Artigo Ponto Final 29/08/2011

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segunda-feira · 29 de agosto de 2011

Ele tem dois amores Em terra de histórias de concubinas, o poliamor não regista membros oficiais, mas no Japão sim. O modelo de relacionamento que permite namoros com várias pessoas ao mesmo tempo é mais frequente no Ocidente. Em Portugal tem dado que falar. Imagine que tira a tarde de domingo para calmamente ler um livro no jardim. Não será de espantar que se cruze com casais de namorados a partilhar um gelado, a passear de mãos dadas ou em sussurros ao ouvido. Mas com certeza que levantaria os olhos das páginas do seu livro se, em vez de dois apaixonados, fossem três os que em público trocavam beijos e carícias. Quem diz três, diz quatro ou cinco. A cena descrita não é de um filme e tampouco cabe no domínio da impossibilidade, se bem que em Macau será mais rara que noutras partes do mundo. Se pensar que os intervenientes são excêntricos revivalistas dos anos 60, desengane-se: os três do jardim são namorad@s (com @ para que o género não seja especificado), e assumem entre eles uma relação de compromisso, não casual. Subscrevem um modelo de relacionamento chamado poliamor, com adeptos e grupos de apoio ou intervenção nos cinco continentes. Alguns filmes e livros de ficção já se debruçaram sobre o tema, assumindo a existência desta estrutura de relacionamento, sem, no entanto, nunca lhe dar um nome. “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci (2003), constitui um exemplo clássico. Mais recentemente, em 2008, Woody Allen filmou “Vicky Cristina Barcelona”, filme em que as personagens de Scarlett Johansson, Javier Bardem e Penélope Cruz se envolvem num tumultuoso relacionamento a três. O primeiro registo bibliográfico do termo é de 1953 e surge na Illustrated History of English Literature, Volume 1, por Alfred Charles Ward. A palavra é utilizada para descrever o rei Henrique VIII, ao qual a publicação chama de “determinado poliamorista”, apontando essa sua característica como motivo para o surgimento do protestantismo na Inglaterra. Em 2005 deu-se a primeira Conferência Internacional sobre Poliamor, em Hamburgo, Alemanha. O termo será, para muitos, novidade, mas o conceito há muito que convive entre nós, de forma mais ou menos discreta. Daniel Cardoso, investigador da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, e autor da tese de Mestrado “Amando vári@s - individualização, redes, ética e poliamor”, diz que esta forma de relacionamento é “principalmente uma coisa anglo-americana e que tem tido uma penetração bastante mais singela na Europa”. Quanto à Ásia, a presença parece ficar-se pelo Japão, pelo menos de acordo com os dados oficiais referentes aos grupos registados – o que não significa que por estes lados as relações amorosas múltiplas não existam. Se podem receber o nome de relações poliamorosas é outra história. Mas já lá vamos. Ao PONTO FINAL, Daniel Cardoso explicou o conceito: “O poliamor é a ideia de que é possível, válido e valioso manter relações íntimas, sexuais e/ou amorosas com mais do que uma pessoa ao mesmo tempo. É uma forma de não monogamia responsável e consensual, onde as regras são decididas por todas as pessoas envolvidas”. No caso de um trio, por exemplo, as três pessoas podem tanto relacionar-se entre si, como com apenas um membro do triângulo – a

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Em “Vicky Cristina Barcelona”, filme de Woody Allen, as personagens interpretadas por Scarlett Johansson, Javier Bardem e Penélope Cruz envolvem-se num relacionamento a três. regra, como explica Cardoso, é que não há regras, desde que se respeite o princípio da honestidade (tudo às claras!) e da paridade. Concubinas modernas Historicamente, a China nunca foi um país que prestasse homenagem à monogamia. As concubinas não eram segredo – eram, aliás, um sinal de estatuto social. Os imperadores chegavam a ter milhares e, apesar de ocuparem um lugar inferior ao da esposa, podiam ter filhos que concorressem ao trono. Émilie Tran, socióloga e docente da Universidade de São José, recorda que “na cultura da China Antiga as concubinas eram oficialmente aceites, bem como a poligamia”. “Homens e mulheres com relacionamentos extraconjugais não eram algo invulgar, e muitas vezes havia conhecimento dos parceiros”, aponta. De acordo com a especialista, esta realidade não é algo do passado. Concubinas já não haverá, mas não é difícil encontrar exemplos semelhantes nos tempos modernos. “Muitos empresários de Hong Kong, Taiwan ou Japão têm segundas casas e famílias (mulher e filhos) no Continente. Este tem sido um fenómeno muito relevante.” Tran faz referência ao magnata do jogo Stanley Ho. O octogenário não faz segredo das suas quatro “esposas” (em termos oficiais, só foi casado com a primeira, Clementina Leitão, mas sempre se referiu às restantes pela mesma designação). Não se tratam de amantes – partindo do pressuposto que uma amante é alguém que mantém inde-

vidamente um relacionamento amoroso com um homem casado. A família (ou as famílias) Ho é pródiga em desavenças, mas as dos últimos tempos tiveram como protagonistas os herdeiros do império SJM – e não foram propriamente motivadas por questões de afecto. O que é que isto tem de poliamor? Segundo Daniel Cardoso, muito pouco. “O poliamor fundamenta-se na paridade e responsabilidade de todas as pessoas envolvidas e opera muito mal em situações de óbvia desigualdade de poder.” Ou seja, relações em que o homem tenha claramente mais privilégios e direitos que as mulheres não podem ser vistas como poliamorosas. Cardoso não se cansa de referir que a igualdade é basilar para esta “identidade relacional”. Equívocos, aliás, há muitos. Confusões com os conceitos de poligamia, promiscuidade, falta de compromisso e relações abertas são as mais comuns, refere. Gerir o ciúme Não são apenas os mais conservadores que manifestam dúvidas sobre este modelo de relacionamento. Apesar de o conceito ser facilmente entendível, é na prática diária que residem as reservas. Se o ciúme é causador de conflitos nas relações a dois, com mais pessoas é expectável que os problemas se multipliquem. Daniel Cardoso admite que os poliamorosos também sentem ciúme, mas é na forma como lidam com ele que as coisas divergem. “O ciúme, como qualquer outra prática social complexa, é aprendido, criado e gerido

culturalmente. Uma coisa aprendida pode ser desaprendida. Há uma ética muito forte de responsabilização pessoal: não é a outra pessoa que me faz sentir ciúmes, sou eu que sinto ciúmes, o que não é de todo a mesma coisa. Assim, os ciúmes podem ser geridos, debatidos, pensados, pode lidar-se com eles.” Outra questão-base que causa interrogações é a forma como o poliamor coexiste com o próprio conceito de romantismo. É do entendimento comum, nas sociedades modernas, que as relações amorosas consistem em ligações íntimas e únicas, que elevam o ser amado a um patamar acima das outras pessoas. Um namorado/a ou marido/mulher é alguém que consideramos, regra geral, especial. O investigador português considera que esta “é uma visão algo estranha”, sendo que “existem vários tipos de amor e todos eles funcionam da mesma maneira e seguem as mesmas regras, excepto o amor romântico”. Cardoso explica: “Podemos ter vári@s amig@s, podemos ter vári@s irm@s, mas só podemos ter uma pessoa com quem temos uma ligação romântica – lá está a incoerência”. Cardoso considera que esta é uma visão “redutiva, capitalista, economicista”: “A ideia que o amor romântico é finito (muito embora se ouça à larga ‘amo-te mais que tudo’, ‘amo-te infinitamente’, etc.) e que amar várias pessoas é estar a dividir esse amor, ao invés de multiplicar”. O “ser especial”, continua, não deve ser equivalente a “estar acima”. “Se eu tenho


várias relações com várias pessoas, cada uma dessas pessoas é especial para mim,” remata. Muitas mãos dadas Daniel Cardoso licenciou-se em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e fez o seu mestrado sobre poliamor na mesma instituição. Mas foi aos 17 anos que teve, pela primeira vez, contacto com o conceito. “Li ‘Stranger in a Strange Land’, um livro do Robert Heinlein, e percebi que fazia sentido a não-monogamia. Alguns meses depois iniciei uma relação amorosa não-monogâmica, mas foi preciso esperar mais uns dois anos para tropeçar na palavra ‘polyamory’, que depois me levou ao ‘poliamor’ e, por conseguinte, ao grupo português.” Durante a licenciatura, tendo frequentado a vertente de Jornalismo, escreveu uma reportagem sobre o tema, que não chegou a ser publicada. Com o passar do tempo, o seu interesse sobre o tema foi crescendo e envolveu-se em actividades e debates do grupo online. O mestrado surgiu por achar que não existia informação suficiente sobre o assunto. Hoje Daniel Cardoso dá frequentemente a cara pelo grupo PolyPortugal, já concedeu várias entrevistas e participou em debates sobre a temática.

soas com comportamentos mais agressivos, etc.” Com apenas 24 anos, Cardoso, que já iniciou o seu Doutoramento em Ciências da Comunicação e dá aulas noutra instituição de ensino superior, tem uma vida ocupada. A gestão de tempo é, aliás, aquilo que aponta como sendo o maior desafio das relações poliamorosas. “Gerir as várias relações e a manutenção dos tempos para cada uma, gerir agendas, calendários, disponibilidades, empregos, é complicado. Pessoalmente o Google Calendar é a minha bóia de salvação”, adianta.

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Poliamor vs monogamia? Em termos legais, os poliamorosos dizem ter uma luta semelhante à dos homossexuais, por quererem combater todas as formas de discriminação. No entanto, o poliamor não é uma orientação sexual nem tema com impacto político – está longe de motivar protestos, sejam eles a favor ou contra. Quem opta por este tipo de relacionamento, considera que há, assim, uma menor protecção. “Existem alguns trabalhos académicos sobre como se poderia mudar a lei de forma a abarcar as relações poly,” explica Daniel Cardoso. A alternativa poderá ser mais simples: “Há um quase-consenso, quase-inter-

“Ir no meio da rua de mãos dadas a duas pessoas causa bastante torcer de pescoços – idem, como já me aconteceu, quando três pessoas se beijam simultaneamente,” admite Daniel Cardoso. O papel de porta-voz não-oficial do grupo deve-se à liberdade profissional e pessoal de que goza. “Felizmente sou uma daquelas pessoas que não tem muitas represálias familiares e profissionais que lhes podem dar cabo da vida e, por conseguinte, posso falar mais à vontade.” Assumir uma relação poliamorosa num país católico e conservador como Portugal pode relevar-se difícil. “Algumas pessoas adoptam a postura do ‘quando cresceres isso passa-te’; outras saem-se com o ‘isso faz sentido, mas nunca seria para mim’.” Na prática, a reacção dos outros pode ir da simples manifestação de espanto ao insulto. “Ir no meio da rua de mãos dadas com duas pessoas causa bastante torcer de pescoços – idem, como já me aconteceu, quando três pessoas se beijam simultaneamente”, confessa. “Também existem situações de discriminação: carros que param para mandar bocas foleiras, pes-

nacional: mandar o casamento (civil) para o caixote do lixo das ideias fora de prazo. Ou seja, remover o Estado da gestão das relações amorosas”. O académico faz questão de explicar que o poliamor não se afirma como um modelo superior à monogamia. As críticas feitas são relativas à “mononormatividade” e à ideia de que a monogamia é a única opção. Por outras palavras, Cardoso diz-se apenas contra a imposição de um modelo único de relacionamento. A rematar, o investigador deixa algumas questões: “Será que a monogamia é, para uma dada pessoa, a única possibilidade real, e tudo o resto é inferior? Que razões pessoais tem cada um de nós para ser monogâmico? E poliamoroso? Conseguir responder a estas perguntas é bastante mais importante do que preocuparmo-nos com a ‘saúde’ em torno dos modelos relacionais”. I.S.G.

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