PROTASIO VARGAS. Contos do Final do Milênio 0 VOLUME 1

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Contos Literários e Jurídicos

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Contos do Final do Milênio VOLUME 1 (1 – 45) JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS UFRGS Versão 2, de 09/11/2000

Resumo Em quatro volumes, os 107 contos, escritos no final do inverno e início da primavera do ano 2000, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, apresentam uma variada temática de abordagem, com personagens inventados em um cotidiano ora reflexivo, ora bastante cinético, movimentados em cenários variados de enredos bastante simples. O autor se vale da ironia na maioria dos enfoques, sem descurar da crítica, inclusive de cunho político, social, econômico, ideológico, filosófico, religioso, enfim, jurídico, de espraiada modalização. A ordem dos contos é a ordem de sua criação, inclusive na cronologia posta. O volume 1, com 45 contos, vai do conto 1, “Mente no Céu, Olho no Chão”, ao conto 45, “Princípios e Juizados Obrigatórios”.


Modo de Citação VARGAS, João Protásio Farias Domingues de. Contos do Final do Milênio. Vol. 1/4. Porto Alegre: digitado, 2000.

Apresentação . Os contos foram escritos entre 19/06/2000 e 02/10/2000. Metodologia de escrita: construção à medida que digita; tática principal: escrever muito para aperfeiçoar o estilo; estratégia geral: ter acúmulo de texto que possibilite uma seleção para divulgação. Estratégia específica: escrever de modo que os Contos possam evoluir, naturalmente, para escritos maiores, de gênero diverso: o romance e a novela. Limite inicial da tática: 100 Contos. O autor mistura trechos de fatos observados na vida observada no cotidiano com emendas da imaginação, de modo que nada do que está escrito represente realidades postas. Eles não têm essa vocação. Por isso que tudo quanto possa ser semelhante a fatos da vida constitui mera coincidência e não pode ser levado a sério. Trata-se de mera ficção e, como tal, devem os escritos ser encarados. Podemos chamar de contos-momento, construído na espontaneidade da inspiração. Alguns são longos e outros muito curtos, quase beirando à crônica; outros tangenciam o ensaio, mas sem nunca perder o ar ficcional. Todas as personagens, são fictícias e, na realidade de cada conto, adquirem a vida que lhes coube pela imaginação do autor.

Sumário RESUMO. MODO DE CITAÇÃO. APRESENTAÇÃO. SUMÁRIO. CONTO 1 - MENTE NO CÉU, OLHO NO CHÃO; CONTO 2 - UM PASSEIO NOTURNO; CONTO 3 - UMA AULA SOBRE SOCIEDADES; CONTO 4 - POSTURA DA SEMIÓTICA; CONTO 5 - AS MOÇAS DA VOLUNTA; CONTO 6 - A VELHA REPÚBLICA; CONTO 7 -


O MUNDO DOS POKÉMONS; CONTO 8 - UMA CONSULTA DE ESCRITÓRIO; CONTO 9 - AUDIÊNCIA COM UM VEREADOR; CONTO 10 - UMA BREVE CONVERSA; CONTO 11 - A AGENDA E O POETA; CONTO 12 - A REUNIÃO MARCADA; CONTO 13 TELEFONEMAS MUDOS; CONTO 14 - A SORTE DAS PROVAS; CONTO 15 - VOCÊ TEM UM PLANO?; CONTO 16 - VERDADE - PROVA - FALSIDADE; CONTO 17 FAZENDO UMA CANOA; CONTO 18 - UM TEMPO DE LEITURA; CONTO 19 - ANTENA PARANÓICA; CONTO 20 - A IMORALIDADE DA MORAL; CONTO 21 - FASES E CRISES NA VIDA DOS CASAIS; CONTO 22 - GAYS, LÉSBICAS TRAVESTIS E TRANSGÊNEROS; CONTO 23 - A ÉTICA DA MORALIDADE; CONTO 24 - A DISTÂNCIA REGULAMENTAR; CONTO 25 - DE ESCALA A CONEXÃO EM VÔOS DOMÉSTICOS; CONTO 26 - PENSAR E AGIR; CONTO 27 - CARIOCA DO INTERIOR; CONTO 28 - AS DESPEDIDAS NUNCA SÃO IGUAIS; CONTO 29 - TELEFONE MÓVEL; CONTO 30 - FACILIDADE E COMPLICAÇÃO; CONTO 31 - INTUIÇÕES QUE VALEM; CONTO 32 - JACARÉ E RATINHA NOS MILHOS ATRÁS DA PORTA; CONTO 33 SONO E SONHO; CONTO 34 - MADRUGAR É PRECISO; CONTO 35 - ÓI O TREM; CONTO 36 - ESCRITA E VOCAÇÃO; CONTO 37 - GARANTINDO O PÔR-DO-SOL; CONTO 38 - ESQUIZOFRENIA EUFI Y EUDI; CONTO 39 - DIMENSÕES FÍSICAS DO AMOR; CONTO 40 - CAFÉ NO CENTRO; CONTO 41 - TÁTICA E ESTRATÉGIA; CONTO 42 - BALADA PARA UMA CONTO JURÍDICA; CONTO 43 - SONETO À POLÍTICA DO DIREITO; CONTO 44 - COMO FICOU BELO O JARDIM; CONTO 45 - PRINCÍPIOS E JUIZADOS OBRIGATÓRIOS;. ÍNDICE ANALÍTICO.

Conto 1, de 19/06/2000

Mente no céu, olho no chão JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS

Caminhava pela calçada sul da Praça Dom Feliciano, junto ao terminal de ônibus, desviando das pessoas em filas, nas diversas paradas de ônibus, sem perder o rastro do minguado sol daquele início de tarde. Desceu os degraus e parou no primeiro canteiro interno, enquanto pensava o que dizer. Ainda que pouco, alguns raios passavam dentre as árvores robustas do local. De onde olhava, via o terminal norte, que conduz ao leste da cidade. Perscrutava o lado do Centro, olhando o rosto dos transeuntes e seus modos apressados de andar; por todo lado havia gente, entrando e saindo, da Praça, dos ônibus e das lotações. Do outro lado da Independência, novos coletivos vinham e ganhavam à direita, em direção ao terminal da Rui Barbosa, pela Pinto Bandeira; alguns, abaixo, ganhavam a Alberto Bins, pela esquerda. Enquanto via tudo isso, em frenético movimento, ouvia as análises do colega, sobre um complicado problema de ciências sociais. Algumas palavras batiam-lhe à mente; outras, nem isso; ainda que os ouvidos estivessem atentos, os olhos viam noutras direções, a esmo.


- Viu só? É isso o que se pode pensar sobre o caso. Tem outra hipótese explicativa? Era uma pergunta e exigia uma resposta dentro do contexto das explicações anteriores. Não lembrava mais do que ouvira. As vozes estavam confusas e o sol, mais escasso ainda. Estava com fome e não tinha uma resposta pronta; pior, nem pensara no caso. Pensou no que dizer, mas desistiu, falando simplesmente o que veio à cabeça. - Questão complexa. Precisamos pesquisar mais. Não tenho resposta para o caso. O que te parece? A devolução do problema denunciava de leve o desinteresse na linha assumida pela explanação. A resposta veio de imediato. - Precisamos pensar mais sobre o que virá pela frente e deixar um pouco o passado de fora. Ficou atento com a resposta e, de pronto, contestou: - Não. O passado é importante para entender o presente e serve de ferramenta para construir as hipóteses de futuro. Nada podemos fazer no depois, sem saber o antes. Parecia filosófica a colocação, mas, para ele, tinha cunho demasiado prático. A resposta era clara e buscava enraizar-se no passado, ainda que por um pouco mais; requeria maior análise. Olhava o chão. Lembrou-se de uma frase dita, anos atrás, a um livreiro que lhe chamara a atenção mencionando que uma pessoa tão importante não poderia ficar tanto tempo olhando para o chão, que deveria erguer a cabeça. Havia concordado com o homem e respondido assim: vejo o céu enquanto olho para o chão. Dava o significado de que enxergava longe enquanto olhava perto. A lembrança era oportuna um pouco, pois afirmava que estava certo ao olhar o chão, enquanto contemplava um horizonte não incerto e distante, que lhe passava à mente, projetando algumas ações imaginárias para os próximos dias. A grama estava mal cuidada aos seus pés. Os sapatos, pretos e baixos, contrastavam o verde escuro e meio amarelado, acarpetando o chão. Seguiu uma rasteira de formigas carregando recortes de folhas, ordenadas em fila, ao longo de um trilha que descia a encosta dos degraus, perto dali. Seguia seus movimentos mesmo sem mover a cabeça, com os ouvidos sempre atentos à nova ordem de fala. Estava fugindo do contexto, mas para melhor apreendê-lo; instalando o caos para instituir uma nova ordem nas idéias. Parecia buscar respostas nas faces ambulantes que entravam e saiam de todos os lados, pertos ou longe, sem demonstrar percebê-los ali, parados, falantes e ouvintes, empenhados em um complexo assunto de ciências sociais. Poderia nada dizer aos passantes, mas qualquer um poderia tomar para si a mensagem do debate quase gratuito que entabulavam naquela tarde iniciante. - Está frio. Vou-me embora. - Eu também. Até mais. Ganharam a ala norte da praça e, em sentidos opostos, depois de alguns passos, misturaram-se com as demais faces e corpos andantes, de um lado para outro. A grama, as formigas e os fracos raios de sol permaneceram no mesmo degrau; agradecidos, quem sabe, pela ausência das vozes, das sombras e dos olhares circundantes; quem sabe, zombantes dos falseados problemas


sociais que debatiam. A independência estava lotada e tinha a impressão de estar caminhando na contramão, mesmo em via dupla.

Conto 2, de 20/06/2000

Um passeio noturno JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS

O telefone feito relógio despertou às 6h00min. da madrugada. Todos os dias era a mesma novela: o relógio despertava, mas ele ficava embromando na cama e não levantava, ou levantava muito tarde. Naquela quarta-feira foi particularmente diferente. Estava muito frio e chovera muito nos dias anteriores. Lembrou do passeio que dera, enquanto olhava a janela e a clareza do dia, já tarde da manhã. Na noite anterior, tinha ido a pé até o Planetário, na Ipiranga. De onde saíra, foi uma pernada só. Subiu a Coronel Vicente, entrou à esquerda, na Independência; uma quadra depois, ganhou à direita, em frente à Praça do Rosário. À noite, passado das dezenove horas, era difícil atravessar aquela movimentada Avenida. Driblando os veículos, ganhou o outro lado e fez a dobra referida. Nunca lembro o nome daquela rua que vai terminar em frente ao Viaduto que dá na Rodoviária, por cima; mas, não vem ao caso. O que importa é que teve, novamente, de atravessar outra rua, agora para dentro da própria Praça. Contornou a enorme escultura posta há muitos anos na esquina da Vasco Alves e desceu esta, acompanhando, paralelamente, a Protásio Alves. De cima do Túnel dava prá ver o prédio da Reitoria. Cruzou por cima do túnel do Rosário e desceu a ladeira. Antes de chegar na próxima esquina, atravessou a rua. Um motoqueiro quase o atropelou; antes de chegar no cordão da calçada, quase foi prensado contra um carro estacionado, por um caminhão que, desavisadamente, dava marcha à ré. Costeando as paredes, atravessou a rua seguinte e foi, pela mesma calçada, por uns quatro ou cinco quarteirões, até que resolveu infletir à direita, em direção ao Parque Farroupinha, a famosa Redenção. Na ocasião, até olhou o nome da rua, na placa azul que tem em quase todas as esquinas, mas não chegou a guardar o nome. Andava a passos largos e havia modificado o andar, visando dar realce maior aos músculos de baixo, sentindo os pés baterem no chão e ouvindo o ruído das batidas. Quando chegou na Protásio Alves, em frente ao Araújo Viana, o relógio marcava 7h30min. Já estava atrasado; o que fazer? Nada. Melhor, andar; já que escolhera o meio de transporte adequado para o seu interesse do momento. Subindo a avenida, em direção ao Bairro, agora com o passo mais largo e concentrado, balançava o casacão, pelo lado esquerdo, onde havia vários bares malditos;


casacão, pelo lado esquerdo, onde havia vários bares malditos; aqueles que foram famosos na década de oitenta, pela concentração de gente jovem, para beber, fumar, cheirar, namorar, caçar e zanzar. Lembrou da agência bancária Caminho do Meio, usada para receber a bolsa, no início da década. Não conseguiu encontrá-la, onde pensava que estava. Não sabia se era antes ou depois do Posto Ferradura; nem sabia se o nome ainda era o mesmo; aquele que ficava perto do antigo Escaler, no lado leste da pista de corrida da Redenção, junto às máquinas do Parque Infantil, no início do local onde a Feira do Bom Fim se instala aos sábados e domingos. Enfim, junto à igreja da esquina da rua que vai dar no Colégio Militar. Esta igreja traz uma particular lembrança, pois, muitos anos atrás, lá pelo meio da década de 70, numa de suas poucas viagens a Porto Alegre, navegava num ônibus, em direção ao Partenon, quando, passando por ali, viu escrito em preto, junto à porta majestosa, em spray, a expressão marcante: "Deus??". Foi a primeira vez que tinha contatado com o questionamento; até então, Deus era inquestionável em sua existência. Aquela dúvida posta na parede da igreja nunca mais saiu de sua cabeça; perdera a inocência religiosa naquela ocasião. Poucos anos depois, abandonou a igreja e ingressou na semi-clandestinidade política, ainda muito jovem. Agora, novamente, atravessara a rua. Estava passando pelo Pronto Socorro Municipal. Uma mulher loira, de seus quarenta e poucos anos, aproveitando-se o pouco movimento dos carros, aventurara-se em atravessar a Av.Venâncio Aires. O sinal estava verde para os carros; ainda estava no amarelo, quando a mulher estava bem no meio da Avenida. Um carro atravessou no mesmo sinal. Previdente, ele esperara chegar o vermelho, para atravessar. Era obediente, em matéria de trânsito. A mulher tinha uma vantagem em sua aventura: estava em frente ao Pronto Socorro, em caso de acidente. Lembrou das estatísticas e de quando entrou em vigor o novo código de trânsito, há alguns anos atrás. Veio à mente a imagem dos azulzinhos, como dizem os motoristas de táxi. Enquanto refletia sobre isso, chegara em frente ao Hospital de Clínicas, na esquina de uma nova avenida; dobrara à direita. Agora era só ir sempre reto e, em poucos minutos, chegaria ao seu destino, sempre pelo mesmo lado da calçada. Olhou o edifício e, logo abaixo, o prédio novo da Medicina da Federal; poderia ser médico, se... Bom, isso já não importa mais. Lembrou-se dos meses de aulas ali por perto, na Odonto; já se passaram mais de quinze anos. A Farmácia ficava perto também, logo atrás do Centro de Processamento de Dados. Como o tempo passa rápido! Zum! O que fizera de lá para cá? Muita coisa mudou; mudou muito. Pôs a mão no casacão e pegou a carteira de cigarro, pondo-se a fumar, agora com os passos mais lentos, porém, sempre sentindo os músculos laterais das pernas e a batida dos pés, cadenciados, nas lajes. Faltavam algumas quadras. O pensamento estava longe. Olhou a Rua Silveiro, ao longo, enquanto atravessava a rua. Riu de leve. Lembrou Pedroso e os quatro copos de leite, o Restaurante Universitário da década de 80. Transgênicos, o que tem a ver com direito do trabalho? Suspendeu a pergunta. Avistou as grades do novo prédio da Escola Técnica. Lembrou da biblioteca da FABICO e do início da pesquisa sobre semiótica, bem como das reuniões com os moradores da Vila Planetário, aquela que fora construída pelo


mesmo órgão em que trabalhara no início da década de 90. A carrocinha de cachorro quente estava no mesmo lugar, na entrada do Prédio. Entrou. Pegou o caminho da direita e foi até à porta de entrada. Estava quente dentro do Bar. Tirou as luvas, abriu a porta e deu o controle de presença à moça da recepção. Após à costumeira carimbada, entrada, pegando uma a folha de cardápio das palestras do mês. Uma mulher falava sobre economia e globalização. Foi ao fundo, tirou o casaco, as luvas, o cachecol e o celular, descansandoos na cadeira ao lado. Aterrizara. A caminhada estava conclusa. O pensamento solto tornou-se cativo paciente da fala distanciada da palestrante. Quem sabe, na volta, com nova caminhada, soltaria de novo o pensamento para as reminiscências do dia. Gostara de andar, coisa que precisava fazer mais seguido, em especial, à noite. Um passeio noturno.

Conto 3, de 21/06/2000, quarta-feira

Uma aula sobre sociedades João Protásio Farias Domingues de Vargas

Aquela era a última aula de sociedades. A classe estava vazia, mesmo que não houvesse jogo de futebol pela televisão. Atribuiu ora ao frio, ora à ausência de jogo, ora ao desinteresse da turma, ora ao pouco atrativo do tema. De qualquer sorte, menos da metade se fizera presente. Olhando, de costas para o quadro, a sala estava semi-vazia. O código preto sobre a mesa, o molho de giz sobre as espaldas do quadro e o casacão sobre a carteira próxima à janela, pôs-se a discorrer sobre a importância das sociedades anônimas para o desenvolvimento do capitalismo moderno. Antes de iniciar, dispôs um ideograma na lápide, anunciando os principais tópicos da exposição. Após à habitual cópia dos alunos, principiou pelo conceito, citando alguns exemplos doutrinários. Após os tipos de "ésse-ás", da responsabilidade dos sócios e da denominação, apresentou as características das mesmas, comparando-as como os outros tipos societários vistos em aulas anteriores. Teminada a explicação da noite, já encerrando o tema, pergunta um aluno: - O que é uma "ésse-á", Professor? - Como? - perguntou, não entendendo a pergunta. Havia terminado de explicar tudo; mais, havia começado pelo conceito. Será que o aluno chegou atrasado, e não percebeu a sua entrada? pensou. Ou será que - continuava se auto-questionando - os conceitos não foram suficientes para um entendimento mínimo. Enquanto pensava, o silêncio pairava sobre a classe. Já eram quase vinte e duas horas da noite; final de aula.


vinte e duas horas da noite; final de aula. - Não sei - respondeu, sem ênfase alguma. - Alguém pode me dizer o que é? - perguntou à turma inteira. Houve um longo silêncio. - Para você que terminou de perguntar, devolvo a pergunta: - O que é uma "ésse-á"? O aluno, de pronto, respondeu: - Não sei. Tanto o é que estou perguntando. - Percebi. Suponhamos que eu também não saiba; que ninguém saiba; como sairemos desta? - Não sei - respondeu o aluno. - Pois bem, já que não sabemos e que ninguém sabe o que é isso, fica compromissado a pesquisar e, na próxima aula, trazer, ao menos, o conceito de "ésse-á" e discutiremos o seu conteúdo. Combinado? Dizendo isso, voltou os olhos à mesa, abriu o código preto; pegou a lista de chamada e pôs-se a chamar, um-a-um dos alunos, como se nada tivesse acontecido. Enquanto chamava e punha ponto ou "éffe" nos brancos da folha, pensava no quanto estava a sua explicação distante da realidade intelectiva dos alunos; precisava revisar o método; quem sabe, ressuscitar o ditado, de modo que o aluno pudesse ter a impressão de fixar algo, ainda que fora da cabeça. O raciocínio só é possível após à apreensão, - dizem os pedagogos, mas, porque a pergunta se fez inteira logo após o término de todo o conjunto de explicação. Não conseguia entender. Resolveu dar um fim à reflexão e atribuir à desatenção momentânea do aluno. Continuou a chamada. Ao término, como sempre, apagou a luz, fechou a porta e ganhou o corredor, com alguns alunos, em direção às escadarias de saída. Perguntou a si próprio: O que é uma "ésse-á"? Já não sabia responder a contento, nem para si próprio. Não deve ser nada, no momento, pensou.

Conto 4, de 22/06/2000, quarta-feira

Postura da semiótica João Protásio Farias Domingues de Vargas

Machado pesquisava há vários meses sobre a semiótica da postura. Sempre carregava consigo um caderninho de notas e, quando possível, mesmo que numa mesa de bar, escrevia alguma coisa, como produto de alguma reflexão. O que ele não percebia era que a postura de pesquisador sobre semiótica da postura precisava ser analisada; entretanto, estava fora de cogitação a leitura da meta-postura: a postura que pensa a si própria. Muito complicado.


Por vezes, ficava horas e horas observando as pessoas em um restaurante; o modo de sentar, de mexer a cabeça, de gesticular, de falar, de portar o corpo, de organizar os objetos da mesa; enfim, de dispor das pernas sobre a mesa; tudo era objeto de observação. Sempre que via algo, dava uma explicação provisória; ora explicando algum traço de caráter; ora antevendo um comportamento; ora buscando descobrir algo da vida das pessoas, como profissão, idade, estado civil, situação econômica, formação intelectual, posição político-partidária. Aprendia um monte com o método; mas, nada era comprovado; dir-se-ia, aprendia muito hipoteticamente com os seus objetos. - Uma mulher não deve chorar - disse, enfática, a mulher da mesa ao lado, para sua acompanhante, que a olhava bovinamente. O que queria dizer a frase? - pensara. O nariz estava contorcido ao dizer, os pés cruzados e as mãos entrelaçadas, sobre os cotovelos, apoiados na base da mesa. Estava insegura, refletiu; dizia a si própria, concluiu. Um auto-conselho mal direcionado. Deve chorar muito; por isso impôs-se tal regra. Ora, todo mundo sabe que as mulheres choram; assim como os homens; ainda que, em alguns lugares, menos do que aquelas. Mas, por que não devem chorar? Chorar é ruim; denota fraqueza? Não é o que pensam os médicos psiquiatras. Ela poderia ter dito: - Chora! Chora, que é bom! Quem chora, seus males espanta! - pensou. Qual a diferença semiótica entre as duas posturas semióticas: a que afirma e a que nega o choro como sendo algo valorativamente bom? Chorar é assumir uma postura de choro, algo que lembra a infância, a impotência, se não levarmos em conta a expressão "lágrimas de crocodilo". Não tinha resposta imediata para a pergunta que se formulava. Os homens, em sociedades machistas, são ensinados a não chorar, pois o choro lembra uma postura feminina, delicada, frágil. Negar as lágrimas a uma mulher que, na mesma sociedade, é ensinada a chorar, inclusive como arma tática para a consecução de objetivos determinados, é, no mínimo, assumir uma postura masculina. A mulher parecia masculinizada; negava a sua própria educação feminina ou machista às avessas. Desta reflexão, para assumir a conclusão de que se tratava de uma "machorra", foi um passo. A nova hipótese avançava a trancos largos: tratava-se de um casal feminino. Lembrou a música do Raúl Seixas, a dança das aranhas, que ouvira em um CD-ROM há alguns dias. Qual delas fazia o papel de homem? - perguntou a si próprio. - Aquela que manda não chorar, pois a que ouve não chora - ensaiou como resposta. Refletiu mais um pouco e concluiu no mesmo caminho: - É ela mesmo! Estava satisfeito com a descoberta. Mas essa análise de postura se baseia na semiótica ou na clássica lógica formal? Já não sabia ao certo. Como pensar semioticamente? - perguntou a si próprio. Semiotando? - respondeu, sem muita convicção, com o neologismo de improviso. Peirce dizia que a Semiótica era Lógica..., mas, também, dizia que era Matemática. Bom..., que sejam as duas. A Lógica e a Matemática sentadas numa mesa de bar, conversando sobre o choro feminino. A Semiótica observava de longe, na mesa ao lado? - O Semiótico - apressou-se em retificar, com muita certeza.


Conto 5, de 23/06/2000, sexta-feira

As moças da Volunta João Protásio Farias Domingues de Vargas

Enquanto caminhava pela Av. Voluntários da Pátria, perto do Edifício Coliseu, do outro lado do calçadão da antiga Mesbla, observava as fileiras de lojas com dezenas de moças chamando os fregueses às compras de roupas. Quase todas as lojas possuem um rapaz, posicionado ao centro, na calçada, por vezes sentado no alto de uma escada, observando, atento, o interior. Deve ser o controle de furto, pensava. Não, tinha certeza. Em algumas delas, homens, munidos de microfone, com vozes de locutores de rádio, descreviam o vestuário e os preços, convidando para entrar. - Entrem, fregueses. A loja está repleta de peças bonitas a preço baixo diziam alguns. A proximidade das lojas e o destino das vozes davam um ar de balbúrdia à rua, somadas às buzinas e ruídos dos ônibus circulares. À medida que progredia em direção ao Mercado Público, no Largo Glênio Peres, as vozes aumentavam e o número de transeuntes também. As diversas placas de propaganda, postas nas calçadas, as escadas de observadores, os passantes, o tráfego de coletivos e os camelôs, quase tornavam intransitável, se alguém tivesse pressa ao andar. Dos dois lados da rua, o mesmo fenômeno. A intensividade era da Praça Rui Barbosa até o terminar do Mercado. Enquanto ia, pensava na origem do costume das lojas empregarem jovens para convidar, em voz alta, os fregueses para entrar e comprar. Algumas, literalmente, atacavam as pessoas, puxando-as pelo braço. Entre as ruas Senhor dos Passos e Coronel Vicente, mal se podia distinguir a prática das vendedoras de roupas e das vendedoras de corpos; estas, mais freqüentes ao final da tarde e cair da noite. Antigamente, nas décadas de setenta e oitenta, a Voluntários era famosa por ser área de prostituição de rua. Ainda continua, mas o trecho de atuação bastante afastado do Centro. Há mais de uma década, elas se concentram perto da Rodoviária, depois do Viaduto. É o chamado baixo meretrício. Lá, pode-se ver moças jovens e mulheres feitas, semi-nuas, no verão, andando de um lado para outro, com suas pernas gordas cheias de marcas circulares e escuras. Indo de carro, naquela direção, quadras e quadras exibem dezenas delas, bem como no início das vicinais. Conjecturava que a prática lojista de moças pegarem pelo braço e puxarem para dentro das lojas tenha origem na prática do meretrício que havia e ainda há no local. O método deve ser eficaz, pois os empresários não o abandonaram. Muitos deles são descendentes de


turcos, sírios, libaneses e árabes, na exploração do comércio de roupas a preço baixo, e qualidade idem. Imaginava que, para sobreviver no local, os donos das lojas tiveram que empregar muitas prostitutas, tentando mitigar a imagem local, afastando as mesmas da venda de sexo, mediante remuneração ou, as duas coisas ao mesmo tempo. Elas tocam nos braços de homens e mulheres, insistindo, portanto, física e verbalmente para a entrada. As lojas possuem grandes cestas de roupas, os balaios, com os preços estampados no centro, em plaquetas suspensas; cada grupo expressa tipos de peças: camisas, calças, moletons, jaquetas, camisetas, roupas de criança e miscelânea. Se o freguês entra e compra, ofendem-se se for pedido nota fiscal. Intimam para saber se a pessoa é ou não da fiscalização. Algumas, sequer vendem, caso a exigência seja condicionada à compra. Estas observações se juntavam a outras. A maioria das pessoas que transitam no interior das lojas não é formada por homens, mas por mulheres e crianças. Apesar da hipótese explicativa que se dava, o oposto é o fenômeno recorrente. Mulheres chamam mulheres, pensava. Pelo modo de portar o corpo e pelo estilo das roupas, os fregueses eram de baixa renda. Honestos e pobres, como, geralmente, sói acontecer. Num tempo de miséria, que parece que nunca terminou neste País, em Porto Alegre, as moças da volunta são, portanto, de dois tipos, - pensava, em sua sistematização -, aquelas que trabalham para o patrão comerciante de roupas e aquelas que trabalham para o patrão comerciante de outras coisas que não roupas. Ambos os tipos não devem ter carteira assinada. A diferença maior deve ser a de que umas puxam para dentro dos hotéis, que ficam entre as lojas, e outras puxam para dentro das lojas, que ficam entre os hotéis.

Conto 6, de 24/06/2000, sábado

A velha República João Protásio Farias Domingues de Vargas

Pedro atravessava o viaduto Leopoldina, na João Pessoa, quando olhou à direita, em direção ao Guaíba, pela Perimetral Loureiro da Silva. Estava indo a uma reunião semanal. Todos os sábados se reuniam alguns dos integrantes da nova organização nãogovernamental que ajudara a fundar no início daquele ano. Não via a Câmara de Vereadores, nem o Colégio Parobé; por cima do outro viaduto, o da Borges de Medeiros, via o prédio do antigo Ministério da Educação, já desativado no Estado. Carros, ônibus e caminhões iam e vinham em direção ao Parque da Redenção, que ficava à sua esquerda. Poucas vezes na vida havia atravessado o viaduto; quase


esquerda. Poucas vezes na vida havia atravessado o viaduto; quase sempre ia por baixo, costeando a antiga sede do PT. A República ficava perto dali; noutra época, antes da construção do Centro Comercial da EDEL, iria pelo caminho da pracinha que existe ali, cruzando por baixo de um edifício; hoje, quer dizer, não sabe quando foi fechado o caminho para carros e pessoas. Velha República, recordava. Há quase vinte anos atrás, quando era muito mais jovem, aquela rua era mágica. Seus bares, o ambiente intelectualizado, os encontros, tudo tinha uma atmosfera que transbordava de cultura; gostava daquele meio, com as bixas, as sapatonas, os punks, os hippies, os micheteiros, as prostitutas e os caçadores como ele, dentre outros tipos que por ali circulavam, bebiam e discutiam política partidária, principalmente. Hoje é a Lima e Silva a rua dos melhores bares, competindo com a Goethe, longe dali, a leste da Cidade. A República, na chamada Cidade Baixa, ainda é referência para muita coisa; nem tudo se perdeu; hoje há muitos cafés, mas o público não é mais o mesmo. Os mais jovens estão na Goethe; os de meia idade, na República, Lima e Silva e arredores; os mais velhos, nos outros lugares, mas, principalmente, nas Churrascarias. Os pensamentos iam longe, ainda, quando chegou em frente à grade de ferro. Apertou a companhia, identificou-se e o ruído estranho abriu a porta. Subiu as escadarias, saudou o amigo e entrou. A sala estava vazia. Era o segundo a chegar. Olhou à volta e notou diferença na disposição dos móveis e livros. Após à explicação, verificou no quadro magnético a idéia para a discussão do dia: eventos temáticos. - E os outros? - perguntou Pedro, obtendo a resposta, por Henrique, de que haviam sido convocados e estavam por chegar. Vieram o refrigerante e, depois, o primeiro cafezinho, enquanto o tempo passava. Eram quase três horas quando chegou o terceiro, Marcos. Puseram-se a conversar, primeiro sobre Barão de Itararé e, depois, sobre as Leis de Murphy, semelhanças e diferenças com o trabalho de Luiz Fernando Veríssimo. Era espera; os assuntos podiam ser qualquer um. Pedro obteve emprestado o livro sobre o Apporelly (Apparício Torelly) e lembrou que tinha de devolver os dois sobre as leis ao anfitrião. O assunto chegou na internet. Pedro foi até o microcomputador e olhou os e-mails recebidos pela entidade. Discutiram sobre algumas respostas a serem dadas como retorno, bem como aqueles sobre os quais deveriam silenciar e esperar. A lentidão do micro era grande, mas funcionava bem; problema de memória, que era pouca para a vastidão dos 4 megas de winchester. O tempo voava; muito atrasados, chegaram os outros e a sala ficou cheia; os debates ocuparam todo o tempo. Após às decisões e à redação da ata, todos se retiraram; passava das cinco, quando isso ocorreu. Ganhando novamente as ruas, Pedro voltou às suas reminiscências; não de todo, pois Marcos o acompanhou. Caminharam pela João Pessoa, em direção à Praça Dom Feliciano; em frente à Santa Casa, o acomapanhante tomou um ônibus em direção à casa. Pedro continuou, a pé, em direção à Independência. Antes de chegar ao final da Praça, lembrou que tinha esquecido de dizer algo. Ligou para Henrique e detalhou a observação. Estava em frente ao Tutty's, no Centro Comercial. Olhou para dentro, viu o supermercado, a loja dos correios e a farmácia.


supermercado, a loja dos correios e a farmácia. Das lembranças, que não eram poucas, lembrou das inúmeras vezes em que estivera naquele barzinho, tanto nas mesas de fora quanto nas de dentro; os diversos acompanhantes traziam situações históricas as mais variadas; coisas importantes foram inventadas e decididas ali; muitas delas criaram raízes em certas instituições e existem até hoje. Mas o bar nunca foi como os da República; o tipo de gente era diferente, em todos os tempos. Bar de centro comercial é variado e não identifica estilo; é comercial demais, pensou. Estilos marcantes tinham os freqüentadores da velha República. Nesta, nunca conheceu mulher que tenha andado muito tempo com ele, mas todas as que se aventuraram não saíram insatisfeitas; destas, nenhuma se tornou amiga; nem de seus rostos se lembra mais; alguns nomes, não sem confusão, pareciam terem surgido em sua vida naqueles locais; mesmo sem certeza, as sensações eram boas e davam um cunho aproximativo de felicidade antiga, como aquelas que brotam na infância, ou logo após. Mesmo bem depois, na adolescência, também ficam os cheiros das pessoas e dos locais por onde se andou. Hoje não gravava mais isso, exceto na lembrança de tempos remotos. Não que estivesse velho; mas estava visivelmente mais velho do que antes. No contraste, a velha República nada tinha a ver com a Velha República, do tempo dos coronéis, que a História conta. Não eram os dantes escravos que participavam da Velha ou da velha República, mas os novos escravos, negros ou brancos, do que quer que seja. Hoje se ganha um pouco mais do que o suficiente para a comida; naquele tempo, apenas a bóia era pagamento. Velha, velha, velha República, ia pensando, já quase no final do percurso. Perto dali, estava a Av. Voluntários da Pátria. Observou a idéia libertária dos nomes das ruas: Independência, Voluntários da Pátria, República. São poucas as ruas que não possuem nome de militares na Cidade. Por que será? - perguntouse. Ah, só faz dez anos que elegemos o nosso primeiro Presidente da República, depois de mais de vinte anos de ditadura militar; pior do que isso, tivemos de demiti-lo, por impeachment. Quase todos os "mellos" com dois "elles", de lá para cá, passaram a ter vergonha de assinar o nome; alguns passaram a usar um "ele" só, só para diferenciar, evitando a pergunta seca e fria: - "É parente delle?". Toda resposta, mesmo que um "não", era constrangedora, pois ligava a pessoa a um nome que já não era aceito por ninguém. "Cor" em inglês e melo com dois "elles" tornou-se marca registrada de repulsa e engodo. O que fazia nesta época, perguntou-se a si próprio. Lembrou que fez campanha para outro candidato e que perdera as eleições. Bons tempos aqueles, de faculdade. Terminou de descer a ladeira, em direção ao Rio, perto do metrô de superfície, ganhou à esquerda e adentrou no prédio onde residia. O porteiro lia jornal e só notou sua presença quando o elevador anunciou a sua chegada. Olhou para trás e ele veio voando abrir a porta. - Boa tarde, Doutor! - disse, levemente encabulado. - Boa tarde - respondeu Pedro, ganhando o cubículo e apertando o botão de subida. Velha e velha República, dois mundos profundamente diferentes. O nome correto é Rua da República; simplifica-se sempre: República.


simplifica-se sempre: República.

Conto 7, de 25/06/2000, domingo

O Mundo dos Pokémons João Protásio Farias Domingues de Vargas

Gustavo tem nove anos; Manoel, 27 mais velho; resolveram passear no domingo, a esmos, pelo centro da cidade. A tarde estava menos fria do que a anterior; a tendência era andar pela Rua da Praia, da Borges à Alfândega, olhando os camelôs e os cinemas. Era lindo, pai e filho de mãos dadas nas ruas desertas, a conversar sobre assuntos diversos. Calça de brim, moletom e ausência de pastas; livres, leves e soltos. Um ventinho soprava do oeste, quando passavam em frente ao Plaza. A Igreja e o Cursinho, à esquerda, do outro lado da calçada, postos, estáticos diante do nosso diálogo. - Pai, qual é o pokémon mais forte e qual é o que não ganha de ninguém? - perguntou o garoto, testando a inteligência e sabedoria do outro. - Não tenho nem idéia de quem seja, Filho - respondeu, um pouco desatento, interessando-se, de imediato pelo assunto inusitado que, a julgar pela colocação da pergunta, deveria ser importante. - O Lugia, dito guia, é o mais forte, um pokémon deus; e o mais fraco de todos é a Chancen, que não evolui para nada, é um pokémon que não gosta de lutar, que só pensa em ajudar os outros. Há outros tipos, quer ouvir sobre eles? - Quero - respondeu, sem titubear. Mais que depressa, pôs-se a dizê-los, o filho, a seu próprio modo. - Bobassaur, Uaivesor, Venosor, Chermander, Chermirian, Chiarizard, Pichu, Picachu, Raichu, Squerdou, Ortodol, Blastois, Caterpi, Metapóide, Butherfre, Staril, Starmi, Horsea, Cidra, Psaidak, Goldak, Onix, Giodud, Gravlar, Golden, Miuthu, Merian, Venonath, Venomoth, Uidol, Execuut, Exeector, Tentakul, Tentakruel, Ratata, Ratikate, Dudu, Dodriil, ... Pai, quer continuar ouvindo os nomes de pokémons? São mais de duzentos... - Sim, pode continuar - respondeu, muito interessado. - Kakuna, Bidriu, Pincer, Ritimonli, Ricthmonthiamp, Miu, Grimmer, Mack, Kangaskan, Saiter,... Enquanto o pai se aculturava sobre a realidade dos pokémons, o filho demonstrava sua capacidade memorizativa e a importância, para sua pequena vida, na compreensão do mundo. O brinquedo é instrumento de contato da criança com o mundo - pensava. Aliás, criança, não! Pré-adolescente, como preferia auto-classificar-se perante os outros, distinguindo-se das crianças que, no seu modesto


perante os outros, distinguindo-se das crianças que, no seu modesto entender, eram menores e mais jovens do que ele. - Grande mundo da criança! Ôpa! Criança, não! Pré-adolescente! disse, retificando, de pronto a colocação, cingindo-se às exigências metodológicas do filho. Estavam perto da Borges de Medeiros, quando a exposição do filho terminou. - Aprendeu, pai? - perguntou, didaticamente. - Muito - respondeu. - Sabe agora quais são eles e quais são as suas forças. Não esquece, eles evoluem dos mais fracos para os mais fortes e se distinguem em heróis ou não. - Vou lembrar disso, filho. Há, inclusive, pokémons que são crustáceos, e todos são inteligentes, não é mesmo? - Exatamente. E foram andando em direção ao cinema, naquela tarde de domingo. Adentraram pela lateral da Praça da Alfândega, cruzaram as bancas fixas dos engraxates e as mesas acimentadas com tabuleiros de dama e xadrez. O filho perguntou, na banca de revistas mais próxima, já na Rua da Praia, se tinham figurinhas de pokémons, obtendo resposta negativa. Driblando as tendas dos camelôs de adereços, avistaram o lugar de chegada. Olharam os cartazes e fizeram, de plano, a opção: Os dinossauros. Perceberam o horário de exibição e decidiram voltar à casa para, mais tarde, retornar e assistir à sessão. Foi o que fizeram. Escolheram outro caminho para o retorno, bem como um novo assunto para a nova conversa. Abraçados, desceram a mesma rua, em sentido oposto. A felicidade do contato aproximava dois mundos, naquela época, muito diferentes; duas gerações, dois futuros muito diferentes, porém conjugados e interdependentes. Mesmo sem terem clareza do efeito, o mundo dos pokémons os unia como nunca; adulto fez-se criança e criança, adulta, sem deixar de sê-la.

Conto 8, de 26/06/2000, segunda-feira

Uma consulta de escritório João Protásio Farias Domingues de Vargas

O ex-presidiário José estava ali, na sua frente, agora que tinha aberto a porta do escritório e convidado-o a entrar. Passos lentos, sentou-se à mesa redonda, na segunda sala, de frente para a vista panorâmica, do lado do Guaíba. Não tinha matado ninguém; mas fora condenado por sentença transitada em julgado; brigara com vizinhos, pegara em armas e atirara. Soube da condenação no dia em que foi preso, em uma repartição pública, quando buscava retirar


em que foi preso, em uma repartição pública, quando buscava retirar um documento qualquer. Não tendo sido encontrado pelo Oficial de Justiça criminal, fora citado por edital, mediante denúncia tentativa de homicídio. Uma briga originou tudo; quase matou o vizinho; fora defender o irmão, da faca do atingido. O revólver não tinha registro, mas fez o sujeito parar. Irmão cortado, algoz baleado, José na cadeia. Menos mal que o regime era semi-aberto; não tinha antecedentes de nenhum tipo. Homem honesto, pai de família, mas condenado, na forma da lei. Há um ano atrás fora detido; agora estava solto; de seis em seis meses tinha de comparecer ao Foro e dar contas de como estava vivendo. Custou muito a conseguir trabalho, mas conseguira. O sustento diminuiu, mas não parou de todo. Estava ali, agora, diante do advogado, não pela causa criminal, mas por uma cível; uma ação de usucapião que estava em curso, segundo os ditames da última constituição brasileira. Tudo estava pago ao causídico e o processo andava; queria saber em que pé se encontrava e ajudar em uma diligência requerida pelo juiz da causa. O sonho era ser o proprietário formal do pequeno terreno que tinha no morro da Embratel, na Capital. Alguns já tinham se tornado dono; era a sua vez; o sonho do imóvel próprio; a casa, já era, mas o terreno estava por ser. Demora o processo; mas, não tinha pressa. Como dizia, o tempo passa igualmente, com ou sem processo; enquanto isso, vamos vivendo, um dia após o outro. Estatura baixa, semi-calvo, roupas simples e sorriso sempre estampado na face; não transparecia as preocupações que explicava; parecia tudo tirar de letra, ainda que não demonstrasse grande esperteza. Ele mesmo construíra sua casinha no terreno, há muitos anos, quase dez; gostava do local e da vizinhança, o que não acontecia com todos do local. Enquanto falava, olhava a cafeteira, posta em uma mesa, ao lado; o lawyer não servira um; nem dera sinal de que percebera a olhada. Era de manhã cedo. O advogado fumava, de costas para a janela, enquanto ouvia e falava sobre o processo e adjacências. - Mais uns dois anos e terminamos o processo, com a sua escritura no Registro de Imóveis - disse o causídico. - Mas mantenha sempre contato - arrematou. - Vou deixar o telefone; se precisar, ligue; estou em casa pela manhã; fora disso, só volto depois das dez da noite. Mas, minha mulher está sempre em casa. Pegue no grito e chego aqui. Ditas as palavras, o advogado se levantou e apertou a mão do José, dirigindo-se em direção à porta de saída. José acompanhou os passos e ganhou o corredor de fora, indo em direção aos elevadores. Quando ouviu o bater da porta, em suas costas, chegava o elevador no andar. Fez sinal, apressou o passo e entrou. Estava indo de volta à casa, um pouco mais aliviado. Dentro das salas, o advogado pensava nas diferenças de vida entre ambos, admirando o cliente; achava difícil suportar a vida, se estivesse na pele dele; bom, também seria difícil ao condenado viver a vida do advogado. Cada um tinha as suas dificuldades e, naquelas circunstâncias, precisavam, um do outro, para superar algumas delas. Essa era uma das razões do encontro; aliás, de todos os encontros daqueles dois mundo, rotundamente diferentes, que se entrecruzavam, arrematados pelo nó do processo.


Conto 9, de 27/06/2000, terça-feira

Audiência com um vereador João Protásio Farias Domingues de Vargas

O vereador ainda não havia chegado. Duas lideranças da Banco Central já estavam no local. Tudo parecia deserto naquele gabinete. Ouve-se uma batida na porta e entra um homem com uma pasta preta, quase suando. - Ainda não chegou - disse uma das mulheres que estavam sentadas na entrada da porta. - Está em plenário? - perguntou o recém chegado. - Está; mas, já está vindo; disserem-nos para esperar aqui. Logo em seguida chegou o parlamentar. Gordo, baixinho e levemente grisalho nas laterais da cabeça e na parte baixa da barba. Dirigiu-se à sala ao lado e retornou, convidando-os para passar. O gabinete era simples: um pequeno cubículo comprido, com vidraça aos fundos, nas costas do vereador. Um banco comprido permitia que apenas quatros sentassem. Uma auxiliar providenciou cadeiras para os outros, que estavam chegando. Passa do meio dia; era uma reunião-almoço: parlamentar, advogado e lideranças comunitárias; o objeto era um pequeno problema de moradia: como evitar o despejo de trinta e cinco famílias que moravam em determinada localidade da cidade. O parlamentar falou suas impressões sobre o caso, consultando algumas notas que tinha sobre a escrivaninha e sugeriu que, após falar o advogado, manifestassem-se as liderança. Naquele instante a sala estava cheia de gente. Alguns estavam muito agitados; outros, mais conformados com a situação; quem sabe pelo justo fato de terem um pouco mais de experiência no trato com as situações de sem-tetos. - O vereador poderia marcar uma reunião com o Chefe da Casa civil e solicitar que a brigada não efetue o despejo quarta-feira? perguntou, afirmativamente, um dos presentes. - Vou tentar uma audiência. A tentativa é livre; não sei se vou conseguir. Algumas vezes se consegue evitar despejo, por falta de contingente militar; não sei se é o caso; se for, pode ser retardado. Eu disse que pode ser retardado o despejo, mas não evitado; em causas desse tipo, pode levar mais de dez anos, como é o caso de vocês, mas um dia ele chega, como o mesmo terror de sempre. - Nós vamos reativar a cooperativa, doutor - disse o homem de idade, que estava sentado ao fundo. O vereador pegou o gancho da colocação e aproveitou para inspirar o grupo com a consciência de quem está acostumado com situações do tipo.


situações do tipo. - Não adianta só reativar a cooperativa, Gente. É preciso que ela funcione a todo vapor, senão nada vai funcionar e vocês vão ficar novamente reféns da situação em que se encontram hoje: sem recursos financeiros, desarticulados e sem poder de barganha com o proprietário. Uma mulher loira e gorda, que estava sentada imediatamente à frente da mesa do parlamentar, afirmou: - Isso eles sabem, vereador; o problema é que não se organizam e não deixam as lideranças trabalhar; ficam dando prá baixo até desestimular as caminhadas. O doutor sabe o quanto nós temos lutado nestes últimos dois anos, mas não conseguimos muita coisa; aliás, quase nada. O caixa da cooperativa está à zero; o pessoal não paga; não adianta insistir. As palavras desacorçoadas da liderança despertou algum desalento, mas não esmoeceu a todos. Uma jovem, de seus trinta e poucos anos, ouvia atenta as falas, fitando cada interventor e volvendo os olhos para os integrantes sentados ao fundo, como quem dizia que deveriam ouvir com atenção o que estava sendo dito, ainda que a título de queixas. - Mas agora nós vamos retomar - afirmou, categoricamente, o mulato magro que estava sentado no vão de entrada da sala. O advogado rememorou que ingressaram com sete mandados de segurança, sete agravos de instrumentos, dezoito ações de embargos de terceiro, com tese de usucapião constitucional urbano, não tendo conseguido nada. Arrematou que tramitam dezoito apelações na vara cível dos casos, que ainda pendem de julgamento. - Queremos saber o que pode ser feito, ainda, de imediato, juridicamente, para evitar o despejo - perguntou, aflito, o vereador. - Pouca coisa. A ação de reintegração de posse foi julgada procedente há seis anos; a apelação e o recurso ordinário não deram em nada. Os advogados da época trabalharam bem, mas o entendimento judicial é o de que a posse de todos os atuais ocupantes é fruto de sucessão, tendo o mesmo caráter de sua origem; trocando em miúdos, a posse não é boa para usucapião, embora a tese de todos os advogados, dos antigos e do atual, seja a de que é possível. - Mas tem o que fazer, ainda...? - reperguntou o vereador. - Tem - respondeu o advogado. - Dá prá tentar, após à intimação de desocupação (imissão na posse), embargos do devedor (agora assumido uma nova tese judicial, ainda que contraditória com as anteriores) por retenção de benfeitorias. A posse não foi declarada, em dispositivo sentencial, que é de má-fé. Significa que, se for aceita, saem somente depois de indenizadas monetariamente todas as casas construídas nos imóveis, mediante avaliação orientada pelo juiz. - Então, vamos fazer isso. Quanto tempo precisa o escritório? - A pressa é dos moradores - respondeu, de pronto, o advogado. - E, quanto vai custar? - perguntou um dos presentes. - Podemos tratar no escritório esse assunto; procurem-me quando estiverem prontos. Sabem como me encontrar. Disse isso, pedindo licença para se retirar, pois entraria em audiência judicial dentro de quinze minutos e ainda tinha de chegar até o Fórum.


até o Fórum. O vereador ficou com as partes, conversando. O advogado ganhou a porta de saída, pegou à esquerda, pelo longo corredor da Câmara, e se foi. O dia estava sombrio lá fora, mas o ar estava mais farto. Meteu a mão no bolso do casaco, pegou a carteira de cigarro e pôsse a fumar, enquanto cruzava o jardim de entrada, perto do Chocolatão, no Parque da Harmonia, à beira do Guaíba.

Conto 10, de 28/06/2000, quarta-feira

Uma breve conversa João Protásio Farias Domingues de Vargas

Às dezessete horas tocou o telefone. Era o professor Bruno, um engenheiro conhecido no meio universitário por suas polêmicas sobre o novo mercado mundial. - E a nossa reunião, Professor? Esqueceu dela? Está fechado o restaurante onde combinamos. Sugira outro local. Do outro lado da linha, Bicaco ouvia atento, tentando pensar num lugar alternativo. Antes de falar, Bruno retomou: - Quem sabe no bar da Arquitetura ou da Letras, aqui no Centro? São bons lugares e eu gosto muito de qualquer dos dois. Só não vamos no das Engenharias; tem gente demais. - Precisamos de um local mais calmo. Quem sabe a gente se encontra em frente à Faculdade e decidimos, lá, o local? - Aceito. Já estou indo prá lá. Até mais. - Chego em dez minutos aí, Professor Bruno - respondeu, quase abruptamente, mas sem demonstrar impaciência. Havia esquecido do encontro, agendado na semana anterior. Sem o telefonema, teria faltado na certa. Ainda bem que estava escrito. O hábito de não ler a agenda até pode ser uma válvula inconsciente de escape aos compromissos. Daquela vez não consegui faltar; houve quem o avisasse: o próprio interessado. A uns trinta metros da entrada do prédio, avistou Bruno sentado em um dos bancos, no pátio. Chapeu e terno pretos; parecia Fernando Pessoa em um desenho clássico. Entraram e foram direto à Sala dos Professores; fecharam a porta, para evitar os xeretas; não só alunos; ainda que não fossem professores no local, tinham certas regalias com os colegas. - O que manda, Professor? - perguntou Bicaco. - Só conversar; gosto muito de conversar com o Senhor; sabe disso. Eu o prezo muito como amigo e nossas conversas sempre são instrutivas para mim. Quais são as novas? Como tem passado? E esse tempinho, hein? Não chove, não esfria... - dizia, despreocupadamente. E foi assim, tergiversando que começaram o encontro.


encontro. Conversa vai, conversa vem e tocaram em um assunto que conversaram há mais de dois anos. - E a maçonaria, como vai? - perguntou Bicaco. - Bom, Professor, vai bem. É aquilo de sempre, as fórmulas; gente boa freqüentam as lojas. No Estado tem três grandes potências; faço parte de uma delas. A minha loja é pequena; não chegam a quarenta, os integrantes. Pessoas importantes estão nelas; muitas suas conhecidas. O Senhor tem todo o jeito, o modo controlado, refletido de agir; não sei porque não quis ser iniciado. Um dia, quem sabe, não é mesmo? O mundo dá muitas voltas. - É ...- respondeu, reticente o outro. - Lembro bem daquele espetáculo de reunião a que fui a seu convite, naquela vez. Gostei muito. Foram conversando o resto da tarde. Encerrado o papo, retiraramse da sala, apagando a luz. Tomaram o mesmo caminho de volta. Na saída, quase no mesmo local em que se encontraram, Bicaco, novamente inquirido se queria participar de outra reunião, disse, assertivo: - Me convide, Professor; preciso ir mais vezes; quem sabe, assim, perca o medo que tive da primeira vez. Disse lembrando o livro de Umberto Ecco, o Pêndulo de Foucault; tudo muito complicado e regulado. Realmente precisavam de uma boa iniciação, para viver naquele cipoal de regras e limitações. Mas de tudo quanto pensava, silenciava; não precisava, pelo menos por ora, desiludir o amigo, já que aqueles jogos eram muito importantes para ele. Bruno riu, colocou o chapéu e foi em outra direção.

Conto 11, de 29/06/2000, quinta-feira

A agenda e o poeta João Protásio Farias Domingues de Vargas

Há, mais ou menos, um mês atrás, navegando na internet, entrou no site do Tribunal Regional Federal da sua região. Pôs o nome do poeta no formulário de busca e lá apareceu a situação do processo: julgamento em tal data. Prontamente, agendou o dia. Esperou a intimação pelo jornal, mas ela não veio. Pois bem, hoje era o dia marcado, no primeiro horário da tarde. Pensou em ligar ao Tribunal, mas não o fez. No cair da tarde, ainda estava lembrando da sessão de julgamento do recurso. Ocorrera ou não? E se ocorreu? Não foi fazer a sustentação oral; pior, nem avisou o poeta, para que pudesse avisar seus importantes amigos jornalistas do centro do País. A dúvida era uma nuvem negra sobre a sua cabeça, mas não foi obter


dúvida era uma nuvem negra sobre a sua cabeça, mas não foi obter a certeza "in loco". Era noite e chovia aos tarros. Estava frio e o Tribunal ficava longe. Àquela altura, nada mais poderia ser feito, já que nada foi feito. Perguntava-se: por que não fui, já que podia? Não sabia dizer. A mente, falhando, como raramente ocorria, nada lhe respondia. Estava muda e surda a razão; vexada, quem sabe; amordaçada de algum modo. Naquela mesma noite, um importante palestrante havia vindo de Brasília para falar sobre certa especialidade de ensino; fora convidado a tempo, mas também não fora. Dois grandes eventos perdidos. Não sabia porque. Preferira ficar em casa, assistindo televisão, os pastelões importados de sempre, em um dos parcos canais disponíveis de reprodução. Estava deprimido, ao que parece; fugia dos compromissos. Caía fora da agenda, - era como dava a desculpa, amenizando a culpa, quando lhe era cobrada a quebra de algum, descumprido. - Saltou da agenda; caiu; fugiu; escapuliu. A agenda escrita era tão importante para ele que, se não estivesse escrito nela, não estava no mundo, não existiria. Costumava dizer, antes de agendar um encontro, reunião ou compromisso de qualquer gênero: - Vamos consultar o Oráculo! Vamos ver o que ele diz para esse dia. As pessoas achavam engraçado o modo de se referir àquele pedaço de papel encadernado, com linhas e números. Parecia que a agenda era capaz de prever o futuro. De certa forma, sim, pois era nela que se registrava o que deveria acontecer. Os problemas de ausência não eram de agenda, mas de espancamento; a agenda era ignorada inúmeras vezes, consciente ou inconscientemente. Nem tudo era agendado nela; muitos compromissos possuíam agendamento oculto. Todos os que não era escritos tinham esta classificação, a exemplo dos rotineiros, como os dias em que deveria ministrar aula. Era agenda cativa; carecia de registro, pois a lembrança era compulsória. Agora, os outros, visíveis e descumpridos, só uma explicação ilógica poderia demonstrar a perda da oportunidade registrada. Pois bem, nem sempre o Oráculo previa a verdade do futuro, mesmo estando escrito no livro. A realidade é sempre mais rica do que as nossas previsões podem realizar. O poeta estava sem sorte ou a sorte havia procurado outro agraciado? Não poderia dizê-lo, pois ainda não conhecia um trecho de passado que, por ironia, era presente mas que, pela posição, só no futuro seria revelado. Lembrou do ditado "hoje já é o amanhã que nasceu ontem". Perda de tempo. A agenda e o poeta; tempo perdido; não há poesia na agenda e nem se agenda poesia. Bem... entretanto, contudo, porém, todavia, ... Como disse, não fora intimado. Prejuízo não poderia haver, por parte do Tribunal. Ficou mais tranqüilo e pôs-se a pensar em outra coisa, sem consultar a agenda sobre o dia seguinte.


Conto 12, de 30/06/2000, sexta-feira

A reunião marcada João Protásio Farias Domingues de Vargas

O bistrô do Museu do Estado ficava na Praça da Alfândega, à beira do Rio Guaíba, em Porto Alegre. Tinham marcado a continuação da reunião de sexta, já na sexta passada, para essa. Quando Mário lembrou já passava das seis da tarde. Estava atrasado, mas não tinha vontade de ir; na verdade, dois corações; vantagens dos dois lados. Sopesou e decidiu não ir; reagendou o horário e foi ter com a casa; afinal, sexta-feira, final da tarde, acho que ninguém vai lembrar dela. Nessa linha de reflexão, acresceu que, se dessem sua falta, poderiam ligar; tinham número e tudo. Se ligassem e não houvesse desculpa, iria. Também, não poderia beber até à semana seguinte; em quatro de julho terminava a promessa de abstêmio. Tinha consciência clara de que estava boicotando a reunião que ajudara a agendar há uma semana, no mesmo local. Da vez anterior, o bar estava semi-vazio. Haviam tirado as esculturas do centro e o local parecia maior do que antes. Não que fosse assíduo freqüentador ; ainda que poucas vezes, foram suficientes para notar que gostava, que se sentia bem ali, com aquela música orquestrada e garçons formais. O dono era meio chato, mas sempre cedia às exigências dos fregueses. Isso fazia o lugar especial. Tinham sentado à mesa da direita, no canto de quem entra, perto da galeria de quadros. Mário tomara um refrigerante; os outros dois homens tomaram taças de vinho tinto; as duas mulheres, chope. Isso que a reunião durou até perto das nove da noite, tendo começado antes das sete. A conversa era longa, muitos eram os assuntos; quase nada de abobrinha; tudo papo sério. Política institucional: associação, advogados, eleições, comissões, grupos, reuniões, candidatos, apoiadores, eventos, coligações, chapas, etc. E vá chope, vá vinho, e nada daquele lado; só um refrigerante, que ainda teve de tomar às pressas, pois ainda havia um tanto na garrafa, quando decidiram ir embora. Tinha ciência de que não era um bom companheiro de mesa sem beber, mas, o que fazer, se havia decidido que não queria mais beber? Foi o que fez; não bebeu mais. Havia quatro meses que só tomava refrigerante. Podiam as reuniões de bar terem ficado uma merda, mas parou de vez de beber. Não se queixava de nada; só não parecia mais o mesmo. Os amigos reclamavam, torcendo para o retorno. Sem retorno, pensava; se houver, será apenas nas "societies", indicando que não iria mais beber como antes; não fecharia mais os botecos da praça. As lembranças iam e vinham, enquanto continuava o caminho em direção oposta à da segunda reunião. Havia decidido; não iria e nem avisaria os integrantes. Se quisessem, que ligassem. Não deu mais bola para o assunto e mudou de rumo os pensamentos. Em definitivo, a reunião havia sido abortada. Noutra oportunidade...


definitivo, a reunião havia sido abortada. Noutra oportunidade... quem sabe?

Conto 13, de 01/07/2000, sábado

Telefonemas mudos João Protásio Farias Domingues de Vargas

Desciam os primeiros degraus da Galeria do Plaza, quando tocou o celular pela primeira vez. Não reconheceu o número que o monitor apontava. - Alô!... Alô!...Alô! Não ouvia nenhuma voz do outro lado. - Alô? Não estou ouvindo nada... Alô! Tente mais tarde. Vou desligar. Fê-lo. Apertou o botão e a ligação foi interrompida. Tentava imaginar quem poderia ser, àquela hora, final de tarde. Muitas pessoas vinham-lhe à mente. Devolveu novamente o aparelho à cintura. Deu dois passos e novamente tocou o celular. - Alô!.. Alô? Não estou ouvindo nada. Olhou o monitor e viu que o número era outro. Resignou-se. Repetiu a operação de retorno do aparelho à cinta. Pensava na troca de donos da empresa de telefonia do Estado. Será que viria novamente o caos do ano passado? Tomara que não. Quase todos com aparelhos e poucos podiam falar. Veio à cabeça a anedota que o povo passou a contar, naquela época. Conta-se que os espanhóis, quando ganharam a licitação da estatal apenas e tão-somente prometeram que todos teriam telefone; não é verdade que prometera, também, que todos falariam. Para que servem telefones que não transmitem ou transmitem muito mal, ou que, para falar, depende do lugar em que se encontre, na cidade? Muito ruim. As coisas precisavam mudar e mudaram. Melhorou bastante. Agora, de novo, o mesmo problema? Pode ser que o problema fosse localizado, e não generalizado. Passou em frente à locadora, dobrou à direita e ganhou a rua seguinte, descendo a ladeira de sempre. - Quem era? - perguntou a acompanhante. - Não sei. Não deu prá saber. Estava mudo de novo. - Só silêncio?.. - É! Só silêncio - respondeu. - Tem acontecido muito disso, inclusive em telefone de linha fixa. Em casa, isso é muito comum. Mas acho que o problema é de quem liga, e não de quem recebe. - É? Pode ser que sim. Seguiram juntos, apressando-se, antes que a chuva chegasse.


Seguiram juntos, apressando-se, antes que a chuva chegasse. Mudou os pensamentos; pensou nos convites de jantar e decidiu não ir a nenhum.

Conto 14, de 02/07/2000, domingo

A sorte das provas João Protásio Farias Domingues de Vargas

Naquele domingo, havia acordado bem cedo. O relógio despertara às seis horas da manhã; mesmo assim, ficara na cama, em pequenos cochilos, até passados das sete. Levantou-se, tomou banho, sentou-se à mesa e logo saiu, antes das oito. Antes de ganhar a porta, remanchou na sala de estudos, sem saber bem porquê. Estava com lápis, apontador, borracha, caneta, passagens e celular a postos. Não precisava de nada mais e já estava atrasado, pois as provas iniciariam às oito horas. Conseguiu sair. Enquanto esperava o elevador, observava que a calça não estava satisfatória, nem os sapatos; a camiseta e o casaco de lã também não lhe davam o devido conforto para sair. Passou pelo porteiro, abriu a porta de vidro e ganhou à direita, em direção à Estação do metrô. Enquanto caminhava, percebia que as meias, postas entre os pés e o sapato, davam a sensação de apertamento e falseamento no andar. Cruzou por dentro do posto de gasolina da segunda esquina e avistou a parada de ônibus, a última daquela avenida. Perguntou a um vendedor ambulante se ali passava ônibus que fosse pela Av. Ipiranga. Foi informado que sim; também lhe disse o nome do ônibus e a empresa responsável. Várias pessoas estavam concentradas na parada, sob o abrigo. O dia estava cinzento e se preparava para chover. Estava atento às pistas. Vários coletivos passavam, mas nem sinal do esperado. Vieram dois, três, cinco, e nada; rapidamente começou a ficar ansioso. Olhou o relógio mais uma vez e quase marcava oito horas. Não sabia se as oito horas marcadas diziam respeito ao horário em que seriam iniciadas as provas ou o horário em que seriam fechados os portões de entrada para o prédio. Em frente à banquinha do ambulante, em uma banca alaranjada, típica de verduras, na parte de baixo, viu abrir-se uma portinhola e, de dentro, sair um senhor de meia idade, com cabelos desalinhados e cara de sono. Parecia que havia dormido naquele cubículo, qual um guardião. Notou, então, que haviam algumas frutas expostas, na parte de lá da plataforma superior da feira. No seu ângulo de vista, sem desviar o olhar, podia cuidar a pista da esquerda, e nada de vir o ônibus. Pensou na perda de tempo em chegar atrasado ao local; ter de


Pensou na perda de tempo em chegar atrasado ao local; ter de correr, sob o olhar observador dos candidatos sentados às janelas, nas salas ao derredor; desejava não ser visto, como tantas vezes viu outros ficarem de fora, por atraso. Ademais, quase nada havia estudado; seria vexame na certa; não tinha chances de concorrer; não tivera tempo para estudar; o desejo de se submeter aos exames surgiu tarde demais; também, perdera muitos dias sem tocar nos textos. A vontade de ir ia sendo minada pensamento a pensamento, naquela manhã cor de chumbo. Olhou em direção ao posto, as pistas; mais longe, avistou trecho do Mercado, e nada do coletivo apontar. Estava sonolento, ainda; acordara há pouco. Sentiu os pés atinarem em andar, em direção ao retorno. A respiração ficou forte; a decisão não tardou e veio junto com o pensamento: - Estamos desistindo da prova! É isso? - perguntava a sim mesmo, dando, de imediato, resposta afirmativa. As calças azuis e os pés se deslocaram pelo mesmo caminho há pouco percorrido. Estava satisfeito com a decisão. Afinal, mesmo que tomasse o ônibus agora, o risco de chegar depois de trinta minutos ainda era possível. Estava justificada a decisão. Podia voltar e ficar no aconchego quente do local de onde saíra. De fato, a manhã, naquela hora, não estava bonita. Toda acinzentada, o silêncio das ruas aumentavam o desalento da saída. Foi bom ter acordado cedo; podia, assim, fazer o dia render um pouco mais. Voltou e dormiu quase a manhã inteira. Quando acordou, chovia muito e mal se podia avistar os prédios, através das vidraças da janela. Estava satisfeito com a decisão. Para as próximas precisava, no mínimo, preparar-se, sem o que não teria condições de competitividade. Aliás, também não aprovava que alguém pudesse se tornar um bom profissional naquela área, se soubesse tanto quanto ele, naquele momento, em relação às exigências rotineiras requeridas pelas provas. A decisão fora acertada; não podia correr riscos; não, naquele preciso momento. Não adiantava sonhar; não tinha chances técnicas de ganhar. Só restaria o golpe da sorte. Mas, a sorte? Essa de que todos falam? Nunca, nunca pudera contar com ela. Se existia, nunca a conhecera; pelo menos não do modo como a maioria conta. Não era sortudo; por isso era obrigado a traçar planos e executá-los. Ainda que a decisão não representasse uma derrota efetiva (não entrara na arena), mas sim um estratégico recuo (a batalha estava adiada), não podia ver a mão da sorte no ato de ir - e não fora, ou no de ficar, - o que efetivamente ocorrera. De qualquer modo, pensava agora, passando novamente pelo porteiro, nunca a sorte o acolhera sob as suas asas. Tinha, apesar de tudo, vontade de dizer "acolhera muito tempo", dando a idéia de que não era de todo destituído de sorte, pois, muitas vezes, o que se interpreta como azar em um momento, noutra leitura, adiante, verifica-se que o que houver fora sorte mesmo; mas não dissera nada sobre isso a si mesmo. Apenas intuiu; a idéia estava lá, na sua cabeça, pululando, com uma certa alegria contida. É claro! Como todos! Não é nada disso! Tinha sorte sim! Mas, nunca pudera contar com ela; era como se ela sempre faltasse, quando fosse a única alternativa possível. Dando existência própria, humanizando-a, por assim dizer, parecia que só ajudava quando


humanizando-a, por assim dizer, parecia que só ajudava quando algo era feito sem o seu apoio, sem o toque de seu dedo. Sorte tem quem dela não precisa; como dinheiro de banco, nos empréstimos a juros.

Conto 15, de 03/07/2000, segunda-feira

Você tem um plano? João Protásio Farias Domingues de Vargas

Não foi neste dia que as coisas aconteceram do modo quisto. Aliás, muito diferentes do que o pensado. Afinal de contas, quando é que as coisas acontecem segundo um plano? Eu lhes respondo, e cheio de razão: - Quando não há um plano! Só quando não há um plano! O leitor deve estar pensando na resposta. Não lhe darei tempo para isso. Lance logo a pergunta seguinte, que está pululando na nela de sua mente: - Por quê? Leitor ingênuo! A resposta é óbvia! E não vamos aqui discutir o que é e o que não é o óbvio. Óbvio é óbvio, - dizia uma amigo jornalista, anos atrás, antes de sua primeira internação, - Não se discute! - Porque, se você não tem um plano, o seu plano é o ocorrido. Você assume a trajetória histórica do fato como sendo o único plano possível. Você se acomoda à realidade do fato, como aconteceu. É o chamado plano histórico! Está satisfeito, agora, leitor? Não deve estar satisfeito com a resposta, pois nem eu mesmo estou. Vou precisar melhor, se me permitir. Antes, você sabe o que é um plano? Não???!!! Santa ingenuidade. Tem e não tem tudo a ver com a vontade humana. Livre arbítrio??? O do Santo Agostinho??? Bom... - Um plano é uma vontade procedimental! Pronto! É isso! Nada mais do que isso! Os imbecis devem estar pensando na vontade de potência do Nietzsche. Não sem pouca razão! - E o destino? Onde é que fica, nessa estória, meu? - deve estar se perguntando o último neurônio ativo, dentro de sua cabeça fresca. Velha pergunta. Pré-heraclitiana, diria. Mais: pré, pré, pré... o anterior a tudo. A filosofia começou pela teologia ou foi o inverso? Pouco importa agora. Não agora, para respondermos à nossa pergunta, que exige uma certa pressa. Nenhuma boa resposta pode ser dada se houver muito tempo para ser emitida. Ora, precisamos sempre justificar o nosso modo de fazer as coisas! - Era do destino que estávamos falando, mesmo. Se você não tem um plano prévio, pensado e estruturado antes das coisas


tem um plano prévio, pensado e estruturado antes das coisas acontecerem; sem que você tenha dado o primeiro passo implementativo, a história ainda não começou a acontecer segundo a vontade do plano pensado. É o plano pensado pelos outros que está em prática. Você ainda não está influindo na história de sua vinda, antes de dar o primeiro passo. Fios de marionete estão agarrados aos seus pulsos, pernas e cabeça, antes de andar pela sua própria cabeça. Quando não sabemos de quem é o plano que está sendo posto em prática e somos atores do mesmo palco, estamos diante do plano que se denomina destino. Você viu como é fácil??? - Destino é o plano que não foi pensado por você! É o plano alheio. Destino é o plano alheio! Você decide a vida dos outros todos os dias, sem se dar conta. Faz o destino dos outros! Pensou que ninguém fazia o seu? Que ingenuidade! Viu como é simples! Você já havia pensado nisso? Não?? Então, a história da consciência deste preciso fato presente não foi decidida por você?? É o destino te fazendo o agora, não é mesmo?? Pegue a hora e aproveite o dia,... antes que algum aventureiro o faça!

Conto 15, de 04/07/2000, terça-feira

Verdade - PROVA - Falsidade João Protásio Farias Domingues de Vargas

Não tenho tempo para este conto. Nem sei porque me impus este dever ridículo de escrever uma Conto por dia! Estou duas semanas atrasado no cronograma, o que me faz fazer e dizer para trás. Estou enganando os leitores do futuro. Mas, quem se importa com isso além de mim mesmo? Sem revelação, o que é a verdade, não é mesmo? Mentira? Não. Verdade, também. A mentira não existe em absoluto; é na relatividade da vida que ela se insere; compete, na verdade, com a verdade. O que seria da verdade sem a mentira? Nada. Uma se escora na outra para se demonstrar; perna dum, perna do outro. Estamos tão impregnados dessas duas palavras que quase não conseguimos dizer nada sobre prova sem elas. Pois acho que elas são incompletas sem uma terceira, quase sempre esquecida pelas pessoas. Trata-se daquilo que é necessário quando duas pessoas estão com tesão e a afinidade e a infra-estrutura da oportunidade está presente! "Verdade - prova - falsidade", eis o tripé de toda a realidade; o tripé da vida, diria, e acresceria a expressão: "sem sombra de dúvidas!", como se a dúvida fosse uma coisa sólida e ereta erguida entre a os olhos da mente e os raios do sol! A sombra da dúvida!!! Essa é muito boa, mas, vamos lá!!!... Bom, é melhor do que aquela


Essa é muito boa, mas, vamos lá!!!... Bom, é melhor do que aquela tal da "gota de verdade", de que falam alguns por aí, - como se verdade ou falsidade viessem embaladas em frascos de comprimidos, vidros de farmácia ou descessem torneira abaixo, ou pudessem ser coadas em bules de cozinha, etc! - O que dizer das verdades que o tempo demonstra falsas? Como se sai dessa arapuca da História! E como ficam os sacrifícios que se fazem em nome ou por causa da verdade? E as injustiças de hoje que revelam as justiças do passado? O que fazer com elas? Você tem uma resposta para isso? Como evitá-las? Afinal de contas, o que é a "CERTEZA" de que tantos falam? A "EVIDÊNCIA" de que tantos mencionam em seus belos discursos?! Mas o leitor deve estar se perguntando, em sua consciência que não cala a boca: - Vamos, por isso, desistir da busca da verdade?! Eu faço uma pergunta anterior: Se não buscarmos a verdade, incessantemente, tudo de que disporemos é a falsidade? É possível pensar sem algum critério? Me responda, leitor filósofo! Não fique mudo agora!! Então, quais são os seus critérios de verdade? O que distingue o joio do trigo é a sua cor? E pergunto, já fazendo um gancho à verdade bíblica, pois, com certeza, lá devem estar os melhores critérios, não é mesmo ???!!! Verdade alegórica ou alegoria verídica??? Me responda! Sabe responder ou não quer responder para evidenciar a verdade de suas contradições? - Os fatos dão a verdade! - deve estar pensando, com certeza! Ora, que ingenuidade!!! Não podemos nos anteciparmos a eles e fazê-los moldados à nossa vontade, ao poder que dispomos de formatar parte dos fatos da realidade? O plano não é um projeto de realidade? Saia dessa, se puder! Eu não sou cético! A verdade precisa de crença para existir? Que verdade é essa que se estriba na fé? - Fé na verdade! - não é assim que dizem alguns cientistas? A ciência dá os critérios para auferimento do grau de verdade ou apenas dá os critérios que qualificam um tipo de verdade, aquela que é produzida segundo os seus próprios métodos? Critérios de verdade são moldes de verdade? Como a fôrma para um sapato segundo a dimensão de um certo pé que o ajustará. Machado de Assim, em um de seus contos, falava em: "Não demorou muito para que o sapato se ajustasse ao pé". Lembra também a expressão "a mão e a luva". A verdade é a mão ou é a luva da realidade? Ou a verdade está do lado de fora dos dois, olhando para ambos e para o entorno, desconfiada de que não sabe onde está e nem do que se trata tudo aquilo? A verdade comporta dúvida ou é indiscutível, - como dizem alguns sábios do presente e do passado? A luva é o critério de verdade da mão? A mão é o critério da verdade da luva? Sabe responder, leitor inexistente? Os médicos usam uma expressão engraçada: "desenganada". "Fulano está desenganado pelos médicos!" O que isso quer dizer? Aqui, enganar é algo bom? Por acaso, se um médico disser: "fulano está enganado", estamos diante de algo bom para o paciente? O desengano parece ser a fina palha de verdade no paiol da existência da pessoa! - A verdade está enganada! - É possível fazer esta afirmação ter algum sentido?? "A verdade é boa de enganar", dizia a letra de uma


algum sentido?? "A verdade é boa de enganar", dizia a letra de uma música cantada pela Gal Costa, anos atrás. Maquilagem engana? Plástica engana? Silicone engana? Processo engana? Palavras enganam? O que é capaz de desenganar? A desilusão é o resultado de um engano ou o alcance de uma nova realidade? Estas perguntas não querem calar, não é mesmo? Quando vou parar de fazer estas perguntas sem que tenha como respostas novas perguntas? Lembro a "náusea" de Sartre! Me veio à cabeça a palavra, não sei por quê. - Como saber se a verdade é uma mentira ou esta é aquela? Um moralista diria que esta pergunta é imoral, olhando para mim com a certeza de quem está na posse de toda a verdade! Posso imaginar, seus olhos de censura e razão, sem admitir uma sombra de dúvida! Eu só não sei onde está posto o corpo do moralista no espaço desta imagem, se antes ou depois da sombra. - "Tudo que é sólido desmancha do ar"? "Flutua no ar"? "Flutua na água"? A verdade é sólida, gasosa, líquida ou coloidal? Vamos penetrar os olhos na matéria dos físicos, até o átomo que foi de Demócrito. Os elétrons flutuantes, o núcleo, toda aquela imagem que aprendemos no segundo grau escolar, faz sentido de verdade? Você viu um elétron andando pela rua nessa manhã? Falou com algum? Ele revelou a sua verdade, a verdade, ou uma verdade, ou nenhuma verdade, ou silenciou na imagem de sua alegoria? Quer falar sobre isso? Falseie o critério que sustenta a verdade de alguma coisa e restará falseado o seu próprio produto. Duvida disso? Faça o mesmo com o critério que o levou a falsear o critério do outro? Fê-lo? O que restou agora de verdade? Pouco ou muito? Vá em frente. Agora faça o mesmo em relação a todos os critérios que estiver ao seu alcance. Faça isso o dia inteiro. Ao cair da tarde, volte para casa e pense em sua grande façanha técnica, assista um pouco de TV e vá dormir, com a consciência tranqüila. Quando acordar pela manhã, escreva sobre a sua experiência e veja se tudo fez algum sentido. Você melhorou o seu critério de verdade ou apenas aprimorou o seu senso de desespero? Agora imagine com eu estou me sentido agora, que está terminando a leitura destas linhas! Isso é verdade ou mentira? Você não tem como saber! Falta o critério! Qual? O que vai fazer quando eu contá-lo? Nada! As mesmas perguntas seguirão seu caminho como sempre fizeram. A verdade está onde não pode logicamente estar.

Conto 17, de 05/07/2000, quarta-feira

Fazendo uma canoa João Protásio Farias Domingues de Vargas


- Com quantos paus se faz uma canoa? - Dez! Cinco! Dois! Um! Nenhum! Cem! Mil! Duzentos! Quantos? - Depende da canoa. Depende dos paus. Depende do que você quer fazer com a canoa. Depende do que você não quer fazer com a canoa. Depende de qualquer coisa e de nenhuma. Dez podem ser muito; mil podem ser pouco. A canoa precisa fazer sentido para que os paus sejam necessários. Os paus precisam fazer sentido para que a canoa seja necessária. Mas, você pode pensar em outra coisa que não em paus e canoa, se quiser; pode mudar de idéia; pode buscar outra saída ou entrada. Este diálogo faz sentido para muita gente; para outros, como eu, nem tanto. Mas, eu sou o responsável pelo diálogo. Se pu-lo aí, deve fazer algum sentido para mim, por menor que seja, não é verdade? - A canoa é a vida - diriam alguns. - É preciso se fazer na vida dizem outros. Se fazer o quê? O barco da existência! De onde saiu esta preocupação com a canoa? Este meio de transporte faz sentido para aquele que vive longe dos rios e dos mares? A metáfora denota o autor! Por que é importante saber com quantos paus se faz uma canoa, se canoa nunca vai ser construída por quem se coloca essa questão? Fazer o próprio veículo de transporte faz sentido nos últimos meses do século XX, nos últimos dias do milênio, onde tudo, ou quase tudo, para se ter acesso, precisa de dinheiro e compra ou de autorização do Estado? Quem se coloca essa questão deve estar disposto a respondê-la, mesmo que não o consiga. - Depende do tamanho da canoa responderia alguém preocupado com o "modus faciendi", já dando uma de engenheiro ou arquiteto. Se dou uma resposta inicial, ainda que hipotética, estou nesse campo intelectual. Eu comprei a briga e agora vou construir a canoa - deve ser a reflexão do respondente. De que tamanho você vai querer? - perguntaria uma mente prática de vendedor, dando ares de quem pode dar uma resposta adequada para satisfazer a vontade do cliente, olhando por detrás do balcão. Um corretor já se perguntaria se há ou não seguro disponível no mercado, de vida e material, com cobertura geral, total ou específica. Um advogado levantaria a questão da autorização e habilitação do construtor; sobre o contrato entre cliente e empreendedor. O pescador pensaria no volume necessário para as tonelagens que pudesse comportar. Um taxista imaginaria um modo de transporte de cabotagem, com tempo cronometrado. Um juiz se perguntaria onde está o conflito de interesses a ser dirimido e se há processo em andamento. - Afinal, o número de paus é realmente importante para a canoa? Tenho minhas dúvidas, agora, no alto (ou no baixo) dessas últimas indagações. Você, leitor, onde está posicionado, nesse mundo de planos e olhares postos? Sabe realmente onde está ou quer estar? Estou desistindo de continuar nessa linha de questionamento. Vou encerrar a conversa por aqui, sem conclusão alguma. E a canoa??? Quem se importa!


Conto 18, de 06/07/2000, quinta-feira

Um tempo de leitura João Protásio Farias Domingues de Vargas

Naquela manhã o sol estava lindo e o dia muito claro; céu azul, cidade limpa e muita gente pelas ruas. Não ouvia pássaros cantarem como no interior, mas o som dos carros não estava intenso a ponto de destoar de um ritmo agradável para o andar. Ainda que frio, o ar matutino, como sempre, renovava o ânimo de esperanças sobre as horas que viriam. Como Blaise, não esperava muito da vida; tinha consciência de que tinha muito para dar; mais do que a receber. O passo estava lento; ouvia os sapatos baterem firmes na calçada, enquanto olhava as placas de publicidade e os ângulos diferentes dos prédios, acima da cabeça. Estava confuso no pensar, mesmo que a máquina estivesse bem descansada. Há muito tempo não sabia distinguir entre o corpo que carregava um cérebro e um cérebro que comandava um corpo; a diferença só se apresentava através do verbo, da fala, do diálogo; era necessário conversa para a distinção ocorrer. Não tinha dúvida de que, naquela precisa caminhada, conversava consigo mesmo e dirigia seu próprio corpo. Tinha tomado bom café e estava indo para mais um dia de trabalho. A vida era bela. Enquanto progredia em direção ao centro, lembrava do dia anterior. O que havia feito de mais importante? Lembrou da conversa com um amigo partidário, mas descartou a hipótese; teria sido mais importante, se tivessem arrematado alguma coisa a ser feita pela frente; o encontro se resumira na cortesia do próprio encontro. Veio à cabeça o texto que havia escrito em defesa de uma pessoa em dificuldade e achou a hipótese por demais cristã, ínsita no rol das boas ações. Não era o que estava procurando. O filme que assistira na televisão bem que poderia concorrer, mas não queria dar votos de louvor para uma cadeia de televisão que tem tanto oprimido; era a perda de tempo o que estava no jogo e queria, agora, ver o que tinha feito de mais importante; logo, não poderia ter sido o fato de assistir um pastelão à noite. A dificuldade em definir o que tinha sido verdadeiramente importante no dia anterior persistia e não conseguia o intento. Foi aí que lhe veio a idéia de tentar elencar um critério que pudesse definir a importância maior que levantava em sua reflexão distraída pelas ruas da cidade. Critério estético? Critério conversa séria? Critério ação concreta? Qual deles não sabia definir. Verificou, então, que estava enveredando para outra seara: o critério mais importante para definir o ocorrência de vida mais importante em um tempo de 24 horas. Tinha dificuldades em sair dessa. Lembrou-se que costumava decidir muita coisa pela simples imposição do critério, forçando a mente a contraditá-lo, ainda que a posterioril; afinal, no


forçando a mente a contraditá-lo, ainda que a posterioril; afinal, no diálogo da mente, as decisões podem sempre ser revistas. De pronto, decidiu-se. O critério seria o da ação concreta. Clareou o terreno, quando atravessava a última rua, antes do seu destino de chegada. Precisava ser rápido, pois depois outras ocupações tomariam o espaço daquela reflexão lúdica. Ter tomado um café expresso na galeria, enquanto folheava as páginas do novo livro que comprara. Refletiu um pouco e achou que o fato de folhear um livro saboreando um café não poderia ter sido tão importante assim para a vida de um homem em um dia inteiro. Falseou a hipótese. Lembrou de várias cenas, inclusive das imaginadas; essas estavam fora, eis que o critério estava na concretude externa do fato. Lembrou. Era isso mesmo. Havia descoberto que de tanto pensar o que os outros querem e o que a mídia impõe, esquecera de comprar livros para ler e completar os vazios das prateleiras da sala de estudos. Tinha perdido o hábito de ler o que não fosse documento ou jornal, mesmo que na internet. A importância do fato estava na devolução da consciência do que não mais estava fazendo. O ambiente, o café e a obra abriram-lhe os olhos para o fato de que estava banalizando a aprendizagem pelas leituras de mera conjuntura, abandonando as de fundo. Era isso mesmo, o que fizera de mais importante foi comprar o livro e tomar o café, passando-lhe os olhos e a boca. Já estava no elevador, quando os pensamentos estavam nesse ponto. A ascensorista alertou para o andar e ele desceu, ganhando o longo corredor que todos os dias avançava em direção à porta de entrada. Quando ganhou o rol da sala, acendeu as luzes e puxou as cortinas, para a luz do sol entrar, os pensamentos, meio esmaecidos, ainda pululavam em sua cabeça: - Preciso ler mais. Estava pensando em quando foi que leu pela última vez uma obra inteira, ainda que técnica, quando tocou a companhia e o telefone, ao mesmo tempo. Foi até à porta e fez passar a pessoa e foi atender o telefone. Não havia mais espaço para a reflexão que estava fazendo. Enquanto dava o jornal do dia para a pessoa e ouvia a fala na linha, pensou em retomar aquela reflexão na manhã do dia seguinte. Ler mais, eis o que foi mais importante e não fizera no dia anterior.

Conto 19, de 07/07/2000, sexta-feira

Antena paranóica João Protásio Farias Domingues de Vargas

Não sabia porque ainda não tinha posto uma antena parabólica no apartamento. Olhava a janela descortinada e os três fios grossos que desciam do terraço em direção ao térreo, na verticalidade cinza dos andares. Do outro lado, distando um 12 metros, estava a parede


dos andares. Do outro lado, distando um 12 metros, estava a parede do prédio vizinho. Vias as janelas, as cortinas, o cimento e alguns aparelhos, através das vidraças. Net, não dava. O técnico veio e disse que a área toda da rua não comportava o acesso devido ao aclive acentuado. E a parabólica, dava? Dava. O que faltava. Não sabia. Qual a melhoria? Mais canais, melhor imagem. E o que mais? Nada mais. Só isso. Era prioridade? Não sabia. Já eram cinco horas. Passaram-se três desde que começou a pensar. Mas, afinal, por que uma paranóica? Custava muito caro? Não. Então, o que era? O que o impedia de tê-la? Não sabia. Já gastava mais tempo do que tinha naquela maldita TV. A antena roubaria mais tempo. Sempre cedia à sedução das imagens. Não queria a si tanto naquele sofá. Quando via, olhava a vidraça, os prédios e o aparelho. Questionava-se sobre a intoxicação de imagens de filmes e de propagandas que introjetava goela abaixo. Não havia tempo para críticas; eram muito rápidas; quando começava a pensar num assunto, já estava outro em pauta. Era como comer sem saborear nada. O enredo de um filme, qualquer que fosse, ainda poderia pensar nas cenas seguintes, duvidar das hipóteses, criticar a obra; afora isso, pouco dava prá fazer. Novelas? Não assistia. Seriados, também não. E o vídeo-cassete, como ficaria? Concorreria. Muitos canais é bom, mas requer tempo, essa ferramenta do agir tão escassa. Via de novo os fios escorrerem sobre a janela dos fundos, dois ao lado do seu, ali, posto, mas sem conexão com nada. Qual a diferença substancial. Para ele, nenhuma, exceto o que poderia estar a eles conectado. O seu terminava em cima do arquivo de aço, perto objetos que ornavam a sala de leitura, e na da mais. Consumismo? Pode ser. Não precisava de uma parabólica. Por que então a dúvida? Também não sabia. Se fosse imperativo a compra, teria feito há bastante tempo. Pensou um pouco mais e mudou o dial da mente, estacionando em outro canal. Era ora de fazer outras coisas. A parabólica ficava para depois. Já saindo do lugar, veio a imagem dos casebres, na chegada da Praia, todos com antenas parabólicas grandes; algumas mais altas do que as próprias casas. Mas, já era tarde para pensar nos pobres e nas parabólicas que os entretém.

Conto 20, de 08/07/2000, sábado

A imoralidade da moral João Protásio Farias Domingues de Vargas

Paulo tinha assistido a um filme na TV, numa dessas noites de


Paulo tinha assistido a um filme na TV, numa dessas noites de final de semana, no qual, o protagonista estrangeiro, russo que tenta a vida e a cidadania norte-americana fazendo pequenos biscates, comenta com sua amiga o filme que acabaram de assistir, enquanto lhe aplica uma cantada para irem ao seu apartamento, diz: - Não gostei do filme. Aliás, o gênero não é bom. Termina só mostrando os fatos, sem nenhuma tirada de ensinamento moral. Um filme de conteúdo e conclusão vazios. Ficou pensando na afirmação. Um filme para ser bom precisa ter conclusão moral explícita? A afirmação faz um julgamento moral, a amoralidade do filme. A ausência de explicação moral não constitui uma afirmação moral? A amoralidade não seria uma forma de comportamento moral? É claro que sim. É moral ser amoral! Afinal de contas, o que é ser moral? É agir em conformidade com uma regra comportamental valorada como boa, útil, importante ou necessária. A amoralidade, repetia a si mesmo, é uma moralidade; diferente é a imoralidade, que nega uma determinada regra de moralidade, qualquer que seja. E, a imoralidade, também não seria moral? Claro que é! Imoral para um, moral para outro; o que nega uma regra afirma outra, antitética, contraditória. Também é afirmação comportamental para o humano. A regra moral dita o direito segundo o pensamento de quem a afirma; se o Estado pode impô-la mediante sanção, então a regra, além de moral, passa a ser, também, jurídica. Não é o caso do filme, cuja discussão é cultural, mas houve época em que modos morais foram impostos com sanções severas, a exemplo dos nazi-facismos, dos comunismos decadentes, ambos europeus e asiáticos. Os contos infantis quase sempre trazem a "moral da história" explicitada ao final, primando pelo cunho educativo dos valores que o seu conteúdo encerra. Seria imoral um comportamento em um país, moral em outro, jurídico noutro e amoral num quarto? É possível. Portanto, a moral varia no espaço. Varia também no tempo? Sim. Exemplo está na questão da sexualidade, no divórcio, na linguagem, dentre tantos outros. Paulo, com essa reflexão, viu que a afirmação do protagonista russo estava eivada de um desconcerto: a ausência de tolerância cultural. Isso era um preconceito, logo, do seu modo particular de ver, um comportamento imoral. A personagem propunha uma análise moral dentro do campo da imoralidade. É possível uma afirmação como essa? Sim. Tanto o é que a estava fazendo. Ficou mais tranqüilo e trocou de assunto em seus pensamentos.

Conto 21, de 09/07/2000, domingo

Fases e crises na vida dos casais João Protásio Farias Domingues de Vargas


O cotidiano dos casados não é coisa fácil de suportar. Não há regra certa que ensine melhor viver e que possa ser usada por qualquer um. A famílias são diferentes, exceto as norte-americanas, é claro, que são todas iguais, segundo os estilos padronizados dos filmes yankees que passam no terceiro mundo, pela televisão. O senso comum fala das fases. Alguns dizem que são cinco. A fase áurea: nos três primeiros anos. Vem a crise dos três. Superada, aparece a fase dos cinco anos, que é sucedida pela segunda crise. Adiante, a fase dos dez anos, sucedida pela terceira crise. Depois, as fases dos vinte e dos trinta em diante. Todas elas mediadas por novas crises, de mesmo nome. A crise dos três anos é chamada de Crise da Separação. O casal, em geral já com filho, revisa a convivência e conclui que a melhor alternativa era cada um ter permanecido solteiro; teria ganhado mais, pois a chance de ter conseguido algo melhor ainda era possível. A maioria se separa nessa fase. Os que não têm filhos, com maior facilidade ainda. Ambos estão jovens e podem recomeçar facilmente suas vidas, cada um para um lado. O que caracteriza a crise é a autenticidade dos sentimentos do outro: me ama ou não? Se consegue superar a crise dos três anos, logo em seguida vem uma segunda, já entrando no sexto ano de convivência. A fase dos cinco anos não é tão complicada, mas é mais severa. O casal se conhece melhor e, em geral, já estão mais acomodados às manias de cada um. Muitos sonhos já foram deixados de lado, mas não todos. A discussão começa a ser menos no tocante à dúvida sobre os sentimentos do outro, mas sim o grau de contribuição patrimonial de cada um para o monte que pode ser inventariado. O dinheiro assume papel preponderante. Estão mais velhos e a cabeça mais fria, assim como o próprio modo de sentir o outro. A crise se instala quando o desequilíbrio de contribuição é supervalorado por qualquer deles. Se não há separação, presume-se que houve superação da crise. A Fase dos dez anos é permeada pelo auge de intimidade do casal. Cada um conhece o outro quase melhor do que a si próprio. Sabem dos sentimentos um do outro, do patrimônio que cada um ajudou a construir, bem como o modo como pensa o mundo e as coisas. A amizade passa a ser valorada quase com o mesmo peso que o amor, até porque quase se confundem. Os problemas referentes ao trabalho e ao dinheiro, juntamente com a intimidade, leva cada um a tratar o outro como efetivo familiar, irmão, pais, etc. As palavras de baixo calão se tornam corrente e os julgamentos morais muito presentes e severos em quase todos os comportamentos cotidianos. O controle sobre o outro apresenta suas garras e presas de forma muito felina. A dignidade de cada um passa a ser posta em questão nos atos de julgamento moral. É o impasse da crise, que ocorre já no varar do décimo-primeiro ano. Puta, vadia, galinha, galinhão, sem-vergonha, pedante, atrofiado, brocha, frígida, ovelheiro, dosa, burro, idiota, ignorante, malcriada, vaca, porco, e assim por diante, com impropérios de todo tipo. Coisa que na fase anterior ainda não aparece na maioria das vezes. A ofensa moral, matizada na calúnia, difamação e injúria, inclusive a real, se torna corriqueira. A um


difamação e injúria, inclusive a real, se torna corriqueira. A um passo das vias de fato, comumente se agarram, se batem, se esfolam e depois transam, como se nada tivesse acontecido. Os escândalos públicos começam a aparecer e a se intensificar. Se não houver separação, a fase está superada. Só daí a dez anos é que nova crise virá. A fase dos vinte anos de casado ou de convivência amorosa é a mais complicada de todas. Mais velhos, quase todos os sonhos de realização estão enterrados. A família assume postura conservadora. Cansados de guerra, ficam em trégua, conformados à miséria existencial que não conseguiram afastar. As fantasias de liberdade se tornam recorrentes e todos os defeitos são atribuídos ao outro, como responsabilidade provada. Não sou isso porque tu não quis, impediu, deu prá baixo, afastou, detonou, etc. Os filhos já estão grandes e entram em quase todas as discussões de intimidade. A guerra dos sexos se instala e as trincheiras ficam permanente ao céu aberto. A crise dos vinte anos, como as demais, já contando com o acúmulo de três outras superadas, é Conto; ainda que fraca para gerar rupturas, eivada de lamentações do tipo "Ah, seu eu tivesse feito isso... Ah, se eu tivesse feito aquilo...", tende a manter tencionado o relacionamento pelo resto dos anos vindouros. Após essa crise as cenas de adultérios tendem a se institucionalizar. Aceitas por uns casais, rechaçadas por outros, o fato é que, ambos mais velhos, buscam o resgate do tempo perdido em novos relacionamentos, mais flexíveis, mantendo o antigo. Os paralelos dão alento à continuidade. É a própria existência de cada um que passa a ser questionada, em sua individualidade e sua coletividade familiar e social. O valor da vida é posto em questão em função da história percorrida. As fases e crises seguintes, em geral decanais, não são mais importantes do que essas quatro primeiras, pois essas dão as características e experiências que irão se repetir em todas as demais. Crise do amor, crise do dinheiro, crise da amizade e crise da existência dizem tudo da vida a dois. Essa tipologia quadrangular é idealizada; não quer dizer que todos os relacionamentos apresentem-se na seqüência temporal e característica apontada para todos. Há relacionamentos que apresentam os caracteres de alguns, de vários, de muitos ou de todos os tipos formais postos. Amor, dinheiro, amizade e existência ou vida são valores que permeiam qualquer relacionamento amoroso. Eles estão presentes desde o início, entretanto, de tempos em tempos, cada um passa a assumir um papel de relevância ou prioridade maior do que outro. Se um casal se ama, tem dinheiro com facilidade, é amigo e sempre dialogam sobre as suas existências, tendem a superar as crises com mais facilidade; do contrário, as crises podem gerar rupturas. Viu? As fases e crises na vida dos casais não são fáceis e não são pouca coisa.


Conto 22, de 10/07/2000, segunda-feira

Gays, lésbicas travestis e transgêneros João Protásio Farias Domingues de Vargas

Como se chama o homem ou a mulher que tem comportamento sexual heterodoxo? Uns dizem: homossexuais. Pois bem, os movimentos sociais dessas pessoas buscam novos conceitos e distinções. Nessa semana eu ouvi quatro modos de designação: gays, lésbicas, travestis e transgêneros. Gays são os homens que sexualmente se identificam com outros homens; lésbicas, o mesmo, com mulheres. Travestis são os gays ou lésbicas que se portam como se fossem do sexo oposto. Os transgêneros são aqueles que mudam anatomicamente de sexo. Os movimentos propugnam por uma distinção bipartite de livre opção sexual: homossexuais, heterossexuais e bissexuais; os primeiros, distintos nos quatro tipos acima apontados, assim como os segundos nos dois biologicamente tradicionais: masculino e feminino. E como ficaria a terceira distinção? A resposta seria simples: agem socialmente como hetero e como homossexuais, vale dizer, relacionam-se sexualmente com homens e mulheres, ao mesmo tempo ou de maneira diferida no tempo. Uma coisa é o sexo biológico, outra é o sexo anatômico e, uma terceira, é a opção sexual. Um ser humano masculino sem pênis e sem saco escrotal como seria chamado? Deixaria de ser masculino biologicamente? Não, mas anatomicamente não o seria mais, pelo menos em sua faceta externa. Um mulher sem ovários, sem útero e sem seios continuaria sendo uma mulher e do sexo feminino, entretanto, aparentemente poderia ser difícil a sua identificação. Um homem que faz operação sexual e muda de sexo, incluindo seios, aparentemente pode ser uma mulher, mas continua sendo biologicamente homem, segundo os exames biológicos identificadores do Corpúsculo de Baar. Uma mulher que implantasse pênis e suprimisse as mamas continua sendo do biologicamente do sexo feminino, ainda que sua aparência sexual se tornasse masculina, assim como o seu comportamento sexual. A Biologia registra casos biológicos de pessoas que possuem órgãos genitais de ambos os sexos e que, pela presença do referido corpúsculo, são identificados como sendo do sexo feminino, mesmo que suas características pendam mais para um ou para outro. Superada essa brevíssima discussão terminológica e científica, com todas as deficiências que o curto espaço de escrita comporta, perguntamo-nos no tocante à aceitação moral dos comportamentos apregoados pela livre orientação sexual. As opções que destoam do biologicamente dado são morais, imorais ou amorais? Como valorar e julgar esses comportamentos sexuais, que não são novos na humanidade, se é que é preciso julgá-los? Achamos que é preciso julgar sim, pois é impossível estabelecer uma ausência total de conhecimento e avaliação sobre os comportamentos sociais que vivenciamos. Não há neutralidade em matéria de comportamento humano, pois todos eles nos afetam pelo simples conhecimento de sua existência.


simples conhecimento de sua existência. Se nos perguntarem qual seria o comportamento social mais adequado para alguém no tocante à aceitação/inaceitação social sobre o comportamento sexual/erótico/amoroso dos outros, sugerimos que seja o de aceitação e tolerância. Propugnamos, portanto, por uma superação de posicionamentos morais em prol de uma posição ética, i.e., válida para todos. Assim, se alguém é ou está heterossexual ou homossexual ou bissexual, "let it be", "laissez-faire, laissez-passé". Se não agirmos com tolerância na diferença ou contraste com a nossa própria opção, como exigir a tolerância dos outros em relação à nossa, nos diversos contatos, grupos, sociedades e comunidades por que passarmos ou estivermos? Seria um contra-senso agir distintamente. A ética é a mesma para todas as diferenças, sejam elas morais ou religiosas. Houve um tempo em que a Igreja Católica acusava, julgava e executava com morte na fogueira inclusive por posições meramente intelectuais, a exemplo de Giordano Bruno (Galileu Galilei foi mais esperto). Os tempos mudaram; a forma de encarar os direitos do ser humano também mudaram. O respeito às opções sexuais deve estar posto em seara da garantia do direito à liberdade. É possível viver e conviver nas diferenças, pois a vida demonstra que é do seio das igualdades que as desigualdades são despertadas e vice-versa. Impor aos outros comportamento igual é, inclusive esteticamente, deplorável, ainda que dentro das hierarquias burocráticas. Sabemos que o funcionamento de certos organismos exige uniformidade comportamental, entretanto, a flexibilidade da vida social não pode ser aquartelada por muito tempo. Gays, lésbicas, travestis e transgêneros são comportamentos sociais aceitáveis desde sempre e não temos o direito de invadir a seara de liberdade dos outros, para reduzi-los ao capricho do nosso modo de ver como os seres devem se relacionar erótica, sexual e amorosamente. Sem ser estóico ou epicurista, um meio termo cairia bem: esto-epicurista, pois para o alcance da felicidade também precisamos de um certo regramento de ação. As distinções classificatórias e conceituais também fazem parte desse bojo, visando alargar as aceitações e relativizar as exigências, levando em conta tempo, lugar e circunstâncias, permeados pelo consenso ou concerto de vontades dos agentes ou atores envolvidos.

Conto 23, de 11/07/2000, terça-feira

A ética da moralidade João Protásio Farias Domingues de Vargas

Toda ética é moral, mas nem toda moral é ética. Uma moral pode ser individual, particular ou social, conforme seja assumida por uma pessoa única ou por duas ou mais integrantes de um determinado grupo, qualquer que seja o número de seus integrantes. Ética se


grupo, qualquer que seja o número de seus integrantes. Ética se distingue de moral, pois a característica principal da eticidade é a sua universalidade de aceitação e isso é possível de ser compreendido e entendido pela racionalidade. Preservar a vida do ser humano é um postulado ético; em qualquer lugar do mundo é possível garantir-se consenso sobre isso, até porque todos os homens são mortais. Diferentemente ocorre no tocante ao postulado de segregação racial, que pode ser um comportamento moral de um grupo de brancos em determinado local do planeta. A característica principal de qualquer finalidade moral ou ética é a garantia do bem, do que é bom, evitando-se o que é mal, o que é mau. O dualismo bem-mal, bom-mau é inevitável nesse tocante, pois está no cerne de qualquer valoração comportamental a a conseqüente ação de respeito pelo que é diferente. Pergunta-se: existe o bem, o mal, o bom e o mau em forma absoluta, o sumamente bom, por exemplo, na concretude da vida real, fora de um contexto de arbítrio, seja de que matiz for, religioso, científico, filosófico, etc? Se existe, ainda não foi conhecido pelo ser humano, para além das palavras que possam afirmá-lo tão-só à base de mecanismos racionais. Se existisse algo sumamente bom, bom para todos e para tudo, em todos os tempos e lugares, ainda assim, a afirmação classificatória seria feita por alguém, por um ser humano ou por um grupo de pessoas. Haveria consenso universal sobre isso? Como sabê-lo em sua integralidade? Como efetuar uma consulta desse tipo? Como verificar que não ficaram pessoas de fora dessa votação. Antes disso, ainda, o consenso sobre o sumamente bom ou mau, sumamente bem ou mal, ainda assim estaria posto historicamente em uma determinada conjuntura. Como se poderia saber que as gerações seguintes, eternamente, pensariam da mesma forma, sem alguma revisão? Não há como sabê-lo. Está posto o desafio para aqueles que pensam sabê-lo, bem como para a aferição de suas provas fáticas e racionais. E, mais uma vez, o consenso universal seria uma necessidade confirmatória. Uma petição de princípio estaria estabelecido. Portanto, é impossível racionalmente se encontrar o sumamente bom no concerto de vontades e sem a historicidade típica de qualquer evento humano. Seria arbitrário; mais, seria totalitário e, logo, injusto. O absoluto não pode prescindir do relativo e vice-versa. Só o ideal pode ser absoluto; o real está preso à racionalidade do relativo, das relações, das ligações, dos liames, dos laços, das conexões, das comparações. Todo absoluto é um imposto, é fruto do absolutismo de uma posição ou opção. Nem mesmo uma ética pode ser absoluta, pois o relativismo e a tolerância constituem valores ínsitos em suas próprias concepções. Poder-se-ia dizer que uma norma pode ser absoluta? Não. Ela pode ser imperativa em um certo lugar e num certo tempo, sujeitando-se às mudanças históricas. Portanto, relativa temporal e topologicamente. Absoluta nesse lugar por algum tempo, é possível? Também não, pois seria necessário verificar-se a sua efetiva aplicação em todos os casos possíveis. Se houvesse um só caso de inaplicação, o absoluto já estaria falseado. E os números absolutos da matemática, são reais? Não, são ideais. Uma moral absoluta seria uma impossibilidade lógica. A lógica é


Uma moral absoluta seria uma impossibilidade lógica. A lógica é absoluta? Não. Depende da lógica e de sua aplicação. A sua existência é absoluta? Não, pois é criação cultural. Há alguma coisa que não seja criação cultural? Há. As coisas da natureza. E suas leis são absolutas? Não, pois dependem das condições de observação para o seu conhecimento, a exemplo da famosa "c.n.t.p - condições normais de temperatura e pressão". E na Física, que estuda o movimento dos corpos, existe algo absoluto? Não. Também porque o absoluto precisa ser conhecido e todo conhecimento é relativo ao sujeito, ao objeto e às condições objetivas do próprio ato de conhecer, que variam no tempo e no espaço, em função dos instrumentos de aferição e verificação. Por que, então, haveria uma moral absoluta, ou mesmo uma ética absoluta? Não há razão alguma, mesmo que fosse para supô-la, já que a moral se restringe à regulação do comportamento humano em sociedade, sem coatividade imperativa; trata-se de uma compreensão pré-jurídica, em sua essência. Obrigar uma mulher a usar saias de certo tamanho ou maquilagem de certo tipo ou formato do corpo em certo manequim constitui um comportamento moral. É aceitável? Depende da vontade da mulher e do meio em que ela está inserida, do bojo social de onde verte tal regra moral. Classificá-la de indecente ou obscena constitui julgamento moral que, como todo ato de julgar, também está posto aos olhos morais dos outros. O fato por julgar e o julgamento feito constituem fatos e atos morais, respectivamente. São os outros os juízes dos nossos atos, assim como somos juízes dos atos dos outros. Julgar é normal; não julgar é impossível. Difere julgamento moral interno e julgamento moral externado. Se abdicamos de julgar moralmente um determinado ato ou fato moral, isso importa na sua expressão, entretanto, internamente, o julgamento sempre é feito, antes ou depois de qualquer emissão de vontade. O único ato moral que pode ser universalmente aceito é aquele que é estribado em uma concepção ética. A ética da moralidade só pode ser uma: o ser humano é livre para agir em conformidade com a sua própria consciência, ainda que a sua ação possa vir a se constituir em uma ilegalidade jurídica ou moral. A ética da moralidade é a ética da liberdade, pois não há que se falar em moral sem se ser livre para agir. Todos os padrões morais podem ser falseados, contrariados e contraditados, ainda que, por dever de ofício ou contrato, não possa fazê-lo.

Conto 24, de 12/07/2000, quarta-feira

A distância regulamentar João Protásio Farias Domingues de Vargas


Meu grande amigo Luisão, há mais de dez anos, me deu uma grande explicação sobre a questão da aproximação do sexo oposto na juventude e o entendimento da palavra "ficar". Dizia ele que existe, em qualquer congresso ou reunião grupal, que conte com a presença de todos os sexos, uma certa regra comportamental para evitar que alguém se aproxime sensualmente demais e para evitar que esse fato dificulte o acesso a outras pessoas que sejam do agrado para os mesmos interesses. Trata-se da "distância regulamentar". A formulação era a seguinte. Se você é uma liderança ( e essa é sempre e necessariamente política), no trato com o sexo diferente, precisa tomar uma certa distância física diante do âmbito visual dos demais diferida no tempo. Se ficar muito tempo próximo de uma mesma pessoa, as demais vão pensar que você está com ela. Isso significa "queimar o filme" com as outras, se vier a demonstrar interesse, mais tarde. Se ficar, independentemente do tempo, muito próximo fisicamente dela, o mesmo será pensado pelos demais. Tocar em qualquer parte do corpo, abraçar, rir com ela, trocar carícias, pegar da mão, etc., constituem sinais que demonstram que você já está com ela; portanto, está a ela amarrado. Se tentar ficar com outra mais tarde, esse fato notório gerará muitas dificuldades ou até impossibilitará qualquer intento. Portanto, o caminho correto é manter uma distância física e temporal, de modo que não dê a impressão de que você já está com alguém. É isso o que ele chamava de distância regulamentar. Rompida essa, mesmo que você não fique com ela, todos pensarão que você já está com alguém. Algumas vezes, a regra se impõe de tal maneira que você se vê obrigado a ficar com ela, pois já é expectativa social a união. Quando você quer ficar com alguém, o primeiro passo é descobrir qual é a distância regulamentar da pessoa, pois ela varia em cada um. Vai desde estar de corpo coladinho até, mais ou menos, dois metros. Mais do que isso é distância mesmo e está fora de qualquer regulamentação, para os termos de nossa discussão. Não haverá erro, se você chegar o mais próximo fisicamente que puder. Se estiver de corpo colado à pessoa escolhida, e conseguir se conservar assim, você romperá qualquer distância regulamentar. Portanto, milímetro e segundo são as duas variáveis necessárias; centímetro e minuto também valem; agora, metro e hora de sustentação na mesma posição indica fortemente que você já ficou ou terá muitas chances de ficar. Falamos da regra da aproximação ou do contato. Nas discotecas isso é muito comum e mais fácil de verificar. Você deve ficar muito perto da pessoa que deseja, do contrário, ficará só no desejo. Se serve a regra para aproximar, também vale para afastar. Mesmo que cada pessoa tenha a demarcação do seu próprio território de intimidade em um certo raio em torno de seu corpo, maior ou menor, invadir esse território é necessário para poder ficar. Se não conseguir legitimação para permanecer, cessando o esbulho, pacificando a posse territorial, você dançou, e não poderá ficar. A tese do amigo Luisão era muito interessante, posto que prática. A regulação da distância regulamentar é algo fático e muito intuitivo até. Ele deu ares de técnica para a experiência. Eu mesmo pude comprovar, naquela época, o quanto funcionava. A maioria age


pude comprovar, naquela época, o quanto funcionava. A maioria age inconscientemente no tocante a sua existência, no entanto, está sempre presente. É isso o que explica: você fica ou não fica dentro do espaço da distância regulamentar. Daí, ficar com determinada pessoa, dali em diante, pouco importando o tempo que terá o contato e o que mais dele poderá advir.

Conto 25, de 13/07/2000, quinta-feira

De escala a conexão em vôos domésticos João Protásio Farias Domingues de Vargas

Antes de embarcar no vôo brincava com o meu cliente sobre a segurança dos aviões, os problemas de bagagem e de lugares. Comentava que minha pequena experiência demonstrava que algumas companhias aéreas eram melhores equipadas nisso ou naquilo, enquanto algumas deixavam a desejar em quase tudo. Uma delas era famosa e periclitante em extraviar bagagens, superlotar, balançar e outras coisas mais. A Infraero havia dado o sinal e entramos na área de embarque o aeroporto, no sul do País. Logo veio a bebida e a comida, como sempre. Vôos domésticos e de classe econômica sempre apresentam qualidade menor do que os internacionais e de primeira classe, é óbvio. Entretanto, o que não é óbvio é que a qualidade seja a ponto de desconforto. Algumas empresas empregam agentes de bordo os mais esquisitos possíveis. Tem uma que emprega somente moças e bonitas, com vozes melodiosas, muito atentas e muito prestativas; outras, nem tanto. Já vi casos em que os agentes até destratam passageiros. Recentemente um jornal noticiou o caso de um rapaz que voava do Egito a Porto Alegre, com escala em Buenos Aires. Viajava com sua namorada japonesa. Eis que um certo capitão de bordo sentou ao lado da moça e o rapaz percebeu o comportamento inconveniente dele. Desajeitado, como sempre acontece em momentos do tipo, não deixou por pouco. Começou com os pedidos gentis e aprofundou no trato. Encurtando a história, o homem deu voz de prisão ao garoto. Como a espaçonave era argentina, ficou preso na capital vários dias. Um brasileiro preso por argentinos por causa de uma japonesa. Questão típica de DIP privado. A moça, pivô de tudo, causa ou razão, ficou livre. Foi ela quem intercedeu junto às autoridades para livrar o namorado. Não sei como se desenrolou a história, mas o exemplo demonstra a insegurança dos passageiros diante do arbítrio dos estrangeiros nos vôos internacionais. Viu, só? Da até prisão. Malas de quem vai a São Paulo param em Manaus; escalas que se transformam em verdadeiras conexões; os exemplos abundam. Quando voltávamos de viagem, o horário para embarque em Brasília era 18 horas. O vôo saiu com três horas e meia de atraso. A


Brasília era 18 horas. O vôo saiu com três horas e meia de atraso. A escala prevista para as 19 horas ocorreu perto da meia-noite. Sabe quanto tempo ficamos em regime de escala, pegando ônibus interno no aeroporto e tudo? Mais duas horas. Era madrugada alta quando chegamos em Porto Alegre. Mais de quarenta minutos foram necessários só para ter acesso à bagagem. Fazia um frio danado no sul. Tivemos, ao menos, os famosos pedidos de desculpas? Nem isso. Apenas o tradicional "Atenção, tripulação, preparar para o desembarque". A gente sempre pensa que desta vez não vai acontecer de novo, até porque estamos mais precavidos e acumulamos várias horas de reclamações às agências, às empresas e à Infraero. E, mesmo assim, acontece. É raro ocorrer diferente. Mas, exceções acontecem. Passageiros, boa viagem!

Conto 26, de 14/07/2000, sexta-feira

Pensar e agir João Protásio Farias Domingues de Vargas

Pensar e agir nem sempre são fáceis de conjugar. Na maioria das vezes, pensa-se muito antes de agir e, noutras, age-se muito sem pensar detidamente. Gramsci falava em concreto-pensado e concreto-real, para distinguir a concretude da reflexão e a concretude do agir na realidade externa. Pensiero i agere, dizem os italianos. Tratamos do que a política denomina de praxe, a conjugação intrínseca da conjugação desses dois verbos tão caros e tão banais da humanidade. Quando o ser está estressado ou deprimido, pensa mais do que age; um psicólogo ou, dependendo da gravidade, um psiquiatra pode resolver. Um ativista político, por ofício, tende a agir mais do que a pensar; no mais das vezes nem é ele quem pensa ou elabora a própria ação. Há, portanto, muita coisa em comum entre o deprê e o tarefista. Um pensa e não age; o outro, age, mas não pensa. O ideal, é de se pensar, é unificar de modo que o tarefista se deprima ou o depressivo vire tarefista. Qual seria o resultado? Um tarefista deprimido não conseguiria agir e ficaria só pensando? Pode ser, mas, pelo menos pensaria um pouco, assim como o deprimido agiria um pouco mais. O desemprego gera muitos deprimidos e tarefistas; o desatino faz muitas coisas estranhas com a vida da gente. Quem não esteve deprimido ou tarefando sem se dar conta? A inconsciência é um bálsamo na vida das pessoas. Sem ela tudo seria impossível com humanidade. Chaplin dizia que não sois máquinas; homens é que sois. Sem inconsciência viramos máquinas. O computador é prova viva disso em nossa cultura. Tem memória, mas não tem consciência; executa tarefas muito bem, melhor que os homens; raramente falha; se falha, o problema é de programa ou de


raramente falha; se falha, o problema é de programa ou de hardware. E nós, humanos, como ficamos quando nosso hardware falha? Um médico, na maioria das vezes, resolve. E, se a avaria ocorre na mente. Problema de software? Também um médico pode resolver. Assim como um técnico em informática tem os remédios santos para as máquinas inteligentes; os homens inteligentes também têm os seus próprios técnicos. Um técnico em software é um psiquiatra ou psicólogo, conforme resolva problemas de programação ou de simples uso ou compatibilidade. Por vezes alguns dos nossos arquivos são deletados ao acaso; o problema é encontrar a lixeira certa e reativá-lo. A máquina pensa e age; os homens também; assim como um ser opera máquinas, outros seres operam seres. Somos provocados ou acionados todo tempo pelo teclado ou mouse dos outros. A nossa cara é um verdadeiro monitor com câmera digital, microfone e caixas de som. Temos winchester, processador, placa de CD ROM e de discos flexíveis. A diferença é que temos muito mais do que isso. Algumas máquinas nos imitam em quase tudo, como ocorre com os robôs, com braços, pernas, mãos, dedos e tudo mais. Até imitam a presença de espírito, mas isso ainda é muito primitivo. Em filme, já tem até obras que imitam até sentimentos, como em Blade Runner, o Caçador de Andróides. Somos máquinas biológicas, mas não somente isso. A máquina inteligente é nosso constructo; não o inverso... por enquanto. Há reportagens que demonstram tendência oposta. Mas isso é muito complicado para falar aqui. O que nos interessa mesmo é o agir e o pensar conjugados. Máquinas ficam deprimidas e agem como tarefeiras que são. Nisso são muito parecidas. Alguns até dizem que os computadores se estressam pela intensidade do uso: trancam. O ser humano tranca muito. E trancam justamente na passagem do pensar para o agir ou do agir para o pensar. Falta de lítio nos neurônios? É possível. Como repor as reservas consumidas? Não sabemos o tempo que é necessário para isso, se é que é. O fato é que pensar e agir consecutivamente exige trejeito e, portanto, costume ou tradição. Pensar profissionalmente constitui já um agir, ainda que mental; executar profissionalmente é ato de reflexão, também, ainda que materializado, externalizado. É impossível um agir sem um conteúdo que não tenha sido pensado ou que nada tenha de pensamento. Ação é pensamento concretizado de alguma forma. A questão é quem pensa o conteúdo da ação e quem age na execução do pensamento formulado. Essa distinção assombra milenarmente o ser humano através da dicotomia teoria-prática. Esse binômio encerra verdades e falsidades. Não há teóricos e práticos como divisão social do trabalho ou distinção metodológica possível que os separe totalmente. Para a prática é necessário incorporar o conteúdo da teoria que se precisa concretizar; para a teoria é necessário incorporar os saberes advindos da prática. Dizer que alguém é teórico e que outro é um prático é, no mínimo, agir com impropriedade. Como dissemos, toda prática exige teoria e viceversa. A dicotomia é cerebrina e só na racionalidade abstrata se torna inteligível, pois na racionalidade concreta a práxis é o modo único do agir reflexivo. Pensamento e ação constituem culturas humanas


agir reflexivo. Pensamento e ação constituem culturas humanas indissociáveis.

Conto 27, de 15/07/2000, sábado

Carioca do interior João Protásio Farias Domingues de Vargas

Outro dia estava lembrando do filme "Conto de um Louco Amor", baseado na obra de Bukowsky. Agora já não sei ao certo se o certo era isso, ou "amor impossível". De qualquer sorte, era algo assim. Lá pelos primeiros anos da década de 80 é que isso aconteceu. Recém tinha chegado de um fatídico Congresso da UNE, em Piracicaba, em São Paulo. Tinha passado fome e muito calor; bebido e fumado muito, de tudo um pouco. Dormia e acordava, guiando-me no tempo pela intensidade de luz do sol que os buracos do ginásio filtravam. Aconteceu antes de entrar para o Exército. O retorno deu uma reviravolta na vida. Deixei o cabelo crescer, questionei as regras interna do partido, saí da semi clandestinidade política e fui viver muitas aventuras, principalmente as amorosas. Afinal, estava longe de casa e achava gozar toda a liberdade que o mundo possibilitava, dentro das limitações econômicas, é óbvio, da época. Poucas vezes um filme influenciou tanto a vida. As cenas foram muito fortes e de todo tipo. Um poeta bêbado que escrevia em pedaços de papel nos bares por onde andava; uma prostituta que pagava o poeta para gozar; uma moça muito jovem apaixonando um velho poeta, no final de tudo. Peguei os vícios. Voltei a escrever poemas, passei a beber cachaça, a freqüentar boemiamente os bares e a caçar variadamente na noite e nas ruas. Essa dura influência durou vários meses; transformou minha vida. Se não ganhei humanidade, pelo menos o modo pedante de intelectual do interior desapareceu. O apelido "carioca do interior", que um amigo me dedicou, num misto de deboche e de carinho, nunca foi esquecido. Era a ânsia de ser diferente; mas, para melhor. Dizendo melhor, estar diferente, assumir novas posturas gerais de vida. E as várias tentativas foram válidas, embora nem todas dessem os melhores frutos. Fiz muitos amigos e amigas; me apaixonei muitas vezes; deixei muito coração partido e também saí, várias vezes, machucado. O filme "Verdes Anos" era dessa época, mais ou menos. As experiências sexuais iniciais e as atividades políticas se misturavam num amálgama difícil de distinguir quando a paixão era pela pessoa ou pela causa. Como eram verdes aqueles anos! Lembrando agora, até dá saudade; não de tudo, mas da irreverência e do modo destemido de encarar tudo. E, de logo, vem à cabeça um trecho da legra da música na voz de Eliz Regina: "minha dor é perceber que, apesar de tudo o que fomos e fizermos, ainda somos os mesmos e


apesar de tudo o que fomos e fizermos, ainda somos os mesmos e nos parececemos com os nossos pais". Ainda sou o mesmo, apesar de tudo e me tornei mais parecido com os pais. A dor? Se ela existe? Existe. Mudou com o tempo. Agora, olhando para trás, vejo que sou o mesmo, mas um mesmo diferente, transformado, enriquecido pelas experiências do passado. Sem Bukowsky, - e sem Sartre, que esqueci de referir, eu teria sido muito diferente. Não consigo imaginar como seria, mas seria, bem, quem sabe, menos humano, menos gente. Eu fiz parte, ainda que tardiamente, pegando o rescaldo da contra-cultura. Keruac, Ginsberg, Burroughs estão implícitos em tudo isso, ao som dos Beatles, dos Rolling Stones e de Pink Floyd. Eram os nossos heróis; como todos, eles, para nós, não morrem nunca. Menos ainda, para um "carioca do interior" como fui, logo que cheguei na cidade grande. Grande época! Eu me sentia realmente parte de tudo e tudo me dizia respeito. Isso eu perdi um pouco; o resto, estou resgatando aos poucos.

Conto 28, de 16/07/2000, domingo

As despedidas nunca são iguais João Protásio Farias Domingues de Vargas

As despedidas nunca são iguais. Cada uma guarda um quê de singularidade e sabor que varia de momento a momento, lugar a lugar, pessoa a pessoa. No seu lugar, com a distância, se instala a saudade, essa amiga inseparável que toma o lugar de tudo que já não está ou não é. Uma vez escrevi uma carta a uma amiga uruguaia em que colocava o seguinte, em relevo: "os 158 quilômetros que nos separam são os mesmos que me levam até você". Hoje acho muito romântico, até piegas; mas, na época, tinha um modo muito realístico de ser; a expressão era sentida e o modo, apropriado. O seu uso rendeu alguns novos encontros, até pouco desastrosos, a meu ver. Maria Benitez era uma morena linda, de cabelos negros muito longos, olhos de amêndoa e, como eu, sonhava em ser médica. Um pouco mais velha, nos conhecemos no lado oeste da praça central de Artigas. Um grupo de moças tomava sol, numa manhã de primavera; eu e alguns amigos passeávamos pela cidade e fomos até elas. Nos receberam bem e logo nos enturmamos, numa conversa de trocas lingüísticas que misturava um portunhol permeado de expressões regionalistas do gaúcho. Não lembro mais da face das outras, mas a dela nunca me saiu da cabeça; fui até sua casa e bebemos vinho, perto da Caixa D'água, ao sul da cidade. Acho que namoramos, ou nem isso. Trocamos várias cartas, inclusive depois que fui para a Capital, mas nunca mais nos encontramos. A saudade, como dizia, se instala logo depois de qualquer partida, se a distância não constitui desejo.


a distância não constitui desejo. Quando partia o ônibus de Chunayo também houve algo semelhante. Sabia que não havia mais história possível entre nós; que aquela era a última despedida. Seus olhos muito azuis contrastavam com os cachos amarelos dos cabelos rodeando, sublimes, a face levemente rosada. Os lábios vermelhos e as mãos trêmulas, pela janela, acenavam, já partindo. Sentia um misto de prazer e dor, naquela tarde de verão. As nossas promessas não foram cumpridas. E lá se vão muitos e muitos anos. Naquele natal, soube de um telefonema, mas não foi respondido. Anos antes disso, na quadra de areia do pátio do Colégio, também presenciava outra despedida. Cardona, bonita como sempre, dizia que não era dela que eu gostava, mas da imagem que minha obsessão por ela criara; que nem a conhecia. Estava confuso; buscava argumentos que a convencessem do contrário, mas todos estavam ausentes. Mal balbuciava algumas palavras. Os seus olhos castanhos-esverdeados, sob a franja loira e face de pequenas sardas, com o corpo todo imerso naquele macacão de brim, faziam a dor da despedida aumentar mais ainda. Era de tardezinha e há muito tempo já não nos falávamos mais, além, é claro, através das incontáveis cartas que lhe enviei. O desespero amoroso, naquela época, já havia passado um pouco; fiquei mais aliviado com a conversa, mas sabia que era a última. O tempo de aproximação havia terminado e nada acontecera que renovasse o modo, o contorno, a possibilidade da possibilidade de ficarmos juntos. Não havia ônibus, nem trem, nem carro, nem avião, mas a distância parecia bem maior do que as que noticiamos acima. É indescritível a dor da despedia, quando ainda é possível ver e ouvir aqueles que partiram. Quando Zacarias e Rangel partiram, um antes do outro, e sem se conhecerem, as dores também foram distintas; distintos também foram os motivos dos lugares, mas ambos também partiram. Um foi para Brasília e o outro para Belo Horizonte. Grandes amigos; um na meninice, outro na juventude. Foram prá longe. O primeiro eu tive oportunidade de rever algumas vezes lá; o segundo, uma vez só, no limiar da década de 80 e, depois, contato só por telefone. As despedidas tiveram coisas em comum; ambas foram marcadas com muita antecedência, dando tempo para as preparações. Houve muita caminhada, muita conversa, muito conselho, muitas revelações e pedidos de desculpas. A amizade é linda e se revela forte nas partidas. Eu também parti, para eles, ainda que ficando. O que de mais nítido lembro eram as cavernas de fundo de quintal, regadas a velas e doces; bem como as caminhadas peripatéticas entre os canteiros do jardim do Centro Cultural, mediante o som das falas que discorriam sobre a filosofia clássica e os possíveis amores rodeantes. Grandes tempos que se foram! Antes de tudo isso, a despedida mais dolorosa foi quando morreu Vó-Gringa. O velório era triste e chorei muito. O relógio presenteado por papai consolou um pouco a minha dor, mas a saudade abriu um vão n'alma que até hoje carece de completamento. Na sala da casa, na capela do hospital e, por fim, no cemitério, nos despedimos muitas vezes, aos prantos, numa partida em que, como as dos amigos e dos amores, eu fiquei. A saudade também tem um quê de pranto silencioso; nem as lágrimas soluçam tanto nessas horas, e nas que vêm depois.


nas que vêm depois. É, toda partida é diferente e, no entanto, todas iguais. Tudo pode variar, exceto o nada, o vazio, a ausência que se constata ali, assumindo o lugar da presença, e vai nos acompanhando em todas as horas.

Conto 29, de 17/07/2000, segunda-feira

Telefone móvel João Protásio Farias Domingues de Vargas

O telefone é útil porque aproxima as pessoas. O mundo moderno é impensável sem ele; o celular, mais ainda. Sem rádio, TV e telefone, o mundo moderno não seria comunicacional como é; somado a isso, as mídias de contato como o ICQ, o e-mail e as salas de bate papo na internet, completam o ciclo dos meios de contato imediato atuais. De todos os tipos, o telefone móvel, para além da antiga rádio-chamada, é incomparável. Fala-se agora em telefone com transmissão de imagens simultâneas; fax-móvel já há, bem como e-mail móvel é possível. Agora, o telefone móvel também gera muitos inconvenientes. Aliás, todas as facilidades para uns geram, também, por vezes, inseguranças, medo e barreiras. Muita comunicação descomunica. Lembro agora do filme "Denise está chamando", no qual as pessoas convivem e trocam emoções sem nunca se conhecerem pessoalmente; quando tentam, o desencontro é o que acontece; não se reconhecem em seus corpos físicos. Em muitos lugares, um telefone toca e todos pensam que é o seu, levando a mão à cintura, ao bolso, à bolsa ou à maleta. Conversa-se e corta o papo o telefone, como criança, reclamando atenção. Sem um afago, não pára de berrar. Alguns, precavidos, tremem ou bipam, dando sinal de chamada. Tem até jeito com entonação de músicas, de variados tipos; algumas elegantes; outras, até ridículas, em certas ocasiões. É interruptivo de qualquer diálogo, dando azo a outros diálogos que, obrigatoriamente, passam a ser compartilhados pelo ouvido. Alguns, por gentileza ou sutileza, tomam distância para falar ou atender. Gera um certo quê de desconforto para qualquer um. Engraçada é a vontade de ligar quando não dá; o número no monitor e o dedo no send, sem poder fazê-lo. Da mesma forma ocorre quando é necessária a tecla off diante de chamada inoportuna. A pressa faz até, por vezes, desligar o aparelho. Do outro lado, a voz de uma gravação: "o telefone está fora da área de cobertura ou temporariamente desligado". Sabendo-se que a pessoa está ali, isso indiguina e muito. Afinal, não quer atender. É como negar a fala estando-se tèti-a-tèti. O que fazer? Nada. Esperar momento mais oportuno. O que dizer, então, dos casos em que se ouve a pessoa e, para não dizer que não se quer falar com ela, diz-se, repetidamente:


não dizer que não se quer falar com ela, diz-se, repetidamente: "Alô!Alô!Alô? Não estou escutando nada. Alô! Não ouço nada. Vou desligar." Nunca se sabe se é real ou é desculpa. O fato é que a comunicação não se completa. Quando fazemos isso, parece-nos até um bem; mas, quando somos a vítima, a impressão é péssima. Somos todos vítimas do inoportuno, quando ligamos; nunca se sabe o momento acertado para ligar. É o acaso que dita; se a gentileza está presente, e os serviços funcionam bem, a alegria do encontro sempre é carregada de júbilo; noutros momentos, o fel encobre a atmosfera inteira. O trote por telefone se tornou algo banal. Afora os atrozes, com imitação de voz e tudo, que geram muita confusão, há outros, menos piores.Também ,nunca se sabe se houve engano quando alguém pede por alguém desconhecido no seu número. Pode ser apenas para se certificar da voz e da presença; pode ser, até, mais do que isso, uma forma de controle inoportuno, como os pais fazem com suas crianças, querendo dizer, sem dizer expressamente: "Vocês estão aí? Tá tudo bem?". Adultos também fazem isso, me relataram alguns. Aproximar vozes não é algo fácil e custa muito caro ouvir sem estar perto. Os preços, sempre altos e imprevisíveis, muitas vezes não compensam o uso. Some-se a isso as ligações para as caixas digitais de correspondência e secretárias eletrônicas móveis, que recebem até ligações a cobrar, sem autorização! Por telefone se iniciam e se terminam encontros; negocia-se, eleva-se e rebaixa-se posições, inclusive até se demite gente, inclusive nos altos escalões do governo federal. Foi isso que vimos nesse ano, com um ministro ou secretário. Portanto, traz alegrias e tristezas com muito maior velocidade. Telefone não é tudo, mas sem ele, pouca coisa fica viável sem levar vários dias para se obter respostas. A mobilidade da voz e o seu condicionamento em gravações salvam e destroem vidas inteiras; o grampo está aí para demonstrar isso. A safadeza e o delinqüe andam soltas quando as regras possuem braços curtos e frágeis. Por telefone se é refém de muitos e nunca se sabe o que farão com o que interceptam. Um amigo, hoje aposentado, não fala por telefone celular; disse que já viu coisas que até Deus duvida. E ele tem razão. A milhares de quilômetros, nesse momento, pode haver um par de ouvidos gravando a sua voz e guardando a sua mensagem para fazer não sei o quê. Isso me lembra o "Big Brother" que o Orwell imprimiu no "1984"; antes, também mas doutro modo, em "A revolução dos bichos". Privacidade, diante de tudo isso; a história não aponta para o seu aumento ou resguardo seguro; maior facilidade de comunicação, maior capacidade de desinformação. Segurança, o que é isso? Tem lugar aqui? Me responda, se souber como fazê-la.

Conto 30, de 18/07/2000, terça-feira


Conto 30, de 18/07/2000, terça-feira

Facilidade e complicação João Protásio Farias Domingues de Vargas

"Debaixo dos caracóis/ dos teus cabelos, uma história prá contar/ de um mundo tão distante". Esse trecho de uma música antiga de Roberto Carlos serve bem para ilustrar uma coisa: o segredo. Nunca soube o que queria dizer ao certo. Interpretava assim. Corrijam-me, se estiver equivocado. Uma moça bonita de cabelos encaracolados disposta a contar uma história sobre um lugar diferente. Outra: debaixo dos cabelos encaracolados da moça havia uma história a ser contada sobre um mundo muito diferente. De novo, com outro enfoque: Ele sabe que debaixo dos cabelos encaracolados da moça está uma história muito diferente que precisa ser contada. Última tentativa: Havia sob os cabelos cacheados da moça uma história antiga que ainda não fora contada. De qualquer modo, cabelos, história e mundo estão interligados num enredo só. A letra mostra que havia um segredo sob os caracóis dos cabelos da moça. O que há abaixo dos cabelos? Pescoço e ombros, peito e cintura, em suma, o corpo. Uma história que precisava ser contada, pois é "prá contar", conota precisamente o que não está dito em seu conteúdo. Os caracóis materializam o lugar onde a história se realizou. Mas, um mundo tão distante pode ser muitas coisas, uma delas é o fato de que algo já aconteceu, que é passado, está distante. Pode ser que o poema demonstra a saudade daquilo que houve e se dissipou no tempo, relembrado com a visualização da imagem dos cabelos. A simplicidade dos versos envoltos no romantismo da colocação inspiram a imaginação interpretativa, para além de sua literalidade. A música tornou os caracóis dos cabelos um símbolo e, ao mesmo tempo, um ícone histórico em uma mesma semiose de expressão. Peirce diria que, na tríade semiótica, o lugar e a coisa expressos são, num todo único, em relação ao objeto, ícone, um índice e um símbolo, pois expressa uma imagem que indicia historicidade e simboliza um momento da vida. Meus pais e eu, quando pequeno, cantávamos essa canção romântica, sem precisar de Charles para entendê-la. Por que agora preciso dele ou de Santaella para tanto? Veja como são as coisas, né?? Agente põe essas teorias na cabeça, por acaso, e depois não consegue se livrar delas com facilidade. Já não consigo pensar a interpretação sem essas categorias abstratas. Nem a interpretação e a superinterpretação do Eco dão conta disso, sem levar em conta o mesmo meio instrumental. Será que o cantor não queria dizer nada mais do que o que realmente disse, que havia um passado comum entre ele e a pessoa que ostentava os cabelos encaracolados? Como complicamos as coisas! Isso lembra um antigo professor de Física, no secundário, o Rodynei, que costumava dizer, enquanto explicava estequiometria: por que facilitar, se podemos complicar!


Conto 31, de 19/07/2000, quarta-feira

Intuições que valem João Protásio Farias Domingues de Vargas

A intuição é algo muito interessante. Alguns falam em intuição sensível e em intuição intelectual, para distinguir aquela que é dotada de racionalidade ou não, um mero pressentimento, o que é mais comum. Diz-se: Hum... Não estou gostando disso! Algo não me cheira bem! Tratam-se de presságios, de um sentimentos prévios, de idéias confusas que vêm à mente em forma complexa, disforme e instantânea sobre alguma coisa; às vezes o que vem é uma imagem inteira, expressando uma cena verossímil do que pode acontecer. Se estamos pesquisando sobre alguma coisa há algum tempo e precisamos unir pontas, como que partes de um quebra-cabeças que dê um preciso sentido para coisas desconectadas, mas afins, podemos dizer, com o alcance final, com Blaise Pascal: Eureka! Eureka! A resposta vem intuitivamente e se revela inteira, conectando tudo em um todo cheio de sentido. A intuição intelectual é muito comum no trabalho investigativo. Falo de investigação no genérico, pois a atividade policial ou detectivista implica no uso constante dos dois tipos, pois a sobrevivência do corpo depende muito da agilidade da mente dos agentes. Algumas pessoas, por se valerem tanto da intuição sensível, sensorial ou dos sentidos, se desenvolvem mais nesse sentido. Algumas aprecem até ser pura intuição! Têm faro para as coisas, como os animais. Os contornos vêm cheios de explicações e, algumas, até alcançam quase tudo sobre as coisas com esses meios, sem muita reflexão. As cartomantes, as frenologistas, as quiromantes, as lançadoras de búzios, as jogadoras de tarô e as astrólogas, bem como todos os tipos de bruxarias, no bom sentido da expressão, dão prova do uso corrente da intuição auxiliada por poucos índices ou pistas. O resto é complementado pela intuição imaginativa. O gozado de tudo isso é que, para o bem ou para o mal, muitas acertam em muita coisa. Uso o feminino plural por mera causalidade, pois o masculino também se adequa ao uso. Os sonhos, já lembrando a obra de Freud sobre isso, também encerram ou podem ser interpretadas como carregadas de intuições sensíveis. É o inconsciente dialogando com os colchetes ou grilhões do ego. É sempre um ícone que detona a intuição sensível, fazendo aflorar uma hipótese interpretativa. A cor da roupa, a forma do desenho posto, um traço do rosto de alguém, um tom de voz, um ruído qualquer, um modo de dispor o corpo, dentre tantas outras pistas, influem na mente de quem mantém contato, deflagrando na mente, uma reflexão inconsciente que vem depois, em bloco, sobre a consciência, arrasando o espírito em uma certa direção interpretativa. - Mais um copo? - pergunta o rapaz. - Por favor, sirva mais - responde ao garçom. - A noite está linda e parece que não vai mais chover. Tem até estrelas apontando,


e parece que não vai mais chover. Tem até estrelas apontando, tímidas, no céu. Põe a mão na jaqueta preta e tira um maço de cigarro. Lasca um fósforo e põe-se a fumar, reflexivamente, baforando forte. - Que intuição! – pensa, observando a moça de pernas cruzada, na mesa da frente, a poucos metros de distância.

Conto 32, de 20/07/2000, quinta-feira

Jacaré e Ratinha nos milhos atrás da porta João Protásio Farias Domingues de Vargas

Quando era pequeno, ainda que por pouco tempo, havia a prática escolar de pôr os alunos de castigo atrás da porta, de joelhos em grãos de milho. Naquela época já haviam abolido a chibata e a vara de marmelo. Os mais velhos diziam que tinham pego esses momentos rudes da vida educacional brasileira, um verdadeiro atraso pedagógico. Nunca consegui esquecer da primeira vez em que fui para atrás da porta. Era nos primeiros dias do primário. Não sei ao certo o que fiz, mas o castigo veio logo e implacável. Quando me pus de joelhos, para minha surpresa e distração, não estava sozinho. Havia ali uma meninha muito branca, de face e cabelos, já com os joelhos cansados. Era a Ratinha, como a chamávamos. Nunca tinha notado com tanta nitidez o seu rosto com aqueles grandes olhos castanhos e diadema vermelha. O face estava rosada e tinha um modo triste de quem quase choramingava, calando o pranto. Não havia tempo para o castigo acabar. Dependia da vontade da professora. Grãos de milhos atrás da porta!! Que jeito estúpido de ensinar envergonhando os outros, todos crianças; eu tinha cinco anos de idade. Ratinha e eu ficamos amigos depois dessa apresentação tão íntima na largada da vida escolar. Seu nome era Eliane. Fomos colegas durante cindo anos. Morava em uma casinha bonita, na beira dos trilhos, no final da minha rua, quase na boca da Vila da Lata. Depois, ainda muito pequenos, ela foi minha vizinha e até gostei da Peçonha, sua irmã. A Ratinha se chamava Carlota; hoje acho bonito o nome, ainda que diferente; como o meu, se prestava para muitos deboches e adulterações. Jacaré penteado não era lá grande coisa, mas, pelo exagero das expressões, " Jacaré e Ratinha nos milhos atrás da porta" dava até um início de conto infantil que nunca foi escrito. O que faziam os adultos com nossas crianças a pretexto de ensinar!!! Muita gente se identificou e fez amizade assim, nos milhos, no silêncio da humilhação, de joelhos, como se rezassem, desatinados, para que a hora de voltar à casa se abreviasse, vindo logo em nossa direção.


Conto 33, de 21/07/2000, sexta-feira

Sono e sonho João Protásio Farias Domingues de Vargas

Enquanto o sono não vem, na cama, muitas vezes lemos, pois, se pensar, pode ser que não venha mesmo. Contar carneirinhos funciona muito pouco. Fazer-se de conta que se está dormindo funciona mais. Uma página, duas, três, dez, se chegar a vinte, melhor é levantar e caminhar um pouco ou ligar o computador e navegar na internet; em suma, tornar útil o tempo. Ficar na cama acordado, tentando dormir, por mais do que quinze minutos, é alimentar insônia. Tem que se partir prá outra. Fazer algo. Um chá quente, ajuda, diz muita gente experiente. Outras, um doce ou um chá gelado; um copo de suco ou de refrigerante; um pouco de leite quente, aconselham alguns. No inverno, muita coberta; no verão, tudo aberto. Seja como for, sem sono não se dorme, a menos que se tenha técnicas. Jorge, um conhecido, dizia ter um santo remédio: uma dose de Whisky ou de conhaque de gengibre ou maçã. Já experimentei tudo isso, não para dormir, mas como ritual antes de dormir. Particularmente, poucas vezes tive insônia. Querer dormir, ter sono e não conseguir é o que caracteriza a insônia. Se você dormiu até às duas da tarde, às onze da noite não conseguirá dormir, a menos que esteja doente. Isso não é insônia; é falta de sono. Só tem insônia quem precisa dormir e não consegue. Alguns até rezam para dormir; outros oram de algum modo. Há muitas fórmulas. A melhor delas é acordar muito cedo todos os dias e dormir quase sempre no mesmo horário. O sono vem que é uma maravilha! É deitar e dormir; não se percebe nem os lençóis. O sono vem bonito e com ele aquela miríade de sonhos. Você já sonhou que estava dormindo e que nesse sono teve um sonho? Falo do metasonho: o sonho em que sonha que se está sonhando. É interessante o fenômeno. E já sonhou que estava acordando, que levantava, tomava banho, vestia-se, tomava café e saía para o trabalho, acordando algumas horas depois, de sobressalto, tarde da manhã? Comigo já aconteceu algumas vezes! E que estava em um coletivo urbano, louco de vontade de urinar, desesperado mesmo e, sem poder agüentar, desce em qualquer parada, trombalhando, já arqueado para a frente, encontra uma curva, um canto qualquer e esvazia tudo, num prazer de alívio delirante que o faz acordar sentindo aquele calor escorregando no corpo e nas cobertas? Quando eu era pequeno, aconteceu muitas vezes! Até apanhei por causa disso, sem muita compreensão para as explicações que dava. Bom, agora chega de falar sobre sono e sonho. Vou voltar para a cama e tentar dormir de novo. Acho que agora eu consigo.


cama e tentar dormir de novo. Acho que agora eu consigo.

Conto 34, de 22/07/2000, sábado

Madrugar é preciso João Protásio Farias Domingues de Vargas

A preguiça para levantar da cama após acordar é mais comum do que se pensa. Acordar cedo quase sempre é uma violência se não se tem costume de madrugar. Para alguns, dez horas é madrugada; algumas vezes, acordar ao meio-dia é madrugar, ainda. Há o ditado popular que diz Deus ajuda quem cedo madruga. Com certeza foi dito por algum madrugador para se justificar. Há um truque corriqueiro para se conseguir levantar sem preguiça: acordar e levantar de golpe, sem rodeios, saltar das cobertas e da cama, de imediato. Se parar para pensar na agenda, vai ser preciso reacertar o relógio para garantir mais alguns minutos. Está feita a complicação. Vai acordar sonolento e azedo. O dia começa péssimo! O relógio pode despertar de dez em dez minutos; se assumir essa prática, poderá dormir a manhã inteira e acordará com sono. Doze horas de sono serão insuficientes! Acordar é uma violência, se a vida não está boa. Vale uma boa fuga o sono. Estar preguiçoso é estar descansado. Cansa-se de dormir; vale dizer, dormir de mais dá sono. Muita gente faz sonoterapia como forma de aliviar a depressão. Acho que só aumenta, mas há quem sustente o oposto. Acordar é um alívio, se a vida está a sua espera lá fora. Como é bom acordar e levantar cantando, sem pressa, tomar um banho, fazer um chimarrão e saboreá-lo enquanto lê as notícias do dia, no jornal ou na internet! Prefiro ver o dia nascer; as primeiras barras do dia sempre me enchem de esperanças! Mesmo com sono, - e logo ele passa, com a distração das coisas! -, acordar muito cedo sempre me fez bem. Pena que nem sempre o consiga. Por vezes a vida nos impõe dormir muito tarde. Dormir poucas horas também não faz muito bem ao corpo e ao espírito. Com sono, se perde muita coisa, a começar pelo humor e a fome. As pessoas ficam raivosas se não comem. É como agora, cinco horas da manhã. O dia ainda nem nasceu e... AINDA estou de pé! É!... Acho que vou para a cama. A preguiça? Eu disse acima, ou noutro lugar, ela só tem lugar se se está descansado. Epa! Escrevi e quase deixei a palavra "descansado" no texto. Ainda bem que me dei conta a tempo. É o sono. Vou dormir.


Conto 35, de 23/07/2000, domingo

Ói o trem João Protásio Farias Domingues de Vargas

Estou lembrando do trecho de uma música cantada pelo Raul Seixas. "O Trem das 7": "Ói, ói o trem/ vem o trem/ vem surgindo por detrás das montanhas azuis/ olha o trem/ vem trazendo de longe as cinzas do velho néon". O último trem do sertão. O céu não é mais o mesmo céu que você conheceu. Essa música lembra muito vários sonhos que tive na infância e adolescência sobre trens. Trazia muita angústia sonhar com eles. Em alguns, ouvia o seu apito de chegada e eu estava longe, numa estrada de chão, cheio de malas e sacolas, correndo para pegá-lo. Mesmo com o desespero pela possibilidade da perda, ouvia o segundo apito, o de partida; já estava perto da Estação, mas, quando chegava, ele já havia partido. Continuava correndo atrás dele, no meio dos trilhos, tropeçando nos moirões e derrubando a bagagem, voltando para pegá-las, e o trem acelerando mais, tomando maior distância. Parava no meio daquele longo paralelo, tomando ciência que o havia perdido. Outras vezes sonhava que conseguia pegar o trem, porém, adiantado na viagem, dava-me conta de que havia pego o trem errado; que estava indo para um lugar que não o do destino certo. Desatinado, também, descia em uma parada qualquer, na intenção de voltar e corrigir a rota. A situação piorava, pois descia em lugar quase deserto, sem ter onde ficar. O desespero aumentava com a sensação de que deveria ter ficado mesmo no trem errado. Quase sempre descia no mesmo lugar, fora de Estação. Aqui, descendo uma ladeira, na beira dos trilhos, ao lado de uma ponte, seguindo um trilha estreita rodeada de pés de azeitonas, havia algumas casas simples onde moravam pessoas com que travei amizade e visitei muitas vezes; algumas pessoas velhas que me deram muitos conselhos úteis; mas nunca encontrei uma mulher querida no local; até as crianças me queria bem. hoje já lembro muito pouco das faces delas e dos diálogos que entabulamos. Outras vezes sonhava que pegava o trem certo e ia ao destino certo, conversando alegremente com vários passageiros sobre diversos assuntos. No fim da viagem, descia, mas não conhecia nada do lugar onde queria ir. Tudo era estranho, mas tinha de ficar; não queria voltar. Os sonhos sobre trens eram recorrentes há alguns anos. Já faz muito tempo que eles se foram, e a agonia das viagens também. Lembro-me das greves dos ferroviários, na minha infância. Os trabalhadores tinham um dos mais fortes e organizados sindicatos brasileiros. Terminaram. No Estado, faz mais de dez anos que as estradas de ferro se tornaram inúteis como transporte urbano. Adorava viajar de Húngaro. Tinha bar e se podia viajar olhando a paisagem enquanto se tomava café ou uma boa cerveja. Era rápido e muito barato. Ia de Porto Alegre à fronteira com a Argentina em um mesmo dia. Com era bom aquele tempo!


um mesmo dia. Com era bom aquele tempo! Acho que ainda estou carregando muito peso para poder chegar a tempo na Estação. Não consigo me desfazer das tantas malas que carrego; todas me parecem tão importantes que não podem ser deixadas prá trás. Outras vezes acho que o problema é que saio muito tarde para chegar a tempo. Outras, que são as malas mesmo que me atrasam. Nunca consegui, naquela estrada empoeirada, deixar uma mala prá trás; perdi muitas vezes, desesperado, o trem, mas as malas sempre ficaram juntas. E me pergunto, hoje, quais são as malas que estou carregando para a Estação? Não consigo visualizar com clareza o que carrego nelas; só sei que são importantes. E se corresse mais, conseguiria? Quem sabe. Quem sabe sair cedo e conseguir ajuda poderia resolver o problema do primeiro episódio. Mas, o que dizer de quando, no segundo episódio, chego a tempo e pego o trem errado? As malas não foram problema, mas outro, de outra ordem. A pressa por partir faz errar o destino? Pode ser. Ainda assim possibilita fazer bons amigos, pelo que pude depreender. E, no terceiro episódio, em que pego o trem com todas as malas, acerto o destino, mas a chegada me demonstra toda a sua incerteza, o que dele dizer? Não sei. Malas podem ser pessoas ou grilhões do passado; a pressa pode ser a ânsia por mudança; estranheza da cidade, as incertezas do lugar de escolha. O trem da dúvida, é isso o que me parece ser, onde correr, embarcar e descer não traz toda a segurança desejada. Ói, ói, o trem, vem chegando por detrás das montanhas azuis; ói, o trem. O céu não é mais o céu que você conheceu. Ói, ói, o trem. O Raul estava certo. O trem e o céu não são mais os mesmos com o passar do tempo. Tenho saudades desses sonhos e do enigma que representaram durante tantos anos em minha vida.

Conto 36, de 24/07/2000, segunda-feira

Escrita e vocação João Protásio Farias Domingues de Vargas

A importância de escrever alguma coisa, para quem escreve sempre tem um caráter muito especial. Quando terminava o primeiro grau, já estava interessado no que estudaria depois do segundo grau, afinal, três anos já passavam muito rápido naquela época. Depois de alguma reflexão, decidira cursar medicina, razão pela qual escolhi o curso de Auxiliar de Oficial de Farmácia, o que havia de mais próximo da área; descartei o curso de Auxiliar de Nutrição e Dietética pelo fato de que somente havia pela tarde; queria aproveitar as curtas manhãs para estar em sala de aula. Uma estudante de Farmácia da Universidade de Santa Maria, é claro, incentivou-me muito. Lá pelo meio do ano do primeiro ano do segundo grau, a vocação


Lá pelo meio do ano do primeiro ano do segundo grau, a vocação progrediu alguns graus: estava inclinado a escolher uma profissão em que necessitasse escrever bastante. Um colega negro, alto, forte e debochado, de cabelos muito curtos, me perguntava se iria fazer Direito; sempre respondia que não, argumentando que era mais provável que fizesse Filosofia ou Letras. Minhas leituras nesse campo estavam deveras intensificadas. Era um aluno muito certinho, comedido, sensato e de muito boas notas; liderava a turma e incursionava na política estudantil, muito de leve. Decorava tudo à base dos questionários que preparava solitariamente, enquanto me exercitava nas artes marciais; o método havia sido descoberto há pouco mais de ano e meio, tentando recuperar conceitos, na sétima série; instinto de sobrevivência. Já no início do segundo ano do segundo grau a história deu mais um passo nos seus graus vocacionais. Abandonei o método da decoreba e prol de um que possibilitasse um entendimento menos violento para a memória e o tempo de dedicação. Resultado: as notas baixaram vertiginosamente; intensifiquei as disputas política, mas não desisti da velha idéia - agora já antiga - de ser médico. Continuei a ginástica, as competições e o acúmulo de medalhas, bem como o tempo dedicado à biblioteca do Centro Cultural. É dessa época que, mais ou menos, que começo a incursionar no mundo da literatura. Passei a escrever poemas livres tendo por objeto o desejo e o amor dedicado à mulher amada; como não havia nenhuma concreta e realizada, a imaginação deu seu recado à altura. Inventei duas mulheres e seus nomes, sem me basear em pessoa alguma: Magne Agrinski e Márcia Lindenberg. A primeira era minha fiel companheira de discussões filosóficas e religiosas; a segunda, objeto de minha dedicação romântico-amorosa. Escrevia poemas efusivamente e publicava no Programa "Clube do Ouvinte", da única emissora de Rádio local. O locutor lia todos os escritos com um fundo musical, modulando a voz com um efeito que me parecia esplêndido. Como todos os poemas eram apócrifos, mas dedicados, o radialista apelidou o autor de "Anônimo". Este ganhou muitas dedicatórias de garotas apaixonadas e até prêmios; elogios eram constantes e efusivos. Ocorre que o programa ira ao ar às 11 horas da noite, horário em que estava quase sempre dormindo; nunca escutava nada. Muitos meses depois sobe que era assim como relato agora. E soube por acaso. Comecei a me aproximar da irmã de um grande amigo; não gostava dela e já estávamos mais da metade do segundo semestre do ano. Numa conversa informal de fundo de quintal, o papo tocou o tema poesia e aí soube do mito que havia do "Anônimo apaixonado". No momento, não dei muita importância para o fato, mas, depois de alguns dias, passei a ter interesse pela famosa figura desconhecida. Não sabia que ele era eu próprio. Afinal, o método de escrita era muito simples e não sabia o que faziam daquela quantidade de escritos que entregava todos os dias no guichê da emissora. Depois que saía da biblioteca, atravessava a rua e ia até à portaria da Rádio. Sempre davam papel e caneta. Ali, de pé, escrevia algumas linhas em forma de versos e entregava à recepcionista, sem título e sem assinatura. Dezenas de pessoas faziam isso, todos os dias. No meu horário de chegada e saída, nunca vi ninguém em situação similar. A ingenuidade sempre


nunca vi ninguém em situação similar. A ingenuidade sempre aparenta coragem; as crianças sabem muito bem disso, mesmo sem sabê-lo. Num próximo encontro, resolvi fazer um teste. Pedi à amiga que me falasse um pouco dos poemas lidos desse tal de Anônimo. O conteúdo e a forma apontavam para o estilo que demonstrava nos meus escritos. Sem ter certeza, resolvi, a partir de então, efetuar cópia dos poemas. No encontro seguinte, a moça confirmou minha suspeita; era eu mesmo o cara. Fiquei muito contente e, como ela o admirava muito, desejei desfrutar pessoalmente do prestígio que eu mesmo possuía secretamente. Passei, então, a construir a prova de que o jovem poeta festejado era eu mesmo. Comprei um caderno de capa dura e passei a transcrever um a um dos poemas de que dispunha de cópias. Àquela altura, reunindo um a um, deu quase duzentos. Aos primeiros 100, dei um nome: "O novo amor". O segundo caderno, reunindo mais 100, dei outro nome. Fui fazendo assim, de cem em cem, mês a mês. Um dia, sentados à sombra de uma árvore copada, espinhenta e muito alta, contei-lhe que o poeta anônimo da Rádio era eu. A moça deu uma gargalhada e disse: - Sério?! Tu não tens jeito de poeta. Tens como provar isso? Me fala sobre algum dos poemas. Estava preparado e há algum tempo havia passado a dormir passado das 11 horas, só para ouvir o tal programa. Resolvi não mostrar o que já estava feito; propus compor um poema para ela; dei o tema e o desfecho. Não deu outra. No dia seguinte, ansiosa, ela veio me falar e contar que estava convencida de que o Poeta Anônimo, o famoso do Clube do Ouvinte, era o seu amigo de diárias e longas conversas. Seus olhos brilhavam e estava, ao meu ver, mais bonita; roupa nova e tudo. Dizia que precisávamos comemorar e me revelar ao grande público. Não faria isso, mas não a decepcionei de início. Fui até o locutor e pedi cópia de todos os poemas que havia escrito. A alegria do radialista era grande. Falou-me que havia reunido todos os papeizinhos escritos em uma caixa própria. Deixoume muito à vontade para a pesquisa, entretanto, não deixou eu levar os meus recortes para casa. Naquela época não havia fotocópia com facilidade. Escolhi vários e fui copiando um a um até cansar; durante vários dias durou o resgate. Conforme acertado, continuei anônimo. Depois do primeiro beijo da irmã do amigo, passei a dedicá-los a ela, para seu regozijo e felicidade; tornou-se publicamente importante na cidade, mais do que eu, pois o Anônimo nunca me indicava como pessoa concreta. Era um eu que se expressava autônomo e independente de minhas relações cotidianas. A relação com a arte não era nova. Contou-me minha mãe, certa vez, que, quando criança muito pequena, eu era levado à mesma Rádio para cantar e declamar com minha linda voz. Era cantor e não sabia. Entretanto, lembro que participava do coral da escola, nos primeiros anos do primeiro grau; saí quando a voz engrossou. Portanto, a arte está comigo desde pequeno. Do canto à escrita; música e poesia, um boa combinação. Se houvesse instrumento e influência, quem sabe a carreta teria sido outra bem diferente, não é mesmo? Vários amigos e colegas de infância seguiram os passos da


mesmo? Vários amigos e colegas de infância seguiram os passos da música e do canto; eu, não. A técnica científica me fascinava por demais, naquele tempo, não sei por quê. Quem sabe não apresei a família para me pôr na escola antes do tempo visando aprender a escrever para materializar minhas próprias composições? Os documentos escritos mais antigos datam do primeiro ano do primário: cartas de amores a uma coleguinha de aula que nunca quis nada comigo. Minha desatenção era um desastre; sempre perdia as cartas, antes de entregá-las; sempre apareciam na mão de algum professor, vindo da Secretaria de escola. Os risos eram intensos e ficava muito confuso com tudo aquilo. Minha vida amorosa se tornou pública muito cedo. Eu amava publicamente sem a menor pista de correspondência. A solidão amorosa foi um caminho que durou muitos anos. Pelo menos era funcional; estar na sala de aula era sempre um imperativo categórico! Estava sempre ao lado das minhas paixões, desde muito cedo da manhã; e saída já desejando que o dia voasse e o novo acontecesse repetidamente, ano após ano. A sala de aula era o meu próprio ninho de amor. Cartas de amor, poesia declamada, poemas reunidos em cadernos, assim começou a minha vida pública e o desejo de ser escritor, coisa que até hoje não consegui realizar. Não me tornei literato e nem médico; nem filósofo, nem professor de educação física; nem farmacêutico e nem psicólogo. Vaguei por vários cursos superiores até encontrar um porto seguro; formei-me. E a escrita? Técnica, nada mais do que técnica; para o consumo profissional. A lógica interna dos conteúdos ocupou o lugar dos sentimentos postos nos primeiros anos de expressão. É verdade, os escritos sempre são mais importantes para quem os escreve. São registros e até, em parte, trechos de uma biografia parcializada, setorizada, episódica, de uma época preciosa. Servem de bengala à cegueira crescente da memória. O conto? Não, a tentativa agora foi a de Conto. Nem sei se isso consegui. Estava imbuído dos sentimentos da época. Como as paixões crescem fortes, quando alimentadas! Todo andar deixa seus rastros no tapete da vida! É isso.

Conto 37, de 25/07/2000, terça-feira

Garantindo o pôr-do-sol João Protásio Farias Domingues de Vargas

No Alegrete, o nascer do sol é mais importante do que o pôr-dosol. Em Porto Alegre, o oposto. Explicava a Maria, enquanto preparava o chimarrão naquela manhã, bem cedo, a razão disso; ela ouvia atentamente e fazia algumas intervenções. - Lá é tudo planície; plano, plano, plano, assim - dizia, fazendo


- Lá é tudo planície; plano, plano, plano, assim - dizia, fazendo um gesto horizontal com a mão, em frente ao peito. - Faz muito frio pela manhã, de modo que o nascer do sol representa sempre um bom começo; e, à tarde, um calor de rachar, de modo que o poente representa um grande alívio, que não inspira muita admiração, mas desejo de que se vá e logo. Continuou: - Aqui, na Cidade grande, o pôr-do-sol é deveras bonito. Lá é o nascer que é. Bem cedo, começam as barras do dia, turvas que vão se avermelhando aos poucos; vão esmaecendo até o dourado amarelado. Aos poucos, um pequeno ponto forte começa a surgir no horizonte, quente, que vai crescendo e crescendo, iluminando o dia. É o nascer do sol. - Ensinavam a admirar o nascer do sol, quando pequeno? - Sim. Era inevitável, pois se acordava antes do dia amanhecer, para as lides cotidianas; eu, para ir à escola. - Deveria ser muito bonito. - E era. No apartamento anterior em que morávamos, dois andares acima do atual, tínhamos frente para o Guaíba, ao norte. Agora, a vista privilegiada, como vemos aí, é para o oeste, onde o sol se põe. - A vista é muito bonita, apesar dos prédios - afirmava ela, não sem alguma convicção. - É, mas poderia ser melhor - redargüi, sem demora. - Só precisaríamos tirar o prédio do Edifício Coliseu, o da Procuradoria da República e todos aqueles lá, que estão antes da Usina do Gasômetro. Tarefa fácil, não acha?! - afirmei, debochadamente e com um leve sorriso sarcástico. - É isso! Vamos providenciar. Quando vai querer que derrube? Maria pensou um pouco, calculou e disse, resoluta: - Pode ser na semana que vem? - Por quê a demora - interroguei, sorrindo -, se podemos fazer antes? - Quando acha melhor? - Amanhã, pode ser? Maria pensou um outro tanto e responde, também decidida: - Pode. - Então vamos providenciar. Por qual queres que comece a derrubada? Sugiro o do Coliseu. Pode ser? - Pode. - Vamos começar por ele. Quer implosão ou explosão? A primeira suja menos a Cidade e protege melhor as pessoas. A explosão deixa cacos para todo o lado, espalhando entulhos por todos os cantos. Imagina as ruas entulhadas. Vai saltar pedaço até em Guaíba, do outro lado do Rio. - Implosão - disse. - Ótimo. Agora que vamos limpar a nossa vista e poder ver melhor o pôr-do-sol mais lindo do mundo, vamos imaginar o que fazer nas tardes, aqui dentro. Que tal chimarrão na Sala de TV? - Acho uma boa. Teremos por do sol todos os dias nas janelas. Posso lavar roupas com uma bela vista, e também cozinhar vendo o avermelhado das tardes. Isso seria muito bom! Refletindo um pouco, com a mão ao queixo, asseverou: - E, se, ao invés de derrubarmos os prédios, colocássemos o nosso prédio na beira do Rio, não seria melhor? - Faltaria a distância para admirar o Rio. Não veríamos as suas


- Faltaria a distância para admirar o Rio. Não veríamos as suas margens. Essa distância atual é muito boa. Votaria por vê-lo daqui. Acho muito melhor onde está. - É verdade. Continuemos com o nosso plano anterior. Quando o diálogo se encerrou, estava terminando o chimarrão. Havia cevado a erva na cuia, punha a primeira água quente e a bomba, ajeitando-a no canto esquerdo, junto ao topete verde. Abri a porta e fui em direção à Sala de Estudos, preparar a minuta de Resolução que apresentaria duas horas depois, na Faculdade. Enquanto ligava o computador, fiquei pensando naquela pequena viagem estética e de destruição. Quanta bobagem se diz logo que se acorda! Mesmo assim, valeu a conversa com Maria. Inspirou-me maior cuidado ao redigir o conteúdo sobre as montagens de estágio para os alunos.

Conto 38, de 26/07/2000, quarta-feira

Esquizofrenia Eufi y Eudi João Protásio Farias Domingues de Vargas

Sobre o amadurecimento das pessoas e a questão da responsabilidade pessoal. - O que é isso? - pergunto a mim mesmo, um tanto perplexo. - É claro que tenho a noção geral vinda do senso comum das duas questões, mas como delimitá-las com uma certa precisão, para além de suas meras colocações moralistas e, no mais das vezes, ofensivas? - reflito um pouco mais, interrogativamente. Enquanto penso isso, vem-me à cabeça a idéia de um diálogo comigo mesmo, num papo meio esquizofrênico, do tipo eu-dentro e eu-fora; EUD e EUF. Um é o consciente, - vamos dizer assim; o outro, o consciente no espelho, o alter, o inconsciente, o reflexo, com autonomia para além da imagem óptica que estamos habituados a ver. Para facilitar, vamos chamar Edi e Efi, os gêmeos nascidos sob o signo da esquizofrenia, da paranóia gerada pela obsessão psico-classificatória. Pensando bem, dá até para fazer uma peça, um diálogo, com um só ato e dezenas de cenas; muita fala e pouco cenário; quase nenhum cenário, até, é melhor; dá maior força dramática ao discurso; força a concentração. Vai dizer que nunca te aconteceu, leitor, de acordar um dia com os cornos virados? Um daqueles dias em que você não suporta o mundo e nem a sim mesmo. Não é como eu estou me sentindo agora, pois estou muito bem, obrigado. Mas, para nossa conversa, vale a pena simular que é o oposto. Falo da vontade que dá na gente se pagar as contas e se mandar embora; demitir e demitir-se de si, das coisas, do mundo, de tudo. Literalmente, despachar. Viajar sem rumo. Ir embora para qualquer lugar; vida nova; tudo


Viajar sem rumo. Ir embora para qualquer lugar; vida nova; tudo novo. Aí você - deve ter percebido que uso tanto o pronome pessoal reto tu como o você/ele, misturando as conjugações, inclusive os tempos; é assim mesmo, proposital (fechando o parêntese); aí você pega um louco pela rua, um desses que se encontra em qualquer esquina, e a pinta vem falando com sua gravata e pasta dentro do cérebro, com um papo careta do tipo amadurecimento e responsabilidade. O que você faz com uma criatura dessas? - Sei lá!! Caio fora logo. Dô disculpa; se dé tempo, vô saindo logo, meio à francesa, meio grosso, à americana memo; meio à brasileira, com jeitinho, do tipo: - Bá, cara, tô na pressa. Não leva a mal, figura. Foi bom. A gente se vê por aí. Tchauzinho". Que peça, né!? Saio aí, rindo, assim, com meus botões. Locura, meu! É isso aí, Bacana. Dô o fora rapidinho, meu. Caio da banda, na hora. Esse cara que fala girioso aí, não sou eu. Eu sou mais comportado. Eu sou o Edi; o cara da fala magra é o outro, o Efi. Sou eu que tá narrando a história que tu estás lendo, leitor amável. O outro é só personagem; mas, não se assuste se, de vez em quando, eu te confundir, levando a pensar que ele sou eu e que eu sou ele; é fácil distinguir. Basta pensar assim, com a seguinte pergunta: Qual é o menos certo dos dois? A resposta não vai apontar para mim, mas para o Outro, o Eufi; Eu sou o Eudi, já disse antes. Não sou magrinho, pô! Eu sou o cara certo, certo? Ademais, também uso uns termos lingüísticos mais acertados, linguagem mais aprimorada, sem violentar demais a Língua. Se o critério não funcionar, não faz mal, pois os dois são um só, mas distintamente, tanto lógica quanto faticamente. A existência é única mas, a manifestação... Ah, essa difere... pero no mucho!, como dizem os correntinos, no Sul. - O papo aqui é careta, tá sacando? Eu vô dá uma de dente podre! Vô caí das boca, meu!. Fui!!! Ah, vô avacalhá o mapa, tá sacando!? Dispois volto prá baia, numa boa, tá!? - Esse aí que se manifestou agora não sou éu. É o Outro, como disse. É o Eufi, girioso. Tenho a preocupação em me distinguir dele porque ele sempre queima o filme com qualquer um. Pavio curto, saca! Bá, tava quase flando como ele. Vou endireitar o verbo, senão, como me livro da carrocinha?! É barra! - Ei, Eudi, tu tá aí ainda?... - Não enche, meu! - Ah, cara, fala comigo. Tô na fossa. A mina me deu o ferro! Zarpô. Escafedeu. Não dexô rastro algum. Me ajuda, cara. - Não. - Tá cum medo do quê? Nunca te fiz mal, cara. Tu tá sempre aqui, comigo. Te levo no peito. Até te aturo, cara. Cai na real, vivente! Acha que é diferente só porque leu umas orelha de livro. Grande coisa. Não deu em nada a tuá trilha. Cai na real! Não si inxerga??? - ... (nada) - O gato comeu tuá lingua? - ... - Tem Complexo de Deus? - Do que é que estás falando, Eufi? Nem sabe o que fala! Fica quieto. Me deixa em paz. - Sei sim. É o cara que pensa que pode tudo; que tá acima de tudo; que é infalível. - Isso é efeito do Complexo de Inferioridade. Não fala do que não


- Isso é efeito do Complexo de Inferioridade. Não fala do que não sabe, que é feio. - Íii. Agora tá me corrigindo, né? Tá me regulando! Não gosto disso. Fico puto da cara com isso. Quando uma pinta age assim comigo, é pau na certa! Vô relevá só agora. - Tá metendo medo, agora? Virou macho, de uma hora prá outra? - Não isso, cara. Me deixa em paz. Estou na minha; não te fiz nada; prá que ficar aí, me ameaçando? O que é que tu queres? - Nada. Só conversar; como gente civilizada. - Então, não ameaça, senão eu caio fora. Eu estou dizendo!... - Tá bom... Ah, uma coisinha mais. Tu é complexado? - Viu!?!? Está começando de novo! - Tá bom! Parei! Agora, de vez! _ ... (silêncio total e de desprezo) - Qué qui tu tá lendo aí? Posso saber?... Compartilhar, numa boa. - Um livro, não está vendo? - Isso eu tô. Quero sabê sobre o qui é; qualé o papo, saca? - Sobre a importância da lua cheia na menstruação dos grilos, tá bom!? - Epa! Tá legal! Agora véiu contudo! Tá bufando! E, logo agora, que deixei o pano vermelho na baia da pinta! - Bá, cara, tu é bagual e grosso umas quantas vezes, né!? Educação é bom e eu gosto; prezo muito, quer saber. Agora cai fora e deixa eu ler o livro, que amanhã eu tenho que falar sobre ele no Grupo. - Que Grupo? - Não te interessa, Eufi! - Posso entrar nele? - Não. Teria que estudar uns quinze anos mais, sem rodar nem uma vez! - Bá! Tô cum medo! Tudo isso!? Deve tê gente cabeça nessa turma, né? Gente inteligente paca! É, eu sô burro mesmo. Quê fazê!? - Nada. Não dá. Vai passar vergonha e me enrolar mais do que já me enrola com os teus rolos. Fica fora dessa. Aliás, de todas! - Tô fora, meu! Fica aí com us carinha do tal grupelho. Eu vô é isquentá a melena noutras franjas, tá sacando? Vô curti um roque dá pesada cuá galera i dá uns tapa nu babado. Isso é qui é programa, maninho! Não éssa coisa de transá livrinho! Coisa de bixa, de fresquinho. Macho é cumo eu, ó, assim, cheio de tesão... sem lero-lero, sem deixa-disso, sem levá disaforo prá casa. - Estou percebendo bem a tua jogada. Não tem lugar para ti no coletivo em que eu estou embarcando. - Íiii. Fala direito, Bródi. Tá tudo certinho na fala; deixa disso! Tem que soltá o verbo, incurtando as palavra. Assim, ó: "Tô percebendo a jogada, meu. Não tem lugar prá ti nessa parada. Vai andando e péga a sorte!". É assim que se fala. Sem frescura de lingüísticas! - Desisto. Desisto! D-e-s-i-s-t-o! Desisto! - É isso aí! Depois sou eu que deixo as coisa de lado! Eu tentei. Bem que tentei. Não deu bola. Depois não pédi arrego, tá legal. Tô saindo de cena, meu irmão. Fica aí cu'as tua letrinha. Saravá, meu pai! - Aleleuia! Enfim, a sós.


- Só, meu! Mas, não demora... eu volto! Bye, bye. A julgar pelo comportamento dos dois, retomando nossa temática original, da primeira linha acima, podemos dizer que Eudi é o cara normal, maduro e pessoalmente responsável e que o Eufi, pelo contrário, é o cara anormal, imaturo e irresponsável. Bom, para responder a essa pergunta você terá que apresentar um critério racional e assumir uma posição política em um dos dois campos. Se estiver torcendo do lado do time da situação, o Eudi é o cara certo e o Eufi o errado. Agora, se estiver torcendo do lado do time da oposição, é o oposto o que ocorre. De que que lado você está? - E você? - deve estar perguntando a mim o leitor. - Eu? Bem... Eu estou aqui, do outro lado, olhando vocês sete: eu, eu-dentro, eu-fora e você, mais você-dentro e você-fora e, ainda, tudo isso junto. Não sei se consegui dar a resposta mais adequada ou esperada; mas, tenho certeza de que dei a resposta certa para as circunstâncias da pergunta. Todos nós estávamos aí e aqui, ao mesmo tempo e o tempo todo. Tinha se dado conta disso? Aposto que não. Precisa se conhecer melhor. Como falar em maturidade e responsabilidade se não consegue dialogar na frente de espelhos?

Conto 39, de 27/07/2000, quinta-feira

Dimensões físicas do amor João Protásio Farias Domingues de Vargas

Um casal conversava sobre um assunto muito delicado, debaixo de um pé de cinamomo, nos fundo da casa de interior. - Jandira, meu amor, eu te amo. Quantas vezes vou precisar dizer isso? - Quanto tu me amas? - Como assim? Não estou entendendo, amor. - De que tamanho? Um milímetro, um centímetro, um metro, um quilômetro, uma quadra de campo, uma sesmaria, do tamanho de um país ou de um ponto qualquer? - Ah, é isso! Bem... digamos... isso! Do tamanho do universo todo! - É grande demais. Vais me odiar logo-logo! Não dá. Tem que ser menos e mais realista. E quanto ao tempo? - Peguei a idéia! A eternidade toda. - Também não dá. Piora as coisas. Tem que se menos. Não lembra da máxima do Vinícius: "O amor é eterno enquanto dura". - É isso aí. Eterno e universal. - Impossível. Não devo ser eu essa pessoa. Tem outra por aí? - Só existe você, meu docinho de açúcar. Você sabe disso. Eu te amo do tamanho que disse. Só tenho olhos para você. Você é tudo para mim!


tudo para mim! - Deixa de frescura, Oscar. Fala como gente. É impossível amar assim. É doidice. Seja mais realista, está? - Vou tentar te amar menos. Mas,... como é que eu vou fazer isso? Como controlar o amor? Você sabe? - Não. Mas, tens que descobrir um jeito, um modo, uma maneira, já te disse! - Calma, amoreco! Eu entendi. Ah, encontrei a maneira. Vou dizer agora. Te prepara. - Diz, aí. - Eu não te amo mais. - Desde quando? - A partir de agora. - Contigo tem que ser oito ou oitenta. Não tem meio termo? - Amar ou não amar, eis a questã, já dizia o velho Guilherme. - Que Guilherme? - Ora, é mais conhecido como Willian Shakespeare. - Prá ti o amor é absoluto, pelo visto. - É isso, aí, mulher. Absoluto. - Para mim ele é relativo, efêmero, temporal, espacializado, singular, normativo, direcionado, intenso, interessado, erotizado e transdisciplinar. - Credo! Tudo isso? Que classificação, hein? Nunca tinha pensado assim. Quem te ensinou a pensar no amor assim, com tanta formalidade? Precisa tudo isso? - Precisa! É uma questão de precisão conceitual. Por exemplo, o meu amor por ti é tudo isso. - Credo, Jandira. Acho que isso não é amor. Pode ser qualquer coisa teórica, menos amor. Nunca vi alguém falar em amor assim, com tipos tão estranhos. - Não são tipos; são características. Quer ouvir a explicação sobre cada um dos termos? É só ter paciência. Tempo eu tenho de folga nesse momento. - Quero, mas não agora. Me dá um tempo. - Quanto? - Dois anos, para pensar. - Estás brincando! - Estou. Agora, vem cá. Senta aqui do meu lado e me dá um beijo. - Não. - Por quê? - Porque preciso de um século para me preparar para dar as tuas explicações. - Boba! - Trouxa! - Adeus! Não conseguiram manter o diálogo. Já escurecia, naquela época do ano, quando resolveram entrar, insatisfeito com a linha e conclusões chegadas com o acirrado diálogo.


Conto 40, de 28/07/2000, sexta-feira

Café no Centro João Protásio Farias Domingues de Vargas

O Café Aurora fica bem no centro de Porto Alegre, quase na Esquina Democrática. Este café não existe, na realidade, mas, como não temos nenhum compromisso com a verdade para com o leitor desta Conto, fica o local como sendo verídico. Agora, se você, dileto leitor, quiser que nós – e digo nós apenas por uma questão de modesta pluralidade -, falemos apenas de verdades fáticohistóricas, escolheu a Conto errada para ler. Afinal, quem dá as regras aqui, na dimensão que está atrás dessas frases que agora, nesse momento, são acariciadas, ou fritadas, pelos seus olhos, somos nós; está um mundo supra-verdadeiro, o nosso mundo, o mundo a irrealidade e da fantasia, porque não? Sentada, saboreava um expresso, cansada demais para o ‘nosso’ mundo de fantasias; deixava apenas que os dias corressem, ou melhor, escorressem por seus dedos. Por vezes sentia como se não houvesse nada mais para fazer, depois daquele expresso, então estendia...;tomava-o frio mesmo, quando as moedas eram insuficientes para uma segunda taça. Hoje, não; tinha remexido bolsos e achou a nota de um real que lhe proporcionaria mais uma xícara, mais dez minutos ali; menos dez minutos sem ter o que fazer ou prá onde ir: - Um outro expresso, por favor - sinalizou ao garçom. - É noventa centavos, né ?!? - Sim, senhora, ainda é. - As coisas andam pela hora da morte!... Dizia isso mais para entabular um diálogo do que propriamente porque pensasse assim; ouvira sua mãe repetir essa frase na infância, há muito, muito mesmo. Já passava dos quarenta. E essa reflexão, aí, logo acima, quer dizer o quê? Não tenho a menor idéia. Somos nós que falamos assim ou são as personagens que se interpõem diante dos dedos, se intrometem, no teclado? Não sei dizer. O café, a conversa com o garçom, o gênero no feminino. Cruzes! E agora, como fazer? Você tem alguma idéia? - Já sei. As moedas e o bolso. Captei a vossa mensagem, dileto Guru – dizia a personagem cômica do Chico, anos atrás. – E agora? Que fazer ? – perguntamos nós, parodiando Lênin, antes do outubro vermelho. - Vou falar de novo, pois faltou referir o expresso. – Garçom, que cara chato, nem olha prá cá! -, Garçom! Outro expresso! Ele veio sorridente dessa vez. - Outro expresso. Eu pago quanto? Já sei, o de sempre. Perdeu-se em seus pensamentos. Havia viajado tão intensamente que quase esquecera da amiga que a acompanhava aquela tarde. Engraçado isso, não? Amigos vêm e vão...;às vezes nos acompanham num trecho de vida, outras, passam correndo. Lembrava-se agora de um amigo de colégio. Tempos atrás, ouviu alguém dizer que alguém tinha dito que tinha escutado falar que ele


alguém dizer que alguém tinha dito que tinha escutado falar que ele havia morrido. Será? Sentiu-se triste repentinamente. É verdade que tivera alguns outros amigos e, ademais, aquele nem era tão especial, – pelo menos não lhe parecia naquelas circunstâncias. Por que, então aquele súbito mal estar pela idéia remota de que ele pudesse ter falecido, se ela mesma já desejara morrer uma meia dúzia de vezes. Chegou o café. Agora, só prá te confundir, incauto leitor, uma nova linha de diálogo. O nó que essas linhas devem estar dando na tua cabeça deve ser muito grande. Pouco nos importa daqui, na tranqüilidade do outro lado do muro das frases que entram na tua cabeça. Quer cair fora e procurar outra Conto? Tudo bem. Eu aceito; digo, nós aceitamos; estamos falando na terceira pessoa do plural, prá variar. Essa é a Segunda explicação que dou do mesmo tipo. Deves ter entendido, não é mesmo? Até porque não tenho como te impedir de continuar aqui ou não. Terás vantagens em permanecer, isso eu asseguro; só não sei de que tipo. Alguma vantagem vais ter. É isso. - Garçom!!! – quase gritou a palavra, na esperança de que pudesse ser atendido logo. - Sim, meu senhor. O que deseja? - O que é que aquelas duas senhoras, que estão sentadas na mesa ao lado, estão bebendo? - Café expresso, senhor! - Expresso?! Não acredito. Tem alguma coisa especial no café delas, já que bebem, falam e fumam com tanto gosto! - Nada além de café expresso, senhor – voltou a asseverar o empregado ao cliente indiscreto. - Então me traga um daqueles também, mas me sirva naquela mesa - disse o homem, levantando-se de onde estava e dirigindo-se à mesa de Nice e Beatriz. Ele era de meia idade, barba por fazer, cabelos desalinhados e uma barriga indecente que quase não cabia em sua camisa puída pelo tempo. - Com licença, eu as observava da outra mesa e de lá me pareceu que o melhor café do bar se toma nessa mesa – disse, enquanto puxava a cadeira e recebia o café. - Desculpe, mas eu lhe conheço de algum lugar ?- perguntou Beatriz, de súbito. Nice seguiu absorta em seus próprios pensamentos, sem quase perceber a presença daquele homem que agora tomava um grande gole do café quente. - De fato, o café fica muito melhor aqui ! - Eu acho que o senhor está nos confundindo, não é Nice ? - Ah, provavelmente – quase respondeu Nice, num simples aceno de cabeça. - Quanta indelicadeza minha não ter me apresentado. Eu sou Marcos. E vocês são Nice, a muda ...e a senhora ? - Eu? – interrogou. - É. A senhora mesmo. Por acaso estou falando sozinho? - A julgar pelo modo como nos aborda, acho que sim. Quem lhe convidou para sentar-se à nossa mesa? Não percebe que não é bem vindo. Estamos numa conversa privada, meu senhor. Se for um gentil cavalheiro, queira se retirar – disse, já estalando os dedos em pedido de socorro ao garçom ou ao homem que estava atrás do


pedido de socorro ao garçom ou ao homem que estava atrás do balcão, cuidando do caixa. - Algum problema, senhora – perguntou o caixa. - Sim. Esse cavalheiro está nos inoportunando. Faça-o voltar a sua mesa de origem, por favor. - Cavalheiro, queira votar à sua mesa. As senhoras estão se sentindo lesadas. Se não o fizer, terei de pedir que o senhor se retire do recinto. O homem deu uma olhada ao redor da sala, fixando os olhos nos demais clientes, percebendo os ares gerais de reprovação social. Levantou-se, pôs a mão no bolso da calça e dela tirou uma moeda, jogando-a sobre a mesa, num ar de desprezo e irritação. Deu dois passos, pegou o casaco, que descansara sobre a guarda da cadeira da mesa anterior, inclinou o corpo e ganhou a rua, sem nada dizer. - Credo, Nice! Que gente! Eu, hein!? Não se pode mais nem tomar um café em paz que esses malucos já vão se chegando. Tão pensando o que da vida? Afinal, não somos garotas de programa, somos? Nice não dizia nada. Afinal, era muda mesmo.

Conto 41, de 29/07/2000, sábado

Tática e Estratégia João Protásio Farias Domingues de Vargas

Como as pessoas confundem estratégia e tática, nas conversas de seu cotidiano. Um exemplo nada comum!?! - Bá, Marina, esse lance é o mais estratégico prá mim! Outras, dizem assim, sem se preocupar muito com a situação. Outro exemplo do mesmo tipo. - É isso! Escolher uma profissão definitiva é profundamente tático prá mim. Observando os dois exemplos, quase me confundo, de tanto que o dia-a-dia nos impõe indistinções. As duas palavrinhas mágicas do mundo metodológico são mais importantes do que pensamos. Sem elas não se define prioridades no agir. Mesmo que uma pessoa as desconheça em seu vocabulário, elas estão lá, presentes, renitentes e utilizadas centenas de vezes ao dia. São irmãs gêmeas, sabiam? Pode-se até identificar maturidade reflexiva de uma pessoa pelo uso correto ou não das duas; o grau da maturidade em determinado campo também é dado pela ordem posta na escolha das previsões feitas. Não há como trabalhar com os dois conceitos sem um terceiro, o conector entre ambos: a questão da prioridade. Sem essa, as duas são desnecessárias, posto que somente servem para demarcar a ordem de ação, a noção de continente e conteúdo, a relação existente entre duas ações propostas. Aliás, uma só existe em relação à outra; em função da outra; para a outra; de modo que se


relação à outra; em função da outra; para a outra; de modo que se possa identificar o principal e o secundário em qualquer relação de linhas de ação. A estratégia não se confunde com a finalidade. Muitos acham que se tratam de sinônimos. Falha importante na leitura das ações concatenadas. Sem finalidade definida não há como desenvolver ou montar uma ou mais estratégias, pois se trata de pressuposto necessário. O jogo de xadrez é muito ilustrativo para o que queremos dizer. A finalidade em qualquer jogo é, ou deve ser, a vitória de um dos concorrentes sobre os demais, pois, todo jogo busca definir vencedores e perdedores; o empate é sempre a exceção; não, a regra. A teoria geral dos jogos, que estuda as relações existentes em todos os jogos, suas variáveis, suas constantes e suas resultantes, nos fornece os elementos necessários para a compreensão e identificação de qualquer jogo existente. - Um dicionarista brasileiro, de nome Bueno, define estratégia como sendo "a Arte de traçar os planos de uma guerra". Define tática assim: "Arte de dispor as tropas no terreno em que elas devem combater; meios empregados para sair-se de qualquer coisa; processo de realização". Falava como se estivesse sozinho, com seus próprios botões, alheio às demais vontades presentes. - Um outro dicionarista- continuou -, mais badalado, de nome Aurélio, também brasileiro, lá pela página 586, numa publicação do final da década de 70, assim põe a questão da estratégia: "Do gr. strategía, pelo lat. strategia. 1. Arte militar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, navios, e/ou aviões, visando a alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos; 2. Arte militar de escolher onde, quando e com que travar um combate ou uma batalha; 3. Arte de aplicar os meios disponíveis com vista à consecução de objetivos específicos; 4. Arte de explorar condições favoráveis com o fim de alcançar objetivos específicos; 6. Ardil, manha, estratagema". Adiante, na página 1357, define tática: "Do gr. tatiké (subentende-se techné), i.e., "arte de manobrar tropas". 1. Parte da arte da guerra que trata da disposicão e da manobra das tropas durante o combate ou iminência dele; 2. Parte da arte da guerra que trata de como travar um combate ou uma batalha; 3. Processo empregado para sair-se bem num empreendimento; 4. Meios postos em prática para sair-se bem de qualquer coisa". Achando que não estava claro o que disse, resolveu comentar o que havia terminado de falar. - Ambos dicionaristas definem tática e estratégia em função de conceitos militares, na arte de matar em situação de guerra; só secundariamente é que aplicam os conceitos em outras searas. Pois bem, é fora da arte da guerra militar que nos interessam os mesmos. Algo importante postos pelos extratos é que ambos estão imbricados, correlacionados. Isso é muito importante. Para completar, resolveu resumir tudo o que dissera até então. - Resumindo e unificando a compreensão de ambos dicionaristas: "Arte de aplicar os meios disponíveis, ou de explorar as condições favoráveis com o fim de alcançar objetivos específicos" - é estratégia. "Processo empregado, ou meios postos em prática, para


estratégia. "Processo empregado, ou meios postos em prática, para sair-se bem num empreendimentos, ou de qualquer coisa; meios empregados para sair-se dela; processo de realização" - é tática. Extratando parte do resumo, tendo em vista o COMO É: "ESTRATÉGIA: aplicar meios disponíveis" e "TÁTICA: meios empregados"; nesse ponto, não há como distinguir no essencial os dois conceitos, pois se confundem profundamente. Outra tentativa, agora, tendo em vista o PARA QUE SERVE: "ESTRATÉGIA: com o fim de alcançar objetivos específicos" e "TÁTICA: para sair-se bem num empreendimento ou de qualquer coisa". Numa terceira tentativa, agora primando pelo QUE É: "ESTRATÉGIA: arte de aplicar meios; arte de explorar condições" e "TÁTICA: processo empregado; meios postos em prática; processo de realização". Piorou a distinção? Pode ser. - À luz do pensamento compilador posto, e tão bem relatado pelo professor - disse com um ar cerrado de respeito -, podemos afirmar que estratégia tem tudo a ver com o PLANEJAMENTO e tática tem tudo a ver com a EXECUÇÃO. Só se tem um plano se se tem uma finalidade; só se executa algo que é parte de um plano. Poderíamos dizer que uma estratégia está para um método, assim como uma tática esta para uma técnica? Pode ser, até porque tanto a estratégia como a tática exigem seus próprios planos, distintamente. São ferramentas da ação. Paulino se perguntava, depois da exposição feita de um plano de ação: - Isso é estratégico ou tático? - Tático - respondeu um. - Não, não, isso é estratégico, gente - respondeu outro. - Como assim? - perguntou um terceiro. Viu, leitor atento, como gera confusão o uso dos dois conceitos. O que está faltando para se chegar a uma definição distintiva? A finalidade última, a prioridade máxima, a totalizante, i.e., a que engloba tudo o que está sendo pensado.

Conto 42, de 30/07/2000, domingo

Balada para uma Conto jurídica João Protásio Farias Domingues de Vargas

Todas esses Contos têm um objetivo certo. Não é sobre qualquer coisa que quero escrever; cotidiano, um fato qualquer, um modo de ver; quero é escrever o que estou começando a chamar de Conto jurídica. Na verdade todas as 41 redigidas representaram um pequeno ensaio, visando criar motivação e familiaridade com o estilo. Aliás, nem mesmo sei se o que foi escrito constitui o que o doutros no gênero entendem por Conto. Outro dia, cheio de dúvidas, peguei o dicionário Aurélio e fui ter com verbete Conto. Para minha


peguei o dicionário Aurélio e fui ter com verbete Conto. Para minha surpresa - segundo o famoso dicionarista -, não era nada do que eu pensava. Vou pôr a fala do De Hollanda, por ele mesmo: - "Crônica.[Do lat. chronica.]. S.f. 1. Narração histórica feita por ordem cronológica. 2. Genealogia de família nobre. 3. Revista científica ou literária, que constitui, periodicamente, uma seção de jornal. 4. Pequeno conto, de enredo indeterminado. 5. Seção ou coluna de revista ou jornal consagrada a um assunto especializado: crônica política: Conto teatral. Bibliografia, em geral escandalosa, de uma pessoa: Sua Conto é bem conhecida." Fiquei pensando, após ouvir atentamente, o pequeno discurso do homem. Narração histórica... feita por ordem... cronológica... E o que dizer das Contos que não situam o leitor no tempo? Com certeza o que está sendo escrito agora não é uma Conto, segundo o conceito posto. O que será que está sendo escrito, nas classificações dos literatos? Definitivamente, não sei. Deve ser qualquer coisa, mas Conto não é! Um monólogo. Quanto muito, um diálogo, às vezes. Iniciamos, acima, dizendo que tínhamos uma estratégia e que todos os escritos até aqui representaram ensaios táticos para chegar a um objetivo certo: a crônica jurídica. Pegando um gancho da fala do Buarque, até que o adjetivo faz sentido, pois há um conceito que subsume a possibilidade especializada: "seção ou coluna consagrada a um assunto especializado". Ao lado da cônica política e da teatral, bem que pode figurar a jurídica. Por que, não? Afinal, política, teatro e direito possuem muita coisa em comum, a começar pelo discurso procedimental, pelo processo de confecção da realidade fática. A política inventa o modo de criar as leis, de aplicálas e de executá-las (os três poderes republicanos); o teatro reinventa tudo isso, recria, reproduz, adultera, modifica, encena; o jurídico, bom, o jurídico faz tudo isso e um pouco mais: politiza e teatraliza a realidade dos homens!... Se bem que o teatro também juridiciza e politiza, assim como a política teatraliza e juridiciza. O que não queremos fazer, pelo menos só isso, é a Conto estritamente literária, se é que se pode dizer assim, para distinguir os tão diversos tipos de Contos possíveis. Lembro agora das Contos policiais, Contos futebolísticas, Contos econômicas, Contos históricas, Contos sociais, Contos científicas, Contos... Haveria Conto física, Conto biológica, Conto sociológica, Conto matemática, dentre outras ligadas às áreas do conhecimento? Seria muito engraçado compor uma Conto matemática: em pauta a dança dos números, das equações e dos traçados! Não seria um contra-senso falar-se em Conto histórica, já que o Aurélio Buarque afirma que toda Conto é "uma narração histórica feita em ordem cronológica"? Não sei, não. Até pode ser! Há tanta coisa contraditória que perde a sua contraditoriedade pelo simples uso generalizado! A minha pretensão é também escrever Contos que possam ir aumentando de volume até evoluírem, migrarem para o conto e, com o crescimento de peso e de massa, crescerem até atingir o gênero do romance, da novela. Hoje em dia não há mais folhetins em jornais, como antigamente; elas foram parar na televisão e mantiveram o nome novela, um pequeno ou médio seriado, permeado de capítulos, onde imagem e som de atores reproduz cenas da vida cotidiana, tematizada ou não.


cenas da vida cotidiana, tematizada ou não. A idéia era retratar a vida forense do advogado, do juiz, do promotor, a vida lúdica do delegado de política, em todas as suas facilidades e cores; colocar personagens no palco da vida fictícia que pudesse reproduzir, ao mesmo tempo em que pudesse imprimir um certo tom didático, de modo a atingir o público estudantil das faculdades de direito. Mais do que isso, até, ensinar o direito através da fala e das posturas das personagens escolhidas para as diversas cenas representativas. Imagine você, leitor atento - ou sonolento -, poder estar dentro do prédio da Faculdade de Direito da UFRGS, da UnB, da USP, da UFSM, dentre tantas outras públicas - Ah, também não esquecia das privadas, como a PUC, UNISINOS, URI, etc. Com certeza, viajaria pelos seus corredores, salas, auditórios, laboratórios, professores, funcionários, alunos, através dos atores conversantes sobre temas que dizem respeito à regulação da vida, reproduzindo ângulos visuais dos mais diferentes juristas, métodos, técnicas, conceitos e preconceitos existentes hoje em dia, nesses lugares; enfim, discorrendo sobre teses e entendimentos correntes no país e em outros lugares do mundo. O valor didático seria enorme, penso eu, se conseguisse escrever bem ou, pelo menos, com algum valor estético razoável - coisa que está longe de acontecer, no meu modesto entendimento. Ah... mas tem um problema que é preciso resolver antes de tudo isso. Trata-se de uma prejudicial, como dizem os processualistas. Teria de dar a conhecer aos outros esses escritos, revelá-los em sua existência, compartilhar com um público maior, além dos eus que os pensam, escrevem, visitam e revisitam. Há milhares de textos escritos que nunca saíram da minha gaveta! Esse projeto teria de ser mais pretensioso, mais exibido, mais aparecido. E não se trata de timidez, não. Não sei o que é. O fato é que todos os textos são escritos para mim mesmo. Não é egoísmo, não. É algo diferente. O fato de não saber o que é não o caracteriza como sendo isso mesmo. É como dizia o Aderson de Menezes, na sua Teoria Geral do Estado: "... escrevi isso a título de esclarecimento pessoal". Um auto-diálogo, quem sabe. Bom, o papo está muito bom, mas preciso encerrar por aqui. Vamos ver se o destino da Conto jurídica vai se revelar promissor. Muitas variáveis, muitas... É isso. Foi bom. Até mais. Fim de cena. Tocou o telefone. Preciso ir. Fui. Quanto à palavra “balada” posta no título? Nem sei do que se trata. Displicente e ingrato, né?!

Conto 43, de 31/07/2000, segunda-feira

Soneto à política do direito João Protásio Farias Domingues de Vargas


Numa

sala,

em

algum

lugar

do

Brasil,

conversam

dois

estudantes, enquanto esperam a chegada do professor, para uma aula de Direito. - O que é o Direito, numa perspectiva política? - Direito nada mais é do que uma vontade política plasmada no tempo e no espaço. - O que é a Política, numa perspectiva jurídica? - Política não serve para mais nada a não ser para criar, modificar, extinguir, aplicar e executar o direito. - Não seriam reduções demasiadas as duas afirmações, Pedro? ... E uma pequena confusão conceitual? - Como assim? - O conceito de política está exatamente igual ao conceito que a doutrina dá para ato jurídico. O conceito de política está sociológico; nada jurídico. - Estás dizendo que o meu direito é sociologia e que a minha política é jurídica, em termos conceituais? - Isso mesmo. - Não há nada de jurídico no que foi dito? - Não me parece. - A afirmação e a característica do diálogo está me lembrando o que escrevia Platão a respeito de sua convivência com Sócrates. - Você seria Sócrates? - Tu te pareces com Platão? - Não. - Nem eu com Sócrates. Tempos e lugares diferentes. - É. - Mas, há algo em comum? Por acaso a sociologia conceituando o direito e o direito conceituando a política não constituiria formas de expressão afensas à Filosofia? - Não me parece. - Pensa um pouco mais. - Por que seria? - A interdisciplinaridade das formulações têm de encontrar algum campo do conhecimento classificado e nominado, para além de um mero sincretismo. - Acho positivistas e dogmáticas as afirmações. - Viu, só?! A Filosofia vindo à tona. - Não acho. Acho que é positivismo jurídico e dogmatismo político. - É, mesmo, Mirna?! Pensei que estava fazendo o oposto; que estava longe do positivismo contista e do dogmatismo jurídico. Já leste Bobbio, Positivismo Jurídico? - Sim. - Ele distingue três tipos de positivismos: o dogmático, o ideológico e o científico. O primeiro é imperativo; o segundo, persuasivo; o terceiro, bem, o terceiro é positivo, não quer mandar e nem convencer. Está aberto a discussões, como nós, agora. - Pode ser. Mas, ainda continuo achando problemáticas as afirmações. - O que te convenceria do oposto? Por hipótese, não estariam as afirmações corretas? Não seria um um ato jurídico todo ato político?


afirmações corretas? Não seria um um ato jurídico todo ato político? Estaria fora, totalmente fora do mundo jurídico a política? Peguemos a política partidária. Os candidatos não se elegem vereadores, prefeitos, deputados, senadores, presidentes? Sim. E o que eles fazem senão dirigir o estado de modo a criar leis, aplicar leis, executar leis? Dirigem a administração pública. Os juízes não fazem parte de um Poder instituído, o Poder Judiciário? Logo, são políticos, também. Não te parece? - Vendo assim, sim. São políticos, também; mas, políticos diferentes, não partidarizados. - É, mas políticos, mesmo assim. Os juízes também fazem concurso público: provas e titulos se equivalem a eleições, mutatis mutandis. - Mas, a ciência do direito é autônoma... - Quem faz as leis que estudamos como juristas? Os políticos do legislativo, do executivo e do judiciário; jurisprudência é decisão, é vontade política, ainda que orientada em função de uma norma jurídica existente ou inventada. É o caso da criação do direito ex novo pelo juiz, acolmatando lacunas com a analogia ou à base dos princípios gerais do direito, em caso de não haver costume aplicável. Ele escolhe a norma ou a inventa, como diz Kelsen, no último capítulo de sua Teoria Pura do Direito. - Viu? O Kelsen é o papa dos positivistas, e você está se referenciando nele. A formulação é ou não é positivista? E o Kelsen foi, a meu ver, mais sociólogo do que jurista. As referências biográficas que li dele apontam para isso. - É possível fazer ciência sem o dado positivo, objetivo, externo, sem abstrair, sem analizar, sem sintetizar, sem induzir ou deduzir? - O positivo não se confunde com o positivismo. É ismo, a mesmice de sempre; o dado positivo como sendo o único aceitável. - Pode-se fazer ciência sem o positivo, sem um objeto específico, definido, singular e distinto dos demais objetos, de outras ciências? É disso que estou falando. - A maior crítica ao positivismo é feita pela corrente do jusnaturalismo. - Não penso assim. O positivismo, historicamente, representou uma superação do jusnaturalismo, que era modo corrente de ver o direito durante toda a idade média, onde a Igreja Católica tinha hegemonia na formulação do direito. Estado e Igreja estavam unidos, coisa que não ocorre, por exemplo, no Brasil, desde a Proclamação da República, em 1889. Se se pensar, hoje em dia, apenas na dicotomia positivismo versus jusnaturalismo, como se pensa no dualismo bem e mal, bom e mau, certo e errado, estaremos em um brete sem saída. Há modos de ver diferentes; cortes visuais muito mais amplos do que uma posição que traz todo o ranço medieval à tona. Aliás, o jusnaturalismo medieval era uma forma precária e tirana de positivismo ideológico, o primado do justo religioso, e quem dizia o que era justo era a Igreja. - Como assim, jusnaturalismo positivista, se você disse que o positivismo havia superado aquele? - Simples. Com a Revolução Francesa de 1779, a codificação napoleônica instituiu um primado positivista novo, que não era baseado na vontade das pessoas que faziam e aplicavam as leis, como juízes, mas sim baseado na vontade posta na escrita da lei, nas normas. Tanto o é que proibia - exageradamente, aos olhos


nas normas. Tanto o é que proibia - exageradamente, aos olhos atuais -, que os juízes interpretassem a lei, para não deturpá-la. Stendhal dizia que lia todos os dia trechos do Código Civil, visando aprender literariamente com a clareza, concisão e síntese postas nas normas daquela época. Uma coisa é o positivo religioso, outra, o positivo jurídico. - A Bíblia seria, então, um conjunto de normas? - Não é assim que é tida para os religiosos que as seguem? - Seria jurídica, então? - Não totalmente. Mas, há tribunais eclesiásticos ainda hoje. Religião, moral e direito se distinguem pela coatividade organizada pela violência pública. Agora, constituem normas como qualquer outra. No sentido lato, uma fórmula de bolo e uma norma jurídica possuem muita coisa em comum: ambas dizem como deve-se fazer algo. - Direito e Culinária são semelhantes, então! - No tocante à presença de normas, sim. - Chega. Não quero mais discutir isso. Parece poesia. Um soneto jurídico. - É um deboche. - Pode ser, mas vamos ficar por aqui. - Sim. Foi um bom debate. Inconcluso, mas uma boa conversa. Aparece outras vezes e vamos tocar em outros assuntos. Acho que o professor não vem; preciso ir embora e fazer outras coisas. Saem, cada um para um dos lados do corredor. O professor não veio. Havia um recado na porta, justificando a ausência, mas a conversa os impediu de vê-lo.

Conto 44, de 01/08/2000, terça-feira

Como ficou belo o jardim João Protásio Farias Domingues de Vargas

O novo pátio - era assim que passamos a denominar- da Faculdade ficara estupendo. Depois de cem anos, finalmente fora calçado. O estacionamento ficou maior. A qualidade estética ficou muito boa. Antes, nos dias de chuva, quando se chegava a algum lugar do campus central, via-se logo que cruzáramos o caminho do Direito, pelo barro nos pés. Da janela do Diretor, perto da bandeja de café, tinha-se uma vista privilegiada. Era impossível admirar por pouco tempo, para quem tinha na memória os anos passados ou havia lido passagens sobre a história daquele prédio. Barras de lajes grossas circundavam os coqueiros, com um gramado central, protegiam as árvores. O taquaral ao fundo, não tinha mais aquele ar antigo de descaso e abandono ecológico, como pátio de visitantes ou taperas do interior.


abandono ecológico, como pátio de visitantes ou taperas do interior. Havia caminhos de lajotas brancas postas, como traçados, atravessando os jardins. Parecia que o grande jardim ficara maior. Dava gosto olhar; inclusive do alto do viaduto Dona Leopoldina ficava belo. Da sacada da Rádio Universidade tinha-se um outro ângulo, cujo visual se mantinha vivo. O mesmo se podia dizer pela vista da lateral leste, no prédio da antiga Medicina, ex-Biociências. Imaginava como seria se os muito antigos, hoje mortos, estivessem ali, como se saindo dos quadros e ganhando novamente forma humana. A imaginação voava, enquanto esperava o Diretor. Agora volveu os olhos para dentro, à direita, a mesa colonial, com figuras em alto relevo, Thêmis, balanças, piras olímpicas, códigos e símbolos jurídicos. Inúmeros quadros como que abrissem janelas nas paredes e deixassem ver faces, bustos, reuniões e documentos, ostentando a história, relutantes, presentes, o presente. Ao fundo, à esquerda de quem entra pela porta da Secretaria, a estante com a coleção inteira e autografada do Tratado de Direito Privado, de Pontes de Miranda. Alguns outros volumes, todos apertados, disputavam espaços naquelas poucas estantes. Rui Barbosa, Rui Cirne Lima, obras de professores da casa que tiveram seu tempo, ilustração e fama. À direita de onde estava, um armário escuro, também em estilo colonial, com várias gavetas longas e porta lateral, guarnecia, em cima, vários códigos novos e um exemplar da última constituição federal. No centro de tudo, sempre aguardando visitas, um jogo de cinco sofá descansava entretido com si mesmo; era formado por um longo e quatro pequenos, em volta, como que em torno de uma pequena mesa onde ficavam revistas jurídicas, jornais especializados e folders recentes anunciando eventos. Dezenas de pessoas sentavam-se ali, por dia, em conversas e reuniões, agendadas ou casuais, professores, alunos ou visitantes. Bem à sua direita, entre a janela onde estava e a estante do Pontes, à esquerda da porta privada que dava acesso à sala do ViceDiretor, uma mesa longa, com cadeiras estofadas, denunciava o modo de trabalho freqüente em reuniões e acertos dos mais variados tipos jurídicos. Uma discreta toalha e um pequeno vaso ornavam a base colonial. Em poucos minutos, quando os outros chegassem, seria ali que se sentariam para debater e executar o que vinham tratando. Olhou para o alto e visualizou o forro, já envelhecida, bem como as lâmpadas fluorescentes, denunciando a modernidade. O prédio fora construído na década de vinte desse século; naquele tempo, luz elétrica era novidade até descartada. Os tilburis eram os meios de transporte mais comuns, subindo e descendo a famosa avenida João Pessoa. Pelas duas janelas altas, abertas e envidraçadas, podia ver parte da rua e do terminal de ônibus da frente. Virou-se novamente para o pátio. Serviu um novo cafezinho e continuou a admirar o pátio novo, pensando nos cem anos recentemente comemorados: 17 de fevereiro. Estava assim, absorto em suas lembranças, quando alguém entrou na sala. Era o Diretor. - Desculpa a demora, mas o atraso foi inevitável. - Não esperei muito. Estava admirando o pátio. - Ficou bonito, não é? Quer um cafezinho? O pessoal já deve estar chegando.


estar chegando. - É. Aceito. Trouxe os documento e a minuta prometida. - Ótimo. Telefonei e falei com Brasília. Acho que vai dar tudo certo. - Vai ficar muito bom. - Vai. Bateram à porta. Entraram os demais integrantes da reunião, com quinze minutos de atraso. - Vamos sentando, à mesa - disse o Diretor, apontando o local. Sentou-se o nosso deslumbrado amigo na cabeceira oposta da mesa, de modo que de onde estava podia continuar vendo o alto dos coqueiros do pátio, bem como a volta do viaduto, no lado sul da cidade. Percebendo que a reunião teria de começar com a sua fala, estancou os pensamentos e reminiscências, pondo-se de corpo e alma, presente. - Está sendo distribuído aos senhores cópia do texto e da minuta de projeto que fiz, conforme combinamos na reunião anterior. Sugiro uma leitura de voz, pela nossa secretária, com a marcação de destaques para discussão. Todos de acordo? Ótimo. Procedamos assim. O pátio continuava ali, agora, no início da manhã, já ganhando o colorido dos passos do estudantado, transitando, como caminho à Reitoria, ou simplesmente para ir em direção à entrada lateral do bar e da loja de cópias. O sol crescia, irradiante, sobre as pedras que já pareciam mármore, esbranquiçadas, sentando como o estilo colonial dos móveis, no dourado das fagulhas que batiam na vidraça. Como ficou belo aquele jardim.

Conto 45, de 02/08/2000, quarta-feira

Princípios e juizados obrigatórios João Protásio Farias Domingues de Vargas

A mesa estava lotada na Sala dos Professores. Quase todos os integrantes do grupo de estudo se fizeram presentes; os ausentes, justificaram. Alunos de graduação, advogados, pós-graduandos e, dentre esses, juízes leigos, conciliadores e assessores de cartório. O debate tinha pauta certa. Era o primeiro encontro sobre a nova lei federal dos antigos juizados de pequenas causas; não toda ela; apenas a parte cível. Um deles - Marlon - começou a leitura do preâmbulo e primeiro capítulo da lei, tecendo seus comentários, de maneira bem informal, como era típico no modo impresso daquelas reuniões. - Lei número 9.099, de vinte e seis de setembro de mil novecentos e noventa e cinco, publicada no Diário Oficial da União em vinte e sete do mesmo mês e ano. Dispõe sobre os Juizados


em vinte e sete do mesmo mês e ano. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Capítulo um. Disposições gerais. Artigo primeiro. Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, órgãos da Justiça Ordinária, serão criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação, processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência. Artigo segundo. O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. É isso o que diz o capitulo primeiro. Vamos ao debate. Gustavo, um jovem de óculos, inscreveu-se e pôs-se a falar. - Acho que o artigo primeiro trata de algo muito importante, a obrigatoriedade da criação dos Juizados, tanto pela União quanto pelos Estados. A segunda questão importante no mesmo dispositivo diz respeito à fixação geral da competência. Quanto ao artigo seguinte, elenca seis princípios básicos ou retores, e não cinco, como aparentemente se apresenta. A busca constante da conciliação ou da transação constitui princípio, ao lado dos demais, e não uma mera formalidade procedimental. - Eu tenho uma dúvida - colocou Mariana, a moça vestida de vermelho, posta ao fundo. - Quero me inscrever para falar. - Está escrita - disse Carolina, fazendo as vezes de mesa, no controle das inscrições. - Pode falar; é a sua vez. - Não entendo por que a lei fala em "conciliação, processo, julgamento e execução", se tudo isso é parte de uma mesma coisa, o processo; aparentemente, tratam-se de coisas distintas. Nada pode ocorrer fora do processo. Julgamento é ato processual, assim como execução e conciliação. Não existe um processo de conciliação distinto, ainda que possa existir um processo de execução distinto do processo de conhecimento, onde se dá o julgamento. Parece desnecessário o que foi posto pela lei; além do que é óbvio que os Juizados só podem ser competentes para "causas de sua competência". Tenho outra questão, mas fica para depois. Peço, já, outra inscrição, para falar sobre o artigo segundo. Alguém pode me dizer a razão de tais repetições inúteis? Houve falha redativa? Houve um breve silêncio. Márcia, que mais parecia uma garotinha, com fita e tudo no cabelo, mascando chiclete, levantou o dedo, inscreveu-se e começou a dar uma resposta. - Acho que nunca há nada de desnecessário na lei. Se está ali é porque deve fazer algum sentido. Cabe a nós buscar o sentido que o legislador quis dar; e isso, para além do que os legislador fático ou histórico quisesse dizer, i.e., o autor do projeto, o relator, o revisor, todos os que intervieram no processo legislativo. A minha impressão, salvo melhor juízo, é a de que, em sendo nova a criação, no modelo da lei, que é diferente do modelo da lei anterior, a de número 7244, de mais de dez anos antes, o legislador quis, desde logo, para distinguir do processo da Justiça Comum, estadual ou federal, afirmando que os Juizados podem, sim, conciliar, processar, julgar e executar todos os feitos que estiverem em sua competência, como depois vai demonstrar o artigo terceiro, abaixo, na primeira seção do capítulo seguinte da mesma lei. Não fosse assim, poder-se-ia dizer que os Juizados somente poderiam processar e julgar, mas não executar, como acontecia pela lei anterior, que essa atual revogou; era preciso executar os julgados dos Juizados em uma vara comum. Quanto à conciliação, o objetivo


dos Juizados em uma vara comum. Quanto à conciliação, o objetivo é dizer que os Juizados podem conciliar, independentemente da existência de um processo que tenha de ter um julgamento; só conciliação e ponto final. Isso é novo, daí a importância da redação dessa segunda parte do artigo primeiro. E isso vale tanto para os cíveis quanto para os juizados criminais, já que esse capítulo é comum às duas modalidades. A mocinha não dava ares, em sua aparência, de dominar tão bem o que dizia. Como as aparências enganam! O que é o estudo! - como dizia um amigo, há algum tempo. Um novo integrante se inscreve e pede a palavra para falar sobre o tema. É Henrique, um magro, alto, rosto fino e barba rala, cabelos desalinhados e uma camiseta branca, com estampa de um conjunto de roque. - Eu penso como disse a Márcia. Não há nada descartável em qualquer redação de lei. Não foi isso o que aprendemos em aula e que repetem os doutrinadores? Mas, eu queria falar um pouco sobre a primeira parte da redação do artigo primeiro. Se vocês se lembram, o artigo primeiro da lei anterior, de 1984, dizia que os Estados ficavam facultados à criação dos Juizados; agora, a lei usa o verbo no imperativo afirmativo "serão criados", o que indica que não pode um Estado não ter Juizado cível e criminal à disposição da população. E isso não foi muito pacífico no seu entendimento, não. Recordo que li num artigo, de logo que saiu a lei, afirmando que era uma faculdade dos Estados, já que existia a justiça comum e não estaria sendo denegada justiça ao cidadão; que, se fosse obrigatória a criação e funcionamento, a União teria de dar as condições necessárias para o seu funcionamento nos Estados. No Rio Grande do Sul, onde foi inventado, ninguém tem dúvida da obrigatoriedade; mas já não é o que ocorreu, por exemplo, aqui pertinho, em Santa Catarina ou no Paraná. Nem se fale nos Estados do Nordeste. Há vários textos que relatam isso. Era o que eu queria dizer por hora. - Mais alguém inscrito? - perguntou o professor. - Sim - respondeu a Mesa; Tânia de Lucca. A moça estava absorta. Pela aparência, beirava os trinta anos; trazia aliança grossa na mão esquerda e se vestia com muita sobriedade, mas de modo elegante. Os lábios muito grossos, com batom discreto, rosto branco e redondo, denunciavam sua origem italiana. - Sobre os critérios do artigo segundo. Como está quente aqui dentro! Alguém poderia abrir algumas janelas, por favor? - pediu, abanando o rosto com uma folha de caderno dobrada ao meio. Bem, continuando. Ficou bem melhor, agora. Quanto ao que significa critério, na lei. Ela fala em "o processo orientar-se-á pelos critérios...". Isso quer dizer que tais critérios são critérios orientadores. Mas, o que são critérios orientadores? Orientadores do quê? Critério e princípio são a mesma coisa? Acho que, é óbvio, esses critérios orientam o processo, em sua totalidade, em qualquer ato nele praticado, do início ao fim, da inicial ao trânsito em julgado, passando pela conciliação, instrução, prova, sentença, recurso e execução. Acho mais. Acho que critérios orientadores são princípios, sim. Princípios orientadores do processo. Na linguagem comum, critério é tudo aquilo que serve para orientar uma escolha, uma decisão; trata-se, no processo, da escolha do ato, da decisão judicial, de tudo que nele for feito. São cinco critérios e uma


judicial, de tudo que nele for feito. São cinco critérios e uma tentativa permanente; que são coisas distintas. Todo princípio é orientador do intérprete; portanto, só serve à exegese e deve impregnar, estar presente do ato faticamente posto no processo, permeando a todos. Tudo o que for feito deve levar em conta os cinco processos e a tentativa vislumbrada. Já estou falando demais. Inscrevo-me para continuar depois. - A vez do Gustavo, em segunda inscrição - bradou a Mesa. Depois dele, está inscrita a Liege, é isso?! Gustavo pôs-se a falar. - Discordo da Tânia no tocante à distinção entre critério e finalidade ou busca permanente. A natureza jurídica é a mesma. O nome do princípio é conciliação. A diferença está no relevo dado, ao final da redação. Para ser mais transparente no que quero dizer, preciso, antes, distinguir "conciliação" e "transação", elementos postos como objetos da famigerada busca-sempre-que-possível. Transação é instituto originário do Código Civil, como modo de extinção das obrigações, que não o pagamento. É, também, modo de composição dos litígios ou conflitos. Em teoria geral do processo se aprende que há três modos solutivos de desavenças, que são maneiras autoregulativas: a sujeição, a desistência e a transação; no primeiro, o sujeito aceita toda a pretensão da parte oposta, sujeitando-se ao que ela entende como sendo o seu direito; na segunda, ocorre o oposto, o sujeito que tem uma pretensão contra outro desiste do que entende como sendo o seu direito; no último caso, há um meio termo, ambos ajeitam-se, abrindo mão de parte do que entendem seu, ou devido; um paga um pouco e o outro recebe menos do que pretendia, por exemplo. Agora, a conciliação é, sempre, duas coisas: um método de resolução de conflitos, que envolve os três modos que vimos acima, visando pôr fim a um conflito, exista ou não um processo judicial entre as partes desavindas; por outro lado, é, também, uma fase processual, do processo sumaríssimo novo, ora instituído pela lei em discussão; tanto o é que há seção própria, a Seção VIII, que trata da Conciliação e do Juízo Arbitral. Na minha fala, há uma contradição evidente, pois como pode a conciliação ser distinta da transação se a engloba? É simples. Entendo que o legislador conceituou conciliação apenas nas duas das três modalidades que falei antes, pegando as mais radicais: a submissão e a desistência. A revogada lei 7244/95 falava, no final do artigo segundo, apenas em buscando sempre que possível a conciliação. Entendia-se, na palavra "conciliação", as três formas autocompositivas. A distinção feita, na nova lei, é apenas para realçar a forma mais justa de autocomposição, visando superar aquilo que a Ada Pellegrini Grinover chamava de litigiosidade contida. Com a desistência ou a submissão ainda pode ser mantido socialmente o conflito, mesmo juridicamente resolvido. É isso aí. Já estourei o meu tempo de fala. - É, estourou - disse a Mesa. - Liane, com a palavra. Liane tinha longos cabelos loiros, muito lisos, quase brancos, e os olhos azuis. Parecia modelo de capa de revista. Muito bem vestida, jeito vivaz, quase sangüíneo; semblante tranqüilo e sorriso levemente debochado. - O tempo está correndo e precisamos avançar. Vou falar sobre as relações entre os princípios e a sua aplicação pelo intérprete ou operadores do direito. O princípio da oralidade já existia no ordenamento jurídico brasileiro, no Código de Processo Civil, ao


ordenamento jurídico brasileiro, no Código de Processo Civil, ao instituir a audiência de instrução e julgamento. Partes, advogados, testemunhas e auxiliares da justiça se encontram, frente a frente, a certa altura do processo, em uma reunião formal, cujo procedimento típico fica a cargo da fala; as pessoas se expressam oralmente, na ordem posta pelas normas processuais. O princípio da simplicidade é mais complicado, se cortejado com o seguinte, o da informalidade. Tudo o que é simples parece informal e vice-versa, mas não é verdade; pode-se complicar simplesmente. Simplicidade é descomplicação; informalidade é ausência de formalismos exacerbados; não é afastamento de toda e qualquer formalidade. Significa que a linguagem deve primar pela ausência do juridiquês, de modo que as partes possam entender o que se está falando; que se deve simplificar ao máximo as fórmulas aprendidas no processo civil tradicional posto no CPC. Quanto aos princípios da economia e da celeridade, entendo que se deve economizar ao máximo os atos, sem repetições desnecessárias, bem como tornar o processo o menos oneroso economicamente, tanto para as partes como para o Estado, já que não há custas, em geral. A preocupação com o tempo está clara, os atos devem ser sucessivos; de preferência, tudo deve ocorrer em um ou dois encontros entre todos os atores envolvidos. Tanto o é que há apenas duas audiências: uma de conciliação e outra de instrução e julgamento. O liame entre todos os princípios está evidente: a oralidade existe simplicidade, que geram informalidade e, com isso, economiza-se inclusive tempo, acelerando o tempo de duração do processo, sua vida útil ou forense, aumentando-se a satisfação dos súditos na prestação jurisdicional. Não foi o extinto Ministério da Desburocratização que iniciou essa coisa de juizado? Foi. Época do Figueiredo, o último general-presidente. Então? Toda vez que o advogado e o juiz, o conciliador ou a parte, forem se manifestar, devem falar simples e informalmente, economizar palavras e dizer muito rápido o que pretendem. É isso, falando informalmente. Terminei. - Agora, alguém mais quer falar, antes de passar a palavra, pela segunda vez, à De Lucca? Ninguém. Tânia, com a palavra. Seja breve, que o tempo já está correndo. - Celeridade, celeridade. Muitas vezes a pressa gera complicações e confusões que custam muito caro. Brincadeirinha!... - disse, desculpando-se, de imediato. - Vou falar sobre os princípios ou critérios; já nem sem mais se se distinguem, mesmo. Falando sério. O formalismo é uma garantia de qualquer processo ou procedimento. Sem ele ninguém fica seguro de como as coisas devem ser ou serão. Não acho que informalidade seja o oposto de formalismo. Concordo que não pode ser um formalismo ensimesmado, um formalismo em si, por si e para si. Nada contra, ou a ver, com a fórmula de democracia de Lincoln, pois eu concordo com ela. As formalidades estão descritas na lei e devem ser seguidas; o princípio quer lembrar que o juiz não deve se ater a fórmulas e rituais desnecessários; deve ser flexível. Por exemplo, nada obsta que ouça testemunhas do réu misturadas com as do autor; afinal, as testemunhas elencadas são do juízo, e não da parte. O compromisso é com a verdade... Nesse ponto, interrompe a Mesa. - Chegamos ao nosso teto de reunião. Continuemos ou deixamos para a próxima, professor.


- O que acham todos? Para a próxima? Está bem. Quero agradecer a presença de todos e dizer que foi uma belíssima reunião; houve um debate rico e vejo que estão estudando bastante o tema; estão dominando bem. É isso aí. Na próxima reunião continuamos onde paramos. Não se atrasem. Será aqui mesmo. Em dois minutos todos haviam saído da sala. O professor pôs a mão no bolso do paletó, tirou um maço de cigarro, acendeu um e deu uma longa tragada, com um olhar muito satisfeito. Juntou suas folhas, pu-las na maleta, ganhou a porta e foi-se, pelo corredor, em direção à saída. - Juizados....princípios... obrigatoriedade; uma bela conversa pensou. Desceu as escadas. O dia estava escuro e chovia muito; mesmo sem guarda-chuva, pôs-se a caminhar, em direção ao centro.

Índice Analítico RESUMO MODO DE CITAÇÃO APRESENTAÇÃO SUMÁRIO CONTO 1 - MENTE NO CÉU, OLHO NO CHÃO CONTO 2 - UM PASSEIO NOTURNO CONTO 3 - UMA AULA SOBRE SOCIEDADES CONTO 4 - POSTURA DA SEMIÓTICA CONTO 5 - AS MOÇAS DA VOLUNTA CONTO 6 - A VELHA REPÚBLICA CONTO 7 - O MUNDO DOS POKÉMONS CONTO 8 - UMA CONSULTA DE ESCRITÓRIO CONTO 9 - AUDIÊNCIA COM UM VEREADOR CONTO 10 - UMA BREVE CONVERSA CONTO 11 - A AGENDA E O POETA CONTO 12 - A REUNIÃO MARCADA CONTO 13 - TELEFONEMAS MUDOS CONTO 14 - A SORTE DAS PROVAS CONTO 15 - VOCÊ TEM UM PLANO? CONTO 16 - VERDADE - PROVA - FALSIDADE CONTO 17 - FAZENDO UMA CANOA CONTO 18 - UM TEMPO DE LEITURA CONTO 19 - ANTENA PARANÓICA


CONTO 19 - ANTENA PARANÓICA CONTO 20 - A IMORALIDADE DA MORAL CONTO 21 - FASES E CRISES NA VIDA DOS CASAIS CONTO 22 - GAYS, LÉSBICAS TRAVESTIS E TRANSGÊNEROS CONTO 23 - A ÉTICA DA MORALIDADE CONTO 24 - A DISTÂNCIA REGULAMENTAR CONTO 25 - DE ESCALA A CONEXÃO EM VÔOS DOMÉSTICOS CONTO 26 - PENSAR E AGIR CONTO 27 - CARIOCA DO INTERIOR CONTO 28 - AS DESPEDIDAS NUNCA SÃO IGUAIS CONTO 29 - TELEFONE MÓVEL CONTO 30 - FACILIDADE E COMPLICAÇÃO CONTO 31 - INTUIÇÕES QUE VALEM CONTO 32 - JACARÉ E RATINHA NOS MILHOS ATRÁS DA PORTA CONTO 33 - SONO E SONHO CONTO 34 - MADRUGAR É PRECISO CONTO 35 - ÓI O TREM CONTO 36 - ESCRITA E VOCAÇÃO CONTO 37 - GARANTINDO O PÔR-DO-SOL CONTO 38 - ESQUIZOFRENIA EUFI Y EUDI CONTO 39 - DIMENSÕES FÍSICAS DO AMOR CONTO 40 - CAFÉ NO CENTRO CONTO 41 - TÁTICA E ESTRATÉGIA CONTO 42 - BALADA PARA UMA CONTO JURÍDICA CONTO 43 - SONETO À POLÍTICA DO DIREITO CONTO 44 - COMO FICOU BELO O JARDIM CONTO 45 - PRINCÍPIOS E JUIZADOS OBRIGATÓRIOS ÍNDICE ANALÍTICO

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Acesso

, desde 15 de março de 2009.


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