de 09/08/2000, sábado

Exército de Einstein João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Albert Eisntein, na obra "Como Vejo o Mundo", em certa passagem, referindo-se ao militarismo, diz assim: "Se um homem sentir prazer ao desfilar ao som de hinos e taróis, eu desprezo este homem; não merece um cérebro, já que a coluna vertebral o satisfaz. Devemos extirpar esse cancro o mais rápido possível do seio da humanidade." - É anti-militarismo isso. Um Exército bem equipado é muito importante para qualquer País. Não posso concordar com Einstein, mesmo reconhecendo sua vastíssima capacidade intelectual, como não poderia deixar de ser. Que mal tem em um homem sentir prazer desse modo; prazer é uma manifestação sentimental e estética. - É o pensamento dele, Dagoberto. Ele não deixa de ter razão. Agora, concordo contigo que a inteligência militar não é tão debilitada assim. Tanto o é que pagavam regiamente Einstein para pesquisar no campo da energia atômica. Foi com dinheiro dos fundos militares americanos que ele pesquisou e descobriu a fórmula da energia (E=m.c2). Precisamos de militares inteligentes; do contrário, perderemos todas as batalhas. - Godofredo, sem exército não há respeito externo à soberania nacional. Veja a antiga Invencível Armada espanhola tentando enfrentar a marinha inglesa; veja as tentativas francesas de romper os cercos econômicos ingleses. Todos os países que não possuem um bom exército ficam a mercê das grandes potências. Quem tem bomba atômica hoje em dia é internacionalmente respeitado, como é o caso da Índia, que é do Terceiro Mundo. Não digo que a guerra seja algo bom; ela só é boa para os vitoriosos, deixando de lado a agonia dos parentes dos seus mortos. Nenhuma guerra é boa ou má, em si; é um mal necessário, muitas vezes. - Eu concordo, Dagoberto. O que quero pautar aqui é o fato de que Einstein, mesmo tendo sido um colaborador dos militares norte-americanos, não gostava de milicos. A sua afirmação, no extrato, pode até ser pueril, pois pega a coisa pelo lado emotivo e humilhante. Einstein ataca o militarismo por cinco caminhos expressos na assertiva. Primeiro, afirma que eles são sentimentais, segundo, que são moralmente desprezíveis, terceiro, que não pensam, são acerebrados, em quarto, que sua organização é uma doença e, por fim, em quinto, que deve ser extirpado da humanidade. - Vamos por em um quadro o pensamento dele? Posso? - Claro, Dagoberto. - Então, lá vai - disse, rabiscando na folha de papel o seguinte:

Estética afetados

Moral desprezíveis

O militarismo na visão de Einstein Racionalidade Funcionalidade acerebrados doença

Finalidade Extirpação

- É isso mesmo o que ele diz. É claro que a posição einsteiniana é exógena, isto é, de quem vê de fora


para dentro. É nesse sentido que se entende que a funcionalidade dele é, na verdade, uma disfuncionalidade e a finalidade ali posto, não é a do exército, mas sim a da própria humanidade. Ele não quer que existam quartéis e a ideologia do militarismo. Quanto à racionalidade, chamá-los de acerebrados é um modo chocante de dizer que os caras são irracionais mesmo, já que matar, para ele, é ilógico. Ele quer a construção e não a destruição. - Ele combate não apenas o militarismo, mas toda forma militar. É impossível, Dagoberto, terminar com os exércitos. Somente quando a humanidade tiver atingido um patamar de superioridade cultural e econômica no mundo todo, quando não for mais necessário existirem fronteiras de países, quando todos os seres humanos forem educados suficientemente para se respeitarem como seres humanos que são, quando a política não se fizer mais necessária, aí sim não farão mais sentido as organizações militares. A ogeriza dele é sentimental; ele odeia os militares. Quem sabe isso ocorra pelo fato de ter sido ele judeu alemão fugido do hitlerismo da época. Agora, ele tá errado em ser contra os militares pelo simples fato de serem eles os depositários de todos os aportes culturais sobre a arte da guerra. - Claro, Dagoberto. Também sei que defende os milicos pelo fato singelo de tu seres um deles. Acho que milico tem o seu valor, dentro dos quartéis; quando inventam de fazer política institucional geral em um país, a coisa vira o que a história sempre demonstrou: autoritarismo e totalitarismo. Vocês são truculentos mesmo. Ora, venhamos e convenhamos. Trinta anos de militarismo no Brasil, vinte anos ali, vinte e cinco anos acolá. O que que é isso, companheiro? Já dizendo isso e lembrando da VPR. - A guerra fria passou. Os militares não combatem mais os comunistas no mundo; eles perderam a guerra final. Tanto o é que a União Soviética não existe mais; nem Albânia, nem nada. O último bastião é a China Popular e Cuba, o Vietnã do Norte, também, de alguma forma. A queda do Muro de Berlim demonstrou a inviabilidade do comunismo nacional. Dentre os comunistas, quem sabe seja Trotsky o mais sábio de todos os pensadores comunistas. - E, se não combatem mais comunistas, o que fazem os milicos de hoje? - perguntou Godofredo, franzindo a testa. - Nada; nós não fazemos nada. Ah, treinamos como matar mais e melhor. O inimigo principal não é mais comunista, interno ou externo, mas sim todo e qualquer País que enfrente os nossos direitos internacionais, as nossas fronteiras, por exemplo. - Combatem o narcotráfico e a corrupção? É esse o novo mote, a nova justificativa para as ações militares? O Exército Internacional da Paz, da ONU, é o novo modelo mundial de organização, que intervêm nos países soberanos a pretexto de garantirem a paz mundial? - Mais ou menos. Não digo que não tenha essa linha de pensamento militar, pois tem; há até aqueles que ainda acham que os comunistas existem e constituem ameaça à nossa soberania interna e externa; mas, esses estão todos com o pé na cova; são os da velha guarda. Eu, particularmente, penso que o papel das forças armadas, e não apenas do exército, seja o de garantir as fronteiras e fazer a guerra que for necessária. Por isso concordo que o chefe maior das forças deve ser um civil, e não um militar. A maior honra militar é participar de combates ou guerras reais, concretas. Deveria ser diferente; deveria ser a de estar sempre de prontidão para defender os nossos interesses no cenário internacional. A forças militares devem estar muito bem equipadas e prontas para o que der e vier. Hoje em dia, se nos invadirem o território, não sei se temos condições de impedi-los, principalmente se o agressor forem os Estados Unidos da América. - Vocês mataram muito cidadão importante da vida pública nacional. A troco de que fizeram isso? Pessoas que nem sequer eram comunistas passaram a ser presas e torturadas. Passaram a beneficiar grupos econômicos ligados a vocês, em detrimento de outros, inclusive nacionalistas. Acho que a ditadura militar brasileira não era nacionalista, mas sim servil aos interesses econômicos e geopolíticos yankees. - As nossas forças foram ensinadas pelos americanos desde a inauguração da República, no século passado. Não podemos esquecer que copiamos o nome deles, a bandeira deles, o jeito de vida deles, enfim, passamos a adorá-los como sendo o supra-sumo da organização de vida humana. Daí, até, República dos Estados Unidos do Brasil. Cada Estado federativo tinha um Presidente de Estado, um Supremo Tribunal e um verdadeiro congresso estadual. Com Vargas é que a unificação vai começar a se firmar, mas não sem o centralismo que inaugurou e que existe até hoje. Era o pensamento gaúcho mandando no Catete, não é mesmo? - Acho que a contribuição dos cidadãos deveria ser voluntária, e não obrigatória como é hoje. Por que não copiaram isso dos americanos, já que copiavam tanta coisa ruim. - Ora, Dagoberto, não seja ingênuo. Não copiamos muita coisa e não porque fossem boas. O serviço militar facultativo e o voto facultativo, que existem lá, nós deixamos de lado porque não nos servia. Um exército profissional de voluntários custa muito caro e o exército sempre recrutou os filhos das classes mais baixas visando educá-los, dar um ofício aos mesmo, diminuindo, assim, a marginalização social. Se o voto fosse facultativo, teríamos menos de dez por cento da população votando, e isso diminuiria a legitimidade dos governos. Nos EUA, votam 40% da população, voluntariamente. A realidade daqui é diferente. - Que seja! E, por que não copiaram as estruturas das multinacionais americanas, espalhando-as pelo mundo, de modo que pudessem remeter ao país o grosso de seus lucros, como fazem hoje, contra a economia nacional? Isso era outra coisa boa de se copiar e que dá certo para eles. - Tentamos, mas não conseguimos. O Brasil não tinha uma base industrial forte, não tinha pesquisa eficaz e faltava dinheiro para investimentos. O agrarismo e o analfabetismo empresarial dificultou a cópia do modelo transnacional. Até fizemos algumas coisas imperialistas, como o neocolonialismo disfarçado com o Paraguai. A Itaipu binacional é exemplo disso. A sonegação de impostos empresariais é muito grande no país e são os próprios empresários os políticos que terminam por dirigir importantes ministérios da União. Hoje está aparecendo alguma coisa na mídia, em forma de corrupção; mas, durante décadas esse modo de fazer política e economia foi tratado como um modo lícito e até normal. - Muito bonito de se ouvir. E falas isso como se não tivesse nada a ver com os milicos. Estavam envolvidos em todas as maracutaias comerciais. Tanto é que um dos presidentes militares, logo que deixou o país, passou a ser presidente de uma importante multinacional alemã, aqui mesmo. - Coisas da vida. Se fosse fácil resolver tudo isso, não teríamos resolvido? A vida social tem modo próprio de existir; avançamos muitos historicamente, ainda que haja atrasos violentos em diversos setores da vida nacional. Essas correções ocorrem aos poucos; a política é muito conservadora no país. Os avançados perdem sempre as eleições, não é mesmo? Olha para um Lula, um Brizola; todos perdem sempre. Roubando ou não, fisicamente os votos ou através da manipulação da mídia, a verdade é que os progressistas não conseguem ir além de onde estão. O atual presidente já constitui um avanço, olhando


para a nossa História abaixo, mesmo com todos os seus defeitos e teratologias do segundo mandato. - Então, na tua visão atual, a globalização é coisa boa para nós, brasileiros? - Não digo que seja uma coisa boa para nós, brasileiros, mas que é uma coisa boa para muitos países, é. Essa abertura desmesurada para o capital estrangeiro, sem controle rígido da remessa de lucros, sem controle de suas ações oligopolistas, sem controle da importação de mão-de-obra estrangeira e sem o controle de seus investimentos na política institucional local, e sem controle de seus lobbies sobre o parlamento para desestruturar o nosso ordenamento jurídico, isso sim, é ruim. Mas, precisa-se arrumar a casa de alguma maneira. - Os países ricos são os maiores beneficiários da globalização econômica de ideologia neoliberal. Os países pobres ficam mais pobres, pois as suas produções são feitas pelos estrangeiros e o capital foge por todos os lados. É uma ilusão produtiva. O desemprego aumenta, a população aumenta, a miséria aumenta. Essa tal de modernização ocorre mesmo, a olhos vistos, mas são poucos os que podem usufruir dela. A maioria fica excluída dos benefícios civis da globalização. Ter celular e importados eletrônicos convivendo com o analfabetismo crônico, com a prostituição infanto-juvenil, a criminalidade acentuada e com o subemprego não me parece que possa fazer um sinônimo de progresso. - Eu concordo. Gostaria mesmo que todo o Exército pudesse treinar com fuzis AR-15 ou melhores, ter uma força aérea de última geração, uma marinha super-equipada. Mas, a verdade é que isso não acontece. Estamos muito longe de ter um progresso militar que possibilite conjugar hierarquia rígida com democracia interna. Isso é possível, mas estamos muito longe disso. E não são as empresas americanas que vão nos dar de presente armas militares; pelo contrário, o que puderem vão tirar de nós, a pretexto de que não é importante ter armas modernas. Afinal, os EUA podem fazer a defesa dos nossos interesses internos, não é mesmo? É isso o que pensa uma corrente interna do exército, que eu não canso de combater; é a velha guarda. Acho que devemos ter um exército combativo, equipado, vinculado e de fronteiras, pronto para defender os interesses nacionais no que der e vier, mas mandado por brasileiros e para os brasileiros. Hoje a coisa está diferente. Estamos mudando de concepção de mundo e de organização. Não pensamos em dirigir mais a vida política nacional; estamos confinados nas casernas, como de ve ser. Não temos o dever de combater a criminalidade interna e nem o tráfico internacional de drogas. Para isso temos as diversas polícias internas. - Belo discurso, milico. Se não fosse meu amigo e não te conhecesse como te conheço, teria ido embora logo que abriste a boca. Eu sei que as tuas intenções são boas e que, se dependesse de ti, o país estaria bem melhor. Não concordo com a maioria de tuas idéias e vice-versa. Entretanto, temos amizade e linha de diálogo; e isso é bom. Vamos brindar e sonhar, de olhos abertos e braços dispostos, com um país melhor no próximo século. - Recebo de bom grado a agressividade. Tenho certeza de que a intenção foi elogiosa. Um brinde e avante! Einstein poderia não ter razão, mas, se eu não fosse militar, pensaria com tu e diria que ele tem toda a razão. - E foi, Advogado! - É isso aí, Causídico; saúde.

Conto 85, de 10/08/2000, domingo Fórmula Geral do Amor João Protásio Farias Domingues de Vargas

Um psicólogo, um sociólogo e um historiador se encontraram para verificar o modo de formular "matematicamente" um sentimento muito caro para a humanidade. Henrique, Paulo, Oscar conversavam numa das salas da biblioteca particular de um amigo. Várias obras sobre o tema "amor" estavam espalhadas sobre as mesas, oriundas das mais variadas áreas do conhecimento humano: filosofia, literatura, sociologia, psicologia, biologia, dentre outras. Duas equipes foram formadas para a pesquisa, cada qual capitaneada por um dos nossos protagonistas. A discussão final sobre os resultados dos trabalhos é o que vamos narrar agora. - Paulo, como foi o trabalho? - disse Oscar, dando início à discussão. - Bom, Oscar, muito bom. A minha equipe foi paciente e pesquisamos tudo o que pudemos encontrar e pensar sobre o assunto "amor" e chegamos a uma fórmula geral. - A minha equipe, Paulo, também trabalhou duro e conseguimos desenvolver uma fórmula provisória sobre o que denominamos "paixão". - E, qual é a fórmula da paixão? - perguntou Henrique, curioso, já que não participara de nenhuma das duas equipes, mas ficara encarregado de trabalhar a compatibilidade das duas fórmulas, em uma etapa posterior, com todas as equipes conjugadas. - Henrique, a fórmula é essa que vou por no quadro - pondo-se a escrevê-la. - Antes de ser inquirido, vou logo declinando a fórmula provisória e geral do "amor" - disse Oscar, colocando a fórmula logo abaixo da de Paulo. Henrique, clinicamente, ficou olhando as duas formulações postas no quadro, fez ares faciais de reflexão e pôs-se a unificar as duas fórmulas. Em menos de um minuto estava pronta. Todos passaram a contemplar a tabela com as três fórmulas, no quadro, visando iniciar o debate sobre a sua composição, estrutura e formulação.

1) Oscar 2) Paulo

PAIXÃO = QUÍMICA x POSSE ( x CIÚME) AMOR = AMIZADE x PAIXÃO ( x SEXO)


3) Henri

AMOR = AMIZADE x QUÍMICA x POSSE ( x CIÚME) ( x SEXO)

- Começo a exposição explicando a nossa fórmula da "paixão", eis que é pressuposto da fórmula do "amor", que será abordada pelo Paulo, adiante, com o arremate geral unificante pelo Henrique. Todos de acordo? Alguma pergunta prévia? - perguntou Oscar, ao que assentiram todos os demais. - Oscar, pode ir em frente - disse Henrique. - Pois, bem, gente; vamos lá. Concebemos a paixão como um sentimento que pode ser conceituado à base de dois elementos necessários e um alternativo: química, posse e ciúme. Precisemos a inteligência de "química". Toda e qualquer alteração ou atrito ocorrida no corpo ou na mente, seja ele de natureza estritamente química ou químico-física, fica englobada pelo conceito. Lágrimas, sorriso, gestos, fala, o ato de ouvir, as sensações táteis e gustativas, o orgasmo sexual, a dor, a angústia, a preocupação, a pressão arterial, as pulsações cardíacas, todos os humores do corpo, o suor, nas têmporas, nas mãos ou nas dobras do corpo, como axilas, atrás dos joelhos, virilhas, tudo isso, dentre outras manifestações, estão inclusas no conceito de "química". Apesar de entendermos que pode haver uma palavra mais adequada para descrever tais fenômenos, entendemos que a que melhor se aplica é a propriamente utilizada, ainda que em sentido figurado. Sem química não há paixão possível; a presença do elemento é necessária, obrigatória, no nosso modesto entendimento. Oscar tomou um copo de água e retomou a exposição. - Agora vejamos o segundo elemento necessário, a que denominamos "posse". Trata-se da apropriação, legítima ou não, legal ou não, física ou psíquica, do que quer que seja, com acesso direto a ela, entendemos como sendo o que chamamos pelo vocábulo "posse". Há uma apropriação ou domínio de alguma coisa ou alguém. Falamos em posse de um livro, de um computador, do corpo de uma pessoa, de um animal qualquer, ou da idéia de alguma coisa, de uma obra cultural qualquer. Sem a presença de um "bem", tangível ou não, à disposição da pessoa, não temos condições de falar em paixão. É o objeto da posse o que constitui propriamente o objeto da paixão. Esse objeto pode ser único ou múltiplo, no sentido de constituir uma totalidade desmembrável mas, que, para fins de posse, na paixão, constitui uma unidade, um todo. Todos observavam atentamente a exposição, tomando notas da fala. Oscar retomou, com outro gole de água. - Meus amigos. Esses foram os dois elementos essenciais da paixão. Falemos agora do elemento acidental ou móvel, cuja presença pode ou não estar posta, na constituição do sentimento complexo denominado "paixão". Trata-se do "ciúme". Ciúme é um sentimento humano - exclusivamente humano, até onde pudemos perceber -, que se caracteriza pelo desejo de algo que não temos e que está fora de nós, livre ou na posse de outro. Também pode estar tal objeto, que pode ser coisa, pessoa ou semovente, esteja em nossa possa e tenhamos medo de perdê-lo, receio de que se afaste de nosso alcance. O ciúme é, portanto, de coisas nossas ou de coisas alheias. Há que se distinguir o ciúme da inveja. A inveja é o desejo de que uma terceira pessoa não tenha algo ou pessoa à sua disposição ou ao seu alcance, tenha esse terceiro acesso à coisa ou pessoa, ou não. Trata-se de um sentimento negativo. Não queremos que alguém tenha algo ou alguém junto a si. O ciúme é sentimento positivo. Queremos ter a coisa ou pessoa conosco, de forma exclusiva ou compartilhada, não nos importando que outros possam tê-la também. Quando o ciúme se projeta como negação de acesso a um terceiro, há uma transformação do sentimento ciúme em sentimento de inveja. Oscar tomou outro gole de água e acendeu um cigarro. Olhou à sua volta e voltou à exposição. - Agora vamos juntar esses três elementos e finalizar o entendimento, concluindo a exposição. Paixão é o sentimento complexo que é composto de três outros elementos: química e posse, podendo, eventualmente, estar presente o ciúme ou medo da perda de algo. A química é uma reação corporal, uma resposta orgânica dada a impulsos externos ou sentimentos que possuímos. A posse é um sentimento de acesso, de poder, uma sensação de disposição de uma coisa, pessoa ou semovente (animal). O ciúme, como disse, é um sentimento de medo da perda de um determinado objeto que se tem, ou o desejo de vir a ter algum. Uma paixão que esteja presente o ciúme ou a inveja pode ser exemplificado na paixão humana de uma pessoa por outra, do tipo homem-mulher, visando a constituição de uma relação amorosa. Uma paixão em que o ciúme "lato sensu" não esteja presente pode ser exemplificado pela paixão metafísica por Cristo, na religiosidade católica. Reconhecemos que posse e química está presente na maioria dos sentimentos relacionados a coisas e pessoas ou animais, daí a popularidade da expressão "paixão". Somente teremos medo da perda se tivermos a presença do ciúme. Deu mais uma fumada e concluiu. - Era isso o que tínhamos a dizer, por enquanto, numa primeira aproximação temática. Reconhecemos as deficiências da fórmula P=QP(C), mas, entendemos, assim, que já constitui um grande avanço a tentativa de formulação ou esquematização, que vale, senão pela sua cientificidade, sempre possível de ser falseada, então pela sua capacidade didático-elucidativa. Estamos submetidos ao julgamento dos amigos. Os presentes aplaudiram a exposição de Oscar, que se demonstrou lisonjeado pelo prestígio demonstrado pelos interlocutores. Henrique retomou a palavra. - Consulto aos presentes se debatemos essa primeira fórmula ou se ouvimos as duas seguintes e depois debatemos tudo em conjunto. Os presentes assentiram em um debate após todas as exposições. - Paulo, então é a tua vez - disse Henrique. - Amigos, amigos, amigos. Vamos falar sobre o "amor", não em uma perspectiva de senso comum, banal ou romântica, mas sim em uma perspectiva técnica, em uma tentativa de formulação conceitual, com certo grau de precisão. Naturalmente que a fórmula apresentada pode desagradar a muitos, pois tenta desmistificar tal sentimento, sendo essa uma das nossas principais intenções. - Fala logo - disse Oscar, meio impaciente. - Calma; estou me preparando para a fala e não vai ser curta, a exemplo da anterior. Amor, para a nossa equipe, é um sentimento complexo composto por uma parte fixa e outra móvel. A parte fixa é composta de dois conceitos conhecidos, mas, o nosso olhar foi além do meramente posto no entendimento do imaginário popular. Tratam-se dos conceitos de "amizade" e de "paixão". A parte móvel tem um só conceito, o de "sexo". Isso porque entendemos que pode haver amor sem sexo, senão, como explicaríamos o amor entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos, entre companheiros ou simplesmente conhecidos


que interagem durante certo tempo entre nós; como explicaríamos o amor entre pessoas que estão fisicamente muito distantes ou entre aquelas na qual uma já morreu? Oscar tomou um gole de café e retomou a conversa. - Retomando. Expliquemos os conceitos integrantes do "amor". Principiemos pela "amizade". Amizade é um sentimento humano que se caracteriza pela benevolência entre as partes, pelo desejo de contribuir para que o "alter" permaneça ou fique bem, melhor, no que quer que seja; há a presença de atos efetivamente protetivos de um pelo outro. A amizade está no pólo oposto da indiferença, pois os amigos fazem efetivamente diferença entre si perante terceiros; também está no oposto da rivalidade, que se constitui em desejo ou atos efetivos de exclusão. Uma cumplicidade de atos entre amigos e envolvimento evidente em relações as mais diversas; as partes sentem prazer em estar perante a presença ou em contato com o outro. A tarde já vinha caindo e podia-se ver, através dos vidros da janela, o sol tendendo a se pôr, distante, perto do rio. - Quanto ao elemento "paixão", conforme havíamos combinado, incorporamos tudo quanto foi dito pelo Oscar. Reprisemos, apenas. Ela é composta pela reação química do corpo e da mente da pessoa, pelo sentimento de posse que se possa ter e, eventualmente, pode estar presente, qualificando ou adjetivando a "paixão", o ciúme, tanto em seu aspecto positivo quanto no negativo, denominado inveja. Entendemos que a paixão é violenta, justamente pelas reações químicas que causa no organismo humano e, também, no meio social, pela sensação de exclusividade que possa ser quista ou empreendida. A paixão humana homem-mulher ou homem-homem, em que possa haver desejo de ordem sexual, adentra, já, no terceiro elemento do amor, o "sexo", que abordaremos agora. Tomou outro gole de café, olhou as notas escritas e voltou a dissertar. - Minha gente, o "sexo", no sentido da relação sexual, pode estar presente ou não na relação de amor. Aliás, tudo de quanto falamos trata-se de relação; relação de amizade, relação de paixão, relação de sexos, relação de ciúme, relação química, etc. Há sexo quando duas pessoas, biologicamente de um mesmo ou diferente sexo, relacionam-se visando a procriação ou o simples prazer, extravasando a libido, já utilizando uma expressão de ordem freudiana. O coito é a forma clássica e comum de relação sexual, com penetração. Há que se distinguir a sensualidade da sexualidade. A sensualidade é um apelo de ordem estética que pode estar ou não direcionado à sexualidade. Um corpo de mulher vestida de minissaia pode excitar sexualmente alguém, assim como pode apenas demonstrar a beleza da roupa, se os olhos são para verificar a utilidade da moda; o mesmo se pode dizer quanto à utilização de roupas íntimas ou mesmo das imagens nuas do corpo masculino ou feminino. Partiu Oscar para a conclusão. Todos estavam muito atentos à fala. - Amigos e amigas presentes. Amor exige, sempre, amizade e paixão, podendo ser temperada pelo sexo, como que qualificando aquele. Pensamos que a nossa fórmula seja aplicável a todos os tipos de amores existentes e imagináveis. Se houver um caso em que a fórmula não se aplique, teremos de revê-la em sua totalidade, pois a nossa pretensão é a de universalidade conceitual. Vai desde o amor platônico até o amor carnal, passando pelo amor religioso e o amor intelectual. Agora, há uma coisa, o conceito somente se aplica a pessoas e certos semoventes; paixão, não; aplica-se a pessoas, coisas e semoventes. Não se pode amar uma casa, mas pode-se morrer de paixão por ela. - É isso, Oscar? Encerou? - Encerrei, Henrique. - Pois bem, agora é a minha vez. A unificação possível que vislumbro, em uma primeira aproximação, está no fato de que "A=AQP(C)(S)". A fórmula é simples e indica que amor é igual a amizade vezes química vezes posse, necessariamente. Eventualmente, pode ser tudo isso multiplicado pelo ciúme e pelo sexo, mas nunca necessariamente. São, por assim dizer, variáveis que qualificam determinados tipos de amor, mas não identificam, em geral, todas as formas de amor. Há, portanto, um núcleo básico ou central e um grupo periférico ou halo, que serve de adjetivante da fórmula. Esfregou as mãos fortemente, transpassando os dedos entre si, lambeu os lábios levemente, olhando para o piso, e retomou a fala. - Diletos compatriotas, a questão do amor é muito complexa, apesar da singeleza de sua existência na vida das pessoas. Não estou certo se amor é amizade mais química mais posse, ou se as três variáveis são multiplicadas entre si. Tendo mais para a multiplicação do que para a soma, pois o contato de valores e sentimento se "potencializam", quando reunidos. "Amizade e química" é uma coisa, "amizade e posse", outra; uma terceira é "química e posse". Essa complexidade reunida, remexida entre si, gera o que denominamos conceitualmente amor. Tossiu um pouco, pondo a mão sobre a boca e, olhando para Márcia, pediu um copo de refrigerante com gás. O assentimento pela ajuda foi imediato. - Agora, se ligarmos "amizade e ciúme", "amizade e sexo", "química e ciúme", "química e sexo", "posse e ciúme", "posse e sexo", teremos uma ampliação substancial da complexidade do sistema sentimental, ou complexo emotivo denominado amor. Pior, ainda, se ligarmos grupos de três variáveis, combinadamente, a complexidade ficará bem mais emaranhada, gerando ilações de comportamentos sentimentais muito mais ricos. Se tivermos presentes, na realidade prática, uma determinada pessoa que tenha acesso às cinco variáveis da fórmula do amor em suas relações com determinada pessoa, sem sombra de dúvida que estaremos diante de uma sólida relação amorosa entre duas pessoas; isso seria muito amor, eu diria! Veio o líquido. Serviu o copo, tomou um longo gole e voltou à fala. - Concluindo, meus compatriotas. Há uma pergunta que ainda não consegui responder. É possível haver amor sem a variável nuclear "posse", como pensam alguns? Entendo que não; a menos que se entenda por posse um sentimento de apego psicótico a uma pessoa e exclusivamente isso, no limite, sem as gradações possíveis em diversas faixas de possibilidades reais. O simples acesso à pessoa indica posse; o acesso à imagem é posse, ainda que da imagem. Posse não significa propriedade nem no mundo jurídico; portanto, não é aqui que iremos fazer a sinonímia, para complicar desnecessária e erroneamente as coisas de ciência. Volto a frisar que essa questão está em aberto. A segunda pergunta que não tenho resposta definitiva é quanto à variável "química". A palavra não me soa bem no local, não me parece a mais adequada; entretanto, não tenho uma que melhor a substitua; tenho apenas aquelas que podem piorar o soneto. Descarto a chance de que amor possa ser exclusivamente "amizade", como sinônimos. Tratam-se de sentimentos diferentes. A fórmula posta diz que a variável amizade é parte de um contexto maior, integra o conceito de amor. Amizade só tem uma finalidade posta, auxiliar na produção do amor, juntamente com a química, a posse e, por vezes, juntamente com o ciúme, o sexo, presentes. Dito isso,


encerro a minha intervenção. Todos os presentes aplaudiram a conversa, descontraída, feita por Henrique. A galvanização do ambiente era grande; estavam todos intelectualmente excitados. Lá fora, a noite corria solta e as horas voavam como nunca em direção à madrugada. - Meus amigos, disse Henrique. Adoraria continuar o debate agora, enquanto as coisas estão quentes, mas a hora é alta. Consulto aos presentes: é hora de irmos e voltarmos amanhã, no mesmo horário e local? - É hora - disse Oscar. Os demais assentiram. Retiraram-se ruidosamente em direção aos elevadores. A sala, em segundos, ficou vazia. No alto, escritas, as fórmulas permaneceram, imóveis, contrastando com a cor de fundo do quadro. A luz foi apagada. Tudo ficou breu. A luz do saber viajou com os corpos que prometeram voltar no dia seguinte.

Índice Analítico RESUMO MODO DE CITAÇÃO APRESENTAÇÃO SUMÁRIO CONTO 66 - TRIBUTO A CORONEL CONTO 67 - DO CHIFRE AOS CASCOS CONTO 68 - AS GÊMEAS CONTO 69 - UMA CASINHA NO CAMPO CONTO 70 - DIALÉTICA RAULIANA CONTO 71 - REPETIÇÃO DE BÊBADO CONTO 72 - SÍNDROME ALPINO-CICLISTA CONTO 73 - CANTO E FLAUTA CONTO 74 - VAI COM CALMA, MIGUEL CONTO 75 - OS DEUSES DE VIK CONTO 76 - RONDA DOS OLHOS CONTO 77 - MESTRE CASTOR CONTO 78 - IR É PRECISO: CONTO MALDITO DA LIBERDADE ENCARCERADA CONTO 79 - POEMINHA DO CONTRA CONTO 80 - DINHEIRO FÁCIL CONTO 81 - SUCO DE LARANJA CONTO 82 - RAZÃO DE CASSANDRA CONTO 83 - BARATA DE SARTRE CONTO 84 - EXÉRCITO DE EINSTEIN CONTO 85 - FÓRMULA GERAL DO AMOR ÍNDICE ANALÍTICO

Veja o Volume 1 - Veja o Volume 2 - Veja o Volume 3 - Veja o Volume 4

Acesso

, desde 15 de março de 2009.


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