E meio n1 2016

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N.1 /// e-meio


Daniela Mattos /// Tiago Rivaldo


Meio A Meio entrevistas
 Daniela Mattos por Daniele Marx


Daniele Marx O projeto Meio deu início a uma série de novas publicações que terá como enfoque entrevistas com artistas. No seu caso em particular, o que me moveu para realizar esta entrevista foi o uso da conversa como forma de trabalho em sua produção dentro do campo das artes visuais. Percebo que você vem desenvolvendo há mais de dez anos um trabalho que enfoca a linguagem da performance, fotografia e videoarte. Entretanto, gostaria de saber um pouco mais sobre o processo que desencadeia sua prática artística. Antes de entrar nas questões do seu trabalho, gostaria de saber um pouco mais de você. Será que você poderia relatar um pouco de suas projeções, e ou experiências na infância? Em algum momento você já pensava em se tornar artista visual, e se existia alguma prática que você reconhece hoje no seu trabalho de performance, por exemplo? Daniela Mattos Não pensava em me tornar artista na infância. Mas gostava de desenhar, pintar, ouvir música, fazer teatro de bonecos, brincar de dar aula... Não lembro de ter uma projeção profissional voltada para as artes, em especial as artes visuais, isso não era algo que eu já pensasse desde criança. Não tenho uma memória forte de visita a museus ou galerias na infância, por exemplo. Quanto a alguma prática relacionada ao meu trabalho de performance hoje me parece tão difícil... mas eu lembro que gostava de me “montar” como personagens de novelas de época, eu usava lençóis para fazer roupas e cheguei a fazer meu próprio chapéu com cartolina recortada e cola, acabamentos em filó e umas flores de tecido. Também fiz uns óculos de arame e cheguei a usar uns carrinhos do meu irmão como se fossem patins, enrolados com durex nos meus pés (rs). Acho que isso pode ter a ver com meu trabalho hoje, com a vontade de fazer com que meu próprio corpo possa transformar a experiência das imagens e das palavras e, ao mesmo tempo, ser um suporte e um vetor disso. Percebo que essas brincadeiras eram algo tão potencialmente inventivo quanto era a experiência de fazer um desenho. No meu trabalho como artista hoje isso pode estar refletido na importância performativa das práticas de criação – seja fotografia, performance, escrita, etc.

Daniele Marx Você é uma artista, que vem construindo uma carreira acadêmica também. Gostaria de saber primeiramente como foi a sua formação, principalmente no que se refere ao campo da performance. Pois eu me lembro que na minha formação não existiam disciplinas que tratavam da performance como prática artística. O departamento de escultura, era um dos poucos que abria outras possibilidades. Como foi a sua experiência em relação a sua formação prática? Daniela Mattos Minha formação na faculdade foi em pintura. Não tive nenhuma disciplina que se relacionasse diretamente com a prática de performance, mas nas minhas pinturas (especialmente na fase final do curso) eu cheguei a explorar a questão mais corporal como parte da produção dos trabalhos, usando telas grandes onde o movimento de todo o corpo era importante. Visualmente os trabalhos eram meio “expressionistas”. Cheguei a mostrá-los em uma exposição individual na galeria da Escola de Belas Artes da UFRJ, em 2000. Minha relação com a prática da performance aconteceu fora de um contexto acadêmico, portanto não tive uma formação específica nesse campo, mas minha experiência foi mesmo pela prática de fato. Também foi muito importante ter encontrado pares em espaços e coletivos que estiveram ativos no Rio entre 2000 e 2003, o Rés do Chão, que era um espaço na casa do artista Edson Barrus (no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro), e o Crioullos da Criação, um grupo formado pelo Alexandre Sá, a Amélia Sampaio e o Tato Teixeira com participações de artistas agregados como eu. O Rés do Chão era um espaço muito importante de experimentação coletiva não apenas para fazer performance, mas para estar junto, viver, pensar, enfim. E a partir desses encontros, surgiu a parceria com o Alexandre Sá, com quem realizei diversas performances, curadorias e textos. Além disso também demos aula juntos entre 2006 e 2009 na EAV-Parque Lage, em um curso intitulado “Processos poéticos do corpo como suporte” que acabou gerando a exposição “Jardim das Delícias – Performance em questão” na Galeria do Lago e nos jardins do Museu da República, no Rio de Janeiro, que foi co-curada por nós dois e pela Isabel Portella.



Daniele Marx Dentre uma série de seus trabalhos gostaria de conversar um pouco sobre a sua performance “Arte depois dos anos 1960/1970: Uma e três (situ) ações”. Ao ler parte de sua tese de doutorado “Performance como texto, escrita como pele”, você menciona que tanto a performance quanto a presente experiência, texto e imagem produzem atritos de ordem poética, conceitual e temporal. Tais atritos aparecem por meio de encontros e esgarçamentos que a apropriação poética de um dado trabalho de arte, bem como aspectos de seu contexto histórico, provocaram em seu trabalho. Será que você pode falar sobre essa questão de forma mais direta? Daniela Mattos É difícil falar desse trabalho de uma forma tão abstrata, sem ter junto as imagens e os textos... Acho que por mais conceitual que um trabalho seja, não podemos prescindir da experiência. O que tenho para falar está ali na performance, no texto ou em ambos, e isso derivou da minha experiência com o trabalho “Uma e três cadeiras” do Joseph Kosuth e, ainda, de questões que configuram seu contexto histórico, os anos 1960 e 1970. O que de mais direto posso dizer é que qualquer apropriação poético-visual de um trabalho de arte demanda um certo esgarçamento dele, uma espécie de torção ou absorção do que é apropriado e que vai ser “metabolizado” na criação de um outro trabalho. Daniele Marx Não se sei estou enganada, mas de repente esses atritos de ordem poética, conceitual e temporal mencionado anteriormente devem-se a excessiva especialização da linguagem artística ou seja, ou seja uma espécie de ‘confina- mento’ no universo da arte e de seus próprios problemas. Você considera que sua performance Arte depois dos anos 1960/1970: Uma e três (situ)ações evidencia tal ‘confinamento’? Daniela Mattos Como você coloca, de fato esse é um trabalho que lida com referências mais especializadas do universo da arte. Mas não vejo isso como confinamento, e sim como a demarcação de um campo de interesses meus em um dado momento e que gerou um trabalho passível de ser visto por todo mundo, independente do conhecimento ou não das referências iniciais do trabalho.

Penso ainda que o esforço do próprio Kosuth e de muitos artistas da arte conceitual norte-americana (e mesmo dos conceitualismos que aconteceram em países latino-americanos) foi sair dessa especificidade excessiva. No caso do Kosuth isso se percebe no interesse dele em relação à filosofia analítica, que permeou muito sua obra e seus escritos. Mas independente disso, a performance “Arte depois dos anos 1960/1970: Uma e três (situ)ações” fala mais da incapacidade de se definir rigidamente a noção de performance e de como é imprescindível vivê-la enquanto experiência, assim como acontece com a leitura de um texto. Daniele Marx Será que você pode comentar um pouco como foi a sua experiência de fruição com a obra do artista conceitual norte-americano Joseph Kosuth, “Uma e três cadeiras”, 1965? Daniela Mattos Vi esse trabalho pela primeira vez em uma aula, como reprodução em slide e mais tarde vi ao vivo. Mesmo assim, desde de quando vi em aula me chamou muita atenção a relação que ele faz entre o objeto em si, sua reprodução fotográfica (em tamanho real, na escala de um para um)e a definição (ou verbete de dicionário). Foi como se ele me proporcionasse tornar visível algo que eu não havia percebido antes, quase como uma espécie de epifania, de captar mesmo o sentido da percepção do significado essencial de uma coisa. Ao mesmo tempo, o trabalho chama a atenção para a multiplicidade existente entre o objeto e suas representações, algo que também me pareceu muito inte- ressante e importante como reflexão para minha prática artística e para pensar em relação a outros trabalhos da mesma época ou mesmo de hoje. Daniele Marx Qual foi a sua experiência com o público em relação a perfomance “Arte depois dos anos 1960/1970: Uma e três (situ)ações” Você repetiria este trabalho novamente?



Daniela Mattos Mostrei esse trabalho em duas ocasiões: no Performance Presente Futuro vol.II, uma mostra de performance organizada pela Daniela Labra no Oi Futuro no Rio de Janeiro, e também na exposição Arquitetura da Pele, organizada pelo Yiftah Peled no Museu Vitor Meirelles, em Florianópolis, ambos em 2009. As duas apresentações foram singulares, não apenas em relação à resposta do público mas também por terem me oferecido toda a infra-estrutura necessária para a realização do trabalho. No Rio o público ficou mais imerso na ação, acho que por conta da configuração do espaço, pois a estrutura da sala era totalmente organizada para que o público se concentrasse de fato nas performances. Já em Florianópolis fiz a ação em meio a uma exposição, então tinha uma contaminação interessante dos outros trabalhos exibidos. Lá a res- posta do público foi de estar menos focado na ação, alguns quiseram interferir na minha fala fazendo ruídos. Mesmo assim gostei disso, dessa dissonância em relação à resposta da audiência. Outra coisa muito legal dessa experiência foi usar uma carteira escolar do acervo do Museu da Escola de Florianópolis, cedida especialmente para a exposição. Daniele Marx O que a moveu para uma pesquisa de doutorado na área de psicologia clínica? Daniela Mattos Em primeiro lugar a orientadora! Tinha muita vontade de abrir um contato mais próximo com a Suely Rolnik e fui incentivada por amigos, a Mariana Marcassa, o Edson Barrus (os dois artistas, também orientados por ela no Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP) e a Cecília Cotrim (crítica e historiadora da arte, com quem também cogitei uma orientação aqui no Rio), que apoiaram muito esse movimento. Além de ter sido um fluxo da vida também, pois meu marido foi contratado para dar aulas em São Paulo na mesma época em que comecei o doutorado, e tínhamos essa rotina compartilhada quinzenalmente. Outra coisa que pesou muito foi que o parte do programa de Psicologia Clínica ao qual eu estive ligada na PUC-SP é o Núcleo de Estudos da Subjetividade. O núcleo é transdisciplinar e abriga pesquisadores de várias áreas, o que é extremamente rico.

Para mim foi super interessante, pois vinha de uma formação bastante voltada para as artes visuais, tanto na graduação quanto no mestrado, ambas cursadas na Escola de Belas Artes da UFRJ. Essa mudança de cidade também foi importante, apesar de eu ter passado os quatro anos de curso entre Rio e São Paulo, na maior parte do tempo num lugar bem especial de Sampa (um pequeno apartamento alugado no edifício COPAN), a minha casa de fato sempre foi aqui no Rio. Daniele Marx Durante o processo de desenvolvimento do Projeto Meio, sempre discutimos a questão do artista e o papel do curador, tanto é que decidimos nos posicionar como artistas-organizadores. Pois o significado da palavra ‘organizador’ (organum, lt. ou organon, gk.) define-o como uma espécie de ferramenta, órgão ou instrumento corporal. Assim, o ‘artista organizador’ é aquele que realiza ou assume uma estrutura orgânica, capaz de apresentar outros artistas (assim como pessoas interessantes de outras áreas) a instituições, projetos ou even- tos, fazendo do processo em si uma prática. Pois, vejo que além de desenvolver seu trabalho como artista, muitas vezes você se coloca na posição de curadora. Gostaríamos de saber como você se posiciona como ‘curadora’ tendo em vista que também faz referência à noção de ‘artista-etc’ (1) desenvolvida por Ricardo Basbaum? Daniela Mattos Sim, a noção de “artista-etc” do Ricardo é algo super importante para mim, principalmente no caso de artistas que, como eu, querem produzir para além de sua posição mais estrita. Sou admiradora da produção dele e isso também se reflete na parceria de vida que eu e o Ricardo temos. Escrevi um texto em que falo das questões em torno da curadoria de artista, chamado “A movência resiliente do artista como curador”, que pode ser acessado na publicação online do Forum Permanente. Realizar curadorias como artista para mim é bastante importante e tem a ver com essa significação que você aponta, a de organizador como alguém que faz disso um modo de prática. Criar esse espaço de prática, encontro e reflexão que uma curadoria demanda também me alimenta muito como artista.


Daniele Marx Queria ter tido mais tempo para me debruçar em sua tese “Performance como texto, escrita como pele”. Entretanto achei extremamente corajosa a sua atitude poética e performática, tratando-se de uma trabalho acadêmico na área de psicologia clinica. Considerando que o próprio texto já estabelece esta relação íntima como aquele que lê, fiquei curiosa em saber como você apresentou o mesmo para banca? Daniela Mattos Mesmo tendo sido no Programa de Psicologia Clínica, minha tese é parte de minha pesquisa como artista. Isso foi possível por estar vinculada a uma parte específica do programa, o Núcleo de Estudos da Subjetividade, que é feito por professores como a Suely Rolnik, o Peter Pal Pelbart, o Luis Orlandi, entre outros. O núcleo é um lugar onde o pensamento pode de fato ser experimentado de um modo intensivo entre os pesquisadores, muitos dos quais são artistas e vindos de outras áreas também, como já falei antes. Isso me abriu um horizonte mais amplo de pesquisa, já que os estudos que fazemos durante o curso são tanto do campo da Arte e da Cultura, mas da Filosofia contemporânea também, como Nietzsche, Deleuze, Guattari, Foucault, entre outros, leituras que me interessavam já desde o mestrado. A apresentação para a banca é uma espécie de protocolo: todos os membros lêem o trabalho antes, para comentar, criticar, elogiar, arguir. Esse momento então é também voltado para o público que assiste à defesa, que não teve acesso anterior a pesquisa e poderá tomar contato com o que é a tese. Minha escolha então foi ler a parte final da tese, que chamo “Conclusão ou experiênci- as com os percursos”, na qual faço uma reflexão comentando o que foi produzi- do ao longo do trabalho e do modo de construção dele. Daniele Marx Existe alguma ideia de publicar sua tese? Daniela Mattos Sim, tenho a intenção de publicar em breve. Agora é ver como isso pode ser custeado, entrar em sistema de editais do Ministério da Cultura ou agências de fomento acadêmico, vamos ver.

Daniele Marx Como você percebe o desenvolvimento da performance no contexto brasileiro? Daniela Mattos Essa é uma questão super difícil de responder... Mas depois de ter organizado algumas exposições e mostras de performance no Rio de Janeiro, em especial as co-curadorias que fiz no “Jardim das Delícias – Performance em questão” junto da Isabel Portella e do Alexandre Sá na Galeria do Lago/Mu- seu da República em 2006/2007 e também para o Festival Performance Arte Brasil que teve curadoria geral da Daniela Labra no MAM em 2011, percebi que o cenário é muito diversificado, amplo, movente. Vejo desde então que a performance está com muito terreno sendo aberto em muitos lugares do Bra- sil. O catálogo do Festival é um importante índice disso, mostrando alguns dos artistas e pesquisadores que se tem se dedicado à performance por aqui, de modos particulares e interessantes. Em relação à localização da minha prática e a performance no contexto brasileiro, me vejo mais como uma artista que faz performances do que especificamente como performer, principalmente depois do doutorado, quando acabei migrando para uma prática que é mais da escrita mesmo, do próprio texto como performance (seja ele uma escrita mais poética, um objeto artístico ou a desdobra/dispositivo de/para uma ação corporal), o que acabou me aproximando muito da literatura e da poesia. Daniele Marx Será que você podia mencionar algumas de suas referências? Daniela Mattos Julio Cortázar, Arthur Rimbauld, Fernando Pessoa, Anais Nin, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Friederich Nietzsche, Ella Fitzgerald, Franz Kafka, Suely Rolnik,Yoko Ono, Alex Hamburger, Mariana Marcassa, Mayra Martins Redin, Alexandre Sá, Gal Costa, Ricardo Basbaum, Cildo Meireles, Roberto Correa dos Santos, Tulipa Ruiz,...


Daniele Marx Existe alguma colocação que você tem gostaria de fazer ao Projeto Meio? Daniela Mattos Agradecer pelo convite e parabenizar pela iniciativa das publicações e ações de vocês (já longeva, o que é raro no Brasil)!

Daniela Mattos é Artista, educadora e curadora independente. Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil Site da artista: www.danielamattos.art.br

Nota
 (1) Jens Hoffmann. The next Documenta should be curated by an artist, Frankfurt, Revolver Books, 2004. Para esta publicação, 31 artistas foram convidados a comentar a proposição sugerida pelo curador, de modo a investigar as relações entre práticas artísticas e curatoriais. Créditos (Daniela Mattos), Arte depois dos anos 1960/1970: Uma e três (situ) ações, Obra/ performance.Crédito fotográfico: Daniela Mattos, Ricardo Basbaum e Julio Callado.


Meio A Meio entrevistas
 Tiago Rivaldo por Marcos Sari


Marcos Sari No seu caso em particular, o que me fez convidá-lo para esta entrevista foi a curiosidade de perceber em sua produção como artista algo que não é muito comum na arte que tenho tido contato aqui em Porto Alegre. Ou seja, uma atuação que vai de encontro ao outro de forma mais direta, na rua mesmo. E, além disso, muitas vezes requisita este outro como parte ativa da obra. A partir desta impressão pessoal lanço aqui algumas perguntas que espero que possam trazer mais elementos para um olhar sobre a sua produção. Você poderia falar um pouco sobre seu início na arte? As primeiras influências naquele contexto da época em Porto Alegre? Tiago Rivaldo Eu comecei a trabalhar em Porto Alegre, ainda quando estudante de comunicação lá no meio dos anos 90, como assistente de fotografia de moda e de publicidade, e nesse contexto ficava buscando uma maneira de interferir no fotográfico que me parecia demasiado asséptico, e que, além disso, colocava o fotógrafo distante de seu objeto, tendo a câmera sempre entre, como um limite a ser atravessado. Assim que me formei em Comunicação pela PUC-RS entrei no Instituto de Artes da UFRGS e lá ficava tentando riscar o negativo, desenhar nas fotografias, tentava me sentir mais ativo no processo pra que ele não fosse só de escolha do olho, mas que o resto do meu corpo, minha mão em especial estivesse mais presente ali. Foi numa parceria da primeira Bienal do Mercosul com o Instituto Goethe que participei de uma oficina de Fotografia Pinhole com Jochen Dietrich, da qual fiz parte da formação do Clube da Lata, um coletivo que não só pensava fotografia com câmeras de orifício sem lentes, mas também em maneiras de trazer o fenômeno da câmera obscura como instrumento poético. Foi a partir dessa ferramenta que consegui me ver utilizando a fotografia de uma maneira que eu não estivesse só atrás de uma câmera e passei a estar na frente dela. A fotografia em pinhole, em especial do jeito que fazíamos na época utilizando papel fotográfico como negativo, exige muitas vezes longas exposições do material sensível à luz e isso faz com que não se opere a câmera, ela precisa estar estática para que não se criem borrões na imagem.

Assim fiz inúmeros autorretratos transformando a minha posição em relação à câmera e o meu olhar em relação à fotografia de modo geral. Já que esse procedimento me trazia questões em relação ao tempo eu me interessava em me dedicar mais ao espaço e de que maneira meu corpo se relacionava com o espaço e com o tempo. Em “SubinônibuS“ eu prendia uma lata-câmera no ônibus que me levava de casa até o Instituto de Artes e fazia uma foto a cada viagem em obtenções de vinte a trinta minutos de todo o percurso do veículo pela cidade. Eu estava sempre sentado entre os passageiros e isso além de afirmar a minha nova posição em relação à câmera me trazia questões que tentei desenvolver nos trabalhos seguintes e que talvez seja o início do que você percebe nas minhas proposições. Enquanto viajava pela cidade ouvia as indagações das pessoas sobre o que seria aquela lata presa numa janela ou num dos postes no interior do ônibus, percebia o estranhamento e a curiosidade do outro. Isso me trazia vontade de ter meu corpo mais presente na ação, de que não fosse só em função de um resultado em imagem (que essas pessoas talvez jamais viessem a ver), mas que o procedimento para o fotográfico fosse um estímulo à curiosidade do outro. O último trabalho que eu apresentei em Porto Alegre antes de mudar para o Rio, Obscura vestível, n.o 1 tinha esta vontade bem clara. Eu utilizava uma câmera-máscara e me deslocava pelo centro de Porto Alegre assistindo a rua de cabeça para baixo. Chamei um amigo para registrar e pedi que ele fotografasse as reações de curiosidade e estranhamento das pessoas me vendo passar com aquele objeto sobre o rosto. O trabalho foi exposto reunindo essas foto e um vídeo com o que eu via no percurso. Eu buscava ver a cidade de outra maneira, estar desorientado num ambiente que me era familiar e associar isso à possível desorientação que causaria nos outros ao me ver usando um objeto estranho de visão, uma máscara, um óculos pouco usual.



Marcos Sari Com sua mudança para o Rio de Janiero fico tentando imaginar as reper- cussões na sua produção. Suponho que o ambiente da cidade e a cena artística sejam bastante diferentes em relação a Porto Alegre. Esta sua mudança de lugar se deu a partir da necessidade de um novo ambiente artístico?

Passei a pensar retrato e paisagem como identidade e território respectivamente, e fui buscando maneiras de construir a minha relação com o lugar a partir de instrumentos que a arte me oferece e assim construindo ficções que me possibilitem interferir, absorver, pertencer a esse lugar.

Tiago Rivaldo A mudança para o Rio em 2001 se deu por motivos outros, mas certamente me interessava o novo ambiente nesse sentido. O Rio de Janeiro por natureza tem uma disposição outra para a rua: o clima, a paisagem, o carnaval, o churrasquinho na calçada, a praia como grande ponto de encontro...E os artistas de quem me aproximei logo na chegada estavam diretamente atentos a isso, pensavam a cidade em seus projetos ora como suporte, ora como assunto me fazendo reforçar o interesse por arte-vida, muitas vezes salientando até mais a vida em seus discursos.

Marcos Sari Olhando para sua produção noto a inclusão do outro como participante ativo da obra em inúmeras situações. Como você situa este outro em seu trabalho?

Marcos Sari Ainda sobre esta questão regional da produção da arte no Brasil: A partir da sua experiência nesses anos produzindo fora do seu lugar de origem, você sente algum “acento” regional na sua produção? Esta pergunta faz sentido pra você? Em caso afirmativo como isso tem aparecido, ou não, ao longo destes anos? Tiago Rivaldo Não percebo traços regionais, mas claro que lá no início fazia muitas comparações. E depois de algum tempo passei a ser estrangeiro lá e cá. Não sou mais de um lugar e nunca vou ser completamente do outro. Acho que isso é bom, sempre gosto da ideia de desorientação, acho que desorientação tira da zona de conforto, traz um olhar mais atento, um pé atrás, receio e inquietação. Eu fiz uso da construção de entendimento desse novo lugar e faço até hoje. A paisagem do Rio de Janeiro, as grandes montanhas, o mar, a favela, a desigualdade social evidente (e não isolada geograficamente em periferia-centro) meu olhar de estrangeiro, de turista, meu deslumbre com a natureza e o conflito de cultura estão bem presentes nos meus trabalhos até hoje.

Tiago Rivaldo Logo da minha chegada ao Rio eu sentia falta das parcerias, tinha certa timidez em buscar colaboradores, sentia falta das trocas com Adriana Boff, grande parceira de Clube da Lata, com quem desenvolvi mais de perto algumas proposições do grupo. Ao mesmo tempo me via com projetos que necessitavam cada vez mais de equipe, pois me colocava cada vez mais defronte à câmera e a dificuldade em pedir ajuda se refletia em carregar mais o trabalho da necessidade dessa ajuda, como se o trabalho me impusesse uma superação. Nos primeiros anos longe de Porto Alegre fui convidado a participar de uma exposição que pretendia reunir a produção fotográfica gaúcha, na Usina do Gasômetro. Eu propus uma ação fotográfica na abertura e a produção disse não ter verba pra me levar a Porto Alegre. Escolhi então uma peça para enviar e a produção reclamou do tamanho e do preço do transporte da peça, me perguntando se eu não tinha alguma coisa pequena para mandar pelo correio. Aquilo me incomodou muito e me deu vontade de não enviar nada, mas me remeteu também às conversas que estava tendo com os artistas aqui no Rio, sobre política em relação ao circuito de arte e sobre o olhar muito forte nessa época de que se recebia apenas por venda de obras e não pelo trabalho de arte, deixando toda a produção em torno sem remuneração, como se o artista participasse de uma exposição como quem expunha em feira, pagando para gerar interesse num mercado ainda muito fraco para tanto.



O que eu percebia aqui nesses casos era uma atitude importante: se você não está satisfeito não vai mudar nada simplesmente negando o convite, era mais importante aceitar para criticar aquilo do lado de dentro. E foi o que eu tentei fazer: imprimi o retrato da minha carteira de identidade emitida no RJ em 32 envelopes e escrevi cartas para a minha família, pros amigos e para a produção, além de alguns colegas da exposição. Essas cartas foram enviadas como Carta Social, uma categoria dos correios para correspondências com menos de 10g escritas à mão ao custo de um centavo de Real. Nas cartas eu falava sobre mim, manifestava saudade das pessoas e ainda apontava, em especial para os envolvidos na exposição, meu descontentamento com o convite. Além disso, as cartas continham instruções para que as pessoas montassem um quebra-cabeça com o meu retrato, e assim se dava a minha presença na abertura da exposição: os meus convidados todos reunidos junto à minha imagem, uns se apresentando aos outros, a família e os amigos. Ah, a carta endereçada à produção e à curadoria apresentava o custo do trabalho e exigia reembolso: R$0,32. O trabalho se chamou Carta Social, Cartapretexto ou carta-protesto e acho que isso tem bastante força no início dessa vontade de ver o outro mais presente e ainda apontava para a maneira de tratar alguns trabalhos como ações afetivas. Além disso, fui percebendo uma presença forte de autorreferência, o que pode ser evidenciado superficialmente com o autorretrato, mas que chega a umas camadas mais profundas como as necessidades de superação de alguns limites, de alguns padrões da personalidade. Isso tudo passa por uma busca de identidade nesse novo território e de que isso não é encontrado apenas atravessando a paisagem em grandes túneis espalhados pela cidade, mas que a paisagem humana é muito importante para reflexo/ reflexão da minha própria identidade. E mais. Tenho impressão de que me sinto ‘salvo’ de alguma maneira pelo olhar que fui construindo na relação com a arte, em especial pelo uso da câmera obscura.

Perceber pelas sombras, pela representação, pelo uso de um instrumento ótico que desorienta, um óculos que dificulta, que problematiza o olhar, me faz questionar e me deixa atento aos estímulos provocados por simples reflexão de luz. Talvez eu venha tentando estimular isso no outro, talvez eu queira sim- plesmente, e de um jeito bem simples mesmo, que o outro também tenha essa experiência e para isso preciso convidar a entrar e não só a assistir do lado de fora. Marcos Sari Você pode falar um pouco sobre essas suas ações de construir a obra em situações cotidianas, na rua de forma que me parece bastante direta? Tiago Rivaldo Acho que já respondi um tanto isso falando da descoberta de que não estava só fotografando na rua, mas que estava provocando curiosidade, de que o estranhamento pela forma da câmera ou pela minha postura frente a ela estimulava algum desvio do olhar para o cotidiano e acho que arte para mim é um tanto isso: mudança de percepção. E que através dela podemos mudar o olhar sobre a cidade, sobre o outro, sobre nós mesmos, sobre a vida de uma maneira geral. A desorientação é um dado que me interessa por aí também, realizar algo no ambiente da arte, em um museu ou em uma galeria parece ter a garantia de relação entre artista e público estabelecida pela obra. Realizar uma ação na rua e muitas vezes não apontá-la como arte e produzir estímulos visuais, sensoriais, corporais me parecem gerar algum conflito que desestruture o habitual. Encarar o outro e convidá-lo a uma ação que não está habituado, que lhe faça sair do comum da sua rotina, de forma transitória, sem monumentalizar a arte me parece propor um compartilhamento de experiências, de maneira que não tenha esse outro como instrumento de realização e nem como simples espectador, passivo e beneficiado por uma proposição estética ‘generosa’ mas que eu possa levar dele também algo em troca.


Talvez isso tudo também venha de um incômodo em entregar uma obra pra ser exposta e a impressão de que o fiz sem que esteja realmente pronta e que talvez nunca esteja e que vai se relacionar com o público sem que eu tenha a experiência do encontro. Acho que passei a querer esses encontros para diminuir o incômodo, pra deixar mais justa a troca, pra que eu esteja presente, para que fazendo acontecer na hora não tenha ansiedade do produto final e que o outro construa junto o que tiver que ser construído. Marcos Sari Gostaria que você falasse um pouco sobre este papel de artista como propositor de situações que necessitam tanto da participação das pessoas em relação à obra quanto, muitas vezes, de um terceiro participante para que o trabalho aconteça, como no caso do trabalho Obscura para dois, 2009. Tiago Rivaldo Esse trabalho foi projetado há muitos anos e se referia a necessidade de parceria, ele foi se transformando com o tempo, se tornou mais simples e tratando de questões mais complexas. A vontade de entendimento da identidade pelo olhar do outro para o pertencimento de um território, para o entendimento desse território. Por muito tempo ele era um exercício de rua, uma proposição de aula, uma experiência coletiva. Eu prefiro pensar ele como trabalho mesmo do jeito que vem sendo apresentado nos últimos anos, associado a Susana Guardado, artista portuguesa que propõe retratos sonoros de artistas. O projeto se chama Personal DJ e se encaixa perfeitamente nos meus interesses em arte. Susana morou alguns anos no Rio e logo da sua chegada propunha aos artistas locais que realizassem um trabalho em parceria com ela que tivesse música como elemento base. Eu vinha explorando caixas de papelão desde a mudança para o Rio, transformando em câmera, fazendo objetos, tirando proveito do material carregado da ideia de mudança. Em Obscura para dois, caixas de papelão são preparadas com aberturas recortadas em formato de rosto em lados opostos de maneira que só aconteça o fenômeno de câmera obscura se duas pessoas a usarem, cobrindo as aberturas com seus rostos, vedando assim as entradas de luz para a que a projeção natural aconteça.

Assim cada uma das pessoas observa a paisagem que está atrás de si projetada de cabeça para baixo sobre o rosto do outro e vice-versa. O que eu observei propondo isso em situação de aula ou com os amigos é que as pessoas tentavam enquadrar outras coisas e ficavam se movimentando com a caixa entre os corpos e isso fazia com que os pares pareces- sem dançar. Hoje o projeto em parceria com Susana se chama Personal DJ – Baile da mudança, e é um baile a céu aberto, no Sol, com DJ ou uma banda tocando músicas românticas enquanto os pares dançam se olhando e admirando a paisagem invertida sobre o rosto um do outro. Marcos Sari No trabalho Via de mãos dadas, n.o2, 2010, você se coloca como sujeito em ação com um interlocutor numa tentativa de uma ação que parece uma espécie de “diálogo frágil” e que, mesmo quando acontece este diálogo, ele é fugaz. Esta precariedade do trabalho tem um encantamento a meu ver que nos mantém ligados ao que acontece ali. O que você poderia dizer sobre este trabalho e sobre esta impressão? Tiago Rivaldo Via de mãos dadas, n.o 2 está diretamente associado à Via de mãos dadas, n.o 1. O primeiro é uma performance em que eu e outro homem, que se pareça comigo pelo menos em estatura (e eu faço questão de convidar sempre alguém novo para realizar comigo) chegamos em determinado lugar cada um em uma bicicleta e depois de trocarmos alguns olhares descemos das bicicletas, tiramos uma das suas rodas e transformamos em uma só, dividindo a roda traseira. Depois de remontado temos que aprender a usar o novo objeto e não é nada fácil, demoramos algum tempo, caindo, colocando o pé no chão com muita frequência até que consigamos ter um movimento fluido, ora levando ora sendo levado, um dois-pra-lá-dois-pra-cá, uma quase dança na tentativa de compartilhar o espaço e a experiência. O objeto montado sem a ação sugere uma guerra de forças, tensão e impossibilidade de uso.


Quando usado ele desconstrói essa ideia e propõe equilíbrio e compartilhamento. Via de mãos dadas, n.o2 é um vídeo em que estou eu e meu parceiro nos encarando frente a frente, de perfil para a câmera fazendo bolhas de sabão com as próprias bocas. As bolhas de um estouram a do outro com um simples toque, em alguns momentos elas se transformam em uma só e tentamos fazê-la crescer até que se estoure e recomeçamos o processo. Os dois trabalhos se complementam em intenção e eu os vejo como reflexo dessa vontade da presença do outro, de que não me interessa fazer sozinho, de que não me interessa o que não seja compartilhado. É a impressão de que nada está aqui ou ali, em mim ou no outro, mas que está entre. Em todos os âmbitos, acho que a vida só faz sentido se for compartilhada. Seja tenso, frágil, complicado, difícil... Se eu compartilho casa, estúdio, cama, mesa, ônibus, lazer, prazer, por que não a arte? Tiago Rivaldo é Artista e trabalha em produções de cinema Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil Site do artista: https://www.flickr.com/people/tiagorivaldo/ Créditos (Tiago Rivaldo), Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Carta-protesto, 2003. Caneta Bic azul, impressão laser e carimbo sobre envelope de sulfite, amigos e colegas. 88 x 64 cm. Exposição Um Território da Fotografia, 2003, Galeria dos Arcos, Porto Alegre, Brasil. Curadoria Alexandre Santos/Maria Ivone dos Santos. (Tiago Rivaldo/Susana Guardado), Personal DJ | Baile da mudança, 2012. Ação colaborativa, intervenção urbana - Praia de Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil. Caixas de papelão, música. Crédito fotográfico:Rafael Veríssimo.


Caderno de Entrevistas - N.1 Projeto Meio Colaboradores dessa edição Daniela Mattos e Tiago Rivaldo Organizadores Daniele Marx e Marcos Sari
 Edição n.1 (em papel) 05/2014 N.1 /// e-meio, 2016
 Contato: projeto.meio@gmail.com http://projeto-meio.blogspot.com.br


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