Desassossego: poemas para desastres sentimentais

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DESASSOSSEGO: poemas para desastres sentimentais, de philippe wollney edições porta aberta setembro de 2017 para.portaaberta@gmail.com texto, edição, projeto gráfico e diagramação: philippe wollney impressão e montagem: ateliê porta aberta contato do autor: philippewollney@yahoo.com.br www.facebook.com/Philippewollney @philippe.wollney este livro é composto por folhas agê 80g no miolo, e na capa papel color plus 120g. faz-se dizer que utilizamos as fontes calisto MT e californian FB. wollney, philippe desassossego: poemas para desastres sentimentais / philippe wollney, 2017. 48p 1. poesia brasileira

i. título


rota de colisão

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não há abrigo 23

eu sou pura mágoa 37

não há nada aqui


este livro é uma nova edição, ampliada, das publicações “não há abrigo” e “eu sou pura mágoa”, ambos de 2016. com uma nova parte intitulada de “não há nada aqui”, é uma tentativa de formar, em um único volume, um projeto antes intitulado de “trilogia do desassossego”, e pelo que o próprio nome já diz, não dá mole, e não senta o cu em nenhuma satisfação. podendo, talvez, futuramente se tornar uma coleção de poemas desafortunados, onde o título poderia muito bem ser “bad vibes” ou “quem não reclama é porque morreu” ou “pior que isso sempre fica” ou “não é nada disso”.


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não há abrigo

“e fazer um álbum de fotografias pra depois queimar pra depois lembrar” jards macalé


i o silêncio grita se a solidão constrange o abandono grifa nossas peles distantes não cobro justiça pelas esperas errantes nunca te pedi pra trocar o incerto pelo turvo e torto mas vale ter algo à mão : palavra fuzil? verso canhão? eis o refrão do que este momento mentiroso é como diz a canção “nada é divino nada, nada é maravilhoso”

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ii do passado o pó do tempo a tua carta ao fogo que não me incendeia os lábios, não mais e tudo que valeu apena reter vazou e borrou as cinzas da face no vento dos dias

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iii a verdade é que a distância nos assola esses dois corações querendo foda entender não é preciso o tesão é essa promessa no silêncio nos quilômetros havia bastante areia em nossos olhos enferrujados o nosso desejo fremindo rosnando sobre colchões trepando sob aquíferos enquanto o dia pousa no porto e partem as horas e racham os nós seguimos desavisados

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iv um dia pintei os meus versos com as cores vivas de teu nome mas as imagens desbotam : isso ĂŠ certo! porque a mesma luz que os iluminam os consomem

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v tenho no corpo a febre da revolta ando pelas ruas habilitando os gestos as trincheiras dos afetos os pés não voam deveras estão afeitos às andanças à lama ao sujo ao pó

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vi procurei na borra do café algo que te revelasse em meu último gole talvez um certo contorno da orelha : a silhueta que adoro de teu nariz mas nada vi só o naufrágio do pó um amargor nas papilas : recomeço

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vii enquanto bebia café disse que lembrava dos meus olhos mar-morto em chamas coado numa trama de manhãs quentes sem açúcar de um tempo em que era numa xícara que se lavava a roupa suja

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viii perdi a fé em todas as coisas enquanto o café me convertia em trago insone na madrugada permaneço de olhos acesos minha alma sóbria e esquiva carrega dilúvios e dívidas os corpos se aquecem e o copo esfria ao lado dos cactos sobre a mesinha do quarto suspiramos nossas quedas

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ix envenena prenhe de lácio o lábio ébrio em cio tuas sementes molhadas em meu palato a cumeeira dos alagados no cume fraquejante dos colchões ladram os lençóis no quintal da gente

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x sempre me procuras aos sábados após o almoço entre um pigarro e outro meu nome até parece brio na estante dos livros fazes aquele rito de passar um café e de por o disco do belchior : porque o meu delírio também é sobre coisas reais sobre alucinações totais, e nos teus lábios me debulho sorridente sendo saliva e cafeína sorvida no amarelo dos teus dentes

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xi o meu coração é caco de vidro puro : reluz ao sol face pontiaguda de triste corte lâmina de mágoa é vil o seu jeito de arma branca ódio de escamas inimigo de nomes coleciona idades juras e revanches em noite calada grava tatuagens e arrependimentos canta os lamentos duma companhia envenenada de si própria e o azar de acreditarmos precocemente em náufragios 19


xii essa dor que me transborda me afoga e não se esvai que não seca ; não me deixa não sangra e não sai é uma dor maior que eu que não me cabe mais uma dor que já não dá pra dizer tanto fez quanto tanto faz uma dor que me consome que me faz ter fome do teu nome uma dor enraizada incrustrada que precisa ser escavada extirpada essa dor fóssil vivo em meu ofício arqueologia da mágoa

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xiii fiz morada na espera e dei início a semeadura de agonia e silêncio não caminharia em direção alguma por vir à mim : o vento sob um sol de tédio os lábios são veredas que a angústia se aninha os olhos rijos distantes apontam o vazio que se avizinha e no peito lavrado brotos buscam a direção do suicídio e chacais gruem aos ouvidos não importa a morada não há abrigo 21


xiv sei que não fiz o combinado : você também não promessas, juras, os diálogos, : tempo em vão apenas sobraram as palavras escritas : amuleto ou maldição? o brilho eterno de coisas partidas : ficarão

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eu sou pura mágoa

“a felicidade é o sorriso da mágoa” ivan lins


i

mais uma vez trocar a fechadura : um cadeado grosso : novo : ansiosa para que não volte : para que não bata na porta : não chame : que o cão o estranhe : que esqueça o seu cheiro : não traga malas : cuias : queimei camisas : lugar algum : eu fiquei : a casa é o meu corpo : que se perca por outras estadas : que se esfacele em outras tramelas : não volte para buscar os cactos : fui eu quem troquei a terras dos vasos : não volte : não : esqueça o meu nome : a sua dicção : não choro : nem por cebolas : e quando toca o jards : não : não é nada disso : nada valeu : não :

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ii fiz um despacho usando o teu nome nas encruzas do meu peito : linfócitos em lutas constantes para expurgar : com a fé fria : como quem acredita em fuzis : o teu poema que inflamou os olhos e irritou os lábios : banho de sal grosso : arruda : pimenta : queimar sete poemas do manoel de barros : hoje : exú : sem febre :

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iii fiz uma faxina geral em meu peito : tirei o pó dos desejos : joguei fora as paixões mofadas : passei um pano úmido nas manchas dos cristalinos : e como entulhamos cacarecos de desassossegos : palavras não ditas : tapas ao vento : os sobejos do ciúme : os vernizes caídos de tantas vezes as portas batidas : os choros no banheiro : os insultos nos pratos : o dedo em riste e os chutes nas costelas : os guardanapos com versos guardados : uma foto 3x4 em um quarto 2x2 : as contas não pagas e os cobradores sentimentais : mas o que se fazer quando são os agiotas que leem seus livros (?) : toda poesia lírica sob suspeita :

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iv passar vassoura nas lembranças : livrar-se das traças do tédio : as teias de aranha da melancolia : a fuligem dos acordos : a fumaça intragável das promessas : sacolas cheias de lixos saudosos : e quantas notas de falecimento foram guardadas entre os livros : mas esse ano eu não morro : hoje : sacos de entulho aguardam em frente ao meu portão : a passagem do carro do lixo da convivência – esse devorador de nós :

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v um canceriano doente que se enforca com os próprios versos : meu sexo só cheirava a álcool : a sudorese das paredes saciava minha sede nos dias nublados : domestiquei os demônios : os fiz encoleirados onde passaram a vigiar o meu quintal de gesso : comecei a recortar das revistas as promoções de viagens que nunca faria : me livrei do violão que sempre repousava sobre uma pilha de atestados médicos para uma vida à dois : os livros de poesia beijaram as brasas da fogueira de são joão : resolvi voltar a contar as estrelas no céu de minha boca : e na magreza do tédio se criavam os corvos que serviriam o jantar : e foi por isso que na sexta casa do sexto dia da idade anunciada : não aconteceu o previsível : não aconteceu o predestinado : e a sétima casa apareceu para lembrar todo um quarteirão de horóscopo vazio :

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vi as rugas foram deixando seus estados de potência e se tornaram uma torrente de semanas mal cuidadas e dentes não escovados : trago a tatuagem do rei lagarto no pescoço : e foi por isso que sonhei com shiva sambando com seu trishula sobre a cama de casal : amaldiçoando as mãos frouxas e os porta-retratos vazios : me tornei um espectro tão distante que meu rosto se assemelhou aos fantasmas do futuro : escavei a minha derme e enterrei lá no tutano o silêncio : e por uma geração inteira só se houve genes recessivos :

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vii muito foi preciso para diluir o nome que há dias não me deixava dormir : e pouco me importa o massacre de pinheirinho : as revoltas árabes : o corte do décimo terceiro ou aumento das passagens : minha dor não se importa com ninguém : e vão tomar no cu todos esses arrombados de caras pintadas : rebeldes : anarquistas : militares : sogra : tias : companheiros de fraqueza : eu só quero explodir e jogar minhas vísceras magras naquele outdoor com propaganda de plano de saúde : eu me perdoou por não conseguir arrancar das tripas o anel que iria te dar :

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viii errei quando quis misturar sexo e trabalho e levar para minha cama o ódio da rotina : onde a relação se sustentava em pau duro e buceta molhada : ofícios e cartas de anuência de projetos de vida falidos onde falsificávamos a assinatura de casal feliz : e reconheço a minha aptidão para burocrata que resolve tudo em notas de reclamações : poemas de protesto : escrituras de cagão que treme-na-base : e agora a sete-palmos de texto sou defunto e coveiro : comendo pela raiz as flores de aniversário de noivado : jogo a primeira e última pá de sal em nosso canteiro : esmago todos os gastrópodes do quintal : e só assim : falido : fodido : foi que consegui diluir o teu nome que há muito não me deixava dormir

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ix sozinho faço merda pra caralho : é que depois desses anos : há um vão até hoje inabitável : bebo muito e sempre descubro que ressaca : é o nosso elo perdido : as esporas da rotina nos cegam : briga de cachorro brabo : cães que ladram e se esfolam : gatos quebrando o telhado : rinha de galo e roupa suja : portas batidas : a cama como uma urna funerária : admito : que faço merda pra caralho : e percebo que nunca terminaremos a lista : de filmes italianos numa cama aos domingos : após às 22h : reconheço : caralho : faço merda : quando parti : perdi : o verbo em flor : e todos sabem o que acontece : quando se abandona um jardim :

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x tantas palavras gastas na inútil busca do teu encontro sabe-se que de boas intenções as bibliotecas mancam e de tantos afetos o inferno está cheio o meu coração vive abarrotado de patuás e agouros o certo é que eu deveria ter desistido desse poema tomar coragem ou gin e te telefonar fazer tapiocas ao som do macalé mas dessas coisas extraviadas não mais acreditamos

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xi no coração apaixonado do poeta vencido um autor sem soluções a poesia não é luz desabamento implodir o prédio que flutua literatura é pagar vacilo : o dia de otário escrever é provar que a vida não deu certo falsear sabedorias : levar um coice infecção na medida das coisas porque os homens também são feitos de unhas roídas e diarreias amputações e brotoejas nariz da esfinge e línguas impronunciáveis mas principalmente os homens são feitos de tempo perdido porque no coração apaixonado do poeta vencido escrever é a maior prova de que a vida não deu certo

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xii o silêncio tem um gosto de saliva contida : ninho de saúvas e suas facas nos lábios : papilas de abismo língua do tânatos é silencioso quem mira com o olhar seco a paisagem arruinada : um auto retrato de quem numa despedida a palo seco engole cravos ficou plantado colhendo poemas regando o ar com cafés remontando os cacos da face retirando os cascos dos ossos e sabendo que o silêncio se desfaz - com a violência dos olhos

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não há nada aqui

“a verdade não rima” fátima guedes


i não há nada aqui não há nada que seja de todo verdade a verdade não será apregoada facilmente nem em verso nem em prosa coração é uma palavra que quanto mais se polir mas ela ladra e não há o que se fazer se também é vendida em açougues ou mictórios achada após muito pó em alfarrábios ou nas bancas de revistas ou fazendo perícias no silêncio ou na solidão o certo é que também não há nada aqui que possa dizer sobre um poema ou sobre o meu coração

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ii a distância mais segura de estar de um coração é a mesma quando, em uma troca de tiros é preciso repor a munição : mas é tudo muito relativo e variável numa emboscada é imprescindível ter corpo fechado nem todos os dias saímos de colete blindado ou disfarçando uma escopeta ou bereta no miocárdio

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iii o certo é que a distância mais segura de se estar de um coração vai depender muito do teor inflamável dos encontros às vezes : corações são álcool puro certos outros : apenas têm dias ruins e saem perfumados com querosene mas o certo é que a melhor distância de se estar de um coração é aquela : em que temos a certeza de que não vamos errar o tiro

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iv nada perdi nem tão pouco ganhei que depois de tantos anos nós : nove fora : nada na aritmética do desejo nem sempre 2 é igual a 1+1 quando divide-se certas histórias às vezes a trégua nunca dá uma conta fechada para um célebre matemático árabe o amor é uma razão do vazio sobre o infinito a única contagem certa é a dos dias que faltam para se escapar das prisões

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v o meu coração é uma bússola quebrada à deriva nos mares do tempo acumulo silêncios e cicatrizes carrego a noite e o dia costurados em minhas pálpebras há um sol : ainda pequenino que cresce perto de mim : é bem verdade me fez soltar os urubús engaiolados e todos eles têm as penas da paixão o meu coração essa bússola quebrada força-me a guiar olhando as estrelas

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vi quando percebi do naufrágio o vazio tantas pontes : postes agências de publicidade encontros de conciliação de casais espíritos obsessores : internações hospitalares sentenças judiciais : fracassos financeiros todos os desertos possíveis nos afogamentos de si mesmo sozinho : morrer na praia exaustão nos olhos câimbras no afeto o mar é muito triste quando não se tem vontade e de tanto o fitar decifrei a língua das ondas o segredo para quem quer que ouça ~não~~~ ~~~~há~~~ ~~~~~~~nada~~~ ~~~~~~~~~~~~aqui~~~ 44


vii forte nunca fui mas tenho a dureza das coisas frias as geleiras quebram isso é certo porém não ficam a ver navios os enfrentam para todos os desabamentos foder o seu véu de crio nas carnaduras das quilhas fazer o mergulho possível nos encontros das ilhas

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viii o silêncio agride e já desisti da fazer planos dentro de minha cabeça os enganos das fulanas dos fuleiros dos cicranos queria te contar que me tornei amigo de um coveiro - leitor de cipriano ele me conta que o segredo é usar os versos certos e nunca imaginar que palavras substituam as pás porque poesia é cova rasa e sempre há de ser tampar o caixão antes que alguém possa se levantar

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ix cova rasa expondo os fantasmas do peito da gente saudade : músculo : farpa espera : saliva : palavra soluço : urro : endereço pernas entre pernas pelos entre pelos jogar uma pá de versos sobre nós temperar com sal e sol esse canto o poema e seus vermes devorando e erguendo restos mortais de tinta desejos enganos

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philippe wollney é poeta, produtor cultural e pai de nina. publicou: ruinosas ruminâncias (2017); caosnavial ou o sabor sujo (2016); mas esse ano eu não morro (2016); poemas de um eu cretino (2012); entre outros.


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