Guia de estudos SPMUN 2012 - UNIFEM

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Guia de Estudos

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Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher – UNIFEM

São Paulo Model United Nations

A mulher na sociedade árabe

Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima (Diretora) João Pedro Lang (Diretor) João Victor (Sub-Secretário Acadêmico) Bernardo Fico (Secretário Geral Acadêmico)

São Paulo, 15 de Setembro de 2012

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Sumário 1. Noções e conceitos essenciais 1.1. Árabes e muçulmanos 1.2. Noções sobre a religião islâmica 1.3. Análise demográfica do mundo árabe 2. A mulher no cenário internacional: o papel da ONU 3. A mulher, o Islã e a cultura árabe 3.1. Os direitos humanos à luz da fé islâmica 3.2. O feminismo no mundo árabe 3.3. Estudo de caso 4. Bibliografia consultada

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1. Noções e conceitos essenciais 1.1. Árabes e muçulmanos No senso comum, há muita confusão entre os termos “árabe” e “muçulmano”, de modo a se imaginar que são sinônimo. No entanto, a distinção deve ser clara. Muçulmano é todo aquele que tem o islamismo como sua religião, independentemente de local de nascimento ou etnia. Árabe, por sua vez, designa uma etnia originária do Oriente Médio (deserto da Arábia), ou, ainda, os que aderem à cultura e língua árabes. A confusão entre os termos é compreensível; a religião islâmica teve origem justamente entre os árabes. Além disso, mais de 80% dos árabes são, de fato, muçulmanos, e uma parte considerável dos muçulmanos são árabes. Não há, porém, exclusividade. Apenas 20% dos muçulmanos são árabes. Indonésia, Paquistão, Índia, Bangladesh, Nigéria, Irã e Turquia são os países com a maior população muçulmana do globo, e nenhum deles tem maioria árabe. Com base na prevalência populacional de árabes ou muçulmanos, traçam-se as linhas do “mundo árabe” e do “mundo islâmico” (ou muçulmano). O mundo árabe contempla os países em que os árabes são maioria étnica, isto

Figura 1. Os países do “mundo árabe”, abrangendo o norte da África e a Península Arábica.

é, o

norte africano e a Península Arábica (figura 1). Já o mundo islâmico inclui o mundo árabe, a África Ocidental e Central, a Ásia Central, parte dos Bálcãs, Turquia, Indonésia e Irã (figura 2).

Figura 2. O “mundo islâmico”, com divisão em sunitas (verde-claro) e xiitas (verde-escuro).

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1.2. Noções sobre a religião islâmica O islamismo é uma religião monoteísta (isto é, que crê na existência de um deus único) que faz parte das “religiões abraâmicas”, isto é, as três religiões que surgiram a partir da tradição de Abraão – cristianismo, islamismo e judaísmo. Essas três religiões compartilham o mesmo Deus, que creem único e onipotente. “Alá”, afinal, significa justamente “Deus” em árabe. O profeta1 Maomé (ou Muhammad) é retratado como o fundador da religião. Segundo a tradição islâmica, esse mercador da cidade de Meca (atual Arábia Saudita) teria sido escolhido para passar a mensagem de Deus à humanidade. Maomé representa o modelo de vida a ser seguido, ainda que possa ser falível. Com suas pregações, Maomé liderou um grupo que acabou por conquistar o deserto da Arábia. Com uma rápida expansão, o Islã se tornou um império que, em apenas um século, abrangeria todo o território entre a Ásia Central e o Marrocos – isto é, boa parte do atual “mundo islâmico”. O expansionismo converteu vastas regiões não árabes ao Islã, através da “islamização”. Esse processo contou com relativa tolerância religiosa e cultural – os costumes e rituais locais eram incorporados à prática religiosa. Em meio a esse expansionismo religioso, contido apenas na França, a morte de Maomé abriu uma questão sucessória que culminou em um cisma dentro do Islã. Como não havia um sucessor (califa) apontado pelo profeta, a comunidade islâmica se dividiu entre aqueles que queriam um califa eleito pelos fiéis – os atuais muçulmanos sunitas – e os que queriam sucessão hereditária – os xiitas. Sunitas e xiitas são as duas principais denominações do islamismo, havendo outras minoritárias.2 Como mostrado pela figura 2 acima, os sunitas são maioria, correspondendo a mais de 75% dos fiéis (os xiitas constituem de 10% a 20%). Os únicos países islâmicos majoritariamente xiitas são Irã, Iraque, Azerbaijão e Barein (veja o capítulo 1.4 para mais informações). A diferença entre sunitas e xiitas é também étnica – enquanto a maioria dos árabes é sunita, a maior parte dos persas é xiita. As diferenças entre sunitas e xiitas vêm da interpretação das palavras do profeta Maomé, com reflexos políticos. Os sunitas aceitam os califas, mas não creem que eles sejam infalíveis; o único “requisito” para o governante é que ele seja um homem de fé. Já os xiitas creem que um líder religioso (ímã ou aiatolá), tido como infalível, deve guiar a sociedade. Essa interpretação corrobora governos teocráticos, isto é, regimes em que religião e política estão intrinsecamente relacionadas. Contudo, essa não é exclusividade xiita – há teocracias sunitas, como é o caso da Arábia Saudita.

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Diferentemente do messias, o profeta não tem caráter divino. No senso comum, acredita-se que os sunitas são “moderados”, enquanto os xiitas seriam “radicais”, sendo o foco do atual terrorismo islâmico. Essa é uma grande simplificação; inclusive, os maiores grupos fundamentalistas e/ou terroristas da atualidade – Taliban e Al-Qaeda – são da vertente sunita. 2

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Essas características são gerais e não necessariamente consensuais, havendo grande diversidade de interpretações mesmo dentro do sunismo ou do xiismo. É justamente essa diversidade que origina grupos mais “moderados” ou “radicais”. Apesar da separação entre os dois grupos, a união dentro da comunidade muçulmana global (umma) é um dos principais preceitos islâmicos. Grande parte da doutrina islâmica é originária da escritura sagrada do Islã – o Corão (ou Alcorão) – e das realizações do profeta Maomé. Os muçulmanos consideram também o Antigo e o Novo Testamento, revelações anteriores a Maomé. Porém, o Corão seria o livro sagrado derradeiro, contendo as últimas revelações feitas por Deus à humanidade, sendo, portanto, o mais importante dos livros sagrados. Em vez de usar parábolas e exemplos, como na Bíblia, os preceitos do Corão são expostos de uma maneira mais direta e imperativa, na forma de linhas de conduta. Esse formato, porém, não impede interpretações divergentes da letra do Corão. O livro apresenta passagens aparentemente contraditórias, que podem, fora de contexto, ser usadas para justificar práticas opostas. Há escolas de pensamento que interpretam o Corão de um modo mais literal, enquanto outras admitem metáforas e analogias que justificam a mudança de comportamentos3. Existe um amplo leque de interpretações divergentes no Islã, seja sobre as escrituras, seja sobre a separação de Estado e religião. Isso originou diversas vertentes, seitas e doutrinas dentro do Islã, que, afinal, não é homogêneo nem consensual. O formato mais direto do Corão contribuiu para que seus preceitos fossem largamente usados para estabelecer uma doutrina moral (de ações e condutas4) e um aparato legal e jurídico (leis, normas e procedimentos) para o império islâmico. O Livro era usado para resolver disputas, julgamentos e outras questões práticas do cotidiano. De certa forma, essa base moral e essas normas formam, hoje, a doutrina jurídica dos países islâmicos, mesmo aqueles laicos. No Ocidente, analogamente, boa parte dos princípios legais advém da moralidade cristã. Para questões não respondidas pelo Corão, existe a Suna – um conjunto de histórias sobre as decisões e a conduta de Maomé e dos califas ao longo de suas vidas. Na vertente sunita, ela serve como guia de conduta, “complementando” o Corão. Assim, ainda que com grande margem para interpretações, o Corão e a Suna delimitam o modelo de vida “exemplar”, conhecido como “o caminho” (sharia). As diretrizes da sharia delimitam, em maior ou menor medida, a política e a justiça do mundo islâmico5. É importante ressaltar, entretanto, que há grande divergência sobre as diretrizes da sharia. Não há, tampouco, consenso se ela deveria

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Os xiitas tendem a interpretar o Corão de forma mais literal, o que contribui para a percepção simplista de que eles seriam mais “radicais”. 4 A fatwa (sharia aplicada ao Direito) divide essas condutas em obrigatórias, recomendáveis, toleráveis, censuráveis e inaceitáveis. 5 Uma interpretação mais literal sobre essas diretrizes fez com que sharia fosse comumente traduzida como “lei islâmica”. Esse é o significado de sharia que utilizaremos ao longo deste guia de estudos.

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ser usada como base das leis de um país – punindo aqueles que fogem da conduta exemplar – ou, simplesmente, como um “guia” para reflexão sobre a conduta pessoal de cada muçulmano.

1.3. Análise demográfica do mundo árabe Várias respostas sobre a influência da cultura árabe ou das doutrinas religiosas do Islã nas sociedades do mundo árabe podem ser encontradas em uma simples análise demográfica. A porcentagem de muçulmanos e árabes na população, somada a uma análise do sistema político-jurídico desses países, responde boa parte das dúvidas sobre esse assunto. Veja, na tabela abaixo, dados fundamentais sobre etnia e religião no mundo árabe e proximidades. Muitos países, contudo, não possuem dados atualizados ou apresentam dados oficiais, que podem não condizer com a realidade.

País

Vertente

Sunitasa

Xiitasa

Muçulmanosa

Árabesa

majoritária Arábia Saudita

sunitas

82,5-87%

10-15%

97%

90%

Argélia

sunitas

99%

~0%

98%

~85%

Bahrein

xiitas

~20%

~50%

70,2%b

46%b

Catar

sunitas

não há dados

77,5%

40%b

Cisjordânia

sunitas

não há dados

75%

~80%

Egito

sunitas

não há dados

94,6%

~100%

Em. Ár. Unidos

sunitas

96%

~25%b

Faixa de Gaza

sunitas

99,3%

~100%

Iêmen

sunitas

~60%

35-40%

99,1%

majoritários

Iraque

xiitas

32-37%

60-65%

97%

75-80%

Jordânia

sunitas

92%

~1%

98,2%

98%

Kuwait

sunitas

60%

15%

85%

80%

Líbano

divergente

27-33%

27-33%

59,7%

95%

Líbia

sunitas

97%

~0%

96,6%

97%c

Marrocos

sunitas

99%

99%c

~80%

16%

não há dados

não há dados

7


não há dados

Somália

sunitas

Síria

sunitas

74-78%

Sudão

sunitas

~71

Tunísia

sunitas

majoritários

0,3%

14-18,5%

92,2%

90,3%

~0%

71,3%

70%

99,5%

98%

não há dados

a

Porcentagem em relação à população total.

b

A baixa porcentagem de árabes é fruto da grande emigração de trabalhadores, principalmente do sul asiático. Entre

os cidadãos, contudo, a porcentagem é majoritária. c

Inclui berberes.

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2. A mulher no cenário internacional: o papel da ONU A história dos movimentos feministas é recente e remonta especialmente à segunda metade do século XX. Durante boa parte dessa luta pela igualdade de gênero, a Organização das Nações Unidas demonstrou um certo protagonismo. O primeiro tratado internacional a determinar a igualdade de direitos entre homens e mulheres foi a Carta das Nações Unidas, documento de fundação da instituição. A Carta declara, em seu Artigo 1.º, que: Os propósitos das Nações Unidas são: (...) 3. Conseguir uma cooperação internacional (...) para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.6

Assim como a Carta da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, já reconhecia a igualdade formal entre homens e mulheres. Esses documentos foram marcaram o início de um amplo debate para garantir o cumprimento dos direitos humanos pela mulher. Durante seus anos iniciais, a organização coletaria dados retratando a subordinação feminina ao redor do mundo, o que se mostrou “um primeiro passo vital no objetivo central da ONU de estabelecer padrões internacionais para apoiar os direitos da mulher”7. Contudo, no âmbito das Nações Unidas, uma discussão mais profunda sobre o empoderamento e os direitos da mulher só apareceria na década de 1970, num contexto histórico de ebulição de movimentos sociais feministas. Enquanto muitos países se mostravam receosos em atender à agenda feminista, a organização logo abraçou algumas exigências do movimento, promulgando 1975 como o Ano Internacional da Mulher e os dez anos seguintes como a Década das Nações Unidas para a Mulher. A Década da Mulher, assim como várias conferências durante e após ela, acabou por legitimar o movimento feminista no âmbito das relações internacionais. Representou, sobretudo, um incentivo aos países para garantir à mulher o pleno exercício de seus direitos, com igualdade de gênero. O lema que guiou a Década era “igualdade, desenvolvimento e paz”. Essas três palavras refletem noções fundamentais geradas na época, como a ideia de que o desenvolvimento econômico e social (e, consequentemente, a paz) depende da participação feminina em todas as esferas da sociedade. O lema mostra, também, três metas fundamentais: a igualdade de gênero, o desenvolvimento do papel feminino na sociedade e o combate à violência contra a mulher. Em 1979, foi proclamado um tratado fundamental na promoção internacional dos direitos da mulher. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Assembleia Geral naquele ano, reforçou o ideal de igualdade substantiva entre os sexos.

6 7

UNIC-Rio, 2001, p. 5, grifo nosso. UN, 1997, tradução nossa.

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Esse acordo tinha como objetivo “transportar” a igualdade de gênero das leis para o cotidiano, de forma que as mulheres poderiam desfrutar de real igualdade na ausência de discriminação. De início, uma série de objetivos foi estabelecida na Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher. Para implementá-la, foram designadas uma esfera burocrática e uma financeira. A esfera burocrática ficava nas mãos de um plano de ação, que procurava conciliar as metas com a realidade e a legislação dos diversos países. Já a esfera financeira cabia ao Fundo Voluntário da Década das Nações Unidas para a Mulher, órgão criado em 1976 pela Assembleia Geral da ONU. Como o nome revela, o fund-raising era feito através de doações voluntárias de países-membros da ONU. A pretensão era mobilizar recursos para “programas e planos nacionais para o avanço da mulher”, auxiliando “alguns países, particularmente os menos desenvolvidos”8, a implementar os objetivos da Conferência Mundial de 1975. Inicialmente, o fundo havia sido pensado apenas para o período da Década da Mulher. No entanto, como estava mostrando bons resultados, o Fundo Voluntário se tornou permanente, dando origem ao Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM, sigla do nome em francês). A noção de que o empoderamento feminino é fundamental para o desenvolvimento foi fundamental para a criação da agência. O novo órgão seria autônomo, mas teria coordenação direta com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), além de ser um dos trinta e dois programas que fazem parte do Grupo de Desenvolvimento das Nações Unidas. Em 2010, a Assembleia Geral aprovou, por unanimidade, a criação de uma Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres – a ONU Mulheres (ou UN Women, em inglês). Esse órgão tem por finalidade expressa “acelerar o progresso e o atendimento das demandas das mulheres e meninas em todo o mundo”9. “Baseada na visão de igualdade consagrada na Carta da ONU”, a entidade: (...) trabalha para a eliminação da discriminação contra mulheres e meninas; o empoderamento das mulheres; e a realização da igualdade entre mulheres e homens como parceiros e beneficiários do desenvolvimento, dos direitos humanos, da ação humanitária e da paz e segurança.10

Criado como parte da agenda de reforma das Nações Unidas, a ONU Mulheres se baseia no trabalho de várias agências do “sistema ONU” focadas na questão de gênero. O site da ONU Mulheres, em inglês, aponta os principais papéis desempenhados pela entidade:  Apoiar órgãos intergovernamentais (...) na sua formulação de políticas públicas, padrões globais e normas.  Auxiliar Estados-membros a implementar esses padrões, estando disposta a prover apoio técnico e financeiro adequado àqueles países que o requisitarem, e forjar parcerias efetivas com a sociedade civil. 8

UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY, 1976, p. 1, tradução nossa. ONU MULHERES, 2012. (Seção “ONU MULHERES”.) 10 UN WOMEN, 2011, tradução nossa. 9

10


 Responsabilizar o sistema da ONU por seus próprios compromissos acerca da igualdade de gênero, incluindo monitoramento regular dos progressos do sistema.11

A ONU Mulheres incorporou em sua burocracia quatro órgãos distintos, para haver entre eles uma melhor coordenação de princípios e práticas. As quatro agências unificadas no âmbito da entidade são a Divisão para a Promoção da Mulher (DAW), o Escritório do Assessor Especial para Questões de Gênero e a Promoção da Mulher (OSAGI), o Instituto Internacional de Pesquisa e Capacitação para a Promoção da Mulher (INSTRAW) e a UNIFEM. Atualmente, portanto, a UNIFEM atua em conjunto com outros órgãos no âmbito da ONU Mulheres, atuando como fundo, isto é, arrecadando e destinando recursos financeiros voluntariamente doados pelos países da organização. Para tal, são realizadas pesquisas e reuniões para avaliar a situação da mulher pelo mundo, auxiliando o órgão a definir o destino dos fundos coletados. O auxílio aos países não se faz apenas financeiramente, mas também na forma de apoio jurídico e prático, para assegurar a realização de políticas públicas voltadas para o empoderamento feminino. As resoluções aprovadas pela UNIFEM, apesar de terem caráter exclusivamente recomendatório, são decisórias. Isto é, o órgão não possui o poder de estabelecer sanções contra países ou impor alguma ação, como a doação de recursos financeiros – que é feita de forma voluntária. Uma resolução do Fundo pode estabelecer as diretrizes das suas próprias políticas – como o tratamento igualitário entre homens e mulheres –, mas não pode impô-las aos países. No entanto, a UNIFEM pode determinar, em caráter quase final, o envio de recursos a determinado país, o que pode ser impedido apenas por decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

3. A mulher, o Islã e a cultura árabe

3.1. Os direitos humanos à luz da fé islâmica Há, atualmente, um consenso global sobre a existência de direitos humanos. No entanto, há grande divergência acerca de quais são esses direitos. A visão hegemônica, da maioria dos países ocidentais, é a de que os direitos humanos são aqueles dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Entre as “perspectivas alternativas”, que fogem da Declaração, destaca-se a visão islâmica. Embora todos os países islâmicos tenham assinado a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)12, muitos discordam de seu conteúdo. Até mesmo em 1948, durante a redação da 11 12

Ibid., tradução nossa. A concordância com a Declaração é pré-requisito para qualquer país-membro das Nações Unidas.

11


DUDH, “alguns países islâmicos já manifestavam insatisfação com o documento”13. Reclamava-se que a visão islâmica – baseada nas doutrinas e normas morais do Corão – estaria sendo “ignorada” pelos países do Ocidente. Segundo muitos muçulmanos, portanto, a declaração estaria pautada nas condutas e princípios ocidentais e cristãos. A maior crítica ao documento foi em relação ao princípio da igualdade. Segundo a perspectiva muçulmana, todos são iguais perante a Deus, independentemente de credo, raça ou gênero. Porém, essa igualdade não existe no plano jurídico, pois Deus teria conferido direitos e deveres distintos a homens e mulheres. Outras críticas, ainda, envolvem a liberdade de religião e de matrimônio (direito ao divórcio). Apesar das críticas e discordâncias, a DUDH foi aprovada por unanimidade, contando, porém, com abstenções de alguns países islâmicos. Porém, muitos países islâmicos nem chegaram a participar da redação da Declaração, pois, à época, vários deles eram colônias. Isso indica que, de fato, a perspectiva dos muçulmanos não está necessariamente representada na DUDH. Assim, vários países perceberam a “necessidade de elaborar um documento mais próximo da sua visão de mundo”14.

Em 1979, a Revolução Islâmica no Irã reacendeu o debate sobre a validade da DUDH; na época, líderes religiosos xiitas criticaram o documento, visto como uma imposição da vontade ocidental, “judaico-cristã”, sobre os países islâmicos. Onze anos depois, em 1990, no Cairo, a Organização da Conferência Islâmica (OCI)15 proclamou a Declaração de Direitos Humanos Islâmicos. Essa declaração “alternativa” procura, justamente, adequar-se à “visão islâmica” – ou melhor, à visão dos países islâmicos – sobre os direitos humanos. Os países islâmicos acreditam nos direitos humanos como direitos naturais cedidos por Deus à humanidade, isto é, eles teriam origem divina e seriam invioláveis. Segundo a Declaração do Cairo: “Os direitos humanos no Islã são firmemente baseados na crença de que (...) somente Deus (...) é o Legislador e a Fonte de todos os direitos humanos”16. Assim, os direitos humanos islâmicos vêm da moral religiosa muçulmana, tendo grande influência do “Direito Islâmico”. Há que se entender que a separação entre as leis e as normas religiosas, fato na maior parte do mundo ocidental17, não ocorreu no mundo islâmico. O Direito Islâmico em geral é, portanto, largamente influenciado por aquilo que entendemos como sharia (“lei islâmica”). Na Declaração do Cairo de 1990, afirma-se que “não deve haver crime ou punição exceto se previsto na sharia”18.

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AVELLAR et al., 2011, p. 464. Ibid., p. 465. 15 A Organização da Conferência Islâmica é um órgão internacional que busca promover a solidariedade e a cooperação entre países islâmicos. 16 OCI, 2005, tradução nossa. 17 Ainda assim, mesmo no mundo ocidental, há influência religiosa na legislação, assim como o ordenamento jurídico (conjunto de normas, leis e princípios) ocidental tem origem na moralidade cristã. 18 OCI, 2005, tradução nossa. 14

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A legislação islâmica também se desenvolveu de forma diferente da ocidental. Enquanto o ordenamento jurídico ocidental tem influências da moral cristã e do Iluminismo e Liberalismo, a justiça do mundo islâmico guarda muitos pontos em comum com as leis do Império Islâmico. Porém, a influência da religião na justiça não é uma constante. Em países laicos, como a Turquia, a sharia é apenas um guia moral para cada muçulmano, não a base para o sistema jurídico; já em teocracias, como Irã e Arábia Saudita, a lei islâmica é imposta para todos os cidadãos, de qualquer religião. Entre os direitos humanos islâmicos e os ocidentais19, verifica-se uma série de diferenças. Enquanto, no Ocidente, sob influência do liberalismo, preza-se pelo direito do indivíduo acima do direito coletivo, nos países islâmicos a coletividade é o principal sujeito de direitos, e o indivíduo tem obrigações e deveres perante a sociedade. As principais divergências são em relação aos direitos das mulheres, à liberdade de religião, de expressão e de associação e ao direito penal (punições aceitáveis). As interpretações dos direitos humanos não são, contudo, homogêneas. Uma visão mais conservadora, como a saudita, tende a legitimar punições cruéis, restrições ao casamento e a desigualdade de direitos entre os sexos – isto é, uma noção da sharia como imutável e uma interpretação mais literal do Corão. Já uma perspectiva liberal, geralmente laica, tende a relativizar a sharia – limitando-a à vida individual de cada muçulmano – e os escritos do Corão – admitindo metáforas e parábolas. A visão liberal estaria, portanto, mais próxima da DUDH, enquanto a perspectiva conservadora seria a dominante em documentos como a Declaração do Cairo. Ressalte-se, porém, que, mesmo entre os conservadores, a sharia pode ser “relativizada” em algumas situações. Muitos países islâmicos, apesar de teoricamente terem suas leis baseadas na sharia, na prática a lei islâmica tradicional não é largamente aplicada; mesmo em teocracias, há certa aceitação dos direitos humanos ocidentais. A abordagem da Declaração de Direitos Humanos Islâmicos sobre a mulher também é diferente em relação à DUDH, o que se reflete no direito da mulher de países islâmicos. Os muçulmanos de orientação conservadora defendem que Deus teria concedido à mulher um papel de submissão ao homem, de forma que as mulheres não poderiam desfrutar dos mesmos direitos e deveres que os homens. Resquícios dessa visão conservadora podem ser encontrados na Declaração do Cairo. Em seu Artigo 1.º, afirma-se a igualdade de homens e mulheres em termos de dignidade, não de direitos: “Todos os homens são iguais em termos de dignidade humana básica (...), sem discriminação à base de raça, cor, linguagem, credo, sexo, religião”20. No Artigo 6.º, diz-se que a mulher “é igual ao homem em dignidade humana, e tem seus próprios direitos a desfrutar bem como deveres a cumprir”21. Várias passagens da declaração reforçam a visão tradicional, relacionada ao machismo, de que o homem é o provedor da família, e a família a base da sociedade. Afirma-se que o “marido é responsável pela manutenção e pelo bem-estar da família” e que “a família é a fundação da sociedade, e o 19

Consideramos aqui os direitos humanos islâmicos como expostos na Declaração do Cairo de 1990 e os direitos humanos ocidentais como constam na DUDH (1948). 20 OCI, 2005, tradução nossa. 21 Ibid., tradução nossa.

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casamento é a base da construção de uma família”22. Da mesma forma, em vários artigos relacionados a práticas tidas como “masculinas”, como o artigo sobre direitos trabalhistas, menciona-se apenas o pronome masculino, deixando explícito o sujeito dos direitos mencionados. Esses excertos da declaração deixam claras as linhas gerais do pensamento conservador islâmico acerca do direito da mulher. Nos termos da sharia tradicional, outras distinções de gênero são levantadas, como o direito à herança, em que se garante ao homem o dobro da quantia reservada à mulher. A poligamia também é um mecanismo de discriminação de gênero, por ser um direito reservado ao homem. O divórcio, tradicionalmente, pode ser feito unilateralmente pelo marido, caso ele “repudie” a esposa. Da mesma forma, há ainda o costume de que a mulher só pode viajar com a companhia ou sob a permissão do marido. Essa série de comportamentos, costumes e tradições já foram, contudo, banidos em muitas partes do mundo islâmico. A poligamia, por exemplo, só é permitida na Arábia Saudita, no Marrocos e nos Emirados Árabes Unidos. Além disso, os países de orientação mais liberal extinguiram a prática de discriminação na partilha da herança, de divórcio unilateral masculino e de restrição à liberdade de ir e vir da mulher. Também nos países ditos islâmicos liberais, há muitos casos de mulheres em cargos de poder, algo que muitas vezes é impensável nos conservadores. Vale lembrar que essas práticas devem-se a certas interpretações conservadoras da sharia, baseadas em certas passagens do Corão e da Suna. De fato, algumas passagens, se tiradas fora de contexto, podem justificar costumes discriminatórios. Contudo, pode-se usar outras passagens das escrituras para justificar tradições opostas, sem precisar relativizar o conteúdo dos livros sagrados.

3.2. A mulher na sociedade islâmica e o feminismo árabe É preciso também analisar o papel dado às mulheres no mundo muçulmano, baseando-se na configuração das sociedades árabes e islâmicas, fora da perspectiva dos direitos humanos. Visto que muitas dessas sociedades são baseadas, pelo menos teoricamente, na sharia, uma breve análise dos livros sagrados do islamismo – o Corão e a Suna – faz-se necessária. A quarta surata23 do Corão se chama An Nissá (“As mulheres”) e dá as premissas básicas do tratamento dispensado à mulher. Partindo de uma interpretação literal, as mulheres são definidas como seres de muitas virtudes, mas ainda seriam dependentes dos homens, que devem ser responsáveis por manter a casa e a família. O homem teria sido dotado de mais capacidade que a mulher, que deve manter a normalidade durante a ausência do homem: “Os homens são os protetores das mulheres, porque Deus dotou uns

22 23

Ibid., tradução nossa. Seção ou capítulo do Corão; corresponde aos capítulos da Bíblia.

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com mais força do que as outras”24. A mulher teria direito à herança, mas em parcela inferior (metade) à de seus irmãos. No geral, ela sempre é mostrada como agente passivo, sendo os aspectos da sua vida quase todos regrados por homens – pais, irmãos ou maridos. A 65ª surata trata do divórcio, determinando que a separação deve ser feita em termos equitativos, e todos os bens da esposa que datam de antes do casamento devem ser devolvidos. As divorciadas não podem ser expulsas da casa do casal – e devem continuar a ser sustentadas pelo ex-marido –, exceto em caso de adultério. Essa surata é usada também para justificar o divórcio unilateral, pois apenas o marido teria direito a pedir divórcio. Percebe-se, assim, que, mesmo com restrições, a mulher possui vários direitos. Inclusive, nem o Corão nem a Suna proíbe explicitamente a mulher de ter um trabalho se não houver nenhum homem que a sustente. Em suma, partindo de uma interpretação mais literal dos livros sagrados do Islã – e, portanto, da sharia –, vê-se que a mulher tem um papel mais passivo, se mostrando sempre dependente dos seus parentes masculinos. Esse é o papel que a mulher ocupa, teoricamente, em quase todos os países do mundo árabe. Vale ressaltar, porém, que, por se tratar de uma região heterogênea e com diferenças acentuadas na organização social e política, as mulheres experimentam graus mais altos ou baixos de liberdade em países diferentes. Nessas sociedades do mundo árabe, em maior ou menor grau conservadoras, floresceram movimentos de emancipação e empoderamento da mulher. As primeiras manifestações de um feminismo árabe surgiram durante o chamado Renascimento Árabe do século XIX. Foi um fenômeno diretamente relacionado ao desenvolvimento do Egito enquanto protetorado inglês, o que possibilitou a muitos egípcios e egípcias – geralmente da elite governante ou econômica – estudarem na Europa e conviverem com os ideais ocidentais. Assim, em sua origem, o feminismo árabe sofreu clara e forte influência dos costumes ocidentais, de modo que se procurava “adequar” as sociedades da época ao padrão europeu. Contudo, o movimento não é uma “importação” do similar ocidental, mas um movimento de mulheres árabes, produto de mudanças na sociedade árabe. Beneficiadas por uma educação europeia, surgiam, então, feministas que começavam a escrever sobre a condição da mulher naquelas sociedades e questionar o papel da mulher no contexto árabe. Entre essas feministas, destacam-se Zainab Fawwaz, War-da al-Yazigi e Aisha al-Taimuriya. Desde o século XIX, o feminismo tem sido difamado na sociedade árabe, por teoricamente ser uma doutrina “importada” das sociedades ocidentais, “que são, por sua vez, frequentemente apresentadas como socialmente doentes e sofrendo [dos males] do ‘estupro, pornografia e desintegração da

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SOURCESOURCESOURCE

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família’”25. Assim, o feminismo não era visto como “uma resposta política a esses fenômenos sociais, mas frequentemente como a sua causa”26. No século XX, o feminismo árabe estava intrinsecamente ligado aos movimentos de libertação nacional. As mulheres tiveram papel de destaque nesses movimentos nacionalistas na maioria dos países árabes. Entretanto, mesmo atuando ativamente nessas movimentações, a luta por direitos específicos para as mulheres teve que ser intensificada, pois, após a independência, os novos líderes – geralmente homens – procuravam a volta ao status quo ante27. Existiram, após o processo de independência do mundo árabe, alguns períodos de transformações interessantes, até mesmo da própria concepção da mulher e sua consciência. Na década de 1970, por exemplo, o aumento do contato com o continente europeu trouxe, para os países árabes, reflexões e ideais difundidos pelo feminismo europeu. Questionava-se, também, fenômenos relacionados à mulher na sociedade árabe, como os haréns e o uso do véu islâmico. O harém, como exemplo, é um espaço que, segundo os movimentos feministas, pressupõe a repressão feminina, pois as mulheres seriam excluídas do espaço público. Luta-se, nesse sentido, para fazer dos haréns espaços de reunião, discussão pública e modificação de questões cotidianas, fazendo deles espaços de mudança. Tantas nuances mostram que o feminismo no mundo árabe é bastante complexo e heterogêneo. Em países mais liberais, as lutas feministas assemelham-se muito às ocidentais, inclusive em objetivos. Nessas localidades, o feminismo concentra-se na busca por igualdade de gênero formal e substantiva, buscando combater o machismo na sociedade. Assim como no Ocidente, as reivindicações incluem o combate à representação da mulher como “objeto”, a emancipação feminina, a liberdade de escolha, o direito à expressão corporal e à participação política ativa. Na política, as feministas procuram uma participação ativa da mulher em todas as esferas de poder, buscando a representação das minorias. O uso do véu é outro ponto de exigência: defende-se a liberdade de escolha quanto ao uso do acessório, em vez da imposição por parte do marido. O véu torna-se, assim, instrumento político, já que ele adquire significado não religioso e chega à discussão pública. A soberania sobre o próprio corpo é outro ponto levantado. Enquanto o corpo da mulher é tradicionalmente encarado como propriedade dos pais e do marido, o movimento feminista luta para passar esse controle totalmente à mulher. Isso inclui a liberdade da mulher de se vestir da maneira que bem entender sem estar sujeita a assédio ou abuso sexual. O combate à “cultura do estupro” e a luta pelos direitos reprodutivos – como o direito ao aborto e ao uso de métodos contraceptivos – também

25

GOLLEY, 2004, p. 528, tradução nossa. Ibid., p. 529, tradução nossa. 27 Isto é, ao estado das coisas pré-libertação. Muitos líderes pretendiam uma volta à normalidade conservadora e machista, ignorando o esforço feminino e a liberdade de que as mulheres usufruíam durante o processo revolucionário. Muitas vezes, a liberdade feminina era reduzida para níveis menores que os anteriores à revolução. 26

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fazem parte dessas reivindicações. Perceba-se que um ponto largamente advogado é a liberdade de escolha (soberania e autonomia) por parte da mulher. Já em países de orientação mais conservadora, as lutas do feminismo remetem às reivindicações dos movimentos ocidentais do século XIX. Direitos hoje vistos como fundamentais no mundo ocidental ainda não são conferidos às mulheres nesses países (dirigir é vedado às mulheres na Arábia Saudita, por exemplo). Na política, reivindica-se o direito a votar e se candidatar e à representação feminina nas esferas de poder. Defende-se o direito à escolha quanto ao uso do véu, que é item feminino obrigatório em certos países, e a liberdade de ir e vir sem o consentimento ou a permissão do marido. Outra exigência básica é a liberdade de expressão, pois, em certos países, a mulher não tem direito à voz em pé de igualdade com o homem. A restrição à liberdade de expressão feminina obviamente dificulta o progresso dos movimentos feministas, pois protestos e manifestações do tipo são duramente reprimidas pelas forças policiais. Percebe-se, assim, que há ainda muitas dificuldades para o feminismo nos países islâmicos conservadores, que ainda mantém a desigualdade de gênero em níveis que foram, no Ocidente, “superados” ainda no século XIX.

3.3. Estudo de caso: o uso do véu islâmico O uso do véu islâmico – ou melhor, dos véus islâmicos, em suas diversas variações – é objeto de grande controvérsia entre os movimentos feministas, inclusive os árabes. Alguns defendem que o adereço é opressor, um gesto de submissão feminina, ou uma “prisão simbólica” da mulher islâmica, devendo ser proibido ou restrito. Outros, por outro lado, defendem o direito da escolha da mulher em relação ao uso do véu – isto é, a autonomia feminina sobre as roupas e acessórios que veste. As origens do véu remontam aos povos que atualmente constituem o mundo islâmico, como os turcos otomanos e os persas. O adereço não tem, portanto, origem propriamente islâmica, mas vem dos costumes e tradições de diversas etnias do Oriente Médio e mundo árabe. No entanto, o véu foi adotado pelas mulheres muçulmanas logo nos primórdios da religião, sendo levado a outras áreas do globo durante o expansionismo islâmico. Assim, o véu se tornou largamente ligado ao islamismo. O véu, segundo alguns teóricos, remonta ao conceito islâmico de reclusão feminina, fundamental à religião. O Corão inclusive aponta o hijab, um tipo de véu, como um item que “desceu dos Céus” para separar o espaço entre homens e mulheres. A tradição muçulmana aponta que as mulheres da família do profeta Maomé foram as primeiras a usar o acessório, de modo a separá-las das outras mulheres, especialmente das escravas, que eram vítimas de assédio e abuso sexual nas ruas.

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Assim, percebe-se que o véu procura, essencialmente, segregar as mulheres e, assim, protegêlas de estupros e abusos sexuais. Segundo Abu-Lughod28, como citado em Avellar et. al. (2011, p. 480): A burca, assim como outras formas de se cobrir, tem (...) marcado a separação simbólica entre as esferas masculina e feminina, como parte da associação (...) das mulheres com a família e o lar, e não com o espaço público onde estranhos se misturam. (...) a antropóloga Hannah Papanek (...) descreveu a burca como “reclusão portátil”. Ela notou que muitos viam-na como uma invenção liberalizante, pois permitia às mulheres sair de espaços de vivência segregada sem deixarem de observar os ditames morais básicos de separar e proteger as mulheres de homens estranhos.

O véu islâmico teria, portanto, uma intenção de “proteger” as mulheres de olhares e interesses de outros homens, ao mesmo tempo em que segrega eficientemente homens e mulheres. O adereço teria, inclusive, permitido às mulheres uma maior liberdade de ir e vir, pois o marido estaria “tranquilo”, sabendo que a sua esposa não está sendo alvo da cobiça alheia. Assim, embora fruto de noções machistas, como a de que o corpo da mulher “pertenceria” ao seu marido, o véu abriu um maior leque de possibilidades à mulher em sociedades conservadoras. Até hoje, em alguns países, proíbe-se à mulher sair de casa sem véu, exceto quando acompanhada pelo cônjuge. A defesa do véu como libertador e promotor da presença da mulher na esfera pública29 não é, contudo, uma perspectiva adotada pelos movimentos feministas. É consenso, entre o feminismo árabe, que a obrigatoriedade do véu deve ser extinta, favorecendo o direito de escolha e a soberania da mulher sobre seu próprio corpo. Há histórias, que remontam desde os princípios do Islã, de mulheres que, lutando contra o “sistema”, dispensaram o uso do véu por escolha própria, pois viam no acessório um retrato da opressão feminina. A resposta ao véu islâmico nas sociedades orientais também tem sido diversa. Enquanto algumas sociedades aceitam de forma tolerante o uso do adereço, outras encaram o acessório como uma “invasão cultural” das sociedades muçulmanas, vistas como “forasteiras” e alienígenas. Exemplo deste último caso é a França, cujo parlamento proibiu o uso

Figura 3. Imagem de protesto contra a proibição do véu integral na França, em que a manifestante veste um niqab com as cores da bandeira francesa.

do véu islâmico em lugares públicos, com a justificativa de que esse tipo de vestimenta vai contra a cultura francesa e a “laicidade do espaço público” e que as mulheres muçulmanas seriam obrigadas a vestir o véu.

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ABU-LUGHOD, Lila. Do muslim women need saving? Anthropological reflections on cultural relativism and its others. American Antropologist, New Series. S.l., v. 104, n. 3, 2002, p. 783-790. 29 Perceba que essa visão corrobora a noção de Hannah Arendt de que a mulher estaria restrita à esfera particular, sendo privada da esfera pública pelo machismo e pela segregação.

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O caso da proibição do véu na França é paradigmático porque, além de demonstrar a xenofobia de muitas sociedades europeias, provocou inúmeros protestos de grupos islâmicos. Esses protestos clamavam pela liberdade de escolha da mulher em usar o que lhe aprouver, incluindo, se for o caso, o véu islâmico. É importante ressaltar, contudo, que não existe um só tipo de véu islâmico. O véu mais comum é o hijab30, adereço tradicional e largamente usado no mundo árabe e islâmico. O hijab seria, na verdade, um lenço, cobrindo os cabelos e o pescoço, mas deixando a face à mostra; é um acessório tradicional, e símbolo de feminilidade e de adesão aos princípios do Islã. Outros tipos são o al-amira e o shayla, véus um pouco mais longos que o hijab, chegando até os seios. O khimar e o shador são ainda mais longos, indo até a cintura; são utilizados principalmente na sociedade iraniana. Os véus mais criticados pelos grupos feministas são os véus integrais – o niqab e a burca. Ambos são véus de corpo inteiro, deixando descobertos apenas os olhos. No caso da burca, há uma pequena “rede” sobre os olhos, a fim de “esconder” o corpo feminino ao máximo. Esses véus mais “conservadores”, por ocultar totalmente o corpo, são vistos como marcas da opressão machista no Islã. Houve várias tentativas de banimento dos véus integrais pela Europa, com sucesso na França. Tanto a burca quanto o niqab são comuns nas sociedades afegã e paquistanesa e entre muçulmanos wahabitas31, de modo que a burca é um símbolo da etnia pashtun, da região

Figura 4. Diferença entre os véus tradicionais islâmicos.

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Hijab, em árabe, significa justamente “véu”. É o tipo de véu mais comum nas sociedades árabes. O wahabismo é uma corrente “radical” do Islã sunita; é a vertente, por exemplo, de Osama bin Laden.

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4. Bibliografia consultada AVELLAR, Corina et al. A perspectiva islâmica no diálogo multilateral acerca dos Direitos Humanos. In: Simulação das Nações Unidas para Secundaristas: Promover direitos, valorizar culturas. Brasília: UnB, 2011. p. 460-488. BAHREIN. Bahraini Census 2010. 2010. 2010.gov.bh/results_en.php>. Acesso em: dd/mm/yyyy.

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Figura 3

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Figura 4

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