Entrevista com o Presidente da República de Cabo Verde no Diário Económico - 6 de Junho 2013

Page 1

22 Diário Económico Quinta-feira 6 Junho 2013

MUNDO

Dresden evacua centenas de habitantes Cerca de 700 habitantes foram ontem evacuados de Dresden, capital da Saxónia, quando as águas do rio Elba subiram acima dos oito metros, quando o habitual se situa três ou quatro metros. Várias regiões alemãs – e países vizinhos como a República Checa e Austria – continuam em estado de alerta, ainda que as condições metereológicas apontem para um aliviar da situação. A chanceler alemã já anunciou uma ajuda inicial de cem milhões de euros para as zonas afectadas pelo desastre natural.

Paula Nunes

“Portugal ainda é visto em África como potência colonial”

ENTREVISTA A JORGE CARLOS FONSECA Presidente de Cabo Verde

“Não é um momento de glória para o investimento português em Cabo Verde”

Jorge Carlos Fonseca, 62 anos, diz que ainda existem “fantasmas” na relação entre a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e Portugal.

O presidente diz que muitos países, em África, criticam as “pretensões neo-colonialistas” de Portugal.

Jorge Carlos Fonseca, 62 anos, goza de níveis de popularidade de 90 Jorge Carlos Fonseca gozaacima de uma % dois anos depois eleito popularidade acima de de ser 90% dois pelo anos partido paraMovimento a Democracia . após terMovimento ser eleito pelo Formado em Direito, na Universidade para a Democracia. Formado em Direito, de é o quarto presidente de na Lisboa, Universidade de Lisboa, é o quarto Cabo Verde.de Cabo Verde. presidente

Gisa Martinho gisa.martinho@economico.pt

A crise europeia está a ter um impacto “directo” na economia cabo-verdiana, que este ano pode entrar em recessão. “Cabo Verde tem de diversificar as suas relações internacionais”, avisa o presidente Jorge Carlos Fonseca, durante uma passagem por Portugal, após ter sido recebido pelo novo Papa no Vaticano. Qual o impacto que a crise do euro está a ter na economia cabo-verdiana? A crise tem um impacto directo em Cabo Verde, que é muito dependente das economias da zona euro. Os donativos baixaram 24% no primeiro trimestre de 2013. O investimento directo estrangeiro caiu 26% em 2012 e há a mesma tendência para 2013. As remessas dos imigrantes desaceleram, num contexto em que a ajuda pública ao desenvolvimento tem decrescido. E Cabo Verde, com a graduação de ‘país menos avançado’ para ‘país de rendimento médio’, vai deixar de beneficiar de empréstimos concessionais. O último relatório do banco central aponta para uma queda de 1,5%

no crescimento do PIB este ano. A austeridade está a chegar então a Cabo Verde? Sim, já está no nosso vocabulário. O governo não fala ainda de programas de ajustamento estrutural, mas o FMI e o grupo de acompanhamento do orçamento – onde está Portugal – recomendam contenção e redução dos investimentos em curso. Para vencer a crise há que adoptar políticas mais diversificadas no turismo e ligar outros sectores, como o agro-negócio e a indústria cultural. Em 2012, o turismo subiu 12%. Cabo Verde tem como trunfo a estabilidade política e a tranquilidade social, ao contrário da instabilidade noutros destinos turísticos concorrentes, como a Tunísia ou o Egipto. Como está a queda da cooperação portuguesa a ser sentida? Há uma redução sensível. O que solicitei ao Governo português foi que, apesar da crise, houvesse um esforço para se manter os níveis de cooperação com Cabo Verde, nomeadamente na abertura de linhas de crédito e ajuda orçamental. Houve esse esforço, mas a situação complexa por que passa Portugal não permitiu que essa missão fosse cumprida a 100%. Mas manteve-se ainda uma cooperação bastante aceitável.

Além da parte pública também se sente uma contenção do investimento privado português? Há uma procura em Cabo Verde de investidores portugueses, de pequena e média dimensão. Há ainda a utilização de Cabo Verde para atingir outro tipo de mercados. Mas é evidente que este não é um momento de glória para o investimento português em Cabo Verde. O perfil de investimento está a mudar: menos europeu, mais asiáticos. Como avalia a chegada do investimento chinês, que em outros países africanos têm sido alvo de muitas críticas? Temos de estar atentos e ser lúcidos. A cooperação com a China tem sido muito boa desde a

A situação complexa por que passa Portugal não permitiu que a missão de [cooperação] fosse cumprida a 100%.

independência. Estamos a discutir com os chineses, por exemplo, a privatização de empresas ligadas à economia marítima – como a Cabenave. O processo de negociação está a decorrer há algum tempo. As negociações com os chineses não são fáceis. Não posso esconder que existem, às vezes, perspectivas sobre política laboral que não serão as mesmas da China. Mas Cabo Verde é uma pequena economia sem muitos recursos naturais. Para além de turismo, pescas, talvez Tecnologias de Informação, não há outras grandes alternativas de desenvolvimento... ...que não seja diversificar as relações e reduzir a dependência de países como Portugal? Nada prevê que a crise da zona euro seja ultrapassada amanhã. Cabo Verde tem de diversificar as suas relações internacionais. É possível fazer muito mais com o Brasil, dinamizar as relações com Angola, um país muito próximo de nós, e com todos os BRICS. Não podemos ser indiferentes às oportunidades que se apresentam numa maior proximidade com o continente africano. África hoje em dia é um continente visto com outros olhos. ■

Como comenta o presidente angolano ter garantido ao homólogo da Guiné Equatorial a entrada na CPLP em 2014? Li na imprensa. Estive há pouco tempo na Guiné Equatorial e pude observar que é um país apetecível e procurado por portugueses, angolanos, chineses. Do ponto de vista político tem algum caminho a ser percorrido para que possa considerar-se um Estado de Direito. Na cimeira em Dili lá estaremos para fazer a avaliação. Mas o entusiasmo dentro da CPLP não é o mesmo. E qual é o entusiasmo do chefe de Estado de Cabo Verde? Procuro ter uma posição convergente com o governo, sempre que possível. E a posição do governo é de não dificultar a entrada, mas assegurar sinais positivos da Guiné Equatorial. O trabalho da CPLP corresponde às suas expectativas? Antes de ser presidente tinha uma posição algo crítica da CPLP. Desde que foi criada há avanços, evoluiu muito, para uma instância com credibilidade e respeito na cena internacional. Por exemplo, no dossier Guiné-Bissau. Mas uma coisa que é fundamental: um cidadão comum não se sentirá membro de uma comunidade se não puder circular nesse espaço. A livre circulação de pessoas na comunidade tem de ser um objectivo a atingir. A CPLP podia ter feito mais no golpe de Estado da Guiné-Bissau? Sim, talvez. Mas as dificuldades não decorrem só da CPLP. A CEDEAO, de que a Guiné-Bissau é membro, entendeu que teria o papel principal na solução do conflito. Houve falta de sintonia entre a CEDEAO e a CPLP. Há alguns fantasmas. Quais fantasmas? De alguma forma, Portugal ainda é visto em África como potência colonial, com pretensões neocolonialistas. Não faz sentido nenhum, mas o Portugal moderno, democrático ainda não é suficientemente conhecido. Em relação à Guiné-Bissau, os países da CPLP aperceberam-se que, sem descurar os princípios, teriam de ter uma postura mais pragmática e realista. Não é possível encontrar uma solução no terreno sem dialogar. A CPLP aproximou-se mais da CEDEAO, União Africana e Nações Unidas para que em conjunto se encontre uma solução que passe por um governo inclusivo, que integre as principais forças políticas. E ver se é possível chegar a eleições justas e livres antes do final do ano. O que, em rigor, não vai ser fácil.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.