Tributação em Revista 56

Page 1

ributação T EM REVISTA

Ano 16

N° 56

Jan–Jun 10

Distribuição Dirigida

Uma publicação do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil – Sindifisco Nacional

ISSN 1809-3426


PREVIDÊNCIA SOCIAL PÚBLICA E CONDIÇÕES DE TRABALHO Projeto O Auditor e a Sociedade A Previdência Social é indispensável para a sociedade brasileira. São 32 milhões de beneficiados que, dentre os idosos com mais de 65 anos, correspondem a 80% da populaçãao brasileira. A DEN compreende que um debate acerca dos desafios do regime previndeciário, que contemple relação à discussão das fontes de financiamento como dos benefícios e das políticas sociais decorrentes da execução do orçamento da Seguridade Social são essenciais para a sociedade brasileira. programa de integração e valorização Diretoria Executiva Nacional

Política de Distribuição - Tributação em Revista é uma publicação periódica do Sindifisco Nacional - Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. A revista tem acesso livre e é divulgada eletronicamente no endereço http://www.sindifisconacional.org.br, no link publicações. Havendo interesse em receber um exemplar da publicação, entre em contato conosco pelo email: estudostecnicos@sindifisconacional.org.br. Política Editorial - Tributação em Revista é um veículo de divulgação de ideias que explora temas tributários com ênfase em Economia e Direito Tributário; Política e Administração Tributária, Previdenciária e Aduaneira. Constitui-se num campo democrático aberto a discussão e a colaborações. Os artigos aqui divulgados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião da entidade. Os autores interessados em publicar suas reflexões neste espaço devem remeter seus artigos para editor.revista@sindifisconacional.org.br. Os artigos devem ser inéditos e estruturados segundo as normas técnicas da ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas.


sumário 5 6 11 14 23 33

EDITORIAL ENTREVISTA Presidente do Sindifisco Nacional, Pedro Delarue Tolentino Filho

ENTREVISTA 1º Vice-presidente do Sindifisco Nacional, Lupércio Montenegro

ARTIGO Transação em Matéria Tributária: Limites e Inconstitucionalidades. (Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo)

ARTIGO Transação Tributária: Paradoxos e Possibilidades (Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy)

ARTIGO Projeto de Lei Geral de Transação em Matéria Tributária: Análise das Consequências Políticas e Econômicas (Simone Anacleto Lopes)

41 46

ENTREVISTA

52

ARTIGO

54 62 64

Professor da Fundação Getúlio Vargas Eurico de Santi

ENTREVISTA Dr. Arnaldo Godoy, como pensador e especialista em transações tributárias

Comentários Sobre a Lei Geral de Transação (Nei Simões Pires Gallois)

ARTIGO Transação Tributária e os Projetos de Lei em Trâmite no Congresso Nacional. (Álvaro Luchiezi Jr, Alexandra Trentini, Natalie Cevallos Mijan e Renata Machado de Araújo)

QUESTÕES POLÊMICAS EM DIREITO TRIBUTÁRIO Supremo Tribunal Federal valida aumento da Cofins

ARTIGO Dai, pois, a César o que é de César. (Foch Simão Jr)


Tributação em Revista é uma publicação do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil – Sindifisco Nacional.

DIRETORIA EXECUTIVA NACIONAL (DEN) Presidente Pedro Delarue Tolentino Filho 1º Vice-Presidente Lupércio Machado Montenegro 2º Vice-Presidente Sergio Aurélio Velozo Diniz Secretário-Geral Claudio Marcio Oliveira Damasceno Diretor-Secretário Mauricio Gomes Zamboni Diretor de Finanças Gilberto Magalhães De Carvalho Diretor-Adjunto de Finanças Agnaldo Neri Diretora de Administração Ivone Marques Monte Diretor-Adjunto de Administração Eduardo Tanaka Diretor de Assuntos Jurídicos Sebastião Braz da Cunha Dos Reis 1º Diretor-Adjunto de Assuntos Jurídicos Wagner Teixeira Vaz 2º Diretor-Adjunto de Assuntos Jurídicos Luiz Henrique Behrens Franca Diretor de Defesa Profissional Gelson Myskovsky Santos 1ª Diretora-Adjunta de Defesa Profissional Maria Cândida Capozzoli de Carvalho

2º Diretor-Adjunto de Defesa Profissional Dagoberto da Silva Lemos Diretor de Estudos Técnicos Luiz Antonio Benedito Diretora-Adjunta de Estudos Técnicos Elizabeth de Jesus Maria Diretor de Comunicação Social Kurt Theodor Krause 1ª Diretora-Adjunta de Comunicação Social Cristina Barreto Taveira 2º Diretor-Adjunto de Comunicação Social Rafael Pillar Junior Diretora de Assuntos de Aposentadoria, Proventos e Pensões Clotilde Guimarães Diretora-Adjunta de Assuntos de Aposentadoria, Proventos e Pensões Aparecida Bernadete Donadon Faria Diretor do Plano de Saúde Carlos Antonio Lucena Diretor-Adjunto do Plano de Saúde Jesus Luiz Brandão Diretor de Assuntos Parlamentares João Da Silva dos Santos Diretor-Adjunto de Assuntos Parlamentares Geraldo Marcio Secundino Diretor de Relações Intersindicais Carlos Eduardo Barcellos Dieguez

Diretor-Adjunto de Relações Intersindicais Luiz Gonçalves Bomtempo Diretor de Relações Internacionais João Cunha da Silva Diretora de Defesa da Justiça Fiscal e da Seguridade Social Maria Amália Polotto Alves Diretor-Adjunto de Defesa da Justiça Fiscal e da Seguridade Social Rogério Said Calil Diretor de Políticas Sociais e Assuntos Especiais José Devanir De Oliveira Diretores-Suplentes Eduardo Artur Neves Moreira Kleber Cabral Conselho Fiscal Membros Titulares Ricardo Skaf Abdala Jose Benedito de Meira Maria Antonieta Figueiredo Rodrigues Membros Suplentes Iran Carlos Toneli Lima Norberto Antunes Sampaio José Yassuo Hashimoto

Tributação EM REVISTA

Conselho Editorial Lupércio Machado Montenegro, Elizabeth de Jesus Maria; Kurt Theodor Krause; Tarcízio Dinoá Medeiros; João Cunha da Silva; Hélio Socolik, Roberto Barbosa de Castro e Luiz Antonio Benedito.

Projeto Gráfico Erika Yoda

Tiragem desta edição 21.500 mil exemplares

Diagramação e Capa Alessandro Santanna

Coordenação Executiva Alvaro Luchiezi Jr.

Fotolito e Impressão Mais Gráfica

Produção Editorial Publicação Dirigida. Acesso livre no segunte endereço eletrônico http://www.sindifisconacional.org.br , link publicações. Para receber um exemplar da publicação, entre em contacto pelo email: estudostecnicos@sindifisconacional.org.br

Revisão Cecília Fujita, Joíra Coelho e Suely Touguinha Edição Patrícia Cunegundes

Diretora Patrícia Cunegundes (61) 3349 2561

Redação e correspondência SDS, Conjunto Baracat – 1º andar, salas 1 a 11 BrasíliaDF - CEP 70392-900 Fonefax: 61 3218-5255

Colaboração: Os artigos, inéditos, devem ser enviados para Tributação em Revista – Sindifisco Nacional, Departamento de Estudos Técnicos, SDS, Conjunto Baracat, salas 1 a 11, Brasília-DF, CEP 70.392-900 ou para o e-mail estudostecnicos@sindifisconacional.org.br. Os textos serão submetidos ao Conselho Editorial quanto à conveniência de publicá-los, poderão sofrer revisão e, se necessário, serão devolvidos ao autor com sugestões de mudanças ou solicitação de informações. Nenhuma modificação de estrutura ou conteúdo será feita sem consentimento do autor. As matérias publicadas por Tributação em Revista só poderão ser reproduzidas mediante autorização do Sindifisco Nacional. Os originais devem ser apresentados em disquetes, CD-ROM ou enviados por email, em arquivos do Word e Excel (tabelas), corpo 12, até 15 páginas e deverão conter: Página inicial abordando os principais tópicos do artigo; Notas e referências bibliográficas; Currículo do autor (máximo 5 linhas).


e DITORIAL Neste número, estamos trazendo à consideração do leitor diversas matérias a respeito do Projeto de Lei nº 5.082/09 que tramita na Câmara dos Deputados por iniciativa do Poder Executivo. Esse projeto, gestado na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, intenta criar um amplo sistema de negociação dos litígios fiscais, no bojo do que seria chamado de Lei Geral de Transações (LGT). Fiéis a nosso compromisso de imparcialidade e a nossa linha editorial, que contempla basicamente a filosofia de que Tributação em Revista é um campo livre de discussão de ideias e de controvérsias, abrimos nossas páginas a posicionamentos de todos os matizes, livremente expostos. Ao leitor, cabe o julgamento final e, se desejar, cabe também manifestar sua opinião nos próximos números. Não obstante, não podemos nos furtar de manifestar claramente nossa opinião. O projeto causa profunda preocupação pelo enorme potencial de efeito deletério que tem sobre a estrutura, a filosofia e o funcionamento da administração fiscal. Essa preocupação não advém, como podem alegar, de mero conservadorismo e corporativismo. Temos plena consciência de que, na raiz histórica, a tributação é, por definição, ato de príncipe, impregnado de injustiça, submissão e, muitas vezes, de odiosidade. Ao súdito, ao vassalo, sempre coube pagar sem tergiversar. O direito da força, historicamente, sempre preponderou sobre a força do direito. Entretanto, temos orgulho de viver e de trabalhar em um momento histórico excepcional, em que finalmente o Direito Tributário emergiu como componente essencial da democracia, com claras e amplas regras gerais fundadas na própria Constituição da República, trazendo em seu bojo um conjunto equilibrado e generoso de proteção do contribuinte – que deixa de ser o súdito submisso e assume o papel de cidadão, sujeito de obrigações quanto à participação no custeio do Estado, sim, mas também de direitos capazes de tolher os excessos da sanha arrecadadora e do comportamento da administração fiscal. A transação em matéria fiscal poderia até vir a ser saudada como um passo a mais nessa evolução, desde que gabarita-

da com a parcimônia e a cautela necessárias à sua integração como instrumento harmonioso no conjunto dos institutos tributários. E, sobretudo, compatível com todos os princípios e critérios do direito público em geral e do direito tributário em particular, de nível constitucional ou não. A transação é, típica e essencialmente, um instituto do direito privado; nasce e viceja em ambiente pontuado pelo voluntarismo das partes, que podem abrir mão de direitos e assumir deveres livremente, porque somente a elas as consequências dizem respeito. Não assim, porém, quanto ao direito público, em que uma das partes é o Estado, cuja vontade não é necessária nem idealmente a expressa por um de seus agentes, mas pela lei; e, principalmente, em que as consequências de uma transação vão muito além da pessoa do negociador para atingir toda a comunidade pagadora de impostos. No direito público, os direitos e/as obrigações são ex lege. Todas as tentativas de introduzir o regime contratual como cunha no direito público foram, em geral, mal-sucedidas ou exigiram enormes e muitas vezes frustrados esforços e esquemas de controle. Aí estão, copiosas e frequentes, na imprensa, notícias sobre escândalos envolvendo contratos de obras e serviços, e não vai longe na memória o fracasso da tentativa de introdução do regime da consolidação das leis do trabalho no serviço público. Não é por acaso que a transação fiscal, disponível no Código Tributário desde 1965, tenha hibernado por tanto tempo. Sua súbita implantação e o seu uso geral e indiscriminado, simplesmente poderão ter como primeiro efeito desmoralizar toda a imagem de força dissuasória que a Receita Federal e os Auditores-Fiscais lograram construir ao longo dos últimos quarenta anos, responsável pela efetivação voluntária de mais de noventa por cento da arrecadação federal. A edição traz também entrevista com os dirigentes da entidade responsável por esta publicação. Entidade que, unificando a representação dos Auditores-Fiscais, torna-se mais robusta e atuante; porém, não menos comprometida com os assuntos de interesse da sociedade e do Estado brasileiro, mormente naqueles de sua área de competência. TRIBUTAÇÃO em revista

5


e NTREVISTA

Fotos: Arquivo Liberdade de Expressão

Pedro Delarue “Uma categoria cada vez mais forte”

E

m entrevista à Tributação em Revista, o presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional), Pedro Delarue Tolentino Filho, avalia a fusão do Unafisco e dos sindicatos da base da Fenafisp e fala do fortalecimento da categoria. Trata ainda de temas como justiça fiscal, reforma tributária e, claro, de transação tributária, assunto de destaque desta edição. 6

TRIBUTAÇÃO em revista


Tributação em Revista: Gostaria que o senhor fizesse uma avaliação dos primeiros meses de fusão das

tação sindical. Não estamos falando da Receita Federal do Brasil, da questão administrativa.

entidades sindicais, em termos de fortalecimento da categoria. Pedro Delarue: A unificação dos sindicatos da base da Fenafisp com o Unafisco, que resultou na criação do Sindifisco Nacional, fortaleceu a classe dos AuditoresFiscais da Receita Federal do Brasil como um todo. Hoje, somos cerca de 25 mil filiados. Foi uma grande conquista para a categoria. O desafio, no início, era vencer algumas resistências e a confluência de culturas. Para que isso fosse superado, houve ampla discussão, com vários seminários e depois um congresso de unificação, em que finalmente nos unimos. Portanto, desde setembro de 2009, temos apenas um sindicato, uma só diretoria. A experiência tem sido positiva e temos conseguido administrar bem o sindicato. O Conselho de Delegados Sindicais agora também é uma instância totalmente renovada – vários colegas oriundos da Previdência são delegados. TR: Podemos voltar um pouco na questão da diferença cultural entre Unafisco e Fenafip? Como tem sido a convivência com duas experiências culturais diferentes? O que foi agregado de bom das duas culturas? PD: O debate sobre a fusão foi feito com profundidade, por isso não há, nem houve, problemas. A convivência e a troca de experiências estão fluindo muito bem. Na Di-

TR: Há problemas dentro da Receita Federal do Brasil? PD: Dentro da Receita Federal há outras questões que afetam, sim, os auditores provenientes da Previdência. Eles nem sempre estão satisfeitos com o papel que está sendo reservado a eles dentro da Receita. Muitos dos colegas vindos da Previdência têm sido deslocados da fiscalização previdenciária para outros setores da fiscalização tributária. Há muitas reclamações e temos de concordar com isso. A receita previdenciária tem até aumentado. Mas isso não quer dizer que a eficiência da fiscalização está aumentando. Tem aumentado por outros fatores, como aumento do emprego formal. Essa visão arrecadatória e o abandono da fiscalização previdenciária nos preocupam. No futuro, essa postura poderá trazer problemas para a própria arrecadação da Previdência, no sentido de que é fundamental a contribuição do empresariado, o emprego formal, a eventual descaracterização de uma relação trabalhista que se imponha de forma precária. TR: Qual a posição do Sindifisco sobre essa questão? PD: Temos alertado sistematicamente a Administração para essa deficiência e a Diretoria do sindicato tem discutido o enfraquecimento da fiscalização previdenciária. Estamos discutindo o que fazer para alertar até mesmo a população sobre o enfraquecimento de um patrimônio que é dela, do trabalhador, que é a Previdência.

retoria Executiva Nacional, por exemplo, somos uma mistura de diretores que vieram da Receita e da Previdência. Estamos cada um absorvendo a experiência do outro e a relação é positiva. No caso dos egressos da Receita, estamos absorvendo a cultura previdenciária, com seminários para tratar de previdência pública, seguridade social, déficit previdenciário. Existe um grupo de trabalho constituído especificamente para tratar das questões previdenciárias, analisar e propor

Muitos colegas vindos da Previdência têm sido deslocados da fiscalização previdenciária para outros setores da fiscalização tributária.

soluções. Não há nenhum conflito dentro do sindicato, mas até agora estamos falando de categorias, de represen-

TRIBUTAÇÃO em revista

7


TR: O senhor poderia fazer uma avaliação das conquis-

uma readequação, que deve passar por uma neutralida-

tas da categoria, a partir da unificação dos sindicatos?

de do ponto de vista arrecadatório. Em 2007, cinco mil

PD: Nossa maior conquista foi antes da unificação,

contribuintes declararam ganhar mais de R$ 1 milhão por

com a última campanha salarial, em que estabelecemos,

ano, o que absolutamente não corresponde à realidade. A

espero que definitivamente, a questão da paridade, por

legislação permite essa elisão fiscal. Estamos identificando

meio da remuneração. Acho que esse foi o grande avan-

os caminhos da elisão e propondo, por exemplo, que só-

ço. Resolvemos também uma questão que há muitos anos

cios de empresas, que hoje não pagam imposto de renda

incomodava a categoria, que era o chamado fosso salarial.

porque são isentos na distribuição do lucro, passem a, de

E sem dúvida nenhuma isso é fruto dessa união, ainda

fato, pagar Imposto de Renda como pessoas físicas. Com

antes da unificação. A Lei Orgânica do Fisco, que também

esse ajuste, o Estado teria condições de reduzir a tributa-

já estava sendo trabalhada antes da unificação, mas que é

ção para as faixas de renda menores.

nossa principal bandeira agora, está começando a andar. Isso também pode ser visto como vitória, apesar de ter

TR: Ou seja, melhorar a integração da tributação da

muitos pontos ainda a ser melhorados na proposta que a

pessoa jurídica para pessoa física.

Administração fez.

PD: Sem querer tornar a legislação extremamente complexa, mas criando um sistema mais justo. Temos de

TR: Ainda sobre a fusão dos sindicatos, podemos

encontrar um meio termo entre a complexidade e a sim-

conversar um pouco sobre as bandeiras de luta?

plicidade; e entre a justiça social e fiscal versus injustiça

PD: Sobre bandeiras de interesse da sociedade, uma

social e fiscal.

delas é a questão tributária. Estamos fazendo um estudo

No sistema tributário norte-americano, por exemplo,

para oferecer aos candidatos a presidente da República,

não se consegue fazer o Imposto de Renda sem um conta-

aos partidos políticos, no sentido de propor a reforma tri-

dor, tais são as possibilidades de dedução. A não ser que a

butária de que o Brasil de fato precisa e não aquela que

pessoa seja um estudioso do assunto. Talvez esse não seja

está posta sobre a mesa. É uma proposta dos Auditores-

o sistema ideal para o Brasil, mas também não pode ser

Fiscais da Receita Federal para um Brasil mais justo, com

um sistema tão simplificado quanto é o nosso. É preciso

preocupações de justiça fiscal e social.

pegar as faixas de renda maiores e aumentar as possibilidades de dedução. Para isso é necessário criar uma comple-

TR: A proposta ainda está em estudo, mas há algum ponto que pode ser adiantado?

xidade um pouco maior do que a que temos hoje. Outra questão é a previdenciária. Na reforma tributária

PD: Há o problema da descaracterização da pessoa

colocada hoje, a proposta é incorporar as contribuições

jurídica, que citei quando falava da fiscalização previden-

destinadas à Previdência a um novo imposto sobre o con-

ciária. Além da questão da má distribuição da carga tri-

sumo. Em 1988, foi criado um sistema de seguridade e

butária, há um mais perverso: obrigar o trabalhador a se

propostas algumas contribuições para financiá-lo. Se o sis-

constituir como pessoa jurídica para não pagar justamente

tema transforma tudo em imposto e depois destina parte

a contribuição previdenciária.

dele para a seguridade social, há um problema. Imposto não tem destinação específica. Deve-se analisar a constitu-

TR: Quais os principais pontos dessa reforma em es-

cionalidade de carimbar uma porcentagem desse imposto.

tudo?

O Sindifisco Nacional tem muito receio dessa visão. O que

PD: Imposto de Renda é um deles. O imposto de Renda no Brasil é muito mal-distribuído. Estamos propondo

8

TRIBUTAÇÃO em revista

poderia ser feito é criar uma contribuição, além do imposto, para garantir os recursos da seguridade social.


TR: Podemos falar um pouco sobre a previdência

Não vejo vantagem em um sistema de previdência complementar para o governo, tampouco para o servidor

complementar do servidor público? PD: Em 2003, foi criada a previdência complementar do servidor público. Talvez o governo tenha feito as contas e visto que não é interessante para ele, porque vai ter de, primeiro, fazer um aporte de recursos imediato, referente ao tempo que cada servidor já contribuiu, pois o governo, que hoje administra a Previdência por fluxo de caixa, vai ter de fazer capitalização. Não vejo vantagem para o governo em um sistema de

TR: Qual o posicionamento sobre o imposto sobre

previdência complementar, tampouco para o servidor. O

grandes fortunas?

sistema que existe hoje, o de pacto de gerações, tem fun-

PD: Vários países criaram imposto sobre grandes for-

cionado ao longo do tempo. Evidentemente que esse fluxo

tunas, alguns não criaram, outros criaram e voltaram atrás.

depende da contratação de servidores públicos, de forma a

Há possibilidade, por exemplo, de a pessoa física transferir

compensar a saída dos que venham a se aposentar.

todo o seu patrimônio para a pessoa jurídica. Deve-se analisar quais são as salvaguardas, as alternativas, para evitar

TR: O tema desta edição é transação fiscal e a execu-

que isso aconteça. Queremos discutir o assunto, mas que-

ção da dívida ativa. Como o Sindifisco Nacional se

remos também ver as condições para evitar a burla, de

posiciona em relação a isso?

forma a tornar o imposto efetivo.

PD: O processo de transação fiscal foi objeto de intervenção nossa na Casa Civil há dois anos. A proposta

TR: O imposto sobre herança não deixa de ser um

dificulta a fiscalização. Em outros países existe o instru-

imposto sobre grandes fortunas, no momento da

mento da transação, mas para todo um setor econômico.

morte do detentor da fortuna. O que o senhor acha?

Para evitar a demanda judicial, por exemplo, faz-se um

PD: A partir de determinada alíquota, o imposto passa

acordo com o setor, não é com uma empresa. Transaciona-

a ser pouco efetivo, porque o sujeito tende a transferir o

se com o setor de forma transparente. Por exemplo, quem

patrimônio para a pessoa jurídica antes de morrer. Ao criar

desistir da ação judicial fica isento de multa durante perí-

alíquotas, deve-se ter a preocupação com a efetividade,

odo em que existiu o contraditório. Evita-se uma demanda

para que uma carga tributária alta não leve o contribuinte

judicial e garante-se o crédito tributário. Da forma como

a achar mais vantagem elidir do que pagar.

está colocado o projeto de transação fiscal, o contribuinte

O problema da carga tributária não é o tamanho, mas

é autuado, passa pelas instâncias administrativas antes de

a distribuição. O Brasil fez uma opção clara em 1988 pelo

entrar na Justiça, depois entra com uma ação judicial e

Estado do Bem-Estar Social. A educação e a saúde pas-

depois de muitos anos, quando ele perdeu e não há mais

saram a ser universais. Não atingimos o ponto que nós

recursos, pede-se a transação.

queríamos, não somos a Alemanha nem a Suécia, mas a Suécia tem o tamanho e a população menores que o estado

TR: Isso desmoraliza todo o processo?

de São Paulo. E, além disso, começou a fazer parte desse

PD: A fiscalização vive da percepção que o contri-

Estado de Bem-Estar Social muito antes do Brasil. A carga

buinte tem do risco de ser fiscalizado. Se ele perde o

tributária não necessariamente é alta para o caminho que

medo de sonegar, sabendo que em alguns anos have-

o Brasil resolveu tomar, mas ela é muito mal-distribuída.

rá um Refis ou o instrumento da transação fiscal, ele

TRIBUTAÇÃO em revista

9


Não vejo a contração da política de custeios como benéfica para o Brasil. Temos de investir na burocracia estatal, na fiscalização, na saúde, na educação, na habitação deixa para resolver lá na frente. E quem está pagando corretamente, como fica? No contexto de uma crise econômica, o empresário tem opção de pagar os tributos, demitir funcionários ou investir na empresa. O que foi

garantir a dívida. Eu acho que não tem problema, porque ele pode até trocar os bens dados em garantia. Não é um bloqueio de bens. O que acontece hoje é que o contribuinte inadimplente fica em uma posição muito confortável, porque há toda sorte de dificuldades para a Receita e a Procuradoria exigirem o oferecimento de bens para a garantia da dívida. No caso da dívida ativa, segundo a lei, é dívida líquida e certa, o sujeito é quem tem de provar que não deve. Então, se o sujeito quiser movimentar seus bens, ele tem de oferecer algum meio de garantia do recebimento da dívida. Muitas vezes, ao final do processo, já se passaram muitos anos e o contribuinte inadimplente já não tem mais bens.

obrigado a demitir e deixar de investir, vai ficar em uma situação de concorrência desleal em relação ao que deixou de pagar. Aquele que cumpre com as obrigações se sente tentado a também não pagar, para não entrar em uma concorrência desleal.

TR: Para encerrar, estamos em ano eleitoral. Quais as perspectivas de mudança de governo, no que diz respeito às bandeiras sindicais dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, a gastos públicos, investimentos?

TR: Ao longo dos últimos 40 anos, a Receita ganhou

PD: Eu não acho que o governo gasta demais, acho

eficiência, passou a alimentar o registro de cobran-

que o governo gasta indiscriminadamente, erradamen-

ças a ser feitas pela Procuradoria e a Procuradoria

te, mal, poderia cortar mais aqui e menos ali. Mas tenho

não acompanhou na mesma velocidade. No fundo há

certeza do seguinte: não é a falta de investimento no

um contraste entre aumento de eficiência da Receita

servidor público que vai tornar o Estado mais eficiente.

contra a estagnação da Procuradoria.

É o contrário.

PD: O erro é que, como não se consegue cobrar, ao

A perspectiva de o País crescer de 7% a 8% traz

invés de se optar por aumentar a eficiência, opta-se por

crescimento proporcional na arrecadação. Portanto, por

facilitar a vida do potencial sonegador. A solução não pode

que não contratar mais, por que não pagar melhor, por

ser essa. A obrigação do Estado não é facilitar a vida do

que não treinar mais? Não vejo essa contração da polí-

contribuinte, é receber o que lhe é devido, porque senão

tica de custeios como benéfica para o Brasil. Temos de

cai em outra questão. Aquele dinheiro que deixou de en-

investir na burocracia estatal, na fiscalização, na educa-

trar vai ter de ser cobrado de outra empresa ou pessoa que

ção, na saúde, na habitação. Se o País está crescendo,

está pagando corretamente. Alguém acaba pagando essa

vamos aproveitar para investir mais e melhor. O que

conta. Para a conta fechar, a carga tributária aumenta.

deve haver é controle para evitar desvio de dinheiro público. Acho que temos progredido, mas ainda pre-

TR: Qual a sua visão sobre o projeto de execução

cisamos de mais controle social sobre os gastos do go-

fiscal?

verno. O problema, para mim, não é o investimento no

PD: Na penhora administrativa, também está previsto o arrolamento de bens. O contribuinte elege um bem para

10

TRIBUTAÇÃO em revista

servidor público, é a qualidade na destinação dos gastos públicos e o controle social sobre a corrupção.


e NTREVISTA

Fotos: Arquivo Liberdade de Expressão

Lupércio Montenegro “A unificação sindical consolidou uma unidade que já vinha sendo construída”

O

1º vice-presidente do Sindifisco Nacional, Lupércio Machado Montenegro, concede entrevista à Tributação em Revista para avaliar a fusão das entidades sindicais representativas do Fisco e das receitas previdenciária e federal. Ele fala dos problemas de fiscalização, da estrutura de trabalho dos Auditores-Fiscais, dos questionamentos das delegacias sindicais, das bandeiras de luta da categoria, entre outros assuntos.

TRIBUTAÇÃO em revista

11


Tributação em Revista: O senhor poderia fazer uma avaliação da criação da Receita Federal do Brasil, a partir da fusão das duas Secretarias, e como o Sindifisco Nacional tem atuado na defesa da categoria, frente a eventuais problemas? Lupércio Montenegro: Desde a edição da MP 258, os auditores oriundos da SRP aprovaram, em suas instâncias deliberativas, a fusão das duas Secretarias - Secretaria da Receita Previdenciária (SRP) e Secretaria da Receita Federal (SRF). Com a fusão esperávamos que houvesse uma fusão de fato, e não uma simples incorporação, como ocorreu realmente. Com isso, a fiscalização previdenciária acabou sendo prejudicada de várias formas. Por exemplo: muitos auditores da SRP foram deslocados para exercer suas atividades na área de tributos internos e alfandegários e praticamente nenhum auditor originário da SRF foi deslocado para a área previdenciária. Em consequência disso, a presença fiscal nas empresas ficou grandemente prejudicada. O sindicato vem discutindo esse assunto visando sensibilizar a Administração para que não haja prejuízo na arrecadação dos recursos para a manutenção da Previdência Social Pública. TR: Essa retirada de auditores da fiscalização previdenciária, para outros tributos, foi substituída pelo menos com outras formas de fiscalização, fiscalização eletrônica, de cadastro, criação de declarações que substituíssem a presença do fiscal ou de outra forma de controle? LM: Na realidade, a fiscalização previdenciária visando a combater a sonegação tem de ser realizada essencialmente na auditoria contábil das empresas, pois tais informações não estão disponíveis, a não ser na própria empresa. TR: Como é que está o acesso aos cargos diretivos da chefia na Receita Federal do Brasil? LM: Em sua grande maioria os cargos de direção da Receita Federal do Brasil (RFB) são ocupados por auditores oriundos da SRF. Por exemplo: das dez regiões fiscais do Brasil, apenas uma Superintendência é ocupada por

12

TRIBUTAÇÃO em revista

As nossas reivindicações sempre foram muito semelhantes, nossa pauta quase sempre coincidiam. Então o que houve foi uma confluência de tudo isso. auditor oriundo da SRP. O mesmo ocorre nas Subsecretarias, Coordenações, Delegacias, etc. Nós do Sindifisco Nacional defendemos que os auditores tenham mais influência nas escolhas dos cargos de direção, inclusive do cargo de Secretário da Receita Federal do Brasil, como está proposto e aprovado pela categoria no projeto da Lei Orgânica do Fisco (LOF). TR: Sobre as bandeiras de luta, houve uma reformulação ou as bandeiras são as mesmas? LM: As nossas reivindicações sempre foram muito semelhantes, nossas pautas quase sempre coincidiam. Então o que houve foi uma confluência de tudo isso. Já atuávamos juntos, anteriormente, nos vários fóruns do Grupo Fisco, nos fóruns das carreiras típicas, nas mesas de negociações com o governo, enfim, as duas entidades, Fenafisp e Unafisco, passaram a realizar reuniões e plenárias conjuntas para que pudesse haver uma transição mais democrática, respeitando a cultura de cada uma das entidades durante a unificação e na gestão do Sindifisco Nacional. TR: A fusão, do ponto de vista de agregar a categoria, reunir os sindicatos de base, está completa? LM: Já está amplamente consolidada dentro da categoria. A unificação sindical consolidou uma unidade que já vinha sendo construída pelas Diretorias e principalmente, pela base. Havia verdadeiro clamor de todos para que a unificação fosse realizada com a maior brevidade possível. Quando ela foi realizada, a categoria já estava unificada


por meio das plenárias, assembleias e principalmente durante a greve histórica realizada pela categoria na Campanha Salarial 2008, quando conquistamos a remuneração por subsídio, já que fazemos parte de uma carreira típica de Estado. TR: Voltando às bandeiras de luta tradicionalmente defendidas, como o Sindifisco se posiciona com relação à reforma da Previdência? A imprensa sempre bate muito nisso, por quê? LM: O enfoque da grande imprensa no que diz respeito à reforma previdenciária é a visão do grande capital, do grande empresariado. A visão do trabalhador é completamente diferente: a Previdência Social brasileira é uma previdência solidária, é uma conquista do cidadão brasileiro. A Constituição Federal estabeleceu as formas de financiamento: a contribuição patronal sobre a folha de pagamento, a do trabalhador sobre a remuneração recebida, além de outras contribuições, como Contribuição para financiamento da Seguridade Social (Cofins), Contribuição sobre o lucro líquido (CSLL), os abonos salariais: Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público(PIS/Pasep), entre outras, o que torna a seguridade social superavitária, de onde é obtido grande parte do superávit do governo federal, usado para pagar juros da dívida pública. TR: E ainda temos a questão da previdência do setor público. LM: Os governos sempre vêm tentando tirar direitos dos servidores públicos federais. Com a Emenda Constitucional 41, até hoje não regulamentada, o governo limi-

O Sindifisco tem cobrado constantemente da Administração a permanente capacitação do Auditor-Fiscal.

tou a aposentadoria dos servidores públicos ao teto previsto no Regime Geral da Previdência Social e propôs uma previdência complementar de caráter optativo para o que exceder a esse teto. Nós, que duramente reconquistamos a paridade com a criação do subsídio, não podermos concordar com essa discriminação. Atualmente, uma de nossas lutas é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 555/2006, que prevê o fim da contribuição previdenciária sobre os proventos dos aposentados e dos pensionistas. TR: O senhor falou da questão previdenciária. Mas como o Sindifisco se posiciona em relação à carga tributária atual, ela é alta ou injusta? LM: Ela é injusta. Tem de haver uma grande discussão com a sociedade, pois a carga tributária é basicamente exercida sobre o consumo, por meio de impostos indiretos. Há pouca tributação sobre o capital e as operações financeiras. Quem ganha mais tem de pagar mais. Tem um dado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que mostra que, se a pessoa recebe dois salários mínimos, ela paga mais de 40% de impostos. Quer dizer, é uma injustiça. O Sindifisco Nacional defende a justiça fiscal, em que todos os contribuintes sejam tributados segundo sua capacidade contributiva. TR: Como é que o senhor vê esse dilema da tecnologia: o trabalho que o fiscal fazia em campo, aos poucos vai passando para um sistema todo computadorizado. Como é que fica o papel do fiscal nesse sentido? LM: O aprimoramento da fiscalização das empresas por meio da tecnologia é muito importante e irreversível. Para seu aprimoramento e eficiência, é preciso que o Auditor-Fiscal esteja permanentemente capacitado por meio de cursos para acompanhar essas constantes evoluções tecnológicas. A figura da pessoa humana será sempre imprescindível para a maior eficiência e eficácia na realização desse trabalho. O Sindifisco tem cobrado constantemente da Administração a permanente capacitação do Auditor-Fiscal para que ele possa desempenhar melhor seu trabalho no combate à sonegação fiscal.

TRIBUTAÇÃO em revista

13


a RTIGO Transação em Matéria Tributária: Limites e Inconstitucionalidades 1

Hugo de Brito Machado* Hugo de Brito Machado Segundo**

1. Introdução A relação obrigacional tributária decorre diretamente da lei e não da vontade, e a cobrança do tributo se faz mediante atividade administrativa plenamente vinculada, sendo inadmissível nessa cobrança qualquer forma de discricionarismo administrativo. O Código Tributário Nacional refere-se à transação como forma de extinção do crédito tributário (art. 156, inciso III), mas admite a transação apenas como forma de terminação de litígio (art. 171), que somente se caracteriza com a pretensão posta em juízo e sua resistência pela parte contrária. É flagrantemente inconstitucional a ampliação dos limites da transação em matéria tributária, que enseja a utilização do tributo como instrumento político e abre as portas para a corrupção.

2. Natureza Jurídica da Relação Tributária 2.1. A Lei e a Vontade como Fonte das Obrigações A lei é fonte remota de todas as obrigações. Nossa Constituição Federal estabelece expressamente, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 50, inciso II). É o que podemos denominar princípio geral da legalidade. Esse princípio, todavia, deve ser entendido em seus devidos termos. Ele não quer dizer que todas as obrigações decorram diretamente da lei. Quer dizer, isto sim, que todas as obrigações devem ser estabelecidas em conformidade com a lei, que em alguns casos é dessas a fonte imediata e em outros é a fonte mediata das obrigações. Na verdade, se a lei fosse a fonte imediata de todas as obrigações, todas as demais normas jurídicas perderiam a razão de ser.

1 - Compilação de parecer com o mesmo título emitido para o Unafisco Sindical em agosto de 2009. * Advogado Especialista em Direito Tributário, Doutor em Direito, Professor da Faculdade de Direito da UFCE, autor de diversos artigos e livros sobre Direito Tributário. ** Doutor em Direito. Advogado. Professor de Direito e Processo Tributário em cursos de graduação e pós-graduação. Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET).

14

TRIBUTAÇÃO em revista


Existem obrigações que nascem diretamente da lei e existem obrigações que nascem diretamente da vontade. Daí por que se fala de duas espécies de obrigações jurídicas, a saber, as obrigações legais e as obrigações contratuais. A obrigação tributária sabidamente encontra-se entre as primeiras, vale dizer, é uma obrigação que nasce diretamente da lei. 2.2. A Vontade no Nascimento da Relação Tributária Há, é certo, quem sustente que a vontade participa na formação da relação tributária uma vez que o possível sujeito passivo dessa relação pode escolher entre praticar, ou não praticar, o fato legalmente definido como gerador da obrigação tributária, escolhendo entre as formas jurídicas de alcançar o efeito econômico desejado. Vasco Branco Guimarães, por exemplo, depois de indicar situação na qual o contribuinte opta por uma forma jurídica que seja fiscalmente menos onerosa, doutrina: Podemos, em consequência, defender que existe um papel para a vontade na definição da obrigação de imposto, entendida como uma opção de escolha face às formas jurídicas existentes como forma de atingir o resultado econômico desejado2.

Não nos parece, porém, que seja assim. A vontade do sujeito passivo da obrigação tributária na verdade é inteiramente irrelevante em sua formação. Ocorrido o fato que a lei define como gerador da obrigação tributária essa obrigação surgirá. Mesmo quando o seu sujeito passivo nem tivesse conhecimento de que o fato ao qual se ligou faria nascer tal obrigação. Assim, por exemplo, se compro um automóvel sem sequer saber que existe o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, nasce a obrigação tributária do qual sou o sujeito passivo e, em razão dela, sou obrigado a pagar o referido imposto. Minha vontade é inteiramente irrelevante para o nascimento dessa obrigação tributária. A vontade pode ser relevante para a ocorrência, ou não, de determinados fatos que são geradores de obrigações tributárias. Isto, porém, não significa que a obrigação tributária decorra da vontade. Ela decorre do fato, que é considerado

objetivamente como algo independente de qualquer vontade. Tanto é assim que mesmo sendo aquele fato um ato jurídico nulo em razão de vício da vontade de quem o praticou, mesmo assim, ele será gerador da obrigação tributária correspondente (CTN, art. 118, 1º). 2.3. Fundamento Constitucional da Relação Tributária Note-se que a relação tributária nasce diretamente da lei por determinação expressa da Constituição Federal, que, ao tratar do Sistema Tributário Nacional, estabelece: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I — exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; II — instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional, ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

Como se vê, a vigente Constituição Federal impõe claramente que a relação tributária seja sempre decorrente da lei. Não se admite, portanto, em nosso sistema jurídico, a utilização da vontade como ingrediente formador ou capaz de alterar a relação tributária. E, ainda, afastando qualquer dúvida que pudesse restar em torno da natureza da obrigação tributária, a Constituição Federal estabelece que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributada, especialmente sobre a definição de tributos e suas espécies, bem como, em relação aos impostos que discrimina a definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.3 2.4. A Legalidade no Código Tributário Nacional O Código Tributário Nacional, que tem a natureza de lei complementar porque trata de matérias constitucionalmente reservadas a essa espécie normativa, que não existia formalmente à época de sua edição, explicita o alcance do prin-

2 - GUIMARÃES, Vasco Branco. O papel da vontade na relação jurídico-tributária. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 157. 3 - Constituição Federal de 1988, art. 146, inciso III, alínea “a”. 4 - BARRETO, Aires Fernandino. Curso de Direito Tributário Municipal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 29-30. 5 - MACHADO. Hugo de Brito. O Conceito de Tributo no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 85. TRIBUTAÇÃO em revista

15


cípio constitucional da legalidade tributária deixando fora de qualquer dúvida a exclusão da vontade como elemento capaz de gerar, ou de alterar, a relação jurídica tributária. Merece destaque a regra que está em seu art. 97, inciso VI, a dizer que somente a lei pode estabelecer “as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção do crédito tributário, ou de dispensa ou redução de penalidades”. Como se vê, o princípio da estrita legalidade tributária diz respeito não apenas à criação, ao aumento, a redução ou à extinção do tributo, mas também vincula a autoridade administrativa quanto à dispensa ou à redução do tributo, que não podem ser objeto de negociação com o sujeito passivo da obrigação tributária, vale dizer, não comportam transação. Quanto ao tributo, aliás, a exigência de que a respectiva cobrança ocorra mediante atividade administrativa plenamente vinculada, está expressa na própria definição albergada pelo art 3°, do Código Tributário Nacional. 2.5. Natureza Plenamente Vinculada da Atividade Arrecadatória A obrigação tributária resulta diretamente da lei, como já demonstramos. Além disso, a cobrança dos tributos e penalidades pecuniárias deve ser feita mediante atividade administrativa plenamente vinculada, vale dizer, atividade administrativa na qual não estão presentes quaisquer considerações de conveniência nem de oportunidade. Nesse sentido, Aires Fernandino Barreto, reportandose a instituição e ao aumento de tributos, esclarece que “não basta a existência de lei, como fonte de produção jurídica específica, requer-se a fixação, nessa mesma fonte, de todos os critérios de decisão, sem qualquer margem de decisão para o administrador?”4 A natureza plenamente vinculada da atividade arrecadatória, aliás, está expressamente prevista em dispositivos do Código Tributário Nacional. Seu artigo 3° diz que tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. E seu art. 142, parágrafo único, estabelece que a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional. Dúvida,

portanto, não pode haver, de que na atividade administrativa de arrecadação dos tributos não há lugar para qualquer apreciação de conveniência ou oportunidade. Não há lugar para nenhum discricionarismo. Comentando esse aspecto da definição de tributo, em livro publicado nos anos 80, um de nós já escreveu: Se a atividade de tributação fosse discricionária, a norma jurídica tributária diria, por exemplo, que determinado tributo seria cobrado de todas as pessoas que tivessem capacidade contributiva, na medida desta e de modo a satisfazer as necessidades do Tesouro Público. Como se vê, a autoridade da Administração Tributária disporia de ampla margem de poder discricionário para determinar o valor do tributo que iria exigir de cada um. Isto, por razões evidentes, não conduziria a bom resultado.

A liberdade da autoridade administrativa para considerar, na cobrança do tributo, a conveniência e a oportunidade dessa cobrança terminaria por transformar o tributo em um instrumento político. Assim, essa liberdade fica inteiramente afastada com a exigência de que a cobrança do tributo ocorra mediante atividade administrativa plenamente vinculada. E sobre o significado dessa expressão, de grande relevo no contexto deste parecer já no livro acima referido um de nós escreveu: Atividade administrativa plenamente vinculada, consoante exige a definição legal de tributo, é aquela consubstanciada de atos que Ruy Cirne Lima denominou executivos, vale dizer, “aqueles atos que representam meramente a execução da lei ou regulamento; todos os elementos do ato vem estabelecidos na disposição legal ou regulamentar, incluída a prática do ato mesmo, que ao funcionário vem imposto como dever“ (Princípios de Direito Administrativo, 5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1982, págs. 90/91).5

Resta claro, portanto, que em nosso ordenamento jurídico a atividade arrecadatória se faz mediante atos administrativos plenamente vinculados, atos de simples execução da lei, em cuja prática as autoridades administrativas não dispõem de liberdade para avaliar conveniências ou oportunidades para a cobrança que lhes cabe fazer.

6 - BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1982, v. IV, p. 144. 7 - No art. 171 do Código Tributários Nacional, na publicação oficial, consta a palavra determinação, em vez de terminação, mas se trata de simples erro na impressão do Diário Oficial, como registram algumas editoras. No art. 136 do projeto está a mesma norma com a palavra terminação. Veja-se DINIZ, Souza. Códigos Tributários – Alemão, Mexicano e Brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1965, p. 511.

16

TRIBUTAÇÃO em revista


3. A Transação no Código Tributário Nacional 3.1. Natureza Jurídica da Transação A transação, no sentido específico que essa palavra tem no âmbito deste parecer, é um ato de vontade. É bilateral, podendo ser considerada um contrato. Os que afirmam não ser a transação um contrato o fazem apenas a consideração de que ela apenas extingue direitos. Essa foi a doutrina de Clóvis Beviláqua, que ensinou: Para o Código Civil, a transação não é, propriamente, um contrato Ainda que a lição da maioria dos Códigos seja em sentido contrário, o certo é que o momento preponderante da transação é o extintivo de obrigação.6

Nosso atual Código Civil, por seu turno, estabelece que é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas (art. 840), e estabelece, ainda, que só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação (art. 841). Podemos então afirmar que a transação é um contrato que tem por finalidade prevenir ou extinguir litígio a respeito de direitos patrimoniais disponíveis, mediante concessões mútuas. 3.2. Concessões Mútuas Como Elemento Essencial Ressalte-se que constitui elemento essencial da transação a transigência de ambas as partes. Em outras palavras, para que se caracterize a transação é indispensável a ocorrência de concessões mútuas. Os litígios em geral ocorrem exatamente porque existe dúvida albergada na relação jurídica. Uma parte pretende tais ou quais direitos, enquanto a outra se opõe a tal pretensão, compondo o litígio que a final será levado ao Poder Judiciário, perante o qual cada parte formula a sua pretensão. A transação, assim, é um contrato mediante o qual cada uma das partes abre mão de alguma pretensão em favor da outra, e assim evita-se que o litígio se instaure, vale dizer, evita-se o ingresso em juízo. Ou se tal ingresso já ocorreu, se o litígio já está instaurado, a ele se põe fim mediante a transação.

3.3. A Transação apenas para Terminar Litígios O Código Tributário Nacional admite a transação em caráter excepcional e apenas para a terminação de litígios.7 Mesmo assim, há quem sustente serem inconstitucionais os seus dispositivos que admitem a transação. Ferreira Jardim, por exemplo, assevera:

Podemos afirmar que a transação é um contrato que tem por finalidade prevenir ou extinguir litígio a respeito de direitos patrimoniais disponíveis, mediante concessões mútuas Em despeito do quanto dispõe o art. 171 do Código Tributário Nacional e apesar da equivocada opinião ainda prosperante em expressiva parcela da doutrina, não padece dúvida que o aludido instituto afigura-se incompatível com as premissas concernentes à tributação, dentre elas a necessária discricionariedade que preside a transação e a vinculabilidade que permeia toda a função administrativa relativa aos tributos. Diferentemente de determinadas modalidades extintivas, a teor da compensação ou da remissão ou da confusão, dentre outras, esta reconhecida por Jarach, as quais podem submeter-se a atos vinculados, a transação, ao contrário, mercê de sua própria natureza, somente pode ser efetivada por meio de ato administrativo o discricionário, o que atrita o postulado da vinculabilidade da tributação.8

Essa tese foi acolhida por Maria Helena Diniz ao registrar como significado da palavra transação, com expressa referência a Ferreira Jardim, tratar-se de “forma extintiva da obrigação tributária que na verdade é incompatível com o regime jurídico tributário, já que a criação e extinção de tributos se subordina à edição dos atos administrativos vinculados.”9 Admitindo-se, porém, a constitucionalidade do art. 171 do Código Tributário Nacional, certo é que esse dispositivo legal admite a transação apenas para terminar litígio. No âmbito de nosso Direito Tributário, portanto, não existe a transação para prevenir litígio.

8 - JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Comentários ao Código Tributário Nacional. Coordenação de Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Saraiva, 1998, v.2, p. 402 9 - DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 4, p. 602.. TRIBUTAÇÃO em revista

17


3.4. Caracterização do Litígio Assim, é da maior importância a questão de saber o que caracteriza o litígio, e a respeito da caracterização deste como pressuposto da transação no âmbito tributário um de nós já escreveu: O litígio, como requisito essencial pata a transação em nosso Direito Tributário, caracteriza-se pela resistência de um dos sujeitos da obrigação tributária a pretensão do outro. Quando a Fazenda Pública promove a execução fiscal e a esta o contribuinte se opõe, seja com exceção de pré-executividade ou com embargos. Ou então, quando o contribuinte ingressa em juízo contra a Fazenda, questionando a relação tributária, e a Fazenda se opõe à pretensão por ele formulada. Já nos pareceu que o litígio, como requisito para a transação, poderia caracterizar-se pela impugnação do auto de infração ou em qualquer outra situação na qual um órgão julgador administrativo tivesse de resolver algum conflito entre o contribuinte e o fisco.10 Entretanto, meditando sobre o assunto modificamos nossa opinião. Os órgãos de julgamento administrativo integram a própria Administração Pública, de sorte que no processo administrativo fiscal faz-se apenas o controle interno da legalidade do lançamento. Antes de ser este definitivo para a própria Administração não se pode dizer que existe uma pretensão desta a ensejar resistência do contribuinte. Enquanto a própria Administração examina a legalidade da cobrança que pretende fazer, não existe pretensão desta, em sentido jurídico, a ensejar uma lide. E o litígio a que se refere o art. 171 do Código Tributário Nacional somente se caracteriza pela instauração da lide, vale dizer, pela ocorrência de uma pretensão formulada e resistida em juízo.11

mentar n° 95, de 26 de fevereiro de 1998, estabelece que, “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto” (art. 70, inciso I). Não se justifica, portanto, tenha o projeto em referência diversos objetos. É certo que segundo a Lei Complementar nº 95 eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento (art. 18). Em outras palavras, isso quer dizer que os defeitos formais de uma lei, decorrentes da desobediência à mencionada lei complementar, não a invalidam. Talvez por isso mesmo ocorram tantas desobediências à Lei Complementar nº 95, a demonstrar que o Poder Público é na verdade quem mais descumpre as leis. Seja como for, fica aqui o nosso registro, de que o Projeto de Lei em exame merece censura, por tratar de mais de um objeto. Entretanto, como esse defeito de forma não o invalida, vamos examinar a tese em tomo da transação do Direito Tributário, como tem sido colocada. 4.2. Argumentos em Defesa da Transação na Relação Tributária Os que defendem a tese segundo a qual é admissível, e mais que isto, é desejável a ampliação do alcance da transação no Direito Tributário sustentam que: a) O anteprojeto de lei de transação ora em foco, além de constituir-se em proposição de norma legal autorizativa

E na verdade, em face do caráter excepcional da transação no âmbito tributário, é razoável admitir-se que o litígio, pressuposto essencial da transação, somente se caracteriza com a formulação, em juízo, da pretensão e da resistência a esta.

de transação, prevista no CTN, está colaborando para que a Administração Tributária venha a efetivamente cumprir o comando constitucional inserto no art. 37 da Lei Fundamental de 1988, ou seja, o princípio constitucional da eficiência da Administração Pública, onde se inclui a Administração Tributária.12

4. A Transação nos Projetos em Exame 4.1. O Projeto de Lei nº 5.082/09 e a Lei Complementar 95/98 Merece censura o Projeto de Lei ordinária cm referência pelo fato de tratar de várias matérias. A Lei Comple-

b) A transação propicia maior “maleabilidade” ou confere certa discricionariedade à Administração Tributária para compor ou solucionar conflitos e possibilita maior eficácia no que pertine a satisfação do crédito tributário, respeitando sempre o interesse público.13

10 - MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2005, v. III, p. 519. 11 - MACHADO, Hugo de Brito. Confissão e Transação no Direito Tributário. In: Revista Dialética de Direito Tributári. São Paulo: Dialética, n. 159 dez. 2008, p. 37-38. 12 - FILHO, Luiz Dias Martins; ADAMS, Luis Inácio Lucena. A transação no Código Tributário Nacional (CTN) e as novas propostas normativas de lei autorizadora. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 23. 13 - FILHO, Luiz Dias Martins; ADAMS, Luis Inácio Lucena. A transação no Código Tributário Nacional (CTN) e as novas propostas normativas de lei autorizadora. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 28.

18

TRIBUTAÇÃO em revista


c) A transação é melhor do que a rigidez de uma deci-

de acreditam não ser verdade a assertiva a segundo a qual

tendência desta a abusar de seu poder. E como acreditamos que todos os poderes das autoridades da Administração Tributária devem ser exercidos nos exatos termos da lei, sem discricionarismo, passamos a responder os seus argumentos, na ordem em que estão colocados no item precedente. a) O anteprojeto de lei de transação (lei ordinária) está relacionado com o anteprojeto de lei complementar que altera o Código Tributário Nacional, ampliando consideravelmente os limites da transação neste admitida. Assim, não é correto dizer-se que ele apenas autoriza a transação prevista no CTN. Por outro lado, o dispositivo constitucional que preconiza a eficiência administrativa deve ser observado sem prejuízo do dispositivo constitucional que preconiza a legalidade da tributação, que a rigor impede o discricionatismo na arrecadação dos tributos. b) A “maleabilidade” e a discricionariedade que ela confere à Administração Tributária além de ser contrária ao principio da legalidade, dá espaço para a prática de corrupção que agride o interesse público, que há de ser realizado com obediência à lei. Essa “maleabilidade”, ainda que não seja utilizada para a prática de corrupção, poderá transformar o tributo em instrumento político, com a redução de ônus em troca de apoio ao governo, em evidente ofensa aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da indisponibilidade do interesse público. c) Embora a transação possa ser, em certos casos, melhor do que a decisão judicial, isto não justifica o abandono do princípio da legalidade na relação tributária, que se estabelece entre um forte, a Fazenda, e um fraco, o contribuinte. Não podemos esquecer que nas relações entre o forte e o fraco a liberdade escraviza e só a lei libera. Além do mais, a garantia constitucional da jurisdição não pode ser amesquinhada, porque é uma conquista inestimável da

quanto mais poder é concedido a uma autoridade, maior é a

civilização humana.

são judicial, que muitas vezes não reflete a melhor técnica tributária ou é imprecisa, ou quando vem a ser prolatada a prestação jurisdicional, não é mais eficaz ou é de difícil execução.14 d) A transação tributária é adotada em diversos países, inclusive nos Estados Unidos da América do Norte.15 e) A morosidade na resolução dos litígios tributários produz graves distorções nos mercados, sendo profundamente danosa para a livre concorrência. As sociedades empresariais que honram pontualmente suas obrigações fiscais veem-se, muitas vezes, na contingência de concorrer com outras que protraem no tempo o pagamento de tributos, por meio de discussões administrativas e judiciais meramente protelatórias.16 f) Deve-se enfrentar o problema sem meias-palavras, anestesia ou açúcar, na recorrente advertência de Roberto Mangabeira Unger, que nos critica pela falta de imaginação e por nossa reverência e prostração para com o passado.17 g) A discricionariedade que assusta àqueles que freudianameme pretendem um pai infalível no Direito, à luz da lição de Francisco Campos, é apenas conteúdo de critérios de natureza puramente regulativa, e que se limita tão-somente à designação de linha geral a ser seguida.18 4.3. Nossas Respostas aos Argumentos Favoráveis à Transação Acreditamos na boa-fé por parte daqueles que defendem a ampliação dos limites da transação no âmbito da relação tributária. Não podemos, todavia, deixar de ver em seus argumentos certa ingenuidade, porque eles na verda-

14 - FILHO, Luiz Dias Martins; ADAMS, Luis Inácio Lucena. A transação no Código Tributário Nacional (CTN) e as novas propostas normativas de lei autorizadora. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 28. 15 - FILHO, Luiz Dias Martins; ADAMS, Luis Inácio Lucena. A transação no Código Tributário Nacional (CTN) e as novas propostas normativas de lei autorizadora. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 32/34. 16 - FILHO, Luiz Dias Martins; ADAMS, Luis Inácio Lucena. A transação no Código Tributário Nacional (CTN) e as novas propostas normativas de lei autorizadora. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 37. 17 - GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Transação tributária: contexto, texto e argumentos. In: Revista Fórum de Direito Tributários. Belo Horizonte: Editora Fórum, nº 39, maio/junho de 2009, p. 135. 18 - GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Transação tributária: contexto, texto e argumentos. In: Revista Fórum de Direito Tributários. Belo Horizonte: Editora Fórum, nº 39, maio/junho de 2009, p. 165. TRIBUTAÇÃO em revista

19


d) A pena de morte também é adotada em vários países, inclusive em alguns estados-membros dos EUA, mas isso não significa que ela deva ou mesmo que possa ser instituída no Brasil. As leis devem ser feitas tendo-se em vista a cultura de cada povo, e em face de nossa cultura o melhor ainda é a estrita legalidade da tributação. e) A morosidade na resolução dos litígios tributados deve ser minimizada por outros meios, até porque os litígios são inevitáveis. Dizer que a possibilidade de transação resolve esse problema é um verdadeiro sofisma, pois “as sociedades empresárias que honram pontualmente suas obrigações fiscais” provavelmente dela não necessitarão, e aquelas que “protraem no tempo o pagamento de tributos, por meio de discussões administrativas e judiciais meramente protelatórias”, certamente continuarão a agir dessa mesma forma. Por outro lado, se o problema é a demora na solução dos litígios, a solução para esse problema já existe, e está claramente posta no art. 171 do Código Tributário Nacional. Basta a transação para terminar o litígio. f) É certo que se deve enfrentar o problema sem meias palavras, com imaginação e sem reverência e prostração para com o passado. Isso, porém, não nos leva a aceitar a ampliação da transação tributária. Pelo contrário, leva-nos a rejeitar essa ampliação, por reconhecer que no passado os governantes cobravam de seus súditos o tributo sem que a lei limitasse tal poder, sendo certo que as limitações legais constituem conquistas da civilização das quais não podemos abrir mão sem que estejamos retornando às épocas primitivas. g) A discricionariedade assusta todos que conhecem a voracidade da Administração Tributária, e se o Direito não e um pai infalível, pior que sua falibilidade será sua ausência. 4.4. Alteração do Código Tributário Nacional Há quem afirme que o projeto de lei ordinária que cuida da transação apenas viabiliza a aplicação do que já está previsto no Código Tributário Nacional. Na verdade, porém, não é assim. Ao lado dele está um projeto de Lei Complementar que altera o Código, em especial seu ar-

20

TRIBUTAÇÃO em revista

tigo 171, para que este se refira à transação em sentido mais amplo, não só para extinguir litígio, como também para evitá-lo, vale dizer, a transação é ampliada em sua finalidade, podendo ser utilizada também para solucionar controvérsias na via administrativa. Essa alteração do Código Tributário Nacional, todavia, é inteiramente inadmissível, porque implica alterar a própria essência do tributo, mostrada na parte final de sua definição constante do art. 3° do referido Código. Ressalte-se que o Código, ainda que em dispositivo de constitucionalidade questionável, já admite a transação para terminar o litígio, o que afasta definitivamente o argumento dos defensores dos projetos em exame neste parecer, relativo à necessidade de superar a morosidade da Justiça na solução dos conflitos entre o Fisco e os contribuintes. Não nos parece, portanto, cabível a alteração do Código Tributário Nacional, destinada a ampliar a utilização da transação na relação tributaria. Se a transação, como já está prevista no art. 171, é de constitucionalidade duvidosa, sua ampliação é de inconstitucionalidade indiscutível. 4.5 A Inconstitucionalidade As inconstitucionalidades da transação tributária que os projetos de lei complementar e de lei ordinária em exame neste parecer pretendem introduzir em nosso sistema jurídico são flagrantes. A Constituição Federal estabelece expressamente, em seu art. 37, que a Administração Pública obedecerá aos princípios da legalidade e da impessoalidade, entre outros que indica. O primeiro desses princípios preconiza o tributo e as penalidades pecuniárias, além de outros acréscimos eventualmente devidos, tal como estabelecidos na lei. E o segundo está a indicar que na cobrança dos tributos não pode haver nenhuma distinção entre contribuintes que estejam na mesma situação de fato. Aliás, em seu art. 150, inciso II, a Constituição explicita esse princípio, afirmando que é vedado às pessoas jurídicas tributantes instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Maior clareza não é possível.


A transação, por sua própria natureza, envolve concessões de ambas as partes na relação jurídica obrigacional.

os correligionários, todas as benesses, e para os adversários, todos os ônus.

Qualquer concessão que a Fazenda venha a fazer estará concedendo ao contribuinte, em favor do qual transige, um tratamento diferenciado, quer dizer, tratamento desigual.

5. Conclusões A ampliação do instituto da transação confere à Ad-

Aliás, defensores dos projetos que ampliam a transação

ministração poder discricionário que lhe permitira tratar

tributária dizem claramente que a transação propicia maior

o contribuinte em razão de circunstâncias pessoais, o que

“maleabilidade” ou confere certa discricionariedade à Admi-

está expressamente vedado.

nistração Tributária para compor ou solucionar conflitos. Dito

Com o instituto da transação tributária, como está nos

isso em outras palavras, temos que a transação tributária

projetos em exame neste parecer, a autoridade administra-

transforma a atividade arrecadatória de plenamente vin-

tiva poderá agir com “maleabilidade”. O tributo deixará de

culada, como deve ser, em atividade discricionária, que se

ser cobrado mediante atividade administrativa plenamen-

caracteriza pela possibilidade de tratamento diferenciado

te vinculada e a discricionariedade conferida à Adminis-

em razão de juízos de conveniência e oportunidade.

tração Tributária, além de ser contrária ao princípio da le-

Além da inconstitucionalidade, a transação como pre-

galidade, dá espaço para a prática de corrupção que agride

conizada nos projetos de lei em questão revela-se inconve-

o interesse público. Essa “maleabilidade”, ainda que não

niente ao interesse público, pois transforma o tributo em

seja utilizada para a prática de corrupção, poderá transfor-

instrumento político.

mar o tributo em instrumento político, com a redução de ônus em troca de apoio ao governo.

4.6. Transformação do Tributo em Instrumento Político

O interesse público não se confunde com o interesse do governante, nem com o próprio interesse da Adminis-

Realmente, dispondo as autoridades administrativas

tração Tributária. Aliás, o mais legítimo interesse público

da “maleabilidade” preconizada pelos defensores da tran-

consiste precisamente na obediência à lei como instru-

sação tributária, poderão “negociar’ o tributo de forma a

mento da harmonia social e da segurança jurídica.

que o ônus deste seja menor para os contribuintes que

A ampliação do âmbito da transação em matéria tri-

se dispuserem a recompensar a “gentileza” administrativa.

butária é flagrantemente incompatível com o princípio da

Em outras palavras, a transação tributária, nos moldes

legalidade e na prática poderá implicar graves lesões ao

mais amplos, como previsto nos projetos de lei em exame,

princípio da isonomia, porque a “maleabilidade” a que se

poderá ser um caminho para a corrupção incontrolável

referem os defensores dessa ampliação permitirá à Admi-

E mesmo admitindo que as autoridades autorizadas a

nistração Tributária tratar os contribuintes desigualmente,

transigir são incorruptíveis, é inegável que a transação po-

em razão de conveniências do momento, vale dizer, trans-

dem transformar o tributo em instrumento político. Para

formando o tributo em verdadeiro instrumento político.

TRIBUTAÇÃO em revista

21


REFERÊNCIAS BARRETO, Aires Fernandino. Curso de Direito Tributário Municipal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 29-30. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1982, v. IV, p. 144. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 4, p. 602. MARTINS FILHO, Luiz Dias; ADAMS, Luis Inácio Lucena. A transação no Código Tributário Nacional (CTN) e as novas propostas normativas de lei autorizadora. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 23/28/32-34/37. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Transação tributária: contexto, texto e argumentos. In: Revista Fórum de Direito Tributários. Belo Horizonte: Editora Fórum, n. 39, maio/jun. de 2009, p. 135, 165.

22

TRIBUTAÇÃO em revista

GUIMARÃES, Vasco Branco. O papel da vontade na relação jurídico-tributária. In: FILHO, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva; GUIMARÃES, Vasco Branco. Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 157. JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Comentários ao Código Tributário Nacional. Coordenação de Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 402. MACHADO, Hugo de Brito. O Conceito de Tributo no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 85. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2005, v. III, p. 519. MACHADO, Hugo de Brito. Confissão e Transação no Direito Tributário. In: Revista Dialética de Direito Tributário nº 159. São Paulo: Dialética, dezembro de 2008, p. 37-38.


a RTIGO Transação Tributária: Paradoxos e Possibilidades Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy1

A multiplicação da litigiosidade tributária sugere imaginação institucional e opção por mecanismos que possibilitem a concepção de uma justiça fiscal consensual. Espera-se o consenso em ambiente no qual, em princípio, não haveria espaço para qualquer tentativa de acordo. Esbarra-se em escudo supostamente intransponível, marcado pelo dogma da indisponibilidade do crédito tributário, como decorrência da impossibilidade de transigir com o interesse público. Há alternativas? Tempera-se a questão com a legalidade absoluta que ronda a matéria e afasta-se qualquer possibilidade de inovar. O modelo administrativo-fiscal atual esgota-se na própria seiva. Soluções bem-comportadas, a exemplo de ampliação da máquina de cobrança e de uma maior dotação orçamentária para os órgãos de execução do crédito fiscal (entre eles o próprio Judiciário), a par de inexequíveis, mostram-se utópicas e imprestáveis.

É que também dependem de dotações orçamentárias generosas, que por sua vez dependem da ampliação da carga tributária, no que se refere aos resultados; isto é, vinculam-se, e decorrem, a um imediato aumento nos resultados da cobrança. É, no mérito, a tese do mais do mesmo, na imagem de Joaquim Falcão2. Deve-se enfrentar o problema sem meias-palavras, anestesia ou açúcar, na recorrente advertência de Roberto Mangabeira Unger (pensador brasileiro que leciona nos Estados Unidos), que, nos critica pela falta de imaginação e por nossa reverência e prostração para com o passado3. A reforma tributária que se arrasta, e que detectou problemas no sistema, relativos à complexidade, à cumulatividade, ao aumento do custo dos investimentos, à guerra fiscal, à tributação excessiva da folha de salários, não toca nas questões pertinentes à multiplicação das discussões judiciais e administrativas. A reforma tributária em anda-

1 - Consultor da União. Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procurador da Fazenda Nacional (concurso de 1993). 2 - FALCÃO, Joaquim. O brasileiro e o Judiciário. In: Revista Conjuntura Jurídica, v. 63, n . 4, abr. 2009. 3 - UNGER, Roberto Mangabeira. Necessidades Falsas. Tradução Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. São Paulo: Boitempo, 2005.

TRIBUTAÇÃO em revista

23


mento cogitaria medidas de simplificação dos tributos fe-

A transação tributária é discussão que anima a todos

derais, do imposto estadual de circulação de mercadorias

quantos nos interessamos pelas coisas públicas. O assunto

e serviços, de desonerações da folha salarial, dos investi-

divide, apaixona, gera polêmicas. De um lado, euforia com

mentos, da cesta básica, de mudanças nos sistema de par-

o novo e esperança no consenso. De outro, ceticismo, rea-

tilhas, no aprimoramento das relações federativas. E não

lismo difícil de ser contornado, linha argumentativa muito

tocaria substancialmente na administração tributária.

densa, centrada na indisponibilidade do crédito fiscal, na

Não faz parte das medidas da reforma uma reestruturação do modelo brasileiro da relação entre o Fisco e

legalidade, e na mitigada discricionariedade que o modelo reservaria à administração fiscal.

o cidadão que recolhe tributos, à luz de percepções de

A transação já é fato entre nós. Materializada em par-

dignidade da pessoa humana e de uma concepção de ad-

celamentos de gaveta, em medidas de conciliação, em

ministração consensual. O assunto é tabu. Argumenta-se

fórmulas de parcelamento, é elemento comum na práti-

com a tese da indução negativa, no sentido de que uma

ca tributária contemporânea. Refiro-me, por exemplo, ao

melhoria das relações entre

Programa de Recuperação

a administração fiscal e os

Fiscal-Refis, que qualificou

A transação tributária é discussão que anima a todos quanto nos interessamos pelas coisas públicas. O assunto divide, apaixona, gera polêmica

administrados reduziria o recolhimento

espontâneo

de tributos. Em linhas gerais, a Lei Geral de Transação Tributária que o Executivo concebeu e encaminhou ao Legislativo tem por objetivo a

regime de parcelamento de débitos fiscais perante a então Secretaria da Receita Federal, à ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional de Seguro Social. Instituído pela Lei nº

transparência, a celeridade,

9.964, de 10 de abril de

a desburocratização e a efi-

2000, administrado por

ciência nas relações entre o Fisco e o cidadão que recolhe

um Comitê Gestor, o Refis deu início entre nós a um regi-

tributos. Busca-se a composição de conflitos e a termina-

me especial de parcelamento de débitos fiscais. A homolo-

ção de litígios para a extinção do crédito tributário. Há

gação da opção era condicionada à prestação de garantias

experiências prospectivas no Direito Comparado, nome-

ou, a critério do interessado, ao arrolamento dos bens que

adamente na Espanha , na Itália , nos Estados Unidos

integravam o patrimônio. Autor muito respeitado afirmou

da América , na França , na Alemanha. No caso francês,

que o Refis efetivamente era transação, dado que sua fina-

por exemplo, a Administração pode, como resultado da

lidade essencial consistia na extinção de litígios9.

4

6

5

7

transação, atenuar multas fiscais, bem como a incidência

Exemplifica-se esforço de consenso com regra que

geral . E há também alguma experiência estadual e muni-

dava conta de que no caso dos créditos cuja exigibilidade

cipal, no próprio contexto brasileiro.

estivesse suspensa, por força de concessão de liminar em

8

4 - LAPATZA, José Juan Ferreiro. Solución Convencional de Conflictos en el Âmbito Tributario: una Proposta Concreta. In: TORRES, Heleno Taveira (org.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, vol. II, 2004, p. 293. 5 - BUSA, Vincenso. Gli Istituti Deflaviti del Contencioso nell’ Esperienza Italiana. In: TORRES, Heleno Taveira (org.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, vol. V, 2008, p. 525. 6 - A transação tributária também é instituto conhecido em outros modelos normativos, a exemplo do que se tem no México, na Venezuela, e na Inglaterra. 7 - COLLET, Martin. Droit Fiscal. Paris: PUF, 2007, p. 211 BOUVIER, Michel Bouvier. Introduction au Droit Fiscal General et à la Théorie de L’Impôt. Paris: Librairie Générale de Droit, 2007, p. 121, 2007. 8 - DIAZ-PAlÁCIOS, José Alberto Sanz. Medidas Fiscales com Efecto Reductor de la Conflitividad em Francia. La Transación. In: Técnicas Convencionales en El Âmbito Tributário - Perspectivas de Derecho Interno, Comparado y Comunitário. Barcelona, Atelier: 2007, p. 66. 9 - MACHADO, Hugo de Brito. O Refis como Transação. Correio Braziliense, Brasília, DF, 10 set. 2001.

24

TRIBUTAÇÃO em revista


mandado de segurança, a adesão ao Refis tinha como re-

pudessem transigir com o sujeito passivo, com o objetivo

sultado a dispensa de juros de mora incidentes até a data

de se encerrarem as causas fiscais ajuizadas e pendentes

da opção, conquanto que o interessado desistisse da ação

de julgamento.

judicial na qual obteve liminar.

De igual modo, a legislação de regência do antigo Im-

Reconheça-se, a medida aliviava o Judiciário. Para ade-

posto de Circulação de Mercadorias, entre elas a Lei Com-

rir ao Refis o interessado deveria desistir de ações judi-

plementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fundamentava

ciais, impugnações e recursos administrativos, bem como

eventual transação, conquanto que prevista em convênio

precisaria confessar débitos com vencimentos até 29 de

assinado pelos estados da federação.

fevereiro de 2000, não declarados ou não confessados, to-

A transação é conceito que radica no Direito Privado.

tal ou parcialmente. A Lei nº 10.002, de 14 de setembro

Ordinariamente, tinha como objeto principal decisão de

de 2000, reabriu o prazo de opção para o Refis, cujo termo

conteúdo convencional que dirimisse direitos incertos e

final foi fixado em até 90 dias contados da data da publi-

duvidosos10. Reportava-se à glosa de Cujácio, para quem

cação da aludida lei.

a transação decorria de pacto pelo qual se resolvia sobre

A Lei nº 9.964, de 2000, dispunha inclusive sobre a

direito incerto; o acordo substancializava-se como uma

suspensão da pretensão punitiva do Estado, em relação a

sentença. Na dicção clássica: pactio qua lis vel controversia

alguns crimes previstos na Lei nº 8.137, de 27 de dezem-

et res aliqua dubia, perinde ac judicato dirimitur11.

bro de 1990, bem como na Lei nº 8.212, de 24 de julho

A transação, nesse sentido histórico, teria por objeto

de 1991. Dispôs-se também que a prescrição criminal não

dirimir a lide pendente, bem como previnir a lide prová-

correria durante o período da suspensão da pretensão pu-

vel12. Transitava entre o não resolvido e o provavelmente

nitiva do Estado.

discutível. E foi Affonso Fraga, em livro clássico datado de

A medida provocou intenso debate e suscitou reflexões em torno da própria natureza do Direito Penal Tributário.

1928, quem colocou objetivamente a tensão que envolve a ideia de transação:

Isto é, evidenciou-se uma nova percepção criminológica,

Autores há que, admitindo como ótimas as leis, perfeitos os juízes, simples e expeditos os processos, consideram a transação como ato imoral e ofensivo à justiça. Uma vez que, dizem eles, a justiça não possa estar dos dois lados opostos, a transação dar-se-á entre o justo e o injusto, com ultraje evidente às regras da moral. Tais sentimentos não procedem. Por melhores que sejam as leis e amplas as seguranças da justiça, a dúvida em relação ao êxito da causa, operando como um pesadelo sobre o espírito dos contendores lhes tole o sossego indispensável às ocupações ordinárias da vida e, assim, ela por si só justifica a transação como meio de readiquirem a paz perdida.13

no sentido de que o papel do Direito Penal, no caso, seria de mero agente institucional de recolhimento de tributos. Questionou-se criminologia convencional, bem como o papel do aparato repressivo, em âmbito penal. Além do que, ao que parece, não há hipóteses de suspensão de pretensão punitiva do Estado, por meio de parcelamento, quanto o bem jurídico tutelado seria outro, que não a arrecadação tributária. A transação tributária não é fato tão inusitado quanto se quer acreditar. A Lei nº 1.341, de 31 de janeiro de 1951, que regulava a Procuradoria da República, que então detinha competência para a cobrança da dívida ativa da União, permitia que Procuradores da República, devidamente autorizados, em cada caso concreto e específico,

O fundamento e a origem da transação assentariam o sentimento de paz14. Discutia-se, ainda, se a transação originariamente qualificava pacto, distrato ou contrato15, pendendo-se a doutrina nacional mais para essa última for-

10 - FRAGA, Affonso. Da Transação ante o Código Civil Brasileiro. São Paulo: Acadêmica, 1928, p. 15. 11 - Id., 1928, p.15. 12 - Id., 1928, p. 24. 13 - Id., 1928, p. 26. 14 - Id., 1928, p. 32. 15 - Id., 1928, p. 37. TRIBUTAÇÃO em revista

25


mulação16. A transação implicaria convergência sinalagmáti-

tais que se percebe no garantismo penal, o instituto da

ca, consensual, onerosa e comutativa, embora, eventual-

transação, em matéria criminal, radica, originariamente,

mente, de fundo aleatório, na hipótese de que uma das

no inciso I, do art. 98, da Constituição de 1988, que nos

partes ficasse na dependência de acontecimento incerto .

dá conta da criação de juizados especiais, bem como da

17

Na tradição privatística, e fixada como contrato, a transa-

possibilidade de seu uso em âmbito penal21.

ção teria requisitos comuns, a exemplo do consentimento das

Realizou-se a disposição constitucional na Lei nº

partes contratantes, da capacidade para contratar, de objeto

9.099, de 26 de setembro de 1995, e mais tarde pela Lei

lícito que constituisse matéria da transação, da forma pres-

nº 11.313, de 28 de junho de 2006. Nesse sentido, a con-

crita em lei, bem como de requisitos próprios, e essenciais, a

vergência de interesses entre acusador e acusado, isto é:

exemplo da existência de relação jurídica incerta e duvidosa e da reciprocidade de sacrifícios mútuos18. Foi nesse conjunto conceitual que a transação foi positivada no Direito Civil brasileiro. Dispôs-se que seria lícito aos interessados prevenirem, ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas (art. 1.026 do Código Civil de 1916). E

A transação penal consiste, em linhas gerais, num acordo – daí o nome transação – entabulado entre o Ministério Público e o autuado, no qual o primeiro propõe ao segundo a aplicação imediata de uma pena pecuniária ou restritiva de direitos. Aceita a sanção pelo pretenso autor do fato, devidamente assistido por um defensor, o magistrado homologa por sentença a avença, impondo-lhe a reprimenda ajustada (...)22.

na lição clássica de Clóvis Beviláqua, seguida por Affonso Fraga, transação é ato jurídico, pelo qual as partes, fazendo-se concessões recíprocas, extinguem obrigações litigiosas ou dúvidas19. Registre-se, no entanto, que leitura restritiva de nota de rodapé de Beviláqua aponta contrariamente à ideia de

Ao que parece, na transação penal, muito mais grave do que o Estado renunciar à punição, tem-se o cidadão renunciando a direito fundamental, centrado no devido processo legal. Ainda, há percepções contrárias à transação em âmbito penal, a exemplo do que se colhe no excerto que segue:

transação em nicho de direito público. É que, segundo Beviláqua, há pessoas a quem a lei proíbe transigir: são em geral, as que não podem alienar, porque na transação há renúncia de direitos20. Por outro lado, comum em Direito Ambiental (e refiro-me aos termos de ajustamento de conduta), em Direito do Trabalho (reporto-me aos programas de demissão voluntária), a transação é presentemente factível inclusive em Direito Penal. O Estado renuncia a direito-dever de punir; o acusado renuncia ao direito de se defender. Nascida de intenso debate que se tem na criminologia, que opõe a tolerância mínima do movimento Law and Order ao princípio da intervenção mínima que qualifica o minimalismo e ao estrito respeito aos direitos fundamen-

De antemão é preciso desfazer esse outro mito, de que a vítima está sendo de alguma forma beneficiada pela transação penal. Na transação disciplinada pela Lei nº 9.099/95 o papel da vítima é ainda mais reduzido que no procedimento comum, pois neste ela ao menos colabora, apresentando em juízo sua versão dos fatos. Na transação penal isso não ocorre. E, se não bastasse, como as penas negociáveis inscrevem-se fora do catálogo de punições que as pessoas concebem, é comum os juízes separarem no tempo a audiência de conciliação civil frustrada (artigos 7275 do citado estatuto) da de transação penal (artigo 76), para evitar a incompreensão e olhar de censura das vítimas. O consenso a que chegam Ministério Público, investigado e seu defensor, sob o olhar e, às vezes, o estímulo do juiz, não tem, portanto, o poder de superação da situação de crise supostamente gerada pela comissão da infração penal. Não é essa a sua função e, pois, é falaciosa como base do discurso!23

16 - Id., 1928, p. 45. 17 - Id., 1938, p. 51. 18 - Id., 1928, p. 54. 19 - BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, s.d., v. 2, p. 144. 20 - Id., s.d., p. 144. 21 - SYLLA, Antonio Roberto. Transação Penal- Natureza Jurídica e Pressupostos. São Paulo: Método, 2003, p. 57. 22 - SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Transação Penal- Atualizada pela Lei nº 11.313, de 28 de junho de 2006. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 7. 23 - PRADO, Geraldo. Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 200.

26

TRIBUTAÇÃO em revista


A transação penal, por outro lado, qualificaria um instituto despenalizador, com raízes nos modelos de plea-guilty e plea-bargaining do direito norte-americano. Assim, inaugurase (...) em nosso sistema jurídico o espaço do consenso, em cuja perspectiva devem ser compreendidas as infrações de menor potencial ofensivo24; e de modo mais conclusivo: Mas uma coisa é certa: não se pode deixar de reconhecer a utilidade prática das soluções consensuadas no processo penal, pois com isso se consegue a diminuição do peso que recai sobre os órgãos jurisdicionais, permitindo, em consequência, uma maior dedicação aos processos mais graves (justificação formal do processo despenalizador)25.

A transação já era prevista como modalidade de extinção do crédito tributário no projeto que Oswaldo Aranha encaminhou a Getúlio Vargas em 1954 Dispôs-se no art. 136 do aludido projeto que seria facultado aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em termi-

Pode-se perceber a transação penal no contexto do

nação do litígio e consequente extinção do crédito tributário. Um

Código de Trânsito Brasileiro, que não restringe (...) sua

parágrafo único dispunha que a lei tributária indicaria a au-

aplicação às infrações penais de menor potencial ofensivo26.

toridade competente para celebrar a transação e as formalida-

Ou ainda, refiro-me à Lei nº 8.072, de 1990, relativa aos

des a ser observadas a cada caso.

crimes hediondos, que (...) adotou no Direito Penal Brasilei-

A necessidade de concessões mútuas é característica da

ro o conceito de delação premiada, em virtude do qual o agente

transação, na tradição privatística, bem como na redação

autor de infração penal pode beneficiar-se de redução de pena,

do Código Tributário Nacional, elaborado em momento

conforme o tipo de colaboração que preste às agências públicas

que o ambiente conceitual de Direito Privado era domi-

de controle penal .

nante. No entanto, não há obstáculos normativos ou con-

27

O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no

ceituais para que eventual alteração no Código Tributário

sentido de que a transação penal deve ser homologada an-

Nacional elimine a cláusula referente às citadas concessões

tes do cumprimento das condições objeto do acordo, ficando

mútuas. Conceitos normativos são construtos culturais, e

ressalvado, no entanto, o retorno do status quo ante em caso

não dados de transcendência metafísica.

de inadimplemento, dando-se oportunidade ao Ministério Pú-

Além do que, de um ponto de vista mais pragmático,

blico de requerer a instauração de inquérito ou a propositura

a adesão à transação, por parte do interessado, qualifica

de ação penal .

imediatamente concessão, na medida em que haveria,

28

Em âmbito mais especificamente tributário, a transa-

entre outros, desistência de ação judicial, pronto reco-

ção já era prevista como modalidade de extinção do crédito

lhimento, a par de disponibilização de documentação e

tributário no projeto que Oswaldo Aranha encaminhou ao

pronta adesão ao definido no pacto que se firmou. Deve-se

presidente Getúlio Vargas, por intermédio da Exposição de

ter bem nítido também que a transação não substitui o Judi-

Motivos nº 1.250, de 21 de julho de 1954, também consubs-

ciário na função de decidir sobre a validade, a interpretação e

tanciada na Mensagem nº 373, de 20 de agosto de 1954.

a aplicação, a casos concretos, do Direito Positivo29.

24 - PINHO, Humberto Dalla B. de. A Introdução do Instituto da Transação no Direito Brasileiro- e as Questões daí Decorrentes. Rio de Janeiro: 1998, p. 104. 25 - NOGUEIRA, Márcio Franklyn. Transação Penal. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66. 26 - PRADO, Geraldo. Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 221. 27 - Id., 2006, p. 221. 28 - SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 88.616-7-Rio de Janeiro. Relator Ministro Eros Grau, Segunda Turma, decisão 8 ago. 2006. 29 - CARVALHO, Rubens Miranda de. Transação Tributária, Arbitragem e Outras Formas Convencionadas de Solução de Lides Tributárias. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008, p. 7. TRIBUTAÇÃO em revista

27


Rápida pesquisa em torno da utilização de regimes de transação no Direito Tributário Brasileiro contemporâneo indica várias iniciativas. Refiro-me a leis de transação que há nos Estados do Pernambuco e do Rio Grande do Sul, bem como nos Municípios de Campinas, Angra dos Reis, Belo Horizonte e Curitiba. A Assembléia Legislativa do Estado do Pernambuco aprovou a Lei Complementar nº 105, de 20 de dezembro de 2007 que, entre outros, fixou o modelo de transação tributária, adotado por aquela unidade da Federação. Nos termos do referido documento normativo o procuradorgeral do estado do Pernambuco poderá transacionar judicial e extrajudicialmente, com base em parecer, após oitiva de órgão ou entidade interessados, bem como de um conselho de programação financeira. Remete-se à observância do interesse público e da conveniência administrativa. Distancia-se de tipologia fechada, que plasma o interesse público na intransigência. Tem-se nova dimensão de discricionariedade, oxigenada pela participação do interessado, do cidadão que recolhe tributos, a quem compete também fiscalizar como é cobrado. Mitigam-se alguns focos de tensão. Minimiza-se a demanda dos serviços do Judiciário. Reduzem-se os custos de aquiescência. Persegue-se a eficiência, que deixa de ser paradigma imaginário da administração pública, inserido em cláusula constitucional, plasmando-se em medida concreta, realista, de resolução de problemas. No estado do Rio Grande do Sul também há previsão legal para modelo de transação, e refiro-me à Lei nº 11.475, de 28 de abril de 2000, que alterou a Lei nº 6.537, de 27 de fevereiro de 1973. Indicou-se, entre outros, que na hipótese de transação, o pagamento seja efetuado integralmente em moeda nacional. Como regra geral, dispôs-se que os créditos tributários em litígio judicial poderão ser extintos, total ou parcialmente, mediante transação com o Estado, sendo competente para transigir o procurador-geral do estado. Pelo que se vê, no modelo do estado do Rio Grande do Sul, a transação pressupõe litígio judicial.

Determinou-se também que na hipótese em que o sujeito passivo promover ação judicial, visando à desconstituição do crédito tributário e a sentença do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul for favorável ao réu, a multa constante do auto de lançamento poderá ser reduzida em 30%, caso haja desistência do recurso da referida sentença, e o pagamento, em moeda corrente nacional, do respectivo crédito tributário efetue-se de uma só vez, no prazo de trinta dias, contados do trânsito em julgado da sentença. Há também previsão expressa para redução de multa, relativa a crédito tributário inscrito em dívida ativa, na hipótese de o devedor não oferecer embargos à execução fiscal. O município de Campinas também conhece modelo de transação, veiculado pela Lei nº 13.449, de 23 de outubro de 2008, regulamentada pelo Decreto nº 16.452, de 4 de novembro de 2008. Autoriza-se a transação tributária por adesão, para fins de extinção de créditos tributários imobiliários. Tem-se, no caso, desafogamento das instâncias judiciais. O modelo de Campinas, tão-somente, aponta para a necessidade de se informar ao Poder Judiciário, no que se refere à transação feita. O que se tem, diretamente, embora sem previsão legal mais precisa, é a suspensão da exigibilidade do crédito tributário. A adesão, por parte do interessado, tem como significado direto a renúncia a qualquer discussão, administrativa ou judicial. No município de Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, há também modelo de transação, disciplinado pela Lei nº 262, de 21 de dezembro de 1984. Facultou-se ao Poder Executivo celebrar transação sobre créditos tributários, tendo em vista os interesses da Administração. Explicitou-se que a transação será efetuada mediante o recebimento de bens, inclusive serviços, em pagamento de tributos municipais, cujos débitos, apurados ou confessados, se referirem, exclusivamente, a períodos anteriores ao período. No município de Belo Horizonte há também modelo normativo que autoriza a transação para prevenção e terminação de litígios relativos a créditos tributários objeto de processos administrativos ou judiciais. No modelo da cidade de Belo Horizonte a transação presta-se para prevenir ou terminar litígios. Na capital mineira, a transação

30 - CPC, Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; (...)

28

TRIBUTAÇÃO em revista


Nos Estados Unidos, a transação em matéria tributária é modelo que qualifica a substancialização de eficiência do Direito daquele país alcança, inclusive, débitos inscritos em dívida ativa e subsequentemente ajuizados. No caso, os honorários serão suportados pelas duas partes. Em Curitiba também há lei que dispõe sobre transação tributária. Trata-se da Lei Complementar nº 68, de 1º de julho de 2008, que dispõe sobre a extinção de créditos tributários e não tributários da Administração Direta do Município de Curitiba, mediante transação. O modelo de transação do Município de Curitiba atinge créditos submetidos à discussão judicial. O interessado deve, em primeiro lugar, requerer ao Procurador-Geral do Município, ao longo de processo administrativo, submetendo-se a decisão que atenda a critérios de conveniência e de oportunidade para o credor. Como especificado na norma de regência, o deferimento depende também que se demonstre que a medida facilitará a arrecadação, evitará o desperdício de esforços administrativos, bem como diminuirá a carga de esforços da Administração, na perseguição de créditos tributários devidos. Em âmbito de jurisprudência, não há muitos registros relativos a discussões em torno da prestabilidade normativa de regimes de transação tributária. Por exemplo, a constitucionalidade da Lei nº 11.475, de 2000, de Porto Alegre, foi questionada no Supremo Tribunal Federal. Trata-se da ADI 2.405-MC/RS, relatada pelo Ministro Carlos Britto, e julgada em 6 de novembro de 2002, no que se refere ao pedido cautelar. Suspendeu-se a eficácia de excerto que conferia poderes para que o procurador-geral do estado pudesse transigir, porquanto, ao que consta, verificou-se vício de origem, pois não se observou, tãosomente, iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo.

Embora em outro contexto, e sob outra linha argumentativa, transação efetuada pelo poder público também foi assunto apreciado no Recurso Extraordinário nº 253.885-0-Minas Gerais, relatado pela ministra Ellen Gracie, e julgado no dia 4 de junho de 2002, quando se ementou da forma que segue: EMENTA: Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido.

No Superior Tribunal de Justiça há outros registros. Fixou-se orientação relativa à natureza jurídica de decisões homologatórias de transação tributária. Decidiu-se que sentenças que homologam transações tributárias em processos judiciais qualificam questões de mérito. Nesse sentido, tais sentenças, em princípio, suscitariam reexame necessário, nos limites do art. 475 do Código de Processo Civil30. Há registros no Direito Comparado. Na Espanha a transação se processa em termos de actas com acuerdo, com procedimento fixado no artigo 155 da Lei Geral Tributária vigente naquele país. Há requisitos para o entabulamento de transação, a exemplo de proposta para a correta aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, cuja aplicação resulte na apreciação de fatos determinantes para a correta aplicação da regra discutível a casos concretos31. Espera-se, do interessado, encaminhamento de proposta, para que se possa alcançar acordo. O documento que formaliza a pretensão, com a anuência das autoridades fazendárias, obrigatoriamente, deverá espelhar o fundamento da aplicação, os cálculos, os elementos de fato, os fundamentos jurídicos, a quantificação das propostas de regularização, inclusive com previsão de redução de 50% dos valores cobrados a título de sanção.

31 - GONZÁLES, Luis Manoel Alonso. La Conflictividad Tributaria en España- Actualización de los Resultados del Informesobre ‘La Justicia Tributária en España’. In: TORRRS, Heleno Taveira (org.) Direito Tributário Internacional São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 545. TRIBUTAÇÃO em revista

29


Referidas actas con acuerdo suscitam autorização do

O procedimento é simples. A Administração envia ao

órgão competente para a liquidação do crédito, expressa,

interessado convite para comparecimento na repartição.

anterior ou simultânea à formalização do acordo, devendo

Este encaminha requerimento, indicando proposta, a par-

instruí-lo. Exige-se um depósito, por parte do interessado.

tir da qual negocia com a Administração. A par do modelo

O aludido depósito pode ser substituído por aval de enti-

utilizado pelo governo central, há miríade de modelos de

dade de crédito, certificado de seguro de caução, sempre

transação, que se utilizam em várias regiões da Itália.

na quantia suficiente para a garantia do crédito tributário que se discute.

Nos Estados Unidos a transação em matéria tributária é modelo que qualifica a substancialização de eficiência do

Após a concordância das autoridades fiscais espanho-

direito daquele país33. Conhecida como settlement of tax

las, no sentido de que se possa implementar a transação,

dispute, a transação suscita celeridade, aponta para opções

comunica-se ao interessado, que então encaminha propos-

factíveis e, principalmente, evita a multiplicação da liti-

ta. Após discussões, e uma vez que se alcance um acordo,

gância fiscal em âmbito de Poder Judiciário.

a legislação espanhola permite que o agente inspetor so-

Em geral, a transação tributária, em tese, permite que

licite autorização de órgão superior, de modo que se con-

se promova maior participação do administrado nas fun-

clua o procedimento de transação. Formaliza-se o acordo.

ções administrativas; cogita-se de atuação cooperativa do

Na Itália tem-se o accertamento con adesione, disposto

cidadão, também funcional e orgânica, fomentando-se

no Decreto Legislativo nº 218, de 19 de junho de 1997, de

a partir da atuação privada o interesse geral, em sentido

amplo âmbito de aplicação, e que tem como fundamento a

específico, que a Administração também organicamente

institucionalização do diálogo entre as partes, que origina-

persegue34.

riamente se enfrentam em uma relação tributária32.

A transação é a figura jurídica que melhor fomenta

No modelo italiano permite-se que a definição de va-

o direito de participação do cidadão que recolhe tribu-

lores de imposto de renda e de imposto de valor agregado

tos junto à Administração. O anteprojeto de Lei Geral de

seja fixada mediante a participação do interessado. A regra

Transação Tributária é um dos vários textos normativos

também vale para transação em torno de impostos de su-

encaminhados ao Congresso Nacional no contexto do II

cessão, de doações, de registros, de hipotecas, de valores

Pacto Republicano de Estado, assinado em Brasília, no

imobiliários em geral, ainda que em relação a apenas um

dia 13 de abril de 2005, em cerimônia que contou com a

dos coobrigados.

participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bem

Definiu-se que o valor alcançado na transação não

como dos presidentes do Senado Federal, da Câmara dos

pode ser impugnado pelo sujeito passivo, e nem pode ser

Deputados, do Supremo Tribunal Federal, a par do Minis-

revisto de ofício. No entanto, a transação cede em face de

tro da Justiça, entre tantas outras autoridades.

conhecimento superveniente de elemento novo, em rela-

De fato, não se tem a transação clássica, como previs-

ção ao qual seja possível apontar uma renda maior, supe-

ta no CTN. O projeto de transação vincula-se a alteração

rior à metade do valor originariamente definido.

no CTN. É de um novo modelo de que se trata. Não se

No que se refere aos impostos indiretos o valor defi-

tem anistia ou remissão discricionária. Leitura atenta do

nido na transação vincula a Administração, no que toca

projeto, centrada em todas as suas possibilidades, e sem

inclusive a efeitos posteriores, relativos aos tributos pac-

preconceitos, reflete imagem mais nítida.

tuados. Também não se pode impugnar o valor acertado e nem se fazer a revisão de ofício.

Não se afronta a Lei de Responsabilidade Fiscal. Não se cogita de renúncia de receita, porquanto não há previsão or-

32 - ÂNTICO, Gianfranco; CONIGLIARO, Massimo; FUSCONI, Valeria. Accertamento com Adesione. Milano: II Sole 24, 2008. 33 - Há substancial estudo sobre meios alternativos de solução de controvérsias tributárias no direito norte-americano. KORB, Donald L. IRS-Alternatives to the Traditional Tax Controversy System. In: TORRES, Heleno Taveira (coord.). Direito Tributário Internacional. São Paulo: Quartier Latin, vol. V, 2008, p. 493. 34 - ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Cizur Menor: Aranzadi/Thomson/Civitas, vol. 2, 2006, p. 85.

30

TRIBUTAÇÃO em revista


çamentária para recolhimento de recursos que estão sub judi-

legem, isto é, é da autoridade que decorre a lei. Os tempos

ce, ou sob mera previsão estatística de recolhimento. Se assim

mudaram. Pretende-se uma época de consenso.

fosse, levar-se-ia em conta todo o estoque da dívida ativa, o que inviabilizaria a administração das finanças do País.

Na sempre presente lição de Roberto Mangabeira Unger, a filosofia do futuro é a filosofia de como criamos futu-

A discricionariedade que assusta àqueles que freudia-

ros. Futuros diferentes. A transação tributária é ideia que

namente pretendem um pai infalível no Direito, à luz da

matiza uma nova relação entre o Fisco e o cidadão que

lição de Francisco Campos, é apenas conteúdo de critérios

recolhe tributos. É exceção, e não regra. Não é discricio-

de natureza puramente regulativa, e que se limita tão-so-

nária, conta com limites e parâmetros. Não é mecanismo

mente à designação de linha geral a ser seguida .

de indução negativa, no sentido de que reduziria o mon-

35

Não se pode confundir eventual indução negativa que

tante voluntariamente recolhido, porque, simplesmente,

o modelo poderia em tese promover com moralidade ad-

aplica-se a situações especialíssimas, delicadas, e que exi-

ministrativa. Toca-se sim, efetivamente, em matéria pro-

gem soluções que prestigiem a transparência e o consenso.

cessual. O fato de que Medida Provisória não possa dispor

A transação tributária é sinal de maturidade democrática.

sobre matéria processual não significa que a lei na possa

E ainda que o projeto não avance, por conta de for-

fazê-lo; do contrário, ter-se-ia o que os retóricos medievais

ças que insistem que os mortos devem governar os vivos,

identificariam como um argumento contrario sensu, isto é,

que o direito é imodificável, a animada discussão que se

conclui-se a partir de proposição admissível proposição

tem comprova que os tributaristas abandonamos discus-

que lhe é oposta.

sões estéreis e bizantinas, que não passavam das seme-

Não se tem ofensa a princípios, que objetivamente

lhanças e dessemelhanças entre prescrição e decadência,

substancializam regras, a exemplo de epítetos de legalida-

e que garantem aos futuros historiadores do direito um

de. Pelo contrário, centrado na luz da dignidade da pessoa

farto material anedótico. Avançamos. Discutimos hoje a

humana, e no fundamento de que o consenso legitima a

administração fiscal. A literatura especializada que se pro-

tributação, a lei de transação, com todas as imperfeições

duz comprova a advertência de Thomas Paine, para quem

inerentes a documento normativo in nuce inverte a sórdi-

quando a língua ou a pena são deixadas soltas num frenesi

da lógica de Thomas Hobbes, para quem auctoritas facit

de paixão, é o homem, não o assunto, que se esgota.

35 - CAMPOS, Francisco. Atos Administrativos Discricionário. In: Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, vol. I, 1958, p. 18. TRIBUTAÇÃO em revista

31


REFERÊNCIAS ÂNTICO, Gianfranco; CONIGLIARO, Massimo; FUSCONI, Valeria. Accertamento con Adesione. Milano: II Sole 24, 2008. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, s.d. BOUVIER, Michel. Introduction au Droit Fiscal General et à la Théorie de L’Impôt. Paris: Librairie Générale de Droit, 2007. BUSA, Vincenso. Gli Istituti Deflaviti del Contencioso nell’ Esperienza Italiana. In: TORRES, Heleno Taveira (org.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, v. V, 2008. CAMPOS, Francisco. Atos Administrativos Discricionários. In: Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, v. I, 1958. CARVALHO, Rubens Miranda de. Transação Tributária, Arbitragem e Outras Formas Convencionadas de Solução de Lides Tributárias. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008. COLLET, Martin. Droit Fiscal. Paris: PUF, 2007. DIAZ-PALÁCIOS, José Alberto Sanzs. Medidas Fiscales com Efecto Reductor de la Conflitividad em Francia. La Transación. In: Técnicas Convencionales em El Âmbito Tributário- Perspectivas de Derecho Interno, Comparado y Comunitário. Barcelona, Atelier: 2007. ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Cizur Menor: Aranzadi/Thomson/Civitas, v. 2, 2006.

32

TRIBUTAÇÃO em revista

FALCÃO, Joaquim. O brasileiro e o Judiciário. In: Revista Conjuntura Jurídica, v. 63, n. 4, abr. 2009. FRAGA, Affonso. Da Transação ante o Código Civil Brasileiro. São Paulo: Acadêmica, 1928. LAPATZA, José Juan Ferreiro. Solución Convencional de Conflictos en el Âmbito Tributario: una Proposta Concreta. In: TORRES, Heleno Taveira (org.). Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, v. II, 2004. MACHADO, Hugo de Brito. O Refis como Transação. Correio Braziliense, 10 set. 2001. NOGUEIRA, Márcio Franklyn. Transação Penal. São Paulo: Malheiros, 2003. PINHO, Humberto Dalla B. de. A Introdução do Instituto da Transação no Direito Brasileiro e as Questões daí Decorrentes. Rio de Janeiro: 1998. PRADO, Geraldo. Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Transação Penal Atualizada pela Lei nº 11.313, de 28 de junho de 2006. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. SYLLA, Antonio Roberto. Transação Penal- Natureza Jurídica e Pressupostos. São Paulo: Método, 2003. UNGER, Roberto Mangabeira. Necessidades Falsas. Tradução Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, São Paulo: Boitempo, 2005.


a RTIGO Projeto de Lei Geral de Transação em Matéria Tributária: Análise das Consequências Políticas e Econômicas Simone Anacleto Lopes

1. Introdução Está em tramitação no Congresso Nacional, em regime prioritário, o Projeto de Lei (PL) nº 5.082/2009, um dos vários projetos de lei embutidos no assim chamado “Pacto Republicano II”, na verdade, um conjunto de propostas de alteração ou inovação de normas, firmado pelas autoridades máximas de cada um dos três poderes da República Brasileira e que busca conferir maior agilidade e eficiência ao aparato estatal, em especial, o Judiciário. Tal fato revela-se deveras surpreendente, porque o aludido PL nº 5082, a par de várias inconstitucionalidades, em realidade, consagra uma concentração de Poderes em matéria tributária no Poder Executivo nunca antes vista na história deste País e que pode vir a ter graves consequências políticas e econômicas, como se procurará analisar ao longo do presente texto. Na Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT) nº 38, de março/abril de 2009, às págs. 9/26, foi publicado um artigo de minha autoria, intitulado Anteprojeto de lei geral

1

de transação em matéria tributária: uma análise jurídica, em que aponto várias inconstitucionalidades que entendo estarem presentes no texto que agora já é projeto de lei. Neste momento, pretendo fazer uma abordagem diferente, em que, embora sem me desvincular da análise jurídica, deixo propositadamente de analisar com mais vagar eventuais questões de inconstitucionalidade, para enfatizar consequências políticas e econômicas que, segundo me parece, ocorrerão, caso o projeto em exame venha a ser convertido em lei. 2. A Verdadeira Natureza dos Institutos Disciplinados no Projeto No artigo publicado na RFDT nº 38, antes mencionado, procurei demonstrar que o projeto, na verdade, não trata do instituto jurídico da transação tributária, mas, sim, dos institutos da remissão e da anistia. É que, para se tratar de transação, precisaria haver a observância do art. 171 do CTN, que possui a seguinte redação:

1 - Procuradora da Fazenda Nacional no Rio Grande do Sul TRIBUTAÇÃO em revista

33


“Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.” (Observe-se que, muito embora aí conste o termo “determinação”, a doutrina é pacífica no sentido de que houve um deslize do legislador e tal termo deve ser compreendido, ao invés, como “terminação.”)

No PL nº 5082, porém, não há realmente concessões mútuas entre o contribuinte e a Fazenda Pública. Apenas esta é quem faz basicamente todas as concessões. Veja-se que basta o contribuinte ter ajuizado qualquer ação em matéria tributária para já estar habilitado a postular a transação tributária. Esta poderá ser concedida nos largos limites traçados pelo art. 6º do Projeto (ou mais largos ainda no caso do seu art. 32, § 2º, p. ex.) – até 100% da multa aplicada pelo descumprimento de obrigações acessórias, até 50% de outras multas, até 60% dos juros e até 100% dos encargos de sucumbência ou outros encargos de natureza pecuniária. Assim, mesmo o contribuinte que tenha ingressado com uma ação para discutir, p. ex., apenas a incidência da taxa de juros legalmente estabelecida em lei, poderá, ao fim e ao cabo, obter descontos não só nos juros, mas também nas multas e em outros encargos. Ora, a teor do art. 172 do CTN, quando há perdão do valor do próprio tributo devido, estamos diante da remissão tributária; tem face dos arts. 175 e 180 a 182 do CTN, quando há perdão de infração cometida (e, em decorrência, da multa aplicada) estamos diante da anistia tributária. No caso, o projeto, ao conceder verdadeiros perdões dos valores legalmente impostos, ante o único pré-requisito da existência de uma prévia ação judicial, está, na realidade, tratando é de remissões e de anistias tributárias, não da transação. Tanto é assim que o antes referido art. 32, § 2º, talvez traindo o verdadeiro espírito que permeia o PL, menciona textualmente as palavras “remissão” e “anistia” – o que, aliás, também pode ser encontrado em outros dispositivos ao longo do texto. É bem verdade, por outro lado, que o PL exige que o

34

TRIBUTAÇÃO em revista

contribuinte renuncie ao direito sobre o qual se funda a ação. Mas se dito contribuinte, p. ex., discutia apenas a aplicação dos juros de mora, pedindo, digamos, a substituição da Taxa Selic por correção monetária e juros de 1% ao mês, e, ao final, paga o tributo sem qualquer multa (ou com multa reduzida pela metade) e sem quaisquer outros encargos, além do substancial perdão de 60% do valor dos próprios juros, ele estará “ganhando” mais do que poderia obter com o eventual sucesso da ação (aliás, diga-se que está pacificada na jurisprudência a legalidade da aplicação da Taxa Selic, o que significa que o contribuinte, sem dúvida, iria simplesmente perder essa ação). Nessa hipótese, indubitavelmente, as concessões terão sido somente de parte da Fazenda Pública e, portanto, implicam, de fato, remissão e anistia – não, transação. Ainda, destaque-se que o simples pedido de “transação” já tem o condão de suspender a exigibilidade do crédito tributário e permitir o fornecimento ao contribuinte da certidão positiva com efeitos de negativa (o que, a meu ver, é outra concessão da parte da Fazenda Pública) –, nesse sentido, o art. 20. E também merecem destaque os arts. 8º, I, 25 e 26 do Projeto, que preveem que poderá ser exigido do contribuinte, no procedimento de “transação”, um termo de ajustamento de conduta, em que, pelo que se depreende, o contribuinte se comprometerá a cumprir a legislação tributária dali para frente! Parece evidente que isso tampouco pode ser tido propriamente como uma concessão do contribuinte. E, portanto, se o PL, em realidade, o é de uma Lei Geral de Remissões e Anistias em Matéria Tributária, ele afronta diretamente o art. 150, § 6º, da Constituição Federal, que exige lei específica para tratar, entre outras matérias, de remissões e de anistias, não sendo cabível, para tanto, uma lei geral. Afronta, ainda, o art. 14 da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), pois a renúncia de receitas que se dará em cada remissão ou anistia não pode ser antecipadamente prevista, de modo a ser considerada nas estimativas de receita da lei orçamentária, com a previsão de medidas de compensação financeira.


Mas, como antes dito, a análise jurídico-constitucional não é o foco principal do presente trabalho, pelo que se deixa de desenvolver mais aprofundadamente tais pontos. A exposição até aqui desenvolvida teve por objetivo, tãosomente, de saída, evidenciar que nem sequer o nome dado ao Projeto reflete a realidade da qual ele verdadeiramente trata.

lamento, com preservação de informações sujeitas a segredo na forma do art. 198 da Lei nº 5.172, de 1966. (grifo nosso).

3. A Concentração de Poderes no Poder Executivo A meu sentir, um dos aspectos mais graves do PL 5082 é que ele autoriza a concentração de poderes no Poder Executivo. Sem entrar na discussão acerca da afronta ao princípio constitucional da separação de poderes, pretendo analisar como dito projeto pode afetar o próprio funcionamento da democracia brasileira. O que temos hoje? O Poder Legislativo elabora as leis (ou, ao menos, procede à deliberação em relação às medidas provisórias), tanto para instituir tributos, quanto para prever as diversas formas de extinção do crédito tributário. Cada parcelamento, cada anistia, cada remissão em matéria tributária depende de prévia discussão legislativa para se consagrar em lei. O que teremos se o PL 5082 for convertido em lei? O Poder Legislativo se tornará totalmente desnecessário para decidir sobre a extinção dos tributos federais, pois essa extinção não se dará mais com base em critérios de legalidade, mas, isto sim, por critérios de conveniência e oportunidade da Câmara Geral de Transação e Conciliação – CGTC (nesse sentido, bem claro o art. 1º do Projeto). Ademais, o órgão criado para decidir sobre as extinções de créditos tributários por critérios de conveniência e oportunidade, a CGTC, é totalmente subordinado ao ministro da Fazenda e decidirá sigilosamente. Vejamos, primeiro, a questão do sigilo. Confiram-se os arts. 24, § 3º, e 50 do PL 5082:

Art. 24. § 3º Os documentos que compõem o processo de transação serão arquivados na unidade da Fazenda Pública que jurisdiciona o domicílio fiscal do contribuinte e as ementas dos termos de transação serão divulgadas na rede mundial de computadores na forma de regu-

Art. 50. As sessões da CGTC e CTC serão públicas, salvo decisão em contrário de ambas as Câmaras, mediante requerimento do sujeito passivo transator, quando examinar matéria sigilosa ou dados profissionais ou empresariais restritos.

Se o PL 5082 for convertido em lei, o Poder Legislativo se tornará totalmente desnecessário para decidir sobre a extinção dos tributos federais Como se vê, a par de que o proposto pelo projeto não é realmente transação, mas, sim, remissões e anistias a ser concedidas por novo órgão administrativo completamente dependente do Poder Executivo, suas decisões serão praticamente sigilosas. Apenas as ementas das decisões adotadas serão publicadas. E mesmo as sessões de julgamento poderão ser sigilosas, pois é evidente que a maioria das discussões tributárias, senão todas, envolve “matéria sigilosa ou dados profissionais ou empresariais restritos”. Interessante, contudo, é o que dispõe o art. 46 do projeto: Art. 46. À Câmara-Geral de Transação e Conciliação - CGTC, vinculada à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e presidida pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional ou por Procurador da Fazenda Nacional por ele indicado, compete: IV - conhecer, por meio da respectiva unidade da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou da Secretaria da Receita Federal do Brasil, de incidente de divergência entre termos de transação expedidos pela Fazenda Nacional, o qual será apresentado no prazo de trinta dias à autoridade administrativa que houver proferido a decisão supostamente divergente, e, uma vez instruído, será remetido à CGTC no prazo de quinze dias, tramitando sem efeito suspensivo; ...

TRIBUTAÇÃO em revista

35


§ 1º A CGTC decidirá sobre o incidente de divergência previsto no inciso IV no prazo de trinta dias e indicará à autoridade administrativa competente que promova os ajustes no termo de transação considerado inadequado, desde que expedido há menos de cento e vinte dias, de forma a ajustá-lo ao termo de transação definido como paradigma.

Art. 52. Os membros da CGTC ou da CTC e o Procurador da Fazenda Nacional ou o Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil, durante o exercício de competência delegada, gozarão das prerrogativas de independência funcional e inamovibilidade, e deverão agir com imparcialidade, independência, diligência, sigilo funcional e observar a todos os fundamentos, princípios e critérios desta Lei.

Assim, aparentemente, fica resguardado o respeito ao princípio da isonomia, pois, em tese, cada contribuinte poderá pleitear sejam aplicadas ao seu caso as mesmas razões de decidir utilizadas para conferir esta ou aquela remissão ou anistia a outro caso similar. Indaga-se, porém: como elaborar um incidente de divergência se justamente as razões de decidir acabam sendo sigilosas, só se conhecendo a ementa de cada decisão? Parece que, novamente, nesse ponto, a previsão do projeto pouco ou nada significa na realidade, dada a insuperável dificuldade de se interpor um incidente de divergência sem se poder demonstrar os fundamentos dessa divergência. Vejamos, agora, a total subordinação dos membros da CGTC ao Ministro da Fazenda (que, não esqueçamos, é totalmente subordinado ao próprio presidente da República).

Confrontem-se esses dispositivos, p. ex., com os de outras leis nos últimos anos publicadas e que versam sobre as chamadas agências reguladoras:

Confira-se a redação dos artigos pertinentes: Art. 49. A CGTC e a CTC serão compostas, paritariamente, por membros designados pelo Ministro de Estado da Fazenda entre servidores públicos membros da carreira funcional de Procurador da Fazenda Nacional e Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, conforme os critérios a serem estabelecidos em ato do Poder Executivo. § 1º Os integrantes da CGTC e da CTC deverão possuir reputação ilibada, conhecimentos jurídicos, contábeis e econômicos, mais de dez anos de exercício funcional nas suas atuais carreiras e estar habilitados, a partir de cursos de formação específicos, nas práticas de mediação e transação. § 2º A permanência dos membros será limitada a quatro anos, podendo estender-se por mais quatro, uma única vez, desde que comprovada a participação em cursos de atualização e observada a avaliação dos resultados alcançados no exercício da função.

36

TRIBUTAÇÃO em revista

ANEEL (Lei nº 9.427/96) Art. 5º O Diretor-Geral e os demais Diretores serão nomeados pelo Presidente da República para cumprir mandatos não coincidentes de quatro anos, ressalvado o que dispõe o art. 29. Parágrafo único. A nomeação dos membros da Diretoria dependerá de prévia aprovação do Senado Federal, nos termos da alínea “f” do inciso III do art. 52 da Constituição Federal. ANP (Lei nº 9.478/97) Art. 11. A ANP será dirigida, em regime de colegiado, por uma Diretoria composta de um Diretor-Geral e quatro Diretores. § 1º Integrará a estrutura organizacional da ANP um Procurador-Geral. § 2º Os membros da Diretoria serão nomeados pelo Presidente da República, após aprovação dos respectivos nomes pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição Federal. § 3° Os membros da Diretoria cumprirão mandatos de quatro anos, não coincidentes, permitida a recondução, observado o disposto no art. 75 desta Lei. ANATEL (Lei nº 9.472/97) Art. 8º. § 2º A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira. Art. 24. O mandato dos membros do Conselho Diretor será de cinco anos.


ANVISA (Lei nº 9.782/99)

rantido basicamente por mandatos fixos aos membros

Art. 3º. Parágrafo único. A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada pela independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira. Art. 10. A gerência e a administração da Agência serão exercidas por uma Diretoria Colegiada, composta por até cinco membros, sendo um deles o seu Diretor-Presidente. Parágrafo único. Os Diretores serão brasileiros, indicados e nomeados pelo Presidente da República após aprovação prévia do Senado Federal nos termos do art. 52, III, “f”, da Constituição Federal, para cumprimento de mandato de três anos, admitida uma única recondução.

de cada diretoria, que, assim, não ficam comprometidos

Como se pode ver, em todos os casos, há previsão de mandato para os membros da diretoria das agências reguladoras. E por que assim se faz? Em primeiro lugar, é preciso recordar que as agências reguladoras são um instituto copiado do direito norteamericano. Lá, como aqui, segundo aponta a literatura especializada, o objetivo de se criar autarquias com independência em relação ao poder central do Estado é subtraí-las do chamado “ciclo de negócios políticos”, característico de democracias representativas. Como se sabe, os políticos, inclusive aqueles eleitos para cargos do Poder Executivo, em qualquer país do mundo, tendem a ser mais rígidos no início de seus próprios mandatos com a execução das políticas públicas a que se propuseram no período de campanha eleitoral. Já quando começa a se aproximar o fim de seus mandatos, começam a fazer concessões, em busca do maior número de votos possível para garantir sua própria reeleição. Considerando que cabe ao Poder Executivo regula-

com um determinado governo. Mesmo que o resultado de eleições gerais mude completamente o quadro político, a diretoria de cada agência reguladora poderá continuar a atuar com base em critérios exclusivamente técnicos, até o fim de seu próprio mandato. E nesse sentido, efetivamente, o que se tem visto é que o modelo das agências reguladoras funciona razoavelmente, tornando-as efetivamente bastante independentes do poder central. Não as livra, porém, de todo, de eventuais casos de corrupção, nem de um problema que passou a ser um risco permanente e que também é tratado pela literatura especializada: o da chamada “captura” – como as questões a ser reguladas são, frequentemente, de alta complexidade, e as próprias entidades reguladas costumam dispor de técnicos altamente especializados, muitas vezes são estes que acabam ditando o teor dos regulamentos às agências reguladoras. Cotejando essas informações com a realidade do Projeto de Lei Geral de Transação em Matéria Tributária e examinando-se novamente os arts. 49 e 52 de seu texto, percebe-se claramente que inexiste verdadeira garantia de independência aos membros da criada CGTC, pois a eles não é garantido mandato, sendo apenas limitado o exercício de suas funções nesse órgão por, no máximo, quatro anos, prorrogáveis por mais quatro. Assim como os membros são designados pelo ministro da Fazenda, poderão ser afastados da CGTC, antes dos prazos limites, a qualquer momento, pela mesma autoridade. E, portanto, quando se alude a “prerrogativas de independência funcional e inamovibilidade”, verifica-se que

mentar a aplicação das leis, regulando minudentemente

elas, na realidade, nada significam, na medida em que se

a atuação de setores econômicos, tais como o de ener-

restringem ao período “durante o exercício de competên-

gia elétrica, exploração do petróleo, telecomunicações,

cia delegada”, que pode ser encerrada a todo tempo pelo

saúde, etc. a solução encontrada para fugir do chamado

Ministro da Fazenda, que, por sua vez, é autoridade com-

“ciclo de negócios políticos” foi a criação das agências

pletamente subordinada à do presidente da República.

reguladoras, ou seja, de autarquias com verdadeira in-

Portanto, o que se constata é a completa dependência da

dependência em relação ao poder central, o que é ga-

CGTC à autoridade do ministro da Fazenda e, em última

TRIBUTAÇÃO em revista

37


análise, à do próprio Presidente da República. Dessarte, não se está aqui aludindo a eventuais problemas de corrupção, mas, sim, à verdadeira falta de independência dos membros da CGTC em relação ao poder central. Em outras palavras, o modelo administrativo criado pelo Projeto da Lei Geral de Transação em Matéria Tributária recai no reconhecido problema do “ciclo de negócios políticos”, que foi afastado em relação às agências reguladoras. Assim, digamos que haja um membro da CGTC que insista em manter uma posição divergente e independente e, com tal postura, desagrade ao ministro da Fazenda (ou ao próprio presidente da República). Lembre-se que podere-

§ 2º É competência da CGTC a admissão e análise de proposição que envolva interpretação de conceito indeterminado do direito, para efeito de conclusão de processo de transação, na forma do § 1º, ficando esse entendimento sujeito à homologação por turma especializada da Câmara Superior de Recursos Fiscais. Art. 30. A transação em processo judicial terá por objeto o litígio entre as partes, como definido no pedido inicial, cuja solução, para a matéria de fato ou de direito, poderá ser alcançada inclusive mediante a consideração de elementos não constantes no processo judicial. § 3º A transação poderá incluir matérias pertinentes àquelas deduzidas em juízo e com estas relacionadas ou conexas.

mos estar cogitando de descontos de multas, juros, encargos de sucumbência, ou até o próprio valor do tributo, sem

Como se vê, embora o projeto afirme que a transação

qualquer limite máximo, e, pois, podemos estar tratando de

não poderá implicar negociação do montante do tributo

descontos de bilhões de reais para alguma das grandes em-

devido, em seguida, se contradiz e admite essa negociação

presas nacionais, a ser decididos sigilosamente por critérios

toda vez que a CGTC interpretar conceitos jurídicos inde-

de conveniência e oportunidade.

terminados ou, mesmo, quando identificar a existência ou

Qual é o desfecho previsível dessa situação? A exone-

avaliar a relevância de questões de fato. Ou seja, como gran-

ração do membro da CGTC que não agrada às autoridades

de parte dos conceitos jurídicos possui pelo menos alguma

superiores. E talvez, até, o seu envio a qualquer parte do

margem de indeterminação (menor, p. ex., no que diz com

território nacional, distante de seu local de origem. Afinal,

o conceito de industrialização, mas maior no que respeita,

ele não estará mais no “exercício de competência delegada”.

p. ex., a lucro ou a receita bruta), praticamente em todas as

A crítica, aqui, não é a uma ou outra pessoa determi-

questões será possível a redução do montante dos próprios

nada, mas, sim, ao próprio modelo, que não resguarda os

tributos. Sem falar que isso também é possível em relação à

membros da CGTC de eventuais interferências meramente

avaliação das questões de fato.

políticas com prejuízo das soluções técnicas mais adequadas.

Entretanto, o que se quer neste ponto destacar é que

Mas, não bastasse tudo o quanto foi dito até aqui, o

será a CGTC quem dará a última palavra sobre a interpre-

PL 5082 também permite que o Poder Executivo invada a

tação de vários conceitos jurídicos tributários, em última

seara de competências do Poder Judiciário.

análise, subtraindo essa análise da competência constitu-

Confiram-se os seguintes dispositivos do Projeto:

cionalmente traçada ao Poder Judiciário. A teor do art. 7º, inciso II, alínea “a”, só não poderá contrariar decisão de in-

Art. 7º A transação, em qualquer das suas modalidades, não poderá:

constitucionalidade já proferida por decisão plenária defini-

I - implicar negociação do montante do tributo devido;

interpretação constitucional de diversos conceitos jurídicos

§ 1º Não constituem negociação do montante dos tributos as reduções que decorram do procedimento de transação, quanto à interpretação de conceitos indeterminados do direito ou à identificação e relevância do fato, aplicáveis ao caso, cujo resultado seja a redução de parte do crédito tributário.

38

TRIBUTAÇÃO em revista

tiva do Supremo Tribunal Federal. No mais, dirá a própria indeterminados de forma definitiva. Só que fará isso com poderes maiores do que os de que dispõe um juiz propriamente dito, pois poderá considerar “elementos não constantes no processo judicial”, bem como apreciar questões que ultrapassem os limites do pedido co-


locado na petição inicial, já que “a transação poderá incluir matérias pertinentes àquelas deduzidas em juízo e com estas relacionadas ou conexas”. O que são matérias “conexas”? Talvez mais um conceito jurídico indeterminado a ser definido pela CGTC. Veja-se, contudo, que a teor de vários dispositivos do Código de Processo Civil, o juiz propriamente dito está adstrito às provas constantes do processo judicial e também ao próprio pedido formulado pela parte autora. Nesse sentido, exemplificativamente, o disposto no art. 460 do CPC: Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.

Em resumo, uma ação qualquer, que pode ser meramente protelatória, discutindo, p. ex., a correção monetária da Cofins, poderá ensejar descontos nas multas, juros, talvez até no próprio valor do tributo Cofins em si, além, talvez, do PIS (que não estava sendo discutido na ação judicial), mas que também é um tributo que incide sobre a receita bruta das empresas e possivelmente seja considerado “conexo”. E tudo sempre com base nos critérios de conveniência e oportunidade da CGTC, aquele órgão totalmente subordinado ao ministro da Fazenda (e ao presidente da República), sem ampla publicidade. Ora, permitir-se que um órgão inteiramente subordinado ao Poder Executivo possa discricionariamente conceder remissões e anistias tributárias, em decisões que, ademais, são praticamente sigilosas, procedendo à interpretação em termos definitivos de conceitos jurídicos indeterminados, acaba invadindo, a um só tempo, as searas de competência do próprio Poder Legislativo (pois se afastou a exigência da estrita previsão legal para cada hipótese de renúncia tributária) e do próprio Poder Judiciário (visto que a CGTC decidirá de forma definitiva, com poderes mais amplos do que os que o sistema jurídico brasileiro confere à magistratura, sobre a interpretação de conceitos jurídicos indeterminados, inclusive os de natureza constitucional, enfraquecendo o próprio papel de uniformização que hoje possui o Supremo Tribunal Federal).

4. O Desincentivo à Eficiência Econômica Todo estudante de Direito Tributário deve ter ouvido que a história desse ramo do Direito remonta a 1215, na Inglaterra, quando os barões impuseram ao Rei João Sem Terra a Magna Carta, a fim de limitar o poder deste. Um dos limites então traçados ao poder do rei foi: No taxation without representation. A partir de então, o rei não pôde mais criar novos tributos ou majorar os existentes sem antes ter a autorização dos representantes do povo. No Brasil do Século XXI, de certa forma, com o PL 5082, se pretende percorrer o caminho inverso e voltar a concentrar larga parcela do poder tributário nas mãos “do rei” (entenda-se, aqui, é claro, o presidente da República, chefe do Poder Executivo), subtraindo grande parcela desse poder tanto do Legislativo, quanto do Judiciário. Isso parece bom para a nossa democracia? A meu sentir, isso não só não é bom do ponto de vista político, como tampouco é bom do ponto de vista econômico. Há um autor norte-americano chamado Douglass North, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1993, que é considerado um dos pais do chamado “neo institucionalismo”, uma das escolas do Law and Economics, para a qual o desenvolvimento econômico não é uma decorrência de incrementos populacionais, avanços tecnológicos e outros fatores usualmente apontados pelos economistas. Esses são, na verdade, sinais do próprio desenvolvimento econômico, o qual depende, em grande medida, das instituições do país considerado. Tanto que North, ao ser indagado, por ocasião do recebimento do Nobel, como resumiria sua teoria, afirmou: Institutions matter (literalmente: Instituições importam). No primeiro livro a partir do qual passou a desenvolver sua teoria, escrito em coautoria com Robert Paul Thomas e publicado em 1973, intitulado The rise of the western world: a new economic history, os autores fazem considerações surpreendentes. Eles comparam, nesse livro, o desenvolvimento de quatro países ao longo de toda a Idade Média: Espanha, França, Holanda e Inglaterra.

TRIBUTAÇÃO em revista

39


Mostram que havia ciclos de desenvolvimento econômico: quando o comércio voltava a se intensificar, isso

foi lá que começou a Revolução Industrial, mas esta já é outra história.

proporcionava pessoas se alimentando melhor e as popu-

O que pretendi evidenciar aqui é que a garantia da

lações cresciam, até que se sucedia uma grande peste ou

democracia, com a devida separação de poderes, limitan-

guerra, dizimando-se grande parte das populações, com o

do-se muito claramente o poder de cada um dos agentes

consequente declínio do comércio.

políticos, principalmente em matéria tributária, é um dos

Esses ciclos só foram interrompidos no final da Idade

(senão o principal) motes do desenvolvimento econômico.

Média na Holanda e na Inglaterra, onde, pela primeira vez

Definições claras, mesmo que rígidas, por conferirem

na história, uma grave peste não afetou tão dramaticamen-

segurança jurídica ao sistema, são preferíveis a outras que

te suas populações. Por quê?

se pautem por critérios subjetivos, variáveis e concentra-

Porque, segundo os citados autores americanos, ao

dos nas mãos de um agente político.

contrário do que acontecia na Espanha e na França abso-

No primeiro caso, todos sabem o que esperar das re-

lutistas, tanto Holanda quanto Inglaterra tinham limites à

gras e a diferença entre um empresário e outro decorrerá

tributação pelos respectivos reis! Isso fez toda a diferença.

de sua maior ou menor eficiência econômica.

Quando a tributação deixou de ser fixada ao arbítrio do

Já no segundo caso, a vontade de agradar ao agente

rei, garantiu-se maior igualdade entre os contribuintes, maior

político que tem o poder de tributar ou não é o que

segurança jurídica e o que passou a predominar, ao invés da

prevalecerá. Quem não agradar, possivelmente será

vontade de agradar ao rei, foi a capacidade de cada um de

tributado mais severamente do que quem agradar, e

produzir mais e ganhar mais por isso. Ou seja, privilegiou-se

poderá até falir. Destrói-se, assim, a condição básica

a eficiência econômica. Isso garantiu automaticamente uma

da eficiência econômica.

mais eficiente distribuição de alimentos e as populações, ho-

Portanto, o PL 5082, ao concentrar o poder para dis-

landesa e inglesa, suportaram melhor uma nova onda de do-

pensar tributos no Poder Executivo, ainda mais em de-

enças, que as populações, espanhola e francesa.

cisões praticamente sigilosas, é muito grave, não só do

Depois, a Inglaterra ainda foi o primeiro país a aprovar uma lei de proteção aos direitos autorais e, não por acaso,

40

TRIBUTAÇÃO em revista

ponto de vista jurídico, mas principalmente dos pontos de vista político e econômico.


Foto: Arquivo Liberdade de Expressão

e NTREVISTA Eurico Marcos Diniz de Santi “Precisamos estabelecer uma nova relação entre a administração tributária e os contribuintes”

N

esta entrevista, o professor da Fundação Getúlio Vargas Eurico de Santi*, doutor e mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), apresenta sua visão crítica da Lei Geral de Transações. Como estudioso da matéria, ele faz uma série de questionamentos sobre a Lei, inclusive sobre sua constitucionalidade. Tributação em Revista: Segundo o Ministério da Fazenda, o PL 5.082 e o PLP 469, que tratam da transação em matéria tributária, trariam uma “nova relação entre a administração tributária e os contribuintes”, por meio de uma “aplicação mais homogênea da legislação tributária” e do “entendimento direto” entre as partes. Em sua opinião, existem realmente tais benefícios? Eurico de Santi: Não há dúvida que precisamos estabelecer uma “nova relação entre a Administração Tributá-

ria e os Contribuintes” e é óbvio que todos esperamos por uma “aplicação mais homogênea da legislação tributária”. Não são esses objetivos o problema, o equívoco está na solução proposta: a transação! A transação é uma forma de composição de conflitos entre partes individualizadas fundamentadas em instrumento contratual que tem força de lei, mas não é lei, pois só vale entre as partes. Duas partes pactuam deveres e direitos em contrato, depois as mesmas partes negociam, mediante concessões recíprocas das regras do contrato por

* Bacharel, mestre e doutor em Direito, professor de Direito Tributário da DireitoGV – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, coordenador do Curso de Especialização em Direito Tributário do GVlaw, e Coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF). Dedica-se ao estudo de transações tributárias, publicando artigos e proferindo palestras sobre o tema. TRIBUTAÇÃO em revista

41


elas celebrado. Em direito tributário, os deveres e obrigações decorrem de lei. A obrigação tributária que vincula Fisco e contribuinte não decorre de um contrato em que as partes podem fazer concessões recíprocas, decorre da lei. Portanto, só a lei pode estabelecer tais “concessões”. A transação, por essa razão, é a negação da lei que formou o vínculo obrigacional. Já temos transação no direito tributário brasileiro. São os programas de anistia e refinanciamento, como o Paes e Refis, que surgem a cada quatro anos às vésperas das eleições. E apesar de ser veiculados em lei, não representam nenhuma modernidade na relação entre Fisco e contribuinte, nem colaboram na aplicação homogênea da legislação tributária: aliás, anistia, remissão ou perdão caracterizam reminiscências de regimes autoritários em que os contribuintes dependiam do humor, da compaixão, da conveniência e conivência dos interesses do príncipe. Estamos no Século XXI. Modernidade, aqui, é um sistema tributário transparente e simples. A “nova relação entre a administração tributária e os contribuintes” que todos esperamos não advém de Câmaras obscuras de aplicação da “justiça fiscal divina”, advém de um sistema tributário efetivamente acordado entre o Estado e os contribuintes. Em que a lealdade do Estado não permite alíquotas por dentro ou impostos que se disfarçam na embalagem de contribuições para parecer menos desagradáveis. Modernidade tributária significa democracia: discutir quem está pagando, porque está pagando e exigir efetiva contraprestação desse dinheiro público que é de todos nós! Vamos melhorar a educação? Oferecer mais saúde e mais dignidade aos nossos aposentados? Não há problema! Quanto vai custar? Quanto será o aumento da alíquota? Aprove-se, então, por lei o aumento da respectiva alíquota pelo tempo necessário para garantia desses objetivos. Isso é modernidade: incluir o contribuinte na esfera pública do debate sobre as políticas do Estado! Modernidade não é misericórdia. Modernidade não é perdão. Modernidade não precisa de transação!

ES: Antes de tirar conclusões, recomendo ao leitor que faça a leitura do texto dos aludidos anteprojetos para formar sua própria convicção sobre a proposta. Feita a leitura, podemos, talvez, compartilhar uma série de perplexidades. É daí que saltam, de dentro para fora, as seguintes perguntas: Qual seria o litígio objeto da transação? O “litígio” seria a relação jurídica tributária (crédito)? Ou o “litígio” seria a tese que coloca em dúvida a existência da relação jurídica tributária, por exemplo, a exigência de lei complementar para ampliar a alíquota de 2% para 3%, no caso da Lei nº 9.718? Ou o “litígio” seria o conflito econômico em torno do pagamento ou não do crédito tributário, sua antecipação, e perdão parcial de multas e juros (entre 100% e 50%)? Qual será o objeto das tais “concessões mútuas” na transação? Será na “relação jurídica tributária”? Como? Ou será a tese que coloca em dúvida a “relação jurídica tributária”? Mas “tese” para não pagar tributo é lá direito para se opor à obrigação de pagar o crédito tributário? Então, o objeto da concessão do contribuinte será algum acordo em torno da “tese” da juridicidade da necessidade de lei complementar ou lei ordinária, na veiculação deste aumento? E como converteríamos tais teses em perspectivas dimensíveis: tese da lei complementar vale mais, 90% de desconto; tese de lei ordinária vale menos, 10% de desconto!? Ou haverá “concessões mútuas” apenas relativas ao valor e a forma de pagamento? O Conselho de Conciliação da Fazenda Nacional propõe a redução do tributo, das multas e dos juros... E o contribuinte paga o que restou? Seria esta a concessão por parte do contribuinte: pagar menos e em mais vezes? Essa seria a parte da concessão do contribuinte? O anteprojeto de lei é obscuro e lacônico sobre esse relevante ponto para todos nós outros contribuintes. Qual seria a motivação do ato de transação proposto neste anteprojeto? Como motivar o ato discricionário de redução do crédito? Por que reduziu 100% da multa acessória e não 1%? Por que reduziu 75% das demais multas e não 1,5%? Por que reduziu 50% dos juros de mora e

TR: Quais os principais problemas que o senhor aponta nos projetos que tratam da Lei Geral de Transação Tributária? Pode detalhá-los?

42

TRIBUTAÇÃO em revista

não 2,333%? Por que reduziu 100% dos “demais encargos” 3,33%? Por que reduziu 100% ou 1% do crédito tributário? E quais seriam as motivações “jurídicas” dessas


deduções específicas e não outras diversas? Seriam essas

o engraçado é que não se encontra nenhum; enfim, ar-

motivações passíveis de controle jurídico? Ou não!?

rosta “comprovada prevaricação, concussão ou corrupção

Na obscuridade do texto proposto, não se encontram

passiva na sua formação” que não passa, também, de co-

parâmetros, apenas os desgastados e desacreditados man-

dificação simbólica, pois todos nós sabemos a dificuldade

tras da “justiça fiscal”, “boa-fé”, “razoabilidade”, “propor-

de provar “prevaricação, concussão ou corrupção”, pois as

cionalidade”: blá-blá-blá da modernidade do Século XVII.

partes interessadas têm interesse comum e contaminam-

O equívoco desse projeto é pretender propor “justiça fis-

se, concomitantemente, em seu contato promíscuo, por

cal”, “boa-fé”, “razoabilidade”, “proporcionalidade” no ato

isso, não se denunciam em seu mútuo acordo de interes-

de aplicação, estimulado pela sofisticação da transação. Se

ses e concessões recíprocas fora da legalidade, além disso,

a lei tributária é injusta, de duvidosa boa-fé, desarrazoa-

para dificultar o controle, o anteprojeto garante o benefí-

da e desproporcional, como consertar tudo isso em um

cio da confidencialidade e o consequente esvaziamento de

ato particular e concreto de transação. Realmente, só com

qualquer motivação: de fato, o ambiente não parece ser o

muita boa-fé!

mais promissor para o esvaziamento da oportunidade e

TR: O que o senhor diria sobre a constitucionalidade dos projetos? Os projetos respeitam os princípios constitucionais de Direito? ES: A transação é a negação da legalidade, do controle e do direito: que leis tributárias se pode aplicar na transação? Deveras, a transação e a arbitragem representam, justamente, o afastamento da aplicação da lei geral e abstrata, do direito e de seus controles por seus destinatários constitucionais: os Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. Sem controle, não há solução: o fato é que esse luxo de “modernidade” é incompatível com a efetiva ideia de modernidade que exige impessoalidade e transparência dos atos de Estado. E não acrescenta nada às nossas instituições jurídicas, senão incerteza, subjetividade e contingência: caminhamos para o nada jurídico! Ou pior, para juridicização da “corrupção sistêmica” em que o Direito abre a guarda de seus controles para se submeter ao gozo mesquinho do poder econômico e político.

incentivo ao desvio do interesse público. Faltam, enfim, normas que informem critérios materiais para dizer que (i) transações são materialmente válidas e (ii) quais são materialmente inválidas. O presente “Sistema de Transação”, tal qual proposto, configura “paraíso jurídico” que se pretende instalar dentro, mas à parte do Direito: os termos de “transação” só se submetem a controles formais, não há critérios materiais de controle. E se não há critérios materiais de controle: como controlar a ação das autoridades competentes para compor a “transação”? Elas encontram-se juridicamente livres para transacionar créditos e multas até 100% sem nenhum controle: eis o problema, o exercício de poder de dispor sobre bens públicos (o crédito tributário) sem controle jurídico nenhum. TR: Não haveria nesses projetos uma confusão entre interesses públicos e privados? ES: O Estado de Direito e o interesse público exigem tecnicamente pela contraposição entre a ideia de lei, sua apli-

TR: Os projetos sofrem de vício formal? Ou de

cação generalizada e o controle dessa aplicação. O presente

conteúdo?

anteprojeto subverte essa ideia, criando um espaço vazio sem

ES: Seria cômico se não fosse trágico. O projeto parece

lei para os privilégios aos clientes da transação, protegido e

pretender reduzir o controle apenas às nulidades formais:

blindado com a força do próprio direito. Assim, perde-se o

autoridade incompetente, árbitro não habilitado, demais

direito pelo próprio direito à transação, esvazia-se o interesse

requisitos formais ou se for realizada extemporaneamente.

público e desorganizam-se os interesses privados em torno

Refere-se a requisitos materiais exigidos por esta lei, mas

da possibilidade do privilégio transacional.

TRIBUTAÇÃO em revista

43


A pretensão de transação, sem critérios legais, desloca a denotação do termo para o vazio das concessões recíprocas e de ordem econômica indisponível em matéria de Direito Público

de seus fatos e provas subjacentes que os profissionais concursados que integram os quadros da Receita, nas esferas municipal, estadual e federal. Além disso, ninguém conhece melhor processo executivo fiscal que os procuradores da Fazenda Nacional, a prática demonstra isso, têm vencido de forma reiterada e reformado posições sedimentadas do STJ e STF, com argumentação jurídica sofisticada em questões complexas como “crédito prêmio IPI”, “alíquota zero” e “base de cálculo reduzida/isenção parcial”. Melhor que arbitragem não seria investir em tecnologia de informação e suporte técnico para implementar maior

TR: A arbitragem prevista no PL 5.082 é um instituto

celeridade às decisões do Carf?

jurídico válido e aplicável à questão tributária? ES: Há frontal contradição da proposta do Projeto com

TR: Como o sr. vê o papel da Câmara Geral de Tran-

a arbitragem prevista no direito positivo brasileiro. A Lei

sação e Conciliação? Não haveria conflitos entre os

n° 9.307, de 23 de setembro de 1996, não é compatível

papéis dos Poderes Executivo e Judiciário?

com a ideia de arbitragem como “procedimento inciden-

ES: A ideia de transação pode significar: (i) o ajuste de

tal” no processo de transação. Ocorre que, por definição,

vontade e concessões mútuas que é privativo do cálculo

“Arbitragem” não pode servir como procedimento inci-

econômico e intangível para o direito público, ou (ii) tal

dental, mas sim procedimento autônomo para solução de

ajuste juridicizado por critérios individuais e concretos do

litígios. Além disso, é outro contrasenso cumular, conco-

meio político, veiculado mediante lei, apenas neste caso

mitantemente, duas formas de solução de litígios no mes-

teremos como produto do reconhecimento do fato jurí-

mo procedimento: ora, aplique-se a arbitragem e que se

dico negocial do acordo que seria a legítima motivação

cumpra o direito arbitrado; ou, excludentemente, se fosse

jurídica da transação, este tipo de transação, sim, seria

juridicamente possível para o Direito Tributário, que as

passível de controle e a derradeira extinção do crédito tri-

partes componham suas vontades pela “transação”, mas

butário se daria com o pagamento no valor e na forma

não ambas! Se já tenho o “litígio”, e suponhamos que seja

estipulados pelo acordo juridicizado pela transação.

este o crédito tributário, para que serve um árbitro para

A pretensão de “transação”, sem critérios legais, des-

definir com sua expertise o direito aplicável, para, em

loca a denotação do termo para o vazio das concessões

seguida, ignorar a decisão do árbitro e definir-se discri-

recíprocas e de ordem econômica, indisponível em ma-

cionariamente pela “transação”, o montante devido, sem

téria de direito público. Sem critério legal prévio não há

qualquer consideração com o direito material aplicável e

como imunizar a pressão dos interesses econômicos sobre

com poder amplo para “negociar” exclusões de até 100%

os agentes públicos, assim, a transação ignora o Poder Le-

do crédito tributário sem qualquer critério jurídico?!

gislativo, dispensa o Poder Judiciário de sua principal fun-

Não consigo entender para que arbitragem. Cada parte

ção constitucional e expõe o Poder Executivo, eliminado

elegerá como que uma câmara particular do Carf? E quem

a vinculação do ato administrativo e induz ao excesso de

seriam os árbitros? Na experiência profissional que tive

poder e ao desvio de finalidade os atos de transação.

com os agentes da Receita Federal e membros do Carf,

É como instaurar um novo Conselho de Contribuintes,

constatei que não há maiores experts sobre a lógica da le-

mais arrojado e moderno, o CCSL: Conselho de Contri-

gislação, sobre a complexidade das operações tributárias,

buintes Sem Lei, cujas decisões são feitas a portas fecha-

44

TRIBUTAÇÃO em revista


das, sem critérios jurídicos e sem necessidade de motiva-

público envolvido. É o espaço dos interesses privados,

ção para júbilo e pleno gozo das partes interessadas na

mesquinhos e contingentes, pretendendo impor-se, cap-

realização da “boa-fé” e da “justiça”.

turando e sobrepondo-se ao interesse público. Enfim, a transação geral não é legal: altera profunda-

TR: Ainda que intenção dos proponentes seja boa,

mente toda lógica do Código Tributário Nacional e, só por

outros interesses em dissonância com o interesse pú-

isso exigiria Lei Complementar: mas tal veículo é desne-

blico podem se valer desta iniciativa para distorcer

cessário, pois toda sua materialidade é absolutamente in-

seus objetivos?

constitucional.

ES: Além disso, sua pretensão de pessoalidade está claramente endereçada aos grandes agentes econômicos que,

TR: Afinal, a transação beneficia ou compromete a

certamente, terão preferência na longa fila das transações.

arrecadação tributária? Por quê?

Quem mais pretenderá impugnar administrativa ou judicialmente: o negócio será a “transação”.

ES: É aqui que entra o uso promíscuo do termo “litígio” em sentido econômico (mas travestido, como se fosse

Externalidade positiva e sorte para os que transacio-

critério jurídico), enquanto conflito de interesses entre as

nam. Externalidade negativa e azar para o resto do Bra-

parte, mas restrito ao objeto do pagamento, que se pola-

sil, para a livre concorrência, para o Estado do Direito e

riza tão apenas no “pagar”, “não pagar”, “pagar menos” e

para o pequeno contribuinte, excluído expressamente no

“como”, sem qualquer possibilidade de controle ou me-

Projeto do “paraíso transacional” e também ao médio que

diação do jurídico.

terá pouca chance de preferência nas longas filas que se

Se o objeto da transação é tão-só pagar menos do que

formarão perante os Conselhos de Conciliação da Fazenda

é devido e depois? Pergunta-se: por que os outros contri-

Nacional. E a Economia Política é cruel e injusta: se mui-

buintes pagaram tributo em seu valor nominal e antes?

tos não pagam e as despesas continuam aumentando sem

Não seria melhor transacionar sempre?

parar, alguém haverá de pagar as contas e compensar os créditos tributários perdoados na “transação”: o aumento

TR: Deixamos este espaço para que o senhor faça ou-

da carga tributária é inevitável e será sempre mais fácil co-

tros comentários que julgar pertinentes sobre tran-

brar na “fonte” dos assalariados que pagaram a conta, mas

sação tributária.

nunca terão acesso à “ilha transacional”.

ES: O presente projeto pretende construir um “paraíso fiscal” dentro no próprio ordenamento, blindando o

TR: Esse instrumento pode contribuir para abalar o esforço do Estado contra a sonegação fiscal?

passado e o futuro das “transações” concedidas. Neste novo “paraíso transacional” não haverá mais fi-

ES: Não. Transação não só abala o combate à sonega-

las para se obter CNDs; não haverá mais demora, nem a

ção, como também blinda e imuniza àqueles que aderi-

burocracia do controle jurídico, nem a palpitante incerte-

rem ao procedimento transacional. É aqui que, não por

za das mudanças de rumo da jurisprudência dos nossos

acaso, surge a tal “confidencialidade” totalmente estranha

tribunais: com a promessa do anteprojeto de “ampliar o

ao direito público e aos nossos tribunais administrativos e

relacionamento da Fazenda com os sujeitos passivos, im-

judiciais: exsurge porque o “litígio” que a transação geral

plementando “modernidade”, “flexibilidade”, “agilidade” e

se propõe a resolver só se interessa pela pessoalidade do

“eficiência” na tutela dos créditos tributários... Para que

agente econômico, não se preocupando com o interesse

Constituição? Vamos todos à “transação”!

TRIBUTAÇÃO em revista

45


e NTREVISTA Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy “Mais uma alternativa para a manutenção dos índices de arrecadação”

D

r. Arnaldo Godoy*, pensador e especialista em transações tributárias, apresentanos nesta entrevista um ponto de vista favorável à Lei Geral de Transações, rebatendo algumas críticas e mostrando a sua validade e os seus benefícios.

Tributação em Revista: Segundo o Ministério da Fazenda o PL 5.082/09 e o PLP 469/09, que tratam da transação em matéria tributária, trariam uma “nova relação entre a administração tributária e os contribuintes”, por meio de uma “aplicação mais homogênea da legislação tributária” e do “entendimento direto” entre as partes. Em sua opinião, existem realmente tais benefícios? Quais os pontos benéficos para a administração tributária e para contribuintes?

AG: Sim, absolutamente. Há inúmeros pontos benéficos para a administração tributária e para o cidadão. Digo cidadão, em vez de contribuinte, porquanto defendo intransigentemente a constitucionalização do Direito Tributário. Isto é, o Direito Tributário deve ser pensado também a partir de valores de dignidade da pessoa humana. A relação entre Constituição e Direito Tributário não se esgota nos princípios e nas regras da primeira parte do título VI do texto de 1988. A mera redução do cidadão em contribuinte é referencial de linguagem que

* Pós-doutor em Direito Norte-Americano pela Universidade de Boston e professor de Direito Tributário do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb) e do programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília, apresenta nesta entrevista um ponto de vista favorável à Lei Geral de Transações. Como pensador e especialista em transações tributárias, rebate algumas críticas e mostra sua validade e seus benefícios.

46

TRIBUTAÇÃO em revista


qualifica uma relação desigual e ameaçadora, constrangedora

TR: Haveria algum retrocesso quanto à arrecadação

até, que não tem espaço em uma sociedade livre e democrática.

em relação à normatização hoje vigente?

O contribuinte ao qual se refere o Código Tributário

AG: Não, não haveria nenhum retrocesso. Pelo contrá-

Nacional é cidadão, antes de tudo. O referido entendimen-

rio. Em uma perspectiva de Direito e Desenvolvimento, que

to direto entre as partes não é ilimitado ou marcado pela

é percepção que também interessa para o Brasil, e que hoje

inexistência de parâmetros bem definidos. Talvez porque

não é definitivamente o mesmo país da época da formula-

tomada fora do contexto em que provavelmente foi enun-

ção do CTN, a transação representa mais uma alternativa

ciada, a ideia de entendimento direto entre as partes é im-

para a manutenção dos índices de arrecadação. A transação

precisa. Não revela exatamente os propósitos e modelos que

representa economia ou pode representar, uma vez que o

há na lei geral de transação que o Executivo encaminhou

modelo pode acenar com possibilidades alternativas para

ao Legislativo. Nas quatro modalidades de transação que

mediação e composição de conflitos. A transação repele

se pretende fixar (transação em processo judicial, transação

a tese do mais do mesmo, segundo a qual o aumento do

em insolvência civil, transação por recuperação tributária

número de juízes, procuradores e auditores seria suficiente

e transação administrativa por adesão) não se tem, em ne-

para o enfrentamento dos problemas pelos quais passamos,

nhum momento, o entendimento direto entre as partes.

e que orçamentariamente tem peso assustador. O antídoto

A transação judicial se desdobra sob o crivo de um magis-

e a posologia para a patologia processual tributária que vi-

trado. De igual modo, a transação na insolvência e na falência

vemos não é o mais do mesmo. A transação é uma alterna-

somente pode ser realizada pelo juiz. E a transação é exceção, e

tiva, possivelmente aplicável em casos excepcionalíssimos.

não regra. Por exemplo, não se permite a transação em proces-

A apreensão que a transação suscita em relação à continui-

so judicial em ações mandamentais ou cautelares. Isto exclui a

dade dos níveis de arrecadação, e que eu chamo de tese

maior parte das discussões que há hoje em juízo. A opção pelo

da indução negativa, somente teria sentido se a transação

mandado de segurança decorre da inexistência da sucumbên-

fosse regra, e não exceção, e se as repartições fazendárias

cia, as cautelares exigem apenas a fumaça de um bom direito.

se tornassem balcões de negócios, como insinuam alguns

Por isso, a opção que se faz por estes dois remédios.

críticos mais apressados do projeto. Inúmeras modalidades

A transação em processo judicial tem destinatário certo:

de transação que hoje há, e refiro-me aos modelos da Lei nº

as execuções fiscais, que hoje representam mais de 35% dos

9.964/2000 (Refis) e da Lei nº 10.684/2003 (Paes) compro-

processos que correm na justiça, e que custam mais da for-

vam justamente o contrário.

ma como se encontram, do que os valores que efetivamente levariam aos cofres públicos. Segundo o Conselho Nacio-

TR: O que o senhor diria sobre a constitucionalida-

nal de Justiça, 50% dos casos pendentes em 2009 são de

de dos projetos? Não haveria inobservância de al-

execução fiscal. Será que não há alternativas? E apenas

guns principios constitucionais de Direito? Por exem-

9% dos processos baixados em 2009 são de execução de

plo: excessiva discricionariedade, não vinculação do

dívidas tributárias.

ato administrativo e falta de isonomia ao dar trata-

O cidadão ganha porque terá mais um canal de comunicação com o Estado. Este último também ganha

mento diferenciado aos contribuintes que transacionam (redução de juros e multas).

porque terá mais acesso a informações, poderá reduzir a

AG: Não há inconstitucionalidades no projeto. O que

quantidade de ações judiciais, poderá ser mais eficiente,

pode haver é uma mudança de paradigmas. O modelo

terá mecanismos para lidar com situações que o modelo

atual nega formalmente qualquer vontade autônoma dos

atual trata com intransigência, fazendo que, com frequ-

órgãos administrativos, confundindo discricionariedade

ência, a tática vire-se contra o tático.

com o mito da intangibilidade do mérito administrativo.

TRIBUTAÇÃO em revista

47


A discricionariedade deve ser vista como um espaço para o exercício de um resíduo de legitimidade, na feliz expressão de Diogo de Figueiredo Moreira Neto. A decisão administrativa ganha legitimidade não apenas pelo controle do procedimento (como hoje se faz) mas também pelo controle do resultado (o que a transação poderia propiciar a longo prazo). A isonomia tributária, tanto quanto me parece, consiste em se tratar igualmente cidadãos que

Não se trata o falido do mesmo modo como se trata o empreendedor exuberante, que fatura e multiplica seus negócios

estejam em circunstâncias fiscais idênticas. A isonomia é relacional e só pode ser concebida se identificada em relação a alguma coisa ou situação. O falido, o insolvente e o executado devem ser comparados com falidos, insolventes e executados, como condição para manutenção dessa mesma igualdade que a pergunta sugere. Não se trata o falido do mesmo modo como se trata o empreendedor exuberante que fatura e multiplica seus negócios. As situações são distintas. Esse medo imaginário poderia facilmente ser contornado com dispositivo na lei de transação que estabelecesse que a comprovação de que o cidadão tivesse condições de recolher o tributo objeto de transação no momento fixado por lei, e que não o fez, dolosamente, na expectativa de transação superveniente, seria causa suficiente para vedar qualquer composição. Isso de certa forma já existe. O projeto dispõe que a comprovação de que o cidadão concorreu com dolo, fraude ou simulação para sua insolvência ou falência ou que não utilizou da denúncia espontânea, antes da transação, esta não poderá ser concluída ou será nula, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. Essa discricionariedade putativa que a pergunta sugere revela incompreensão para com o projeto. Estudo minucioso de todas as modalidades de transação que o projeto sugere confirma haver limites rigorosos para o processamento e para o desdobramento do acordo. TR: Uma das críticas a esses projetos é que eles confundem interesses públicos com os privados. O que o senhor diria a respeito? AG: Eu diria que essas críticas não conseguem objetivamente explicitar o que seja interesse público. Quando muito, reproduzem um mantra, que todos reproduzem,

48

TRIBUTAÇÃO em revista

mas ninguém explica. O que é interesse público? O dogma da supremacia do interesse público foi construído pelo Direito brasileiro como base em percepção vigorosa de Estado, detentor de vontade, que é concebida como uma vontade geral. Essa última ideia remonta a Rousseau, para quem a vontade geral seria invariavelmente reta e tenderia sempre à utilidade pública. A construção desse dogma fezse com base em leitura que reduziu a Revolução Francesa a um grupo de lugares comuns, especialmente no que se refere à concepção dos institutos do Direito Administrativo. Foi Alexis de Tocqueville quem primeiramente fez a denúncia, no sentido de que o Direito Administrativo revolucionário manteve os contornos do Direito Administrativo do regime absolutista dos Bourbon. É que, entre outros, a centralização administrativa seria instituição do Antigo Regime, e não obra da revolução. O vínculo entre vontade geral e legalidade, que dá suporte à concepção clássica de interesse público, foi formulado como reação ao Estado Absoluto, a partir do uso recorrente de outro mito, relativo à existência de uma sociedade autossuficiente. Contemporaneamente, interesses públicos deixam de qualificar conceitos totalizantes, absolutos, apriorísticos. Exige-se reflexão em torno de casos concretos, lidos à luz da ponderação. Não se pode perder de vista também o consentimento do administrado, no que se refere à definição de políticas e do agir administrativo. Não há definição objetiva de interesse público, especialmente em âmbito de jurisprudência de tribunais superiores. A busca do interesse público, em todas essas dimensões, é um dever da Administração. Deveria orientar a produção normativa do Poder Legislativo. Deveria fixar os parâmetros da ação e


dos projetos do Poder Executivo. É o referencial para toda a atuação do Poder Judiciário. O conceito é indefinido, do ponto de vista linguístico, nas variáveis de dicionários de equivalência. Mas é percepção de ampla inspiração democrática, de balizamento para a eficiência da Administração. Transita no tempo. Mas permanece, intuitivamente, pelo menos, como advertência para o que não se pode fazer. Vincula-se, ainda, à ideia de eficiência. Definitivamente, não há nenhuma pista ou orientação que confirme que

Não há como afirmar o que acontecerá com a arrecadação com a eventual aprovação da lei de transação, mas pode-se afirmar que o Estado custará menos

o interesse público, o que quer que seja, fosse categoria ameaçada por regime de transação tributária. Pelo con-

da convergência de vontades entre as partes; um modelo

trário, ideia de eficiência sufragaria o uso de técnicas de

transacional, que desdobra-se no acordo, na mediação e no

transação fiscal.

arbitramento, e um modelo de autoridade, que se centra unicamente no Judiciário. Este último luta recorrentemente

TR: A arbitragem prevista no PL 5.082, tal qual ela é

para não se esgotar na própria seiva, procura alternativas.

hoje definida em nosso ordenamento jurídico, existe

O exemplo das Câmaras da AGU é o mais expressivo indi-

para solucionar litígios relativos a questões de fato e

cador de que soluções de conflitos decorrem de modelos

de direito sobre direitos patrimoniais disponíveis. Ela

que não são dados, e sim construídos culturalmente, e que

também seria um instituto jurídico válido e aplicável

podemos levar a imaginação institucional ao limite, para a

à questão tributária? A supremacia do Estado em tra-

resolução adequada de nossos problemas.

tar de questões a ele pertinentes não seria atingida? AG: A arbitragem é mais uma alternativa. E deve ser

TR: Com a transação tributária, os créditos públicos,

bem-recebida. É justamente ao Estado a quem mais inte-

caracterizados como bens públicos indisponíveis, não

ressa a conciliação e a arbitragem. E nosso direito não repu-

deixariam de sê-lo?

dia a arbitragem em âmbito de direito público. Um estudo

AG: Em absoluto. O crédito tributário não perde sua

paciente da história do direito brasileiro revela precedentes

natureza, apenas porque foi objeto de transação. Isso é

que sufragam minha tese, de que o direito público brasileiro

fetichismo institucional. Dou um exemplo. O Conselho

não hostiliza a arbitragem. Refiro-me, entre outros, ao caso

Nacional de Justiça noticiou que o Tribunal de Justiça do

Lage, discutido no Supremo Tribunal Federal nos limites do

Mato Grosso do Sul articulou um programa para paga-

agravo de instrumento nº 52.181/GB, relatado pelo minis-

mento de débitos judiciais, de origem fiscal, que atendeu

tro Bilac Pinto e julgado em 31 de outubro de 1973. O caso

a mais de 8mil pessoas. Originário de um convênio fir-

sedimentou entendimento de que no direito brasileiro é

mado entre a Prefeitura Municipal de Campo Grande e

plausível e possível o uso da arbitragem, ainda que perante

o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, ofereceu-se

a Administração Pública. O caso Laje é o mais nobre ante-

rara oportunidade para que o campo-grandense pudesse

cedente de uma linhagem que chega às Câmaras de Con-

quitar débitos de IPTU, com desconto e sem juros, e com

ciliação e Arbitragem da Advocacia-Geral da União. Existe

arquivamento da ação de execução fiscal. O cidadão pôde

ambiente normativo no Brasil para que tenhamos regimes

deixar de ser inadimplente, bem como as empresas pude-

alternativos de solução de conflitos que envolvam interesses

ram negociar seus débitos. Além da presença de mais de

públicos também. No Ocidente conhecemos três modelos

8mil cidadãos, os telefones atenderam mais de 10mil liga-

de composição de conflitos: um modelo ético, que decorre

ções. Recomendou-se, inclusive, que não se deixasse para

TRIBUTAÇÃO em revista

49


a última hora, evitando-se as filas. O crédito ajuizado po-

A separação absoluta entre os poderes não é um gigante

deria ser pago à vista, em uma única parcela, com exclu-

Atlas imaginário que sustenta a adequada resolução de to-

são das custas iniciais, e com desconto de 100% nos juros

dos os problemas institucionais e episódicos que há. E os

de mora. Nos casos de multa, houve redução de 80% do

defensores do projeto não somos tão ingênuos a ponto de

valor, para pagamento à vista. Além do tributo o cidadão

pretendermos que a transação afastaria o livre acesso ao

deveria recolher um valor único de R$ 60,00 por processo

Judiciário, garantia constitucional, que constitui cláusula

para pagamento à vista e de R$ 90,00 para pagamento par-

de policiamento de reserva. Não há ingerência ou confu-

celado. A notícia deu conta, efetivamente, de implemento

são porque sempre, e a qualquer momento, ao cidadão a

de transação. Frise-se a oportunidade relativa à quitação

Constituição faculta o acesso ao Judiciário.

de débitos, por parte do contribuinte, a possibilidade da extinção dos feitos e consequente arquivamento, o bene-

TR: A transação tributária não poderia contribuir

fício imediato para cidadãos e empresas, entre tantos ou-

para abalar o esforço do Estado contra a sonegação

tros. A nota indica, inclusive, a apreensão com a formação

fiscal? Ou seja, com ela haveria estímulo para o con-

de filas, algo inusitado, em se tratando do recolhimento de

tribuinte “transacionar”, com redução de multas e

tributos. Em troca de receita imediata, o município propi-

juros, ao invés de cumprir pontualmente com suas

cia generosos descontos. O Judiciário diminui a carga de

obrigações tributárias?

trabalho, o volume de processos, cumpre metas. Tem-se,

AG: Pelo contrário, mais uma vez a pergunta pode

de fato, a renúncia de recursos e do processamento das

evidenciar manipulação retórica da teoria da indução ne-

execuções, por parte do devedor e, de outro lado, a re-

gativa. Como já disse, esse medo imaginário poderia facil-

núncia de valores (supostamente irrenunciáveis) por parte

mente ser contornado com dispositivo na lei de transação

da Administração. É essa reciprocidade de concessões, na

que estabelecesse que a comprovação de que o cidadão

qual todos ganham, que qualificam a transação, ainda que

tivesse condições de recolher o tributo objeto de transação

não se altere o Código Tributário Nacional e que não se

no momento fixado por lei, e que não o fez, dolosamen-

tenha uma Lei Geral de Transação.

te, na expectativa de transação superveniente, seria causa suficiente para vedar qualquer composição. Parte-se de

TR: Como o sr. vê o papel da Câmara Geral de Tran-

uma antropologia negativa e macunaímica que vê em todo

sação e Conciliação? Não haveria conflitos entre os

cidadão um sonegador em potencial. A questão é priori-

papéis dos Poderes Executivo e Judiciário?

tariamente cultural. Além do que, ainda que não necessa-

AG: Não. As Câmaras têm papel auxiliar. Não há com-

riamente em âmbito tributário, desdobra-se no Brasil uma

petição, há convergência de interesses. Os Conselhos de

frenética cultura transacional, que floresce na Administra-

Contribuintes do Ministério da Fazenda, por exemplo, e

ção Pública. É o que se tem, por exemplo, com a Lei nº

no mesmo sentido, qualificam uma experiência histórica

9.469, de 10 de julho de 1997. E também, a Portaria nº

de grande valor e que em nenhum momento ameaçou as

990, de 16 de julho de 2009, baixada pelo advogado-geral

relações entre o Executivo e o Judiciário. O mundo con-

da União, delegou competência para que o advogado-ge-

temporâneo não tem mais espaço para discussões concei-

ral da União substituto, o procurador-geral da União e o

tuais e metafísicas relativas a uma doutrina do século XVIII

procurador-geral federal também possam entabular acor-

e que precisa ser repensada. É dever de nossa geração le-

dos e transações. Especialmente, nos termos da Portaria nº

var ao limite o experimentalismo democrático, na medida

915, de 16 de setembro de 2009, baixado pelo Procura-

em que constatamos a morte do conflito entre estatismo

dor-Geral Federal, verifica-se modelo muito objetivo, que

e privatismo, entre economia planejada e livre mercado.

permite que os órgãos de execução da Procuradoria-Geral

50

TRIBUTAÇÃO em revista


Federal possam realizar acordos e transações, em juízo,

quina administrativa poderia ser menos custosa, num am-

para terminar litígio. De acordo com o referido permissi-

biente de cultura transacional, de justiça fiscal consensual.

vo, pode-se transigir em causas de valor até um milhão de

Além disso, o modelo atual parece ter impactos negati-

reais. O momento exige alternativas para a resolução de

vos na neutralidade e na decisão dos agentes econômicos.

conflitos que transcendam à prática comum que se vê no

Uma teoria da tributação ótima, centrada na eficiência e

Judiciário.

na equidade, não pode perder de vista um dos princípios enunciados por Adam Smith, para quem a arrecadação do

TR: Afinal, a transação beneficia ou compromete a ar-

tributo deva implicar num baixo custo para o contribuin-

recadação tributária? Por quê?

te, bem como o seu resultado deva ser superior aos gastos

AG: A pergunta sugere uma prognose e um exercício

que o Estado tenha para arrecadar. Quanto custa o modelo

de prestidigitação contábil que ninguém consegue seria-

atual? Por que execuções fiscais com valores inferiores a 10

mente realizar. Eu creio que a lei geral de transação pos-

mil reais nem sequer são ajuizadas? Não há como se afirmar

sibilita canais de comunicação entre o cidadão e a Admi-

peremptoriamente o que ocorrerá com a arrecadação com a

nistração que promovem a dignidade da pessoa humana

eventual aprovação da lei de transação. Pode-se afirmar, no

e que colaboram para o desenvolvimento de uma nova

entanto, que o Estado poderá custar menos, que repudiamos

cultura. A transação é um marco na constitucionalização

a tese do mais do mesmo, que haverá alternativas para im-

do Direito Tributário. A arrecadação tributária é condicio-

passes, que nossa cultura jurídica ganhará em qualidade, que

nada por inúmeros outros elementos, que os economistas

vencemos a visão macunaímica de que somos todos sonega-

conhecem muito mais do que os juristas. A aproximação

dores ou fraudadores ou corruptos. Meios de fiscalização não

entre o Direito e a Economia, no contexto da chamada

faltam. Para isso, o Ministério Público, o Tribunal de Contas e

análise econômica do direito, pode evidenciar que a má-

as várias corregedorias estão por aí, o tempo todo.

TRIBUTAÇÃO em revista

51


a RTIGO Comentários sobre a Lei Geral de Transação Nei Simões Pires Gallois

A existência de conflito faz parte da natureza humana. Assim são todas as relações sociais e não poderia deixar de ser a relação entre o Estado e o cidadão, inclusive quando eles estão nas condições de fisco e sujeito passivo de obrigação tributária (contribuinte e responsável). O conflito é um dos pressupostos para haver transação. Ela somente ocorrerá quando as partes da contenda resolverem ceder mutuamente parcela de seus direitos ou pretensões, com o objetivo de terminar o litígio. A suposta transação contida no Projeto de Lei (PL) nº 5.082/2009, que foi submetido pelo Executivo para apreciação do Legislativo Federal, pretende a terminação de litígios ou conflitos tributários. Nesse sentido, cumpriria a mesma missão de qualquer das formas de extinção da obrigação tributária, previstas no art. 156 do Código Tributário Nacional (CTN), tais como o pagamento, a compensação, a remissão, a prescrição e a decadência. No entanto, no PL não existe a exigência de concessões mútuas. Na verdade, é o Estado que sempre cede algo. O CTN já contempla a possibilidade de transação como forma de extinção do crédito tributário, mas nunca 1 - Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil no Rio Grande do Sul.

52

TRIBUTAÇÃO em revista

1

a disciplinou. A razão para a inércia legislativa se deve ao fato de ser muito difícil o estabelecimento de critérios para a renúncia do crédito tributário sem que se conceda forte discricionariedade ao agente político ou administrativo e sem que se prejudiquem princípios constitucionais de larga tradição adotados pela atual Carta brasileira, como os da impessoalidade, da igualdade e da legalidade. Como estabelecer em lei condições justas e igualitárias que não desestimulem os bons pagadores a continuar adimplindo regular e tempestivamente suas obrigações fiscais? A exigência de concessões mútuas é da essência de uma transação e faz parte do instituto desde os tempos mais antigos, conforme evidencia o Direito Romano. Os autores do projeto da Lei Geral de Transação (LGT), contudo, não acharam que isso serviria de empecilho para implementá-lo. Para tanto, propuseram uma alteração no CTN para afastar a referida exigência, consoante o Projeto de Lei Complementar nº 469/2009. Como resultado, a concretização de uma transação dependeria tão somente da renúncia a um direito ou pretensão por parte do Estado. A possibilidade da renúncia estatal já está contemplada na atual legislação. A remissão do crédito tributário e a anis-


tia das penalidades estão previstas no CTN como modalidades de extinção e exclusão2 do crédito tributário, respectivamente. Ambas vêm regradas de forma a não agredir os princípios constitucionais. Exigem controle do Poder Legislativo – que somente pode autorizá-las mediante lei específica – e submissão ao cumprimento de diversas condições previstas no CTN. O PL da transação faz confusão entre vários institutos jurídicos, reunindo a remissão, a anistia, o parcelamento e a dação em pagamento de bens imóveis sob a mesma designação. Em verdade, utilizando o pomposo nome de Lei Geral de Transação, pretendem outras coisas que não a transação, a pretexto de uma questionável redução do estoque do passivo tributário3. Não há dúvidas de que a ação da Receita Federal do Brasil, por meio das autuações de ofício, seja a grande causa motivadora da arrecadação espontânea. O risco da ação fiscal gera temor no contribuinte, estimulando-o ao adimplemento dos tributos. A LGT exerceria uma ação em sentido contrário: primeiro, porque serviria de água fria para os fiscais, que teriam dúvidas sobre a efetividade de seu trabalho; segundo, porque o sujeito passivo poderia protelar seus procedimentos, contando com a sorte de fugir das garras do leão ou ainda realizar transação (= receber concessão) que lhe represente um efetivo ganho de oportunidade. As diversas situações em que a “transação” poderia ocorrer, segundo o PL, não dão ensejo a se imaginar que o sujeito passivo conceda algo para a sociedade (direito ou pretensão), a não ser o próprio fim do litígio. Assim, caminha-se à petição de princípio de que se concede o fim do litígio para se obter o fim do litígio. A obtenção da certidão negativa de débitos também se presta como estímulo para a arrecadação espontânea. A LGT também, mais uma vez contra esse propósito, liberaria muito facilmente a certidão, inclusive pela mera formalização do pedido de transação. O projeto prevê o processamento da “transação” pelos procuradores da Fazenda Nacional, pelas Câmaras de

Conciliação e Transação (CGT) e pela Câmara Geral de Conciliação e Transação (CGTC). Esta última, presidida pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), cujo cargo é de confiança do Ministro da Fazenda, seria responsável pelas principais diretrizes. O deferimento de operações com valores mais elevados ficaria a cargo do PGFN ou do Ministro da Fazenda. Com isso, a legislação proposta conferiria plenos poderes de renúncia fiscal a apenas uma pessoa, cujos vínculos políticos, pessoais, negociais ou afetivos são desconhecidos. O princípio da impessoalidade ficaria seriamente atingido. O mesmo ocorreria com os princípios da publicidade e da isonomia, já que apenas as ementas das decisões seriam publicadas. Os outros contribuintes não teriam como saber os motivos de uma transação ocorrida para pleitearem o mesmo benefício. Os mentores do PL de transação sustentam que a transação não atingiria o tributo, mas apenas os consectários legais. Seu argumento estaria fundado no caput do art. 7º, que afasta a transação que implique negociação do montante do tributo devido. Entretanto, essa assertiva é inconsistente, tendo-se em conta a redação confusa e imprecisa do parágrafo primeiro do mesmo artigo, cujo texto afirma não constituir negociação do montante dos tributos as reduções que decorram do procedimento de transação, quanto à interpretação de conceitos indeterminados do direito ou à identificação e relevância do fato, aplicáveis ao caso, cujo resultado seja a redução de parte do crédito tributário. O PL da transação contém vícios insanáveis. Deve ser combatido no Congresso Nacional para que não seja aprovado. Emendá-lo não iria corrigi-lo. Por fim, ressalta-se que projeto da LGT não é o único perigo iminente. O PLC que altera o CTN também prevê a instituição da arbitragem no campo tributário. A arbitragem já ocorre no Brasil, no âmbito do direito privado. Ela permite o afastamento da apreciação de litígios pelo Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a constitucionalidade do instituto. Entretanto, a arbitragem privada serve apenas para questões envolvendo direitos disponíveis. Pergunta-se: o crédito tributário é direito disponível?

2 - O CTN classifica a anistia indevidamente como modalidade de exclusão do crédito tributário. Na verdade, deveria ser extinção. 3 - Ou quem sabe, ativo tributário. TRIBUTAÇÃO em revista

53


a RTIGO Transação Tributária e os Projetos de Lei em Trâmite no Congresso Nacional Álvaro Luchiezi Jr* Alexandra Trentini** Natalie Cevallos Mijan*** Renata Machado de Araújo****

1. Apresentação

em média, quatro e doze anos, respectivamente. Permiti-

O Poder Executivo Federal enviou à Câmara dos De-

ria, também, reduzir o estoque da dívida ativa da União,

putados, no dia 20 de abril de 2009, o Projeto de Lei nº

cujo total, inclusive a parcela em litígio, aproxima-se de

5.082/09 (doravante, PL 5.082/09), que trata da Lei Geral

900 bilhões de reais.

de Transação Tributária (LGT) e o Projeto de Lei Comple-

O presente artigo propõe-se a analisar ambos os proje-

mentar nº 469/09 (doravante, PLP 469/09), que altera o

tos, apresentando uma visão crítica dos benefícios acima

Código Tributário Nacional.

indicados, argumentando que, em diversos momentos,

Na visão do Poder Executivo, este instrumento consti-

estas iniciativas estão permeadas por uma série de dispo-

tuirá uma “nova relação entre a administração tributária e

sitivos que ofendem os princípios do Estado Democrático

os contribuintes”, por meio de uma “aplicação mais homo-

de Direito.

gênea da legislação tributária” o “entendimento direto”1 entre as partes. Assim, a nova legislação viabilizaria uma

2. Questões Conceituais e Alguns Comentários

execução mais rápida, eficaz e eficiente do crédito tributá-

A transação é um ato de vontade bilateral, podendo ser

rio em cujas fases administrativa e judicial consomem-se,

considerada um contrato. O artigo 840 do Código Civil

* Economista, Gerente de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional **Advogada, Assessora de Diretoria do Departamento de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional ***Advogada, ex-Assessora de Diretoria do Departamento de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional **** Ex-estagiária Departamento Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional. 1 - BRASIL. Poder Executivo. Exposição de Motivos Interministerial nº 00204/2008 – MF

54

TRIBUTAÇÃO em revista


Brasileiro estabelece a licitude aos interessados em preve-

da constituição do crédito tributário, não sendo conside-

nirem ou terminarem litígio mediante concessões mútuas e

rado litígio o previsto no Decreto nº 70.235/1972 (Proces-

ainda estabelece que a transação é permitida somente quan-

so Administrativo Fiscal)5.

to a direitos patrimoniais de caráter privado.

O uso do termo “litígio” no projeto é dúbio. Pode tanto

Maria Helena Diniz ensina que ocorre transação quan-

se referir à existência de um conflito de interesses media-

do, havendo litígio entre as partes, manifeste-se também o

dos por critérios jurídicos, quanto ao pagamento e a arre-

desejo de encerrá-lo por meio de concessões recíprocas. O

cadação, sua forma e oportunidade. No primeiro caso tra-

litígio acontece quando as discordâncias entre as pretensões

ta-se do litígio jurídico e no segundo de litígio econômico.

2

das partes são levadas à mediação do Poder Judiciário.

O PL 5.082/09 confunde litígio jurídico com litígio

Transação é uma a forma de extinção do crédito tribu-

econômico, oferecendo uma solução econômica discricio-

tário prevista no inciso III do artigo 156 do Código Tribu-

nária para as controvérsias. Nele prevalecem os critérios

tário Nacional (CTN) o qual admite celebrar transação que

econômicos sobre os critérios do sistema funcional do di-

“mediante concessões mútuas, importe em determinação

reito. Cabe a estes orientar o ordenamento jurídico-legal e

de litígio e consequente extinção de crédito tributário” . É

não aos econômicos.

3

essencialmente um negócio jurídico. Segundo Hugo de Brito Machado4, o litígio, como requisito essencial para a transação, caracteriza-se pela

3. Os Projetos de Lei nº 5.082/09 e nº 469/09 e os Princípios Constitucionais de Direito

resistência de um dos sujeitos da obrigação tributária à

A transação tributária prevista no PL nº 5.082/09 e no

pretensão do outro. Ocorre quando a Fazenda Pública

PLP nº 469/09 fere alguns princípios constitucionais con-

promove a Execução Fiscal e a esta o contribuinte se opõe,

forme se discute a seguir.

seja com exceção de pré-executividade ou com embargos.

A supremacia do interesse público sobre o privado

Ou, então, quando o contribuinte ingressa em juízo contra

é um dos mais importantes princípios gerais de direito.

a Fazenda questionando a relação tributária e a Fazenda se

Segundo o professor Celso Antônio Bandeira de Mello6,

opõe à pretensão por ele formulada.

onde há função não há autonomia da vontade nem a pro-

Não cabe transação na fase administrativa do crédito

cura de interesses próprios, pessoais. Há somente a adstri-

fiscal pois ainda não há constituição definitiva do crédito

ção a uma finalidade previamente estabelecida e, no caso

tributário. No processo administrativo fiscal faz-se apenas

da função pública, há submissão da vontade ao escopo

o controle interno do lançamento, antes mesmo de ele ser

pré-traçado na Constituição ou na Lei. Há o dever de bem

definitivo para a Administração.

curar um interesse alheio, no caso o interesse público. Os

O litígio a que se refere o artigo 171 do Código Tribu-

interesses da Fazenda Pública representam o que a dou-

tário Nacional somente se caracteriza pela instauração da

trina denomina de interesses públicos relativos e podem

lide, ou seja, por uma pretensão formulada e resistida em

ser objeto de transação tributária prevista no CTN, desde

juízo. A análise pelas instâncias administrativas podem ser

que nos estritos limites legais. A obrigação tributária, seu

consideradas apenas uma forma de controle da qualidade

cumprimento ou redução, depende estritamente do que

2 - DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Saraiva, v.2, 1995. 3 - Há outras dez formas de extinção do crédito tributário: o pagamento; a compensação; a remissão; a prescrição e a decadência; a conversão de depósito em renda; o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§ 1º e 4º; a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do artigo 164; a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; a decisão judicial passada em julgado; e a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei. 4 - Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, Atlas, São Paulo, 2005, v. III. 5 - Decreto nº 70.235 de 06 de março de 1972, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal e dá outras providencias. 6 – Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2006, 20ª edição, p. 85/88.

TRIBUTAÇÃO em revista

55


determina a lei, sem vínculo com a vontade da Administração Pública ou ainda do contribuinte. Segundo o PL nº 5.082/09, a transação pode ocorrer previamente ao litígio, comprometendo assim os princípios constitucionais da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. Transacionar previamente à instauração do litígio não pode ser do interesse da administração pública porque nenhum outro interesse, nem o seu próprio nem o privado, se sobrepõe aos interesses da coletividade.

A discricionariedade da autoridade administrativa, além de ferir o princípio da plena vinculação à lei, deixa margem ao tratamento desigual dos contribuintes

Cabe ao Estado satisfazê-los sob regime próprio. Estão fora das possibilidades mercadológicas; beneficiam-se da

transação ser regulamentada tanto por lei geral quanto por

supremacia sobre os demais interesses e são indisponíveis.

lei específica.

Desta forma, a Administração Pública não pode, a princíArt. 1º A Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, passa a vigorar com as seguintes alterações:

pio, com eles transigir. O interesse da administração em litígios jurídico-tributários é a execução do crédito tributário conforme os parâmetros legais.

Art. 171. A lei, geral ou específica, pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que importe em composição de conflito ou de litígio, visando a extinção de crédito tributário.” (grifo nosso)

O princípio da legalidade prevê que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Esta é a expressão maior do Estado Democrático de Direito como garantia de que a sociedade não está presa à vontade particular daqueles que a governam. Segundo Hely Lopes Meirelles7 “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. A regulamentação de qualquer matéria por meio de ato legal requer a observância estrita do princípio da legalidade. Na esfera tributária isto implica em exigência de lei não só para a definição de todos os fatores da hipótese de incidência de um tributo, mas também para disciplinar todos os aspectos pertinentes a sua cobrança, dispensa, redução ou extinção, bem como de seus acessórios. A lei somente pode autorizar a transação de modo específico. O papel da vontade na extinção da relação jurídico-tributária deve resultar de lei que autorize, de forma igualitária e estritamente vinculada em sua forma, expressão e consequências. O PLP 469/09 trouxe também a possibilidade de a

Dessa forma, essas alterações no corpo do CTN trazem um permissivo de validade para a Lei Geral de Transação Tributária e, portanto, o PL nº 5.082/09 também pode ser concebido como lei geral. O pagamento é a forma comum de extinção de um crédito tributário. Como a transação tributária é uma forma alternativa de extinção do crédito tributário, deve ter seus limites e condições regulamentados exclusivamente na forma de uma lei específica e não na forma de uma lei “geral ou específica”, tal como previsto no PLP nº 469/09. Ademais, não é admissível que a autoridade administrativa utilize critérios gerais para realizar os acordos. Caso isso fosse possível, o interesse público estaria à mercê da discricionariedade dos agentes administrativos, contrariando a necessária vinculação legal no tratamento dos tributos. De acordo com Saraiva Filho8, “a demasiada discricionariedade dada à Administração por uma lei geral de transação para autorizar a solução de litígios não passa de

7 - MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 8 - SARAIVA FILHO, Oswaldo O. P. A transação e a arbitragem no direito constitucional-tributário brasileiro. In SARAIVA FILHO, Oswaldo O. P.; e GUIMARÃES, Vasco B. (Org.). Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário: homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 43-88.

56

TRIBUTAÇÃO em revista


uma inconstitucional delegação legislativa, com arranhão ao Estado Democrático de Direito”. A discricionariedade da autoridade administrativa, além de ferir o princípio da plena vinculação à lei, deixa margem ao tratamento desigual dos contribuintes. O PL nº 5.082/09 traz algumas delimitações à discricionariedade da autoridade administrativa responsável pela realização da transação como, por exemplo, a necessidade de motivação de seus atos. Existe uma diferenciação conceitual9 entre duas categorias distintas de interesse público: a indisponibilidade absoluta e a relativa. A indisponibilidade absoluta seria a regra, referindo-se aos interesses da sociedade como um todo, não podendo ser negociados senão pelas vias políticas de estrita previsão constitucional. Já a indisponibilidade relativa seria a exceção, englobando todos os interesses derivados da expressão “patrimonial” e que, portanto, poderiam ser quantificados monetariamente. Os interesses da Fazenda Pública representam o que a doutrina denomina de interesses públicos relativos e podem ser objeto de transação tributária prevista no CTN, desde que nos estritos limites legais. Em direito tributário, “o sujeito ativo não pode dispor do crédito tributário, que é público e indisponível. Somente a lei pode dispor.”10 Trata-se, aqui, do princípio da legalidade e da vinculação do ato administrativo Segundo este princípio, a lei não é só exigida para a definição de todos os fatores da hipótese de incidência de um tributo11, mas também para disciplinar todos os aspectos pertinentes a sua cobrança, dispensa, redução ou extinção, bem como de seus acessórios. A obrigação tributária depende estritamente do que determina a lei, sem vínculo com a vontade da Administração Pública ou ainda do contribuinte. O pagamento é a forma comum de extinção de um crédito tributário. Como a transação tributária é uma forma alternativa de extinção do crédito tributário, deve ter seus limites e condições de-

Nosso ordenamento jurídico prevê a possibilidade de transações tributárias na esfera judicial vidamente regulamentados, na forma de uma lei específica e não de uma lei geral. O papel da vontade na extinção da relação jurídicotributária tem, pois, de resultar de lei que autorize, de forma igualitária e estritamente vinculada, em sua forma, expressão e consequências. A Constituição Federal, no inciso II do artigo 150, veda qualquer tratamento discriminatório arbitrário entre os contribuintes, consagrando o princípio da isonomia. Ao garantir a possibilidade de quitar crédito tributário em prazos e parcelas especiais ante a homologação da transação, o PL nº 5.082/09 dá tratamento diferenciado para os contribuintes que transacionarem. Afronta, assim, o princípio da isonomia. A igualdade de todos os cidadãos, na impossibilidade de ser garantida no sentido material, deve ser assegurada no seu aspecto formal, ou seja, na aplicação da legislação pela Administração Pública. Respeita-se, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana. Não é o que ocorre com o PL nº 5.082/09 pois ele dispensa tratamento diferenciado (portanto, não igualitário) a uma categoria de contribuinte. O PL nº 5.082/09 cria a Câmara Geral de Transação e Conciliação (CGTC), subordinada ao Ministério da Fazenda, com poderes para extinguir os créditos tributários a partir de critérios de conveniência e oportunidade e dar a última palavra sobre a interpretação de conceitos jurídicos tributários12. A CGTC é, assim, órgão administrativo do Poder Executivo que decide subjetivamente, sujeita a sigilo13, sobre a matéria objeto da transação. Suas decisões não

9 – MOREIRA NETO, Diogo F. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 10 – COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 827. 11 – Conforme o art. 150 da Constituição Federal de 1988 12 – O § 2º do Art. 7º do PL 5.082/09 atribui à CGCT a competência de analisar conceito indeterminado de direito. 13 – O art. 50 do PL 5.082 deixa em aberto a possibilidade de as sessões da CGTC e da CTC serem sigilosas, mediante solicitação do sujeito passivo. Questiona-se, neste ponto, se esta possibilidade, que deveria ser uma exceção, não possa se tornar uma prática pois ao sujeito passivo sempre será mais interessante discutir seu débito sigilosamente. TRIBUTAÇÃO em revista

57


são adstritas à jurisprudência formada nos tribunais, exceto aquelas proferidas em Ações Diretas de Inconstitucionalidade pelo STF14. Nosso ordenamento jurídico prevê a possibilidade de transações tributárias na esfera judicial. Contudo, não existe uma lei que regulamente a matéria, definindo critérios e atribuindo competências ao Poder Judiciário. Transações que ocorressem neste contexto obedeceriam sempre a critérios objetivos, legalmente definidos. O PL 5.082/09 concede prerrogativas para que a CGTC implemente transações nos moldes do que faria o Poder Judiciário. Contudo, o faz de maneira mais permissiva, pois faculta-lhe agir discricionária e subjetivamente, sem legislação ou jurisprudência que as orientem. Ao atribuir à CGTC funções precípuas do Poder Judiciário o PL 5.082/09 distorce o papel primordial de órgão do Poder Executivo, qual seja, o de garantir a execução de normas. E mais: eivado de subjetividade, discricionariedade e sigilo, ao contrário do que ocorreria se tais decisões se fizessem na esfera judiciária. Segundo Montesquieu “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo os principais nobres, ou do povo, excedesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos15”. A separação dos poderes está garantida no artigo 2º da Constituição Federal, o qual declara a independência e harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Tal separação é tão importante que recebe o status de cláusula pétrea, sendo assim imune a emendas, reformas ou revisões que tentem eliminar ou até mesmo descaracterizar da Lei Fundamental. Em síntese, o 5.082/09 permite que um órgão subordinado ao Poder Executivo decida sigilosamente e interprete conceitos jurídicos indeterminados com poderes mais amplos do que os conferidos aos magistrados. Invade as esferas do Poder Legislativo e do Judiciário, afrontando

cláusula pétrea do Estado Democrático de Direito, qual seja, a separação dos poderes. 4. Pontos Críticos dos Projetos de Lei: Reduções Pecuniárias, Extinção de Punibilidade e Arbitragem O parágrafo 1º do artigo 6º do PL nº 5.082/09 propõe condições mais favoráveis à extinção dos créditos tributários, prevendo reduções às sanções pecuniárias (multas, juros de mora e outras sanções) que chegam a até cem por cento do seu valor. As reduções estão definidas nos incisos I a IV, não com percentuais precisos, mas em intervalos, deixando espaço para que avaliações subjetivas os definam conforme o caso. O projeto falha ao não prever a motivação para a redução do crédito e abre espaço para a discricionariedade. Os elevados percentuais de redução nas sanções pecuniárias, tal como os propostos neste artigo, induzem ao pagamento postergado de tributos com evidentes prejuízos à arrecadação. O contribuinte bom pagador sentir-se-á desestimulado pois, afinal, será melhor não pagar ou pagar atrasado e gozar da redução nas sanções pecuniárias. O pagamento integral da obrigação tributária deve ser sempre o objetivo buscado pelo agente público, e o uso indiscriminado de reduções deve ser evitado16. O parcelamento, previsto no Código Tributário Nacional, mostra-se uma alternativa viável para a extinção ou suspensão do crédito tributário, protegendo integralmente o interesse público. Uma novidade no PL nº 5.082/09 é o que dispõe seu artigo 54: Art. 54. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a partir do período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes tiver protocolizado a proposta de transação.

14 – Conforme Art. 7º, inciso II, alínea a) in verbis: Art. 7º - A transação, em qualquer das suas modalidades, não poderá: (...) II - afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade, salvo nos casos: a) que já tenha sido declarado inconstitucional por decisão plenária definitiva do Supremo Tribunal Federal 15 – Montesquieu, Charles de. Do espírito das leis, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1962, v. 1, pág. 181. 16 – A legislação tributária brasileira prevê em vários momentos a redução de multas e juros. Vide, por exemplo, a Lei nº. 8.383, que concede em seu art. 60 “redução de 40% da multa ao contribuinte que requer parcelamento de débito no prazo legal de impugnação”, ou a Lei nº. 8.218 que em seu art. 6º concede “redução de cinqüenta por cento da multa de lançamento de ofício, ao contribuinte que, notificado, efetuar o pagamento do débito no prazo legal de impugnação”.

58

TRIBUTAÇÃO em revista


Com a transação tributária, haverá tratamento diferenciado entre contribuintes § 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.

Em nome de uma “nova relação entre a administração tributária e o contribuinte”, o PL nº 5.082/09 suspende a pretensão punitiva do Estado e extingue a punibilidade aos contribuintes pessoa jurídica. Estes não serão punidos pelos crimes que praticarem contra a ordem tributária e econômica, assim como pelos de apropriação indébita e sonegação de contribuição previdenciária. Enquanto a transação tributária estiver em andamento o Estado não poderá punir o agente transgressor. Uma vez concluída a transação, ou seja, após o término da quitação dos débitos, a punibilidade estaria extinta. O Direito Penal classifica como “crime” aquelas condutas que ferem os bens protegidos pelo Estado em atendimento ao interesse público. Prevê penas como forma de punir a infração. A pena, preceito legal atribuído a qualquer infração às normas penais, é o instrumento pelo qual o Estado exterioriza sua punição para aqueles que desrespeitam os bens tutelados. A punibilidade é a possibilidade de o Estado punir o indivíduo em decorrência de prática infringente ao fato típico e antijurídico e, por consequência, à lei penal, com a devida imposição da pena prevista. A materialização da punibilidade seria, portanto, a aplicação da pena como reprimenda, em caráter ressocializador, para que o transgressor repare o mal causado à coletividade. O PL 5.082/09, como já mencionado, prevê a suspensão da pretensão punitiva do Estado, ou seja, permite que o Estado se abstenha de punir o agente transgressor enquanto a transação tributária estiver em andamento. A pu-

nibilidade estaria extinta após a confirmação da transação, ou seja, após o término da quitação dos débitos. O projeto também afasta a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. Atualmente, os sócios de uma pessoa jurídica que utilizarem a prática de negócios jurídicos prejudiciais a terceiros, inclusive o fisco, poderão ser punidos com a desconsideração da personalidade jurídica com o objetivo de coibir os abusos cometidos pelos dirigentes, incluindo-se o inadimplemento das obrigações tributárias. Ou seja, o instituto em menção opera como espécie de sanção para os abusos cometidos pelos dirigentes, incluindo-se o inadimplemento das obrigações tributárias. Em caso de aprovação do projeto, os sócios ficariam resguardados de punições por atos decorrentes da máadministração de suas empresas. Esta previsão afronta as disposições do artigo 50, do Código Civil, que elenca as hipóteses em que a personalidade jurídica da empresa pode ser desconsiderada para fins de responsabilização de seus gestores, conforme se lê no artigo 50. Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica ao caso concreto visa garantir o adimplemento de obrigações pecuniárias assumidas pela empresa, vez que será autorizado o alcance do patrimônio pessoal dos sócios para quitação de débitos contraídos de forma abusiva. Dessa forma, afasta-se a utilização da pessoa jurídica para prática de atos não afetos à sua finalidade, elidindo o enriquecimento ilícito dos sócios. Ressalte-se que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica independe de autorização de lei específica, aplicando-se, portanto, a disposição contida no artigo 50, do Código Civil, onde exige-se a autorização judicial. Ademais, as leis nº 6.830, de 22 de setembro de

TRIBUTAÇÃO em revista

59


1980 (Lei de Execuções Fiscais) e nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, prevêem a aplicação do instituto em comento em âmbito tributário. O benefício previsto no artigo supramencionado do PL 5082/09, além de atribuir tratamento diferenciado para pagamento, assegura a extinção da punibilidade quando houver a quitação do tributo via transação. Neste momento será definitivamente afastada toda possibilidade de punição na esfera penal. Com tal concessão o Estado valoriza o recebimento dos tributos em detrimento das punições para os devedores, colocando em segundo plano o combate à sonegação fiscal. Reforça-se, assim, a afronta ao princípio da isonomia e ao principio da razoabilidade. O princípio da razoabilidade garante que a Administração Pública, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional. Estimula, também, de forma indireta, a ideia de impunidade e desrespeito aos ditames legais, vez que está previsto em lei a obrigação de se efetuar pagamento de obrigações tributárias. Ao conceder benefícios para quitação de débitos e ainda extinguir a punibilidade de crimes contra a ordem tributária, cria-se uma premiação para o mau pagador, situação que afronta todos os ditames morais e éticos que norteiam o Estado Democrático de Direito. O artigo 1º do PLP 469/0917 também incluiu em nosso ordenamento jurídico-tributário o instituto da arbitragem. A arbitragem está contemplada no direito brasileiro pela Lei nº 9.307, aplicável apenas no campo do direito privado para solucionar litígios relativos a questões de fato e de direito sobre direitos patrimoniais disponíveis. Sobre a arbitragem, Saraiva Filho18 comenta: Em regra, o Estado só poderá utilizar-se da nova lei de arbitragem, quando a controvérsia decorra da atuação dele despida de sua supremacia de Direito Público, ou seja, quando o conflito suceda em face da atuação do Estado como particular...

Os créditos tributários são bens indisponíveis pela sua própria natureza posto que os tributos são exigidos e arrecadados com a finalidade de atender as necessidades

públicas. Não há, portanto, que se falar na utilização da arbitragem como forma de solucionar litígios que envolvam os créditos tributários. Essa proposta de arbitragem fere também a supremacia e a indisponibilidade do interesse público. Em questões privadas há dois interesses privados sendo mediados e decididos. Aqui, há de um lado, interesse público e de outro, interesse privado. Voltamos, novamente, a uma questão mais ampla já abordada anteriormente. Se as normas e regulamentos vigentes defendem suficientemente o interesse público, o instrumento da arbitragem e um processo de transação dificilmente seriam mais eficientes, eficazes e efetivos. 5. Considerações Finais A transação tributária tratada por ambos os projetos não é, de fato, transação. Um requisito essencial desse instituto jurídico são as concessões mútuas. O PL nº 5.082/09 trata, em verdade, de remissão e de anistia tributária, mas, permeando estes institutos com grande grau de indesejável discricionariedade. O PL nº 5.082/09 premia o mau pagador. Suspende a punibilidade para os crimes contra a ordem tributária e econômica, de apropriação indébita e de sonegação de tributos, afastando toda possibilidade de punição na esfera penal. São claras as evidências de não observação de princípios constitucionais. Com a transação tributária haverá tratamento diferenciado entre contribuintes. O crédito tributário poderá ser quitado em prazos e parcelas especiais e diferentes para cada contribuinte. Os interesses da iniciativa privada em negociar suas dívidas tributárias serão sobrepostos aos interesses maiores da sociedade. Os tributos cobrados via transação não o serão por meio de atividade administrativa plenamente vinculada, mas sim por decisões baseadas em critérios gerais de interpretação discricionária. Por fim, a transação tributária comprometerá a arrecadação como um todo. O contribuinte mau pagador será beneficiado. Sempre que possível o contribuinte preferirá transacionar, negociar, ao invés de pagar. A arrecadação espontânea será drasticamente reduzida.

17 – Art. 1º(...) “Art. 171-A. A lei poderá adotar a arbitragem para a solução de conflito ou litígio, cujo laudo arbitral será vinculante.” 18 – SARAIVA FILHO, Oswaldo O. P. A constitucionalidade da nova lei de arbitragem. RDDT, São Paulo, n. 17, p. 44-48, fev. 1997.

60

TRIBUTAÇÃO em revista


REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L5172.htm>. Acesso em: 17 jul. 2008. BRASIL. Lei nº. 11.196, de 10 de agosto de 1980. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 set. 1980. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L6830.htm>. Acesso em: 17 abr. 2009.

ra dos Deputados em 25 abr. 2009. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/ 648724. pdf>. Acesso em: 30 abr. 2009. BRASIL. Poder Executivo. Exposição de Motivos Interministerial nº 00204/2008 – MF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ EXPMOTIV/EMI/2008/204%20-%20MF%20AGU. htm>. Acesso em: 30 abr. 2009. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

BRASIL. Lei nº. 10. 406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 17 jul. 2008.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Saraiva, v.2, 1995.

BRASIL. Lei nº. 10.593, de 10 de dezembro de 2002. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 09 dez. 2002. Disponível em: <www.planalto.gov.br/CCIVIL/ leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 17 abr. 2009.

Montesquieu, Charles de. Do espírito das leis, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1962, v. 1.

BRASIL. Lei nº. 6.830, de 21 de novembro de 2005. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 nov. 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2004-2006/2005/Lei/ L11196.htm>. Acesso em: 17 abr. 2009. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 5.082/09. Dispõe sobre transação tributária, nas hipóteses que especifica, altera a legislação tributária e dá outras providências. Publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 25 abr. 2009. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/ integras/648733.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2009. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar 469/09. Altera e acrescenta dispositivos à Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. Publicado no Diário da Câma-

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. 29. ed.

MOREIRA NETO, Diogo F. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. SARAIVA FILHO, Oswaldo O. P. A constitucionalidade da nova lei de arbitragem. RDDT, São Paulo, n. 17, p. 44-48, fev. 1997. SARAIVA FILHO, Oswaldo O. P. A transação e a arbitragem no direito constitucional-tributário brasileiro. In SARAIVA FILHO, Oswaldo O. P.; e GUIMARÃES, Vasco B. (Org.). Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário: homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 43-88. JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000. UNAFISCO. Análise do Anteprojeto da Lei Geral de Transação Tributária. Brasília: Unafisco, 2008, 12 p. Disponível em: <http://www.sindifisconacional.org. br/index.php?option=com_content&view=catego ry&layout=blog&id=76&Itemid=172&lang=pt>. Acesso em: 30 abr. 2009.

TRIBUTAÇÃO em revista

61


qUESTÕES POLÊMICAS EM DIREITO TRIBUTÁRIO Supremo Tribunal Federal valida aumento da Cofins Natureza:

Recurso Extraordinário

Órgão julgador:

Plenário

Nº do Processo:

RE 527602/SP

Relator:

Ministro Eros Grau

Matéria:

Majoração de alíquota – Cofins

Recorrente:

Plural Editora Gráfica Ltda.

Recorrida/ Interessado:

União Federal

Data da Decisão:

5/8/2009

Publicação:

13/11/2009

Texto da Decisão:

O Tribunal, por maioria, deu parcial provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, que redigirá o acórdão, vencido o Senhor Ministro Eros Grau (Relator), que lhe dava provimento integral. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Menezes Direito. Falaram, pela recorrente, o Dr. Pedro Luciano Marrey Júnior e, pela recorrida, a Dra. Cláudia Aparecida de Souza Trindade, Procuradora da Fazenda Nacional. Plenário, 5.8.2009. Ementa: PIS E COFINS – LEI Nº 9.718/98 – ENQUADRAMENTO NO INCISO I DO ARTIGO 195 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NA REDAÇÃO PRIMITIVA. Enquadrado o tributo no inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, é dispensável a disciplina mediante lei complementar. RECEITA BRUTA E FATURAMENTO – A sinonímia dos vocábulos – Ação Declaratória nº 1, Pleno, relator Ministro Moreira Alves - conduz à exclusão de aportes financeiros estranhos à atividade desenvolvida – Recurso Extraordinário nº 357.950-9/RS, Pleno, de minha relatoria.

62

TRIBUTAÇÃO em revista


O Recurso Extraordinário nº 527602/SP, de relatoria do Ministro Eros Grau, foi julgada no dia 05 de agosto de 2009 e ainda está pendente de publicação, o acórdão da decisão, cuja redação ficou a cargo do Ministro Marco Aurélio Mello. Em 1999 foi proposta Ação pela Plural Editora e Gráfica Ltda., com intuito de comprovar que a majoração de alíquota da Cofins só poderia ser estabelecida por meio de uma lei complementar, e não por uma lei ordinária, como ocorreu por meio da Lei nº 9.718. O pedido foi julgado procedente em primeira instância e em grau de apelação foi dado provimento ao recurso da União. Em grau de Recurso Extraordinário, foi proferida decisão, publicada em 13 de novembro de 2009, fixando entendimento majoritário, e dando parcial provimento ao Recurso nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio Mello. O acórdão recorrido extraordinariamente considerou constitucional o aumento da Cofins pela Lei nº 9.718 em 1998. A lei, além de aumentar a alíquota da Cofins, alargou a base de cálculo do tributo, que antes se restringia ao faturamento e passou a abranger as receitas financeiras das empresas. Em 2005 o Supremo julgou inconstitucional a alteração na base de cálculo e no mesmo julgamento, declarou constitucional o dispositivo da lei que elevou a alíquota da contribuição. A nova tentativa dos contribuintes para alterar o entendimento do Supremo sobre o aumento da alíquota foi feita a partir da tese que defende que a majoração só poderia ser estabelecida por meio de uma lei complementar, e não por uma lei ordinária, como ocorreu por meio da Lei nº 9.718. Os contribuintes passaram a alegar que a majoração da alíquota foi analisada apenas com base no princípio da

hierarquia de leis, sem que se atentasse para o fato de ter sido criado um novo tributo, o que exigiria uma lei complementar, conforme estabelece o artigo 1951 da Constituição Federal. A editora moveu a ação com intuito de não arcar com a majoração da contribuição ocorrida em 1999, ano em que a lei entrou em vigor, até 2004, quando passou a se sujeitar ao sistema da Cofins não cumulativa, estabelecido pela Lei nº 10.833, de 2003. A tese da Editora alegava que uma base de cálculo inadequada pode desvirtuar a natureza de um tributo, duas bases de cálculos distintas implicam em dois tributos diferentes. Alegam que a alíquota não foi simplesmente elevada, mas sim atrelada a um novo tributo que foi considerado inconstitucional. A União sustentou, durante a sessão do pleno do Supremo, que o entendimento pela constitucionalidade da majoração da alíquota da Cofins já está pacificado na corte, por conta do julgamento de inúmeros recursos analisados de forma monocrática pelos ministros, inclusive com imposições de multas aos contribuintes que insistem na discussão. O Ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto, afirma que seria dispensável uma lei complementar para a majoração da alíquota da Cofins, pois não foi criado um novo tributo. Com tal decisão, o Supremo Tribunal Federal firma o entendimento de que a majoração da alíquota da Cofins é constitucional. O processo em questão está pendente de julgamento de Embargos de declaração opostos pela Editora. Alexandra Trentini Advogada – Assessora de Diretoria Departamento de Estudos Técnicos Sindifisco Nacional

1 - Constituição Federal, art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: § 4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, § 6º As contribuições sociais e que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando disposto no art. 150, III, b. § 12. A lei definirá os setores de atividades econômicas para os quais os contribuintes incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativos. § 13. Aplica-se o disposto no § 12 inclusive na hipótese de substituição gradual, total ou parcial, da contribuição incidente na forma do inciso I, a, pela incidente sobre a receita ou faturamento.

TRIBUTAÇÃO em revista

63


a RTIGO Dai, pois, a César o que é de César Foch Simão Jr *

Há dois mil anos passados reinava sobre o Império Ro-

romanas sob jurisdição parcial do Governador da Síria. A

mano Tibério Cláudio Nero César, desde a morte do seu

administração de fato da Judeia e de toda Palestina era entre-

padrasto o grande Otavio Augusto, o primeiro imperador.

gue a governadores romanos da ordem equestre, chamados

Tibério era conhecido pela sua coragem e a genialidade

de prefeitos, posteriormente denominados de procuradores.

militar, deixando um legado de conquistas, assegurando

De modo geral, as províncias imperiais eram governadas por

o rio Danúbio como a fronteira romana com os bárbaros

procuradores nomeados pelo imperador. Esses governado-

germânicos. O grande Império alcançava então desde a

res instalavam-se como magistrados e administradores com

Bretanha aos confins do Oriente Médio, na Palestina.

exércitos próprios estabelecidos permanentemente, deixando

Como senhora do mundo antigo Roma eventualmente aceitava como governantes das suas possessões territoriais,

os assuntos sociais e religiosos por conta da administração dos potentados locais.

com o status quo de províncias ou como estados aliados, po-

A Palestina era a denominação de um território habi-

líticos da própria região com mandatos religiosos ou os de

tado por milhões de pessoas, boa parte de origem judaica,

pouca importância administrativa, os quais, porém, estavam

da qual a sua grande maioria era pobre, que sobreviviam

submissos ao seu poder imperial. Um desses governantes

da agricultura, do comércio e da pesca. Este território

era Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que teve

sempre teve uma posição estratégica como via de ligação

sua formação segundo os preceitos da cultura romana, va-

entre a África e o Oriente Médio, recebendo o trânsito de

lorizando mais os valores pagãos do Império do que os da

pessoas e bens comerciais que demandavam desde o Egito

sua cultura original, ligada ao povo judeu. Herodes antipas

e Abissínia até a Numídia e Cirieia no Norte do continente

herdou o governo da Galileia e da Pereia na margem oriental

africano para completar as transações na Fenícia, no Ponto

do Jordão que a partir de seis d.C. tornaram-se províncias

e demais locais ao norte do império.

* Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil

64

TRIBUTAÇÃO em revista


Região singular, parte do crescente fértil, disposta

ou talvez as autoridades romanas constituídas. Questão

entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, entendia por

após questão o sábio profeta respondia com parábolas que

27.000km desprovidos de significativas riquezas natu-

expunham o ridículo do interrogatório. Em golpe sibilino,

rais. Destacava-se nesta paisagem uma região montanhosa

aguardando a oportunidade, para o apanharem em algu-

setentrional, a Galileia, o último refúgio dos cananeus an-

ma palavra comprometedora, tentaram-no com uma deli-

tes da conquista da Palestina pelos hebreus. É nesta terra,

cada questão legal que a todos abominava, esperando que,

em Nazaré, no seio de uma turbulenta sociedade judaica,

por ventura, com a resposta poderiam entregá-lo à juris-

dividida entre os seus anseios por liberdade, preservação

dição e à autoridade do governador romano. Desta forma,

de sua cultura cívica e religiosa e a sua submissão ao inva-

os sacerdotes assim o questionaram diante dos populares:

2

sor romano, que surge um homem que iria mudar a história e a nossa compreensão sobre os tributos. Excluindo-se algumas elites administrativas e religiosas, a sociedade judaica não possuía a época uma discrepante diferença visível na sua composição social, tornando-se um meio fértil de contradições cívicas e espirituais restritas em sua essência pelos preceitos religiosos talmúdicos e pelo controle coercitivo do Império. É neste ambiente que em determinado dia, da primeira metade do século I d.C., que um profeta conhecido como Jesus, o Nazareno, filho de José, reuniu ao seu entorno uma

– Mestre, sabemos que falas e ensinas retamente, e que não consideras a aparência da pessoa, mas ensinas segundo a verdade o caminho de Deus; é-nos lícito dar tributo a César, ou não? Mas Jesus, percebendo a astúcia deles, disse-lhes: – Mostrai-me um denário. Tirada de baixo da túnica de um dos escribas surgiu em sua mão a moeda pedida. Então Jesus indagou: – De quem é a imagem e a inscrição que ela tem? Responderam apressadamente os sacerdotes: – De César. Disse-lhes então o profeta: – Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

multidão que queria vê-lo falar. O local restrito, o templo judaico, que se transformava na efervescência dos ávidos

Esta frase histórica, que sintetiza em sua essência o

assistentes em um burburinhar de comentários paralelos.

paradoxo entre o singular e o coletivo, expressa em seu

Enquanto a turba se amontoava, o profeta fitava-os com o

âmago o compromisso de cada cidadão para consigo e os

ar sereno de mestre que aguarda os discípulos apascentar-

seus interesses privados e concorrentemente a sua obri-

-se e aguçarem seus ouvidos. Após alguns momentos de

gação para com a sociedade incorporada na figura do Es-

silêncio, passou o sábio profeta a ensinar o povo sobre as

tado. Em consequência dessa dicotomia existencial, o ser

suas profundas convicções que diziam respeito à vida e ao

humano depara-se com um sentimento bem comum, o

espírito indômito dos homens, que por muitas vezes ne-

egoísmo. Desde o seu ponto de vista etimológico, esse sen-

gam toda a razão do espírito divino pela mesquinha ambi-

timento, tão humano, revela o segredo da sobrevivência

ção de usufruir aos precários valores terrenos. Quebrando

da espécie, um amor desvelado por si mesmo que leva o

a aura de meditação, de repente, sobrevieram ao local os

homem a se sobrepor aos demais congêneres.

principais sacerdotes do templo seguidos sequiosamente

A ideia da renúncia aos próprios desejos e necessida-

pelos vassalos escribas, trazendo consigo alguns anciãos

des em prol de uma comunidade ou entidade só é logi-

que, senão vastos em sua sabedoria, plenos de sortilégios.

camente aplicável se o egocentrismo, inerente à espécie

Interrompendo o profeta, impertinentes questionaram-

humana, for superado pela perspectiva de ocorrência de

lhe junto à multidão sobre sua autoridade para ali pregar

um fato superveniente que ameace a sua estabilidade física

ao povo e indagando-lhe por qual delegação este a tinha.

ou emocional; ou por outro lado, de alguma forma, lhe ga-

Após isto, questionaram-no sobre muitas coisas para que

ranta eterna felicidade e prosperidade. Sob este prisma, na

se comprometesse em suas respostas, provocado o povo

incerteza do porvir, os homens se submetem aos preceitos

TRIBUTAÇÃO em revista

65


filosóficos de um credo religioso; de outra forma, na crua

ricas e privilegiadas. Este legado de injustiça tributária é um

realidade diária suportam a vida em sociedade, privando-se

produto, por excelência, da própria natureza que discipli-

de uma parcela da sua liberdade por outro fator de interesse

na o comportamento humano enquanto condicionado pela

próprio que é o de se conservarem por meio de ações cole-

escassez dos recursos existentes necessários a manutenção

tivas que lhes permitam agregarem-se e formarem um con-

da vida, buscando dentro de um aparente contexto ético,

junto de forças com o único objetivo de melhor sobrevida.

expresso por meio de algum artifício normativo de cunho

Deste ponto em comum surge entre os homens a au-

social ou religioso, os meios disponíveis para conquistá-los.

toridade constituída, institucionalizada a partir de uma

Se a questão da equidade de direitos e deveres fosse ape-

suspeita generalizada sobre a continuidade da sua própria

nas uma função moral, com o evoluir da humanidade tería-

existência, um acordo tácito ou expresso entre a maioria

mos uma tendência assintótica de aproximar-nos do Estado

dos indivíduos, pondo termo à indisciplina natural instin-

ideal pregado desde a antiguidade por Sócrates e Platão.

tiva dos seres humanos, dando início a uma ordem social e

Mas um único fator se sobrepõe à justiça normativa no cam-

política. Esta nova ordem tem como características o aspec-

po impositivo; a mobilidade. Os fluxos da alocação de re-

to jurisdicional e administrativo, o qual, para se consubs-

cursos, quaisquer que sejam suas naturezas, sempre foram

tanciar tem um custo relativo de fulcro econômico. Como

mais flexíveis do que a capacidade humana de acompanhá-

denominador comum, este cusso deve ser arcado pela so-

los, prevalecendo nesta dinâmica a competência de cada um

ciedade constituída na forma de fornecimento de trabalho

para obtê-los em um mundo condicionado pela escassez. A

ou alienação de propriedade. A história da humanidade a

mesma competência que leva o ser humano a conquistar

partir dessa nova concepção se constitui em uma sucessão

recursos, faz que se capacite a mitigá-los na questão cívica

de fatos que por milhares de anos focalizou-se em duas dis-

da obrigação tributária, distorcendo, com poder ou riqueza,

posições significativas: quem arca com os custos do Estado

no âmbito administrativo e legal das sociedades o princípio

e sobre o que estes são imputados.

da proporcionalidade contributiva. A partir deste paradoxo

Ao longo desta mesma história da miséria humana é

entre a obrigação de fazer e capacidade de contribuir, para

fato notório que sempre arcaram com os custos da manu-

os pobres mortais, e com certeza aos mortais mais pobres,

tenção da sociedade, estabelecidos na forma de tributos, os

haverá sempre duas verdades na vida; que a morte os al-

pobres, os camponeses, os escravos, os colonos e os povos

cançará um dia e que até então pagarão grande parte dos

conquistados; em benefício dos governantes e das classes

tributos da sua sociedade, por ousar nela viver.

66

TRIBUTAÇÃO em revista


Lei Orgânica do Fisco boa para a Sociedade essencial para o Brasil

Defender uma Lei Orgânica para a Receita Federal do Brasil significa defender uma moderna administração tributária, previdenciária e aduaneira, garantindo múltiplas fontes de recursos para o financiamento de políticas da Seguridade Social, objetivando uma redução das desigualdades sociais e a continuidade do desenvolvimento econômico e social.

Benefícios para a Sociedade Fim da Ingerência na Receita Tratamento isonômico aos contribuintes Incentivo à discussão da Justiça Fiscal Desde 2005, o SINDIFISCO NACIONAL (Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil) tem defendido a aprovação de uma Lei Orgânica do Fisco – LOF que garanta à sociedade brasileira uma Receita Federal do Brasil (RFB) mais justa e transparente. A LOF é um conjunto de normas que estabelece, entre outras medidas, autonomia técnica e independência à RFB. Trata-se de um instrumento jurídico que assegura uma fiscalização tributária moderna, independente e livre de pressões externas.

programa de integração e valorização Diretoria Executiva Nacional



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.