Revista Pensar Verde #39

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Capa: A democracia venceu, mas “é preciso estar atento e forte”

Artigos: Os desafios do próximo governo nas áreas econômica, do meio ambiente e social

Entrevista: Por dentro da guerrilha da máquina populista digital, com a antropóloga Letícia Cesarino (com Agência Pública)

REVISTA DE DEBATES DA FUNDAÇÃO VERDE HERBERT DANIEL Nº 39 - Ano 11 - Set/Out/Nov - 2022
Nesta edição : André Fraga, Clodoaldo Magalhães, Jadyel da Jupi, Letícia Cesarino, Luciano Amaral, Maria Aparecida de Aquino, Odilon Caldeira Neto, Pedro Cavalcante, Pedro Leitão, Reginaldo Veras, Roberto Fully, Vânia Almeida É hora de reconstruir o país e de enfrentar o nítido fantasma da extrema-direita
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Sim, o Brasil vive uma vitória da democracia, uma vitória muito esperada e difícil, mas é necessário manter a atenção. Não é permitido ao povo brasileiro e ao próximo governo relaxar, porque a extrema-direita está não apenas no atual governo, mas também nas ruas, na internet, nas redes sociais. Às vezes, está explícita e, em outras, oculta, como um veneno.

Nesta edição, a revista Pensar Verde celebra a vitória da chapa Lula -Alckmin, da Federação Brasil da Esperança, da qual o Partido Verde faz parte, mas também alerta para os desafios à frente, para o novo governo e para o Brasil. O conhecimento é a maior arma que o ser humano pode ter. Em nossa matéria de capa, “A democracia venceu, mas ‘é preciso estar atento e forte’”, a jornalista Caroline Cardoso fala sobre a extrema-direita no Brasil, traz a definição do que é o fascismo e apresenta fatos e falas do atual governo que o conectam tanto ao fascismo quanto ao nazismo.

Nos artigos, Pedro Leitão e Roberto Fully construíram juntos o texto “Quadro econômico: desafios do novo governo para 2023”, enquanto Vânia Almeida e André Fraga escreveram “Lula 3: políticas públicas de meio ambiente e seus desafios”. “Desafios do desenvolvimento brasileiro: pobreza e desigualdades”, publicado anteriormente no jornal O Estado de São Paulo, é o artigo de Pedro Cavalcante.

As fake News e o populismo nas redes sociais são outro assunto desta edição. Quem fala sobre o tema é a antropóloga Letícia Cesarino, que pu blicou recentemente o livro O Mundo do Avesso: Política e Verdade na Era Digital. A entrevista “Por dentro da guerrilha da máquina populista digital” é uma parceria com a Agência Pública (https://apublica.org/).

O Verdes em Ação apresenta os novos deputados da bancada do PV na Câmara Federal. Além dos deputados João Carlos Bacelar (PV-BA) e Aliel Machado (PV-PR), reeleitos, passaram a compor a nova legislatura os de putados Clodoaldo Magalhães (PV-PE), Jadyel da Jupi (PV-PI), Luciano Amaral (PV-AL) e Reginaldo Veras (PV-DF).

A coluna Coletiva Seletiva traz uma série de livros, filmes e onde encontrar informações sobre fake news, nazismo e fascismo. E a Solo Fértil traz uma crônica de Lima Barreto, um dos grandes escritores negros do Brasil. Pu blicado em 1920, o texto poderia ter sido escrito neste novembro de 1922.

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Boa leitura! Conselho Editorial editorial

você sabia?

O termo “o ovo da serpente” tão usado para falar da gestação do mal ganhou o mundo a partir do filme de Ingmar Bergman O ovo da serpente, de outubro de 1977 (Suécia), ambientado na Berlim de 1923, durante a ascensão nazista na Alemanha. Seu título foi retirado de uma fala do personagem Brutus na tragédia Júlio César (1599), de William Shakespeare. Ao aderir à conspiração contra o ditador Júlio César, Brutus exorta: “E, portanto, pensemos nele como se pensa sobre um ovo de serpente (que, uma vez saída da casca, se tornaria tão peçonhenta quanto as outras de sua espécie). A solução é matá-lo na casca”.

Fontes: https://revistacontemporartes.com.br/ e SHAKESPEARE, William. Júlio César. Trad. de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2003.

expediente

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Pensar Verde

sumário

A democracia venceu, mas “é preciso estar atento e forte”

Quadro econômico: desafios do novo governo para 2023 Pedro Leitão e Roberto Fully

Lula 3: políticas públicas de meio ambiente e seus desafios Vânia Almeida e André Fraga

Desafios do desenvolvimento brasileiro: pobreza e desigualdades Pedro Cavalcante entrevista verdes em ação

Letícia Cesarino Quem são os verdes eleitos para a Câmara Federal em 2022

solo fértil coleta seletiva

País rico - Lima Barreto

Informação, o antídoto contra a extrema -direita e as fake news

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A democracia venceu, mas “é preciso atento

No dia 30 de outubro de 2022, depois de quatro anos de um governo de extrema-direita, o povo escolheu a democracia. Lula foi eleito presidente com mais de 60 milhões de votos, uma vitória apertada, mas digna de comemoração. A maioria dos eleitores brasileiros escolheu o projeto democrático da Federação Brasil da Esperança, encabeçado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) e pelo ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSB), que estarão à frente do país entre 2023 e 2026.

Ante os desafios enfrentados nos últimos tempos e seus 77 anos de idade, essa vitória foi uma conquista e tanto para Lula, que volta para seu terceiro mandato como presidente do Brasil. Constituiu, também, uma vitória para as esquerdas na América Latina, onde a extrema-direita vem crescendo, e foi uma grande der rota para Jair Messias Bolsonaro, que tinha muito mais elementos favoráveis do que Lula para uma vitória – a

máquina pública, o orçamento secreto, o gabinete do ódio, o antipetismo, o antilulismo.

Mas é preciso estar alerta! Lula e Alckmin reuni ram vários setores da sociedade, e até adversários ideológico-partidários, em uma efetiva e ampla frente democrática inédita no país. O objetivo foi fortalecer a disputa, bastante acirrada, pela democracia. O re sultado mostra um país dividido: Bolsonaro obteve 49,10% dos votos válidos contra 50,90% de Lula.

A historiadora e professora da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida de Aquino atribui a vitória a uma avaliação positiva dos dois mandatos de Lula pela população, com mais de 80% de aprova ção. Ela ressalta que, somadas a isso, a prisão de Lula e a posterior anulação das condenações pelo Supre mo Tribunal Federal (STF) levaram muitos eleitores a compreender como injustiça o que o ex-presidente sofreu para ser afastado da disputa eleitoral em 2018.

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democracia mas

preciso estar atento e forte”

Relembre o caso

Lula foi condenado a oito anos e dez meses por corrupção passiva e lavagem de dinhei ro no caso da compra e reforma de um triplex no Guarujá, litoral paulista. Preso em 7 de abril de 2018, ficou detido na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba até 8 de novembro de 2019, totalizando 580 dias.

Em fevereiro de 2019, ele foi condenado a 12 anos e 11 meses de prisão, também por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Dessa vez, a ação envolvia reformas na cozi nha de um sítio em Atibaia, São Paulo.

Em abril de 2021, a maioria dos ministros do STF votou pela anulação das duas conde nações contra o ex-presidente. A anulação foi baseada no entendimento da Suprema Corte de que os casos tramitaram fora da jurisdição correta e de que o então juiz das ações, Sérgio Moro, foi parcial, ferindo o direito do acusado a um julgamento justo.

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Por Caroline Cardoso

Para o historiador, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e um dos coordenadores do Observatório da Extrema Direita (OED) no Brasil Odilon Caldeira Neto , embora tenha feito muitas manobras para vencer o pleito de 2022, Bolsonaro foi derrotado pela liderança popular e carismática de Lula e pela convergência política por ele liderada. Além disso, complementa Odilon, a gestão desastrosa da pandemia de covid-19 e a aposta em uma postura pouco democrática convergiram para a fragilização política e a consequente derrota de Bolsonaro nas urnas.

Democracia em risco

De acordo com Odilon, o bolsonarismo ganhou fô lego nos últimos quatro anos porque era viável do ponto de vista eleitoral. “Várias parcelas e facetas da extrema-direita convergem, em certa medida,

no bolsonarismo enquanto ele manifesta uma via bilidade política eleitoral.”

Então, a vitória de Lula trouxe esperança. Finalmente, o projeto político de extrema-direita de Bolsonaro foi der rotado. E agora? A democracia não corre mais risco? Agora é preciso encarar os muitos desafios para o país voltar a crescer e prosperar; para a população ser bene ficiada e respeitada em seus direitos, respirar mais ali viada, conviver em paz e sonhar com um futuro melhor e democrático.

No entanto, pondera Odilon, é muito importante en tender que a extrema-direita representa uma cons tante ameaça à democracia. Ele explica que “há um movimento transnacional de articulação de grupos ra dicais e extremistas de direita”. E, nessa seara, pontua o professor, Jair Bolsonaro é considerado uma lideran ça, com um projeto político que congrega diversos se tores da direita radical e da extrema-direita, inclusive fascistas.

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Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva fala ao povo brasileiro após vitória nas urnas Por Rovena Rosa/Agência Brasil

“Esse processo de aproximação de tendências fascistas, como no caso de grupos integralistas ou de tendências integralistas do bolsonarismo, demonstra um pouco essa dimensão do bolsonarismo como uma expressão da diversidade da extrema-direita e da direita radical brasileira.”

Odilon Caldeira Neto

Extrema-direita e fascismo

De acordo com Odilon, a extrema-direita é “uma ex pressão política da contemporaneidade” para a qual convergem diversas organizações e movimentos semelhantes em aspectos como ultranacionalismo e apego às tradições, ao militarismo e à autoridade. Esses movimentos e organizações “promovem uma visão de política como uma via antidemocrática e, eventualmente, se manifestam inclusive como revolu cionárias, sobretudo no caso do fascismo”.

“A extrema-direita é fundamentalmente uma premissa antidemocrática.”

Odilon Caldeira Neto

“O fascismo, ou os fascismos”, segundo o historiador, é a ideologia política surgida na primeira metade do sécu lo 20 na Europa. Foi fundamentada nas ideias de “regi me autoritário, estado centralizador, processos políticos militarizados, massificação da política e mobilização de setores da sociedade” com o objetivo de promover uma profunda “regeneração das nacionalidades”.

“O fascismo é uma expressão da extrema-direita.”

Odilon Caldeira Neto

O professor ensina que o fascismo é apenas uma entre as várias expressões políticas organizadas da extrema-direita, talvez a mais proeminente. Em certa medida, ele enfatiza, há muitas características seme lhantes entre experiências fascistas do século 20 e a extrema-direita como um todo.

O antropólogo Luiz Eduardo Soares afirma, no primeiro capítulo do seu livro Dentro da noite fe roz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020), que “o ódio é fascista, todo ódio coletivamente destilado é fascista, e o fascismo é, em suma, o ódio con vertido em afeto dominante dentro de um projeto de poder, plasmando práticas, visões de mundo e a definição do outro como inimigo a ser neutrali zado ou eliminado”.

“O ódio é fascista, todo ódio coletivamente destilado é fascista.”

Facetas fascistas do bolsonarismo

O ódio sempre esteve presente em atos e discur sos de Jair Bolsonaro, sendo uma de suas princi pais marcas. Então, Bolsonaro é fascista? O que significa o termo fascismo, cada vez mais empre gado para se referir aos bolsonaristas? Para Maria Aparecida de Aquino, embora o governo Bolsonaro seja autoritário, “é um erro conceitual e histórico” chamá-lo de fascista.

“O conceito de fascismo está muito relacionado e configurado exclusivamente para um determinado período histórico que vai dos anos 1920, aproximadamente, até meados dos anos 1940, com o final da Segunda Guerra Mundial.”

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Odilon Caldeira Neto Arquivo pessoal

Por sua vez, Odilon Caldeira Neto destaca o reco nhecimento de Jair Bolsonaro como uma liderança internacional da direita radical e extremista, mas pondera que, “embora existam características fas cistas no Bolsonaro e no bolsonarismo e, mais do que isso, a existência de organizações fascistas que convergem para esse grande universo bolsonarista, o bolsonarismo é mais plural e mais complexo do que exclusivamente fascista”.

O jornalista Luiz Carlos Azenha elencou em seu Twitter2 , no início de novembro de 2022, uma série de ações divulgadas pela imprensa que comprovam os flertes de Bolsonaro e do bolsonarismo com o nazi fascismo. Esse flerte é muito explícito em alguns mo mentos e mais sutil em outros.

Alguns episódios que sutilmente demonstram uma conexão entre bolsonarismo e nazismo são as famo sas motociatas semanais de Bolsonaro, que remetem a um costume de Benito Mussolini, líder do fascismo italiano; o brinde com copo de leite em uma live, ati tude comum entre os supremacistas brancos; o gesto white power (poder branco), que é como suprema cistas brancos sutilmente se identificam em público, feito pelo assessor especial da Presidência, Felipe Martins, em uma sessão em pleno Senado em 2021.

Saiba identificar o gesto white power

Com três dedos esticados, forma-se o w de white; e o polegar junto com o in dicador formam o p de power.

“O bolsonarismo é um espaço de congruência de diversas tendências. De monarquistas, tradicionalistas católicos, fascistas, intervencionistas, militares.”

Entretanto, desde que Bolsonaro assumiu a Presidên cia da República, o extremismo disseminou-se ve lozmente em todo o país e passou a ser sentido com mais intensidade por mais pessoas no cotidiano. Por um lado, isso tem conquistado adeptos e inflamado apoiadores; por outro, tem deixado cada vez mais níti das as facetas fascistas do bolsonarismo.

Uma reportagem de Leandro Demori para o The Intercept Brasil1, publicada em julho de 2021, mostra uma descoberta da antropóloga Adriana Dias, uma das maiores autoridades em neonazismo no Brasil: a base de apoio bolsonarista é neonazista e está com ele há quase 20 anos. A pesquisadora encontrou, em três sites neonazistas diferentes, um banner com uma foto de Bolsonaro, hiperlinkada ao site dele na época, e um bilhete de desejos de boas festas aos membros.

Já a ligação nada sutil entre bolsonarismo e nazismo pode ser verificada, antes mesmo de Bolsonaro ser presidente, em elogios a Hitler e em fotos que tirou com um sósia do líder nazista; no apoio que prestou, no início dos anos 2000, a um grupo de formandos do Colégio Militar de Porto Alegre que escolheu Adolf Hitler como personagem histórico mais admirável; no pronunciamento em que defende o perdão ao holo causto; no emprego da saudação nazi, usada tanto por ele quanto por seus apoiadores em vários even tos públicos.

Como presidente, ele recebeu Beatrix von Storch, membra do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha e neta de Johann von Krosigk, ministro das finanças de Hitler; não repreendeu publicamente seu então secretário de Cultura, Ricardo Alvim, pelo uso de trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro de Propaganda na Alemanha nazista, em um vídeo viralizado nas redes sociais, nem seu ministro da Economia, Paulo Guedes, por citar Hjalmar Schacht, ministro das finanças de Hitler, como um case de sucesso.

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Maria Aparecida de Aquino Por Felipe L. Gonçalves/Brasil247

No Brasil, a apologia do nazismo usando símbolos, distribuindo emblemas ou fazendo propaganda desse regime é crime previsto na Lei nº 7.716/1989, com respaldo na Constituição, que classifica o racismo como crime inafiançável e imprescritível.

Slogans nazistas

A influência do nazismo também pode ser observa da nos slogans adotados por Bolsonaro. Sua cam panha em 2018 foi marcada por um discurso ultra nacionalista cristão com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que, claramente, rever bera a memória discursiva da propaganda nazista “ Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo), complementada pelo “Deus acima de tudo” para demarcar o posicionamento “terrivelmente evangé lico” do então candidato.

Uma propaganda da Secretaria Especial de Comuni cação Social da Presidência da República divulgada em 2020 causou polêmica com o slogan “O trabalho, a união e a verdade nos libertará”, pois também era uma clara alusão à frase “Arbeit macht frei” (O trabalho li berta), inscrita nos portões de entrada dos campos de concentração nazistas.

Também em 2020, outro slogan utilizado por bolso naristas em apoio ao presidente pelas duras críticas recebidas por conta da inação frente à pandemia foi “Uma nação, um povo, um líder”, nitidamente relacio nado ao cartaz de Hitler com os dizeres “Eine Volk, ein Reich, ein Führer” (Um povo, uma nação, um líder).

Na campanha pela reeleição, em 2022, Bolsonaro apropriou-se do slogan “Deus, Pátria, Família”, utiliza do pelo movimento integralista3 da década de 1930, que foi a expressão máxima da extrema-direita brasi leira até 1975, quando começou a ser pulverizada em pequenos grupos fascistas.

Queremos a democracia

Uma vez no cargo, Bolsonaro passou a violar a li berdade de expressão daqueles que o criticavam,

instigar o extermínio de adversários políticos e in fluenciar politicamente o trabalho do Judiciário e das polícias. Estamos experimentando, até 31 de dezembro de 2022, um governo antidemocrático, amargando uma alta inflação e a volta do país ao mapa da fome.

Além disso, ainda estamos atravessando um difícil luto coletivo em decorrência dos quase 700 mil brasi leiros mortos pela covid-19 e enfrentando o negacio nismo, o anticientificismo e a desinformação.

Na pandemia, o governo negacionista de Bolsonaro desdenhou de pessoas que estavam sufocando em decorrência das complicações da covid-19 e demorou a instituir políticas de prevenção, controle e vacinação. Outra triste marca da catastrófica gestão bolsonarista são as mais de 200 mil mortes que poderiam ter sido evitadas, segundo o levantamento Mortes evitáveis por covid-19 no Brasil4, feito por pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade de São Paulo (USP).

Mais recentemente, o governo passou a levantar suspeição sobre as urnas eletrônicas e a ameaçar as eleições de 2022, em uma clara tentativa de golpe, uma violação constitucional, uma verdadeira afronta ao Estado democrático de direito.

Assim, enlutados pela perda de entes na pandemia e cansados do clima de ódio, violência, ameaças an tidemocráticas e destruição dos últimos três anos e meio, mais de 60 milhões de brasileiros deram o reca do nas urnas: queremos a democracia!

No primeiro pronunciamento depois de eleito, Lula enfatizou várias vezes o compromisso com o Estado democrático de direito e com a pacificação do país.

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“Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram, é a vitória de um imenso movimento democrático. [...] Não existem dois Brasis, somos um único país, um único povo, uma grande nação. [...] Irei governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras e não apenas para aqueles que votaram em mim.”

E por que pacificar o país? Porque a ideologia, o ódio, o medo e a intolerância provocaram muitas cisões entre as pessoas: famílias brigaram, amizades foram desfeitas, vínculos de afeto e confiança foram rompidos.

Uma gestão marcada pela violência

Nem a grave ameaça à vida imposta pela pandemia abrandou o ódio bolsonarista. Sequelas e rastros de

destruição da covid-19 não foram suficientes para im pedir a propagação de fake news e o avanço da pro teção dos pares, da distribuição de dinheiro público e da perseguição política.

Com o bolsonarismo, passaram a ser cada vez mais frequentes e violentos os ataques a mulheres, indí genas, negros, comunidades LGBTQIA+, professo res, cientistas, jornalistas e autoridades do STF; a perseguição a intelectuais e a opositores políticos; a exaltação do militarismo, das armas, da guerra e o culto à violência contra opositores e adversários políticos.

Só para se ter uma ideia, as organizações sociais de direitos humanos  Terra de Direitos  e  Justiça Global levantaram inúmeros episódios de violên cia política e eleitoral entre 2 de setembro de 2020 e 31 de outubro de 2022. Foram registrados 542 episódios desse tipo de violência, com 497 vítimas. Em algumas situações, uma mesma pessoa é víti ma em mais de um episódio. Foram considerados apenas os casos em que houve participação direta de agentes político-institucionais ou de lideranças partidárias.

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Luís Inácio Lula da Silva Eleitores comemoram eleição de Lula Por Fernando Frazão/Agência Brasil

Segundo o levantamento, a violência política atinge partidos de todos os espectros políticos, porém os progressistas e de esquerda têm sido o principal alvo. Os três partidos com mais de dez casos de vítimas da violência política e eleitoral no primeiro turno das Eleições 2022 foram PT (21), PSOL (17) e PL (11). No segundo turno, foram PT (4), MDB (3) e PSOL (2).

Eleições 2022 – Casos de violência política por partido 1º Turno

Turno PT – 21 PT – 4 PSOL – 17 MDB – 3 PL – 11 PSOL – 2

Fonte: Terra de Direitos e Justiça Global

Se a onda antipetista dividiu o país e foi determinante para a derrota de Fernando Haddad (PT) nas eleições de 2018, dessa vez, associada aos aspectos fascistas do bolsonarismo, ela se concretizou em ameaças, agressões e até em assassinatos de esquerdistas.

“Uma coisa que temos de considerar muito seriamente é o antipetismo que estava presente em todos os meios de comunicação, toda hora martelando na nossa cabeça, como se o petismo, ou o PT, ou o governo Lula, ou o governo Dilma fossem os demônios a serem exorcizados.”

Mesmo antes das eleições, em julho de 2022, o guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda foi morto a tiros pelo policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho na própria festa de aniversário em Foz do Iguaçu, Paraná. Em setembro, no município de Cascavel, região metropolitana de Fortaleza, Ceará, Antônio Carlos Silva de Lima foi esfaqueado e morto pelo bolsonarista Edmilson Freire da Silva em um bar após declarar voto no petista.

Após a derrota nas urnas

Desde o fim do segundo turno das eleições, ima gens de bloqueios de estradas por caminhoneiros e manifestações de bolsonaristas contra o resul tado das eleições e pró-intervenção militar têm circulado pela imprensa e pelas redes sociais no mundo todo.

Imediatamente após a derrota nas urnas, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro iniciaram um movimento nacional de protestos contra o resultado da eleição. Em muitas cidades, especialmente do Sul do país, as convocações utilizam imagens e dizeres que reme tem à propaganda nazista.

É possível observar multidões de civis marchando, cantando o hino nacional e saudando a bandeira com um gesto em um ângulo notadamente semelhante ao da saudação nazi. Muitos cartazes pedindo interven ção militar e intervenção federal são carregados pe los manifestantes.

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Verde
Daniel
de debates da Fundação
Herbert
Manifestação da extrema-direita em frente ao Quartel General do Exérci to em Brasília, em novembro de 2022 Por Valter Campanato/Agência Brasil

Para 49,10% dos eleitores brasileiros, estava no hori zonte um recrudescimento da perspectiva conserva dora, bolsonarista e antidemocrática. Então, para o historiador Odilon, mesmo que exista, eventualmente, um declínio da liderança política de Bolsonaro, isso não quer dizer que as pautas e as organizações da extrema-direita brasileira não continuem organizadas.

A historiadora Maria Aparecida defende o direito à livre manifestação, até mesmo por já tê-lo exercido diversas vezes para protestar na época da ditadura militar, porém questiona a pauta dessas manifestações pós-eleições. Ela as classifica como “espúrias e antidemocráticas”, feitas por pessoas dispostas a qualquer coisa para alcançar seus ob jetivos, independentemente dos resultados das urnas.

“Se a pauta dessas manifestações é dizer que Lula não pode assumir, ganhou, mas não pode assumir, que não podemos aceitar o resultado das urnas, então, elas são absolutamente ilegais e ilegítimas pela sua própria pauta.”

Odilon vê essas manifestações como fruto de um processo de formação de redes e grupos bolsonaris tas inspirados em experiências da direita radical e da extrema-direita de várias partes do mundo, em pro cessos eleitorais que não satisfizeram suas ambições políticas.

Para ele, essas redes antidemocráticas precisam ser descobertas e esses grupos precisam ser mapeados. “É preciso descobrir os articuladores e financiadores dessas redes.” E, de acordo com o devido processo legal, devem ser penalizados.

“A utilização de um subterfúgio do discur so como uma autonomia organizacional não dá conta da complexidade organi zativa desses grupos, ou seja, quais são os financiadores, quais são os articula dores, de que maneira estão articulados com expoentes do próprio bolsonarismo, digamos, mais institucional, existente ao longo dos quatro anos.”

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Caminhoneiros em Brasília, em mais uma ação contra a democracia nacional Por Valter Campanato/Agência Brasil

O silêncio de Bolsonaro

De acordo com Odilon, o silêncio de Bolsonaro pode significar um recuo estratégico. Contrariando tudo o que se espera dele, o presidente adotou a postura de ficar calado, de modo que não é possível, como de costume, explicitar seus próximos movimentos. É uma forma de confundir opositores. “Não dá para saber, efetivamente, o que será realizado do ponto de vis ta da articulação de Bolsonaro nos próximos meses, tampouco nos próximos anos.”

Por isso, é preciso ter cautela e observar com cuidado os movimentos do bolsonarismo e do próprio Bolsonaro. O coordenador do OED arrisca que o presidente pode “efetivamente tentar rearticular e reorganizar o grupo político mais amplo da extrema-direita brasileira; ou mesmo, eventualmente, outras lideranças podem, em certa medida, buscar incorporar esse capital político bastante sedimentado na sociedade brasileira”.

Odilon lembra que é um equívoco acreditar que o bol sonarismo seja exclusividade da extrema-direita. Ele ex plica que a crise do governo e do modelo bolsonarista resulta em uma dispersão por todo o campo da direita.

“Novas lideranças ou novas perspectivas podem se projetar, inclusive com certo grau de autonomia organizativa não atrelada exclusivamente às dinâmicas, às linguagens, às estruturas convergentes do processo político do bolsonarismo, ou mesmo do governo e da presidência de Jair Bolsonaro.”

A esperança de que a democracia permaneça protegida tem povoado nossos dias. A professora Maria Aparecida acredita que Lula “fará um governo para a maioria da população e não para a minoria dos interesses espúrios da elite brasileira”.

Por fim, ela alerta para a importância de o Estado bra sileiro, a exemplo da Argentina, processar e julgar os responsáveis por torturas, mortes e desaparecimen tos de opositores durante a ditadura militar, sob pena de os brasileiros viverem eternamente assombrados pelos fantasmas de um regime autoritário.

“É necessária e urgente uma revisão da Lei da Anistia.”

Maria Aparecida de Aquino

1 - https://theintercept.com /2021/07/28/carta-bolsonaro -neonazismo/

2 - @luizazenha23

3 - Para se aprofundar no tema, sugerimos a leitura de O fascis mo em camisas verdes. Do in tegralismo ao neointegralismo (FGV, 2020), de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto.

4 - https://www.ims.uerj.br/2021 /07/11/mortes-evitaveis-por -covid-19-no-brasil-estudo-re ferencia-conta-com-autoria -do-professor-guilherme-wer neck-ims/

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Quadro econômico: desafios do novo governo para 2023

é membro da Executiva Nacional do PV por Minas Gerais, professor, natural de Caratinga (MG), graduado em Comunicação Social e Administração de Empresas, MBA em Gestão Pública, mestre em Administração e Marketing (Unipel) e doutor em Ciência da Informação e Gestão do Conhecimento (UFMG). Foi secretário de Educação e Planejamento de Caratinga e secretário de Estado da Agricultura de MG (2007-2008). Atualmente, é presidente Executivo da Rede Doctum de ensino.

é professor, doutorando em Contabilidade (Fucape ES), mestre em Ciências Contábeis (Fucape) e possui especialização em Auditoria Contábil e Financeira e graduação em Ciências Contábeis. Foi secretário de Planejamento do Município de Manhuaçu, em Minas (2008 e 2021), assessor de Novos Negócios da Energisa Minas Gerais S.A., conselheiro de Administração da Light S.A. (2018) e coordenador do Grupo de Normas Técnicas do CRC-MG (2022).

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Fully
Pedro Leitão
Roberto
artigo
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É preciso compreender que no orçamento para 2023 – em uma premissa de foco na retomada do crescimento econômico – foram restringidas do tações orçamentárias para programas sociais de transferência de renda como o Auxílio Brasil/Bolsa Família, ainda que em todo o processo eleitoral essa tenha sido uma bandeira defendida amplamente por todos os candidatos, inclusive com promessa de ampliação dos benefícios. Soma-se a isso a falta de recursos para programas sociais e de transferên cia de renda. O desafio fica ainda maior ao serem considerados os cortes previstos para as áreas da Saúde, Educação e Meio Ambiente.

A Lei Orçamentária Anual do governo federal (LOA), que está em discussão no Congresso Nacional, destaca alguns pontos extremamente importantes. Excluindo o período da pandemia – em que os au mentos de gastos na Saúde tiveram forte impacto nos gastos públicos e, por consequência, no orça mento federal – e atualizando os valores pela infla ção, tem-se que a previsão para 2023 nos gastos da Saúde se compara aos valores de 2014, segun do nota técnica conjunta do Senado e da Câmara dos Deputados. Esse é um ponto fundamental de análise, dado que, ocorrendo novos aumentos de covid-19, será necessário um maior aporte de gas tos públicos no Sistema Único de Saúde (SUS). Pro vavelmente, a readequação de R$ 22,7 bilhões na Saúde, perfazendo um gasto per capta de R$ 687,00, comparado ao gasto de dez anos atrás, não será suficiente para os reflexos da pandemia que ainda persistem.

Investimentos em Educação e, por consequência, au mento no “estoque” de capital humano de um país é algo consagrado como fator fundamental de desen volvimento econômico sustentável de longo prazo, ainda mais em um país que, segundo o IBGE, tem 55 milhões de jovens, como é o caso do Brasil. Os gastos públicos em Educação vêm acumulando cor tes desde 2017. Também sofreu cortes relevantes na proposta orçamentária para 2023. Cortes de R$ 600 milhões no ensino superior e de R$ 1 bilhão na Edu cação Básica.

A Educação Infantil pode perder 96% do seu orça mento, com corte de R$ 145 milhões. São quase R$ 8 bilhões de perdas para o orçamento previsto para a Educação em 2023. No Meio Ambiente ocor re o mesmo. O orçamento previsto para 2023 é 6,4% menor que o de 2022, uma redução de R$ 3,17 bilhões para R$ 2,96 bilhões.

Mas um ponto é importante para uma reflexão. É possível ser mais eficiente nos gastos públicos educacionais? É preciso racionalizar o dilema entre ampliar estrutura das universidades públicas ou ampliar programas que utilizem vagas ociosas das instituições privadas. Qual das alternativas poderia gerar um payback para o país, sob a perspectiva do desenvolvimento econômico, com menor custo e maior eficiência?

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Em geral, para as nações que adotaram medidas de transferência de renda para a população mais carente e tiveram maior gasto na saúde pública, a pandemia de covid-19 impôs aumento na dívida pública. No Brasil não foi diferente. O Brasil – para implementar políticas de transferência de renda durante a pandemia, e ainda em socorro aos governos estaduais e municipais – fez com que o gasto da dívida pública quase dobrasse de 2019 para 2021, o que representou, no ano passado, 50,78% do orçamento total. Ou seja, quase R$ 2 trilhões do orçamento federal executado foram direcionados para o pagamento de juros e amortizações da dívida.

Como consequência do aumento do endividamento do país com emissão de títulos da dívida pública, a re

gra de ouro do mercado financeiro aconteceu. Quan to maior o risco, maior será o prêmio. Dessa forma, houve elevação nos juros pagos pela dívida pública brasileira. Aumento do endividamento público, ainda que devido a aspecto conjuntural pandêmico, impõe restrição no orçamento público para novos investi mentos.

Em um país continental como o Brasil, que ainda carece de investimentos em áreas de Infraestrutura, Saúde e Segurança Alimentar e nos sistemas Edu cacional e Previdenciário, existe uma pressão por aumento de gastos e de investimentos dentro do orçamento público federal. Aliado a isso, o custo Brasil ainda diminui nossa capacidade de competi vidade internacional.

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Indicadores que são desafios para o próximo governo

Para completar o quadro econômico, tem-se os indi cadores que são desafios para o próximo governo: (1) manter em queda o desemprego; (2) ter foco na meta da inflação, reduzindo-a ao longo de 2023; (3) auxiliar na queda do nível de endividamento das famílias.

Ocorre que no Brasil a pressão inflacionária está mui to associada a fatores externos como a cotação do dólar, os valores das commodities e a própria guerra Ucrânia – Rússia.

A maior perversidade que se pode permitir com famílias que têm menor poder aquisitivo é não controlar a inflação dos preços. A inflação é a maior ladra do poder aquisitivo das famílias, retirando dos menos favorecidos e ampliando a concentração de riqueza. Não existe uma política social desassociada de um forte combate à inflação.

Sem a menor sombra de dúvidas, os desafios são muitos, mas o Brasil é um país com enormes poten cialidades no presente e excelentes oportunidades no futuro. A maioria dos países desenvolvidos tem pouco espaço para investimentos em infraestrutura e para aproveitar mão de obra com menor qualificação na construção civil. Esse é um espaço em que o Brasil tem grandes oportunidades, desde que haja um gran de pacto federativo e se promova, entre poderes, uma segurança jurídica que permita uma melhor previsi bilidade nos contratos de longo prazo. Essas ações podem permitir que grandes players internacionais sejam atraídos para o mercado de infraestrutura, in jetando altas quantidades de recursos em moedas estrangeiras, o que ampliará nossas reservas interna cionais, diminuirá a cotação das moedas estrangeiras e ampliará os investimentos que o orçamento público não conseguirá arcar no curto prazo.

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Políticas eficientes para o agronegócio vinculadas aos conceitos do ESG (práticas sociais, ambientais e de governança) podem criar novos mercados inter nacionais para o setor primário da economia, que são negociados em commodities, o que manterá favora velmente o equilíbrio da balança comercial.

O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo e o maior exportador de proteína animal para o mundo, atingindo, segundo estimativas da ONU, oito bilhões de pessoas. A população cresce e, com isso, aumenta a necessidade de produzir mais alimentos. Podemos aumentar muito a nossa pro dução, sem, contudo, gerar desmatamento. O Brasil possui 140 milhões de hectares de áreas degrada das que podem ser recuperadas por meio de apoio e incentivo governamental. Temos quase duas Fran ças que podem voltar a produzir e, ainda, combater a erosão. Um potencial agrícola que poucos países no mundo possuem. Por meio de redes de cooperação, a agricultura familiar também pode ser expandida no país, em conjunto com o agronegócio moderno e em sintonia com as exigências ambientais. A biodiversi dade brasileira é a maior do mundo. Uma riqueza que ainda pode gerar muitas oportunidades com o desen volvimento de fármacos e da indústria cosmética.

A Universidade de Brasília é uma das instituições públicas de ensino que sofrem com o corte de gastos

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O Turismo também tem muita capacidade de cresci mento e pode gerar muitos empregos e desenvolvi mento para diversas regiões do país. E a capacidade do povo brasileiro de se adaptar e aprender é um ativo pouco considerado. Com investimento em Educação e mais oportunidades, teremos condições de compe tir na economia digital do século 21. Existem muitas possibilidades de desenvolvimento, e o próximo go verno pode ter uma agenda voltada para este e para outros temas, no sentido de dar direcionamento e ar ticular investimentos que promovam a ampliação do mercado e das oportunidades.

O desafio econômico perpassa, primeiro, o desafio político. A habilidade para conciliar as necessidades das pautas sociais de curto prazo com a capacidade de financiamento impõe que o novo governo tenha uma abertura para o diálogo e para a unificação do país com um único propósito: Crescimento para todos!

Para isso, o governo precisa sinalizar, interna e exter namente, que tem visão de longo prazo com a respon sabilidade fiscal, ficando atento à âncora fiscal e de gastos, e também com a capacidade de criar ambiente econômico favorável para que a iniciativa privada na cional e internacional aloque recursos principalmente em infraestrutura e na geração de novos empregos.

O papel do novo governo será o de tornar o Brasil uma democracia eficiente. Sendo a democracia o gover no do povo, podemos dizer que um governo é eficien te para o povo quando a atividade-fim se sobrepõe às atividades-meio. Assim, o Estado terá o tamanho necessário para articular soluções que sejam mais eficientes e eficazes para garantir: (1) desenvolvimen to econômico sustentável; (2) geração de emprego e renda; (3) Saúde; (4) Educação e (5) Justiça. O Brasil tem, por lei, um orçamento pouco flexível e uma es trutura estatal nos três níveis que impede uma flexi bilidade orçamentária no curto prazo que atenda às demandas prementes.

Será fundamental a capacidade do governo federal de dialogar para pactuarmos uma nova federação, reven do os custos públicos nos três entes (federal, estadual e municipal) e nos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). É possível entregar mais serviços públicos

fazendo ajustes inteligentes no orçamento, visando ao objetivo do Estado: Atender às demandas do povo! Portanto, será necessário pensar novas fórmulas para dinamizar a economia e melhorar o ambiente de negó cio, atualizando as políticas com o novo mercado de tra balho e, ainda, manter a previsibilidade econômica, para que possamos atrair capitais de investimento. As políti cas econômicas precisam cuidar daquilo que é urgente na economia, sem perder de vista o horizonte de médio e longo prazo para tornar o país mais competitivo, com justiça social e sustentabilidade ambiental.

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Os desafios são enormes e exigirão mais do que uma equipe econômica qualificada, que ofereça programas econômicos bem-projetados. Será necessário, sobre tudo, um novo pacto com as instituições e com a so ciedade, para que possamos voltar a crescer de forma mais consistente e inclusiva. Portanto, criar um am biente de confiança e de esperança será fundamen tal para germinar a prosperidade do futuro, porque a desconfiança impede novos investimentos e trava a economia. No fundo, o maior desafio da economia é melhorar a vida das pessoas hoje e amanhã. Agora, todos torcemos pelo país!

Referência:

Saúde terá em 2023 menor orçamento dos últimos 10 anos, diz Congresso (www.metropoles.com)

CNS repudia cortes no orçamento da saúde e alerta para desconti nuidade de serviços essenciais em 2023 (www.conselho.saude.gov. br/ultimas-noticias-cns/)

Orçamento do MEC pode perder R$ 7,8 bilhões em 2023 (www.extra classe.org.br/educacao/2022/)

Governo pagou quase o dobro de juros, mas dívida pública cres ceu mais de R$ 708 bilhões (www.extraclasse.org.br/ultimas-noti cias/2022/)

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Lula 3: políticas públicas de meio ambiente e seus desafios

Vânia Almeida André Fraga

é cientista política, doutoranda em Educação (USEK, Chile), mestra em Educação (UDELMAR, Chile), pósgraduanda em Desenvolvimento Sustentável e Economia Circular (PUC-RS) e especialista em Educação Ambiental (UFBA). É professora titular da Secretaria de Educação da Bahia desde 2003 e foi subsecretária municipal de Sustentabilidade e Resiliência de Salvador (BA), em 2021. Atualmente, é superintendente de Inovação e Desenvolvimento Ambiental da Secretaria de Meio Ambiente do Estado da Bahia.

é engenheiro ambiental, doutorando em Patologia pela USP e ex-secretário de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência de Salvador (2014-2020). Coordenou o Fórum de Secretários de Meio Ambiente das Capitais Brasileiras (CB 27) e foi vice-presidente da Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma). Atualmente, é vicepresidente da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana (SBAU) e vereador pelo Partido Verde em Salvador, onde preside a Comissão Especial de Emergência Climática e Inovação.

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Foram quatro anos intermináveis. Anos de intensas lutas. Os que militam na agenda ambiental precisa ram reforçar as trincheiras. Vivenciamos um aumento exponencial do desmatamento, recorde de queimadas no Pantanal, pior crise hídrica em 90 anos, afrouxa mento e desmantelamento das entidades de comando e controle federais, incentivo à invasão e ao garimpo em terras indígenas e em unidades de conservação, liberação em escala de agrotóxicos e crescimento das emissões de gases de efeito estufa, com consequente vexame internacional em conferências de clima.

Um novo tempo se avizinha, é verdade. A campanha pela vitória de Lula conseguiu unir todo o campo so cioambiental brasileiro. Esse campo socioambiental também precisará ficar atento e forte, pois no gover no, assim como na campanha, também há a presença de setores antagônicos a essas pautas.

Pois isso, uma agenda se impõe como grande guar da-chuva de políticas públicas: o combate à mutação climática. Uma economia de baixo carbono deve ser o mote estratégico do Estado brasileiro daqui para frente. É importante inserir o país na fronteira do conhecimen to, desenvolvendo tecnologias pós-combustíveis fósseis e fontes alternativas como a solar, a eólica, a biomassa e o hidrogênio verde, promovendo a transição energéti ca necessária para a descarbonização. Diferentemente disso, nossas emissões de gases de efeito estufa (GEE) atingiram, em 2021, a maior alta dos últimos 19 anos, de acordo com a 10ª edição do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases do Efeito Estufa (SEEG)2, apresen tada dias antes da COP 27. As emissões são divididas em cinco setores: resíduos, processos industriais, ener gia, agropecuária e mudanças de uso das terras e flo restas (MUT), este último englobando desmatamento, calagem (tratamento de solo para uso agrícola), carbo no orgânico no solo e queima de resíduos florestais –o que mais cresceu em emissões, representando 49% das emissões totais do Brasil. Só a Amazônia respondeu por 77% de todas as emissões do MUT. Não surpreen de, afinal os últimos anos foram marcados por sucessi vos aumentos no desmatamento do bioma amazônico.

Além do incentivo público do atual presidente da Repú blica ao descumprimento das leias ambientais, também houve uma ação de desconstrução legal institucional do arcabouço jurídico de defesa ambiental. De acordo com o documento Reconstrução, levantamento da organiza ção Política por Inteiro1, Lula deveria rever ou revogar pelo menos 401 normas com impacto ambiental feitas pelo governo Bolsonaro. Cerca de 400 decretos ou me didas editadas por Bolsonaro precisam ser revistas para garantir a preservação ambiental. Muitas dessas medi das precisam ser revogadas de imediato, mas não é só isso: precisam ser revisadas e avançar.

A cena em que o antiministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, exorta a equipe ministerial a aproveitar a “distração” causada pela covid-19 à opinião pública e “passar a boiada” foi apenas a ponta do iceberg de esquemas, descobertos e denunciados, que levaram o tal antiministro a sair do cargo por esquentar madeira retirada da floresta de forma ilegal.

A presença de Lula em Sharm el-Sheikh, no Egito, durante a COP 27, foi vista com entusiasmo por governos estrangeiros, sociedade civil brasileira e analistas internacionais. Tratado como a principal atração da COP, Lula levou na bagagem a disposição em recuperar o protagonismo brasileiro nas discussões ambientais, fazendo jus à potência que é. Mas é fundamental entendermos que Lula foi tão incensado nessa COP por dois motivos principais: o primeiro, a total ausência e ataques do governo Bolsonaro à política do clima e a qualquer agenda que se assemelhe à questão ambiental. O outro ponto é como boa parte do mundo vê o Brasil, como diz a jornalista Eliane Brum: “Os presidentes dos Estados Unidos e de países da Europa não se apressaram em cumprimentar Lula pela vitória por causa do Brasil, mas sim por causa da Amazônia. Se acabarem com a Amazônia, o interesse no Brasil desaparece e o país será pária para sempre, independentemente do governante, por ter colocado toda a humanidade em alto risco. Está na hora de agir conforme a realidade: o Brasil, hoje, é a periferia da Amazônia”.

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Para que o Brasil siga sendo relevante no cenário internacional é preciso garantir que a floresta fique de pé. E não só a amazônica, mas todos os nossos outros biomas. Caberá a Lula revisar a forma como compreendeu, durante seus governos, assim como os governos Dilma, o desenvolvimento na Amazônia. Parte importante da degradação do bioma advém de projetos de hidroelétricas de grande proporção – dos quais Belo Monte é o maior exemplo –, que levam consigo um pacote de degradação social, ambiental e econômica com efeitos colaterais duradouros, reforçando o modelo desenvolvimentista que acompanha o Brasil e que teve seu auge durante o regime militar.

Associada à gestão dos biomas está a questão indíge na. Nos últimos anos, assim como em quase todas as áreas do governo Bolsonaro, a raposa tomava conta do galinheiro. A Funai passou a ser uma entidade nula no suporte aos povos originários e as demarcações de suas terras ficaram paradas. Nem um centímetro quadrado foi demarcado nos últimos quatro anos. O desmonte da Funai, os ataques do presidente e a não demarcação de terras indígenas legitimaram ataques aos povos indígenas e a seus territórios, triplicando a invasão de terras nesses quatro anos e o desma tamento, com destaque para aqueles decorrentes da mineração ilegal. A criação de um Ministério dos Povos Originários é uma oportunidade de reparação real, mas ele precisa nascer com autoridade e recur sos para tirar do papel o que é necessário.

O combate ao desmatamento deve ser central na atuação governamental, pois ele promove crimes que vão além do corte criminoso de árvores. É preciso criar uma força-tarefa permanente nas principais fron teiras de desmatamento, além de resgatar instrumen tos como o Fundo Amazônia, o Plano de Ação para

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Ministério dos Povos Originários é “oportunidade de reparação real”

Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia (PPCDAm) e o Plano de Prevenção e Controle do Des matamento no Cerrado (PPCerrado). O PPCDAm foi responsável pela queda de 83% do desmatamento de 2004 a 2012. Ele foi abandonado em 2019. O PPCerra do também foi abandonado em 2019, no primeiro ano da gestão do então ministro do Meio Ambiente, Ricar do Salles, afinal, a boiada precisava passar.

Já o Fundo Amazônia, que capta doações para pro jetos de preservação e fiscalização do bioma, está parado desde abril de 2019, quando o governo Bolso naro extinguiu os comitês Orientador (Cofa) e Técni co (CTFA), que formavam a base do fundo. O projeto foi criado em 2008 para financiar ações de redução do desmatamento e fiscalização. Com a eleição de Lula, Noruega e Alemanha sinalizaram que voltarão a investir no fundo. Só a Noruega já destinou cinco bilhões de coroas norueguesas (cerca de R$ 2,5 bi lhões) para serem utilizados no fundo de preservação da floresta amazônica.

O desmonte dos órgãos de comando e controle resul tou no nível mais baixo de multas ambientais das úl timas duas décadas na Amazônia. Segundo o Obser vatório do Clima, em 2019 e 2020 foi registrada uma média anual de 2.610 autos por infrações contra a flo ra na região, uma queda de 46% em relação à média na década anterior (4.868 autos por ano), apesar do aumento das taxas de desmatamento. O relatório O fi nanciamento da gestão ambiental no Brasil: uma avaliação a partir do orçamento público federal3, publica do em agosto de 2022 pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra que órgãos chave para o combate ao desmatamento na Amazônia como o Instituto Brasilei ro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação

da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sofreram cortes recordes nos seus orçamentos.

Em 2021, o Ibama contou com apenas 57% do valor gasto em 2008. Mas não foi só isso. Além de ter menos recurso, ele ainda não é executado em sua integralidade: apenas 41% do orçamento para fiscalização no Ibama foi executado em 2021. Nos três anos anteriores a Bolsonaro (2016 a 2018), o uso da verba variou de 86% a 92%.

Além disso, em 2021 o governo deixou de usar 30% dos recursos destinados à prevenção e controle de incêndios florestais. O ICMBio registrou, em 2020, a menor despesa discricionária desde a sua cria ção, com apenas R$ 185 milhões, o que representa somente 44% do orçamento de 2010 para gerenciar mais de 300 unidades de conservação. Já o Inpe teve, entre 2019 e 2021, os três menores valores executa dos desde 2005, com pouco mais de R$ 1,1 milhão por ano para ações de Monitoramento da Cobertura da Terra e do Risco de Queimadas e Incêndios Flores tais, o que representa apenas 20% do orçamento li quidado nos anos de 2013 e 2014.

O Brasil é o país mais diverso do planeta. Ao ano, são descobertas ao menos 250 novas espécies vegetais nos nossos biomas. Uma estratégia para a economia do século 21 é olhar para a nossa riqueza, tirar do pa pel a Lei de Biodiversidade, Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, e investir na bioeconomia da floresta e em suas cadeias associadas.

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Nesse contexto, os principais desafios que o governo Lula terá pela frente serão:

• criar uma força-tarefa que garanta o desmatamento zero;

• punir exemplarmente qualquer tentativa de grilagem de terras públicas;

• atuar nas terras indígenas, garantindo a demarcação dos territórios;

• reativar o Fundo Amazônia, o Fundo Clima e o PPCDAm/PPCerrado;

• reestruturar o Ibama e o ICMBio, com equipe e recursos necessários para eliminar o passivo dos últimos anos, garantindo a autoridade e a independência de suas atuações;

• conter o aumento na emissão de gases de efeito estufa e regular o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões;

• rever os atos que enfraqueceram o comando e o controle, bem como reavaliar o formato da conversão de multas ambientais;

• aperfeiçoar o licenciamento ambiental.

Agenda Ambiental Urbana também deve ser estratégica

A Agenda Ambiental Urbana, que chegou a ser apresentada como o principal mote do governo Bolsonaro na área ambiental, mas não saiu do dis curso, precisa também ser encarada como estraté gica. Afinal, o Brasil hoje concentra mais de 80% da sua população em cidades.

A economia circular precisa ser encarada de forma séria para enfrentarmos o problema da geração e descarte irregular de resíduos. Não há um programa sério e estruturado no governo federal para enfrentar essa questão de maneira definitiva. Apoiar mu nicípios e criar um programa amplo de reciclagem e economia circular são possibilidades. Os desafios das cidades vão além. É preciso investir em trans porte público de qualidade e zero emissões de GEE, garantir recursos para que as cidades se adaptem à mutação climática e proporcionar soluções baseadas na natureza para projetos de infraestrutura.

Outras agendas se entrelaçam com o combate ao desmatamento e se revestem de muita importância.

Na agricultura e na pecuária, é urgente tirar do papel o Plano ABC. É possível aumentar a produtividade do setor sem desmatar novas áreas. Atualmente, cerca de 50% das pastagens, por exemplo, estão degradadas. A recuperação de cem milhões de hectares de pastagens pode custar até R$ 250 bilhões, segundo cálculos da Scot Consultoria, em estudo encomendado pelo WWF, pela Tropical Forest Alliance (TFA) e pela Fundação So lidariedade. Apesar da cifra parecer alta, ainda é mais barato do que desmatar. Um investimento de reforma de pasto com aplicação de alta tecnologia custa, em média, R$ 2.982,18 por hectare, conforme o estudo. Já o custo de desmatar – que inclui maquinário, retirada de tocos de madeira do solo, limpeza e semeadura de pasto – é de, no mínimo, R$ 3 mil por hectare. O acesso a outros mercados está cada vez mais as sociado ao não desmatamento, não apenas quanto ao mercado de carne, mas também quanto ao de grãos e de outros produtos agropecuários. O Plano ABC, fundamental para cumprimos a NDC Brasileira, é composto por sete programas, seis deles referen tes às tecnologias de mitigação, e há ainda um últi mo programa com ações de adaptação às mudanças climáticas: Recuperação de Pastagens Degradadas; Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e Sis temas Agroflorestais (SAFs); Sistema Plantio Direto (SPD); Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN); Flo restas Plantadas; Tratamento de Dejetos Animais e Adaptação às Mudanças Climáticas.

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Os desafios do futuro governo são enormes. Não haverá área que não demandará muita energia para enfrentar o contexto de desmonte pelo qual o Estado brasileiro passou nos últimos anos. Ao Partido Verde cabe entender o momento histórico que vivemos, traçar estratégias claras e, taticamente, se colocar de forma a garantir o avanço das pautas que defende há três décadas.

O bolsonarismo seguirá presente, e precisaremos es tar atentos e fortes. Esse cenário apresenta a opor tunidade de mostrarmos à sociedade a nossa im portância, relevância e necessidade. Que tenhamos papel de destaque na construção de uma verdadeira potência ambiental, lugar que está reservado ao Bra sil e ao Partido Verde brasileiro.

1 - www.politicaporinteiro.org/

2 - https://seeg.eco.br/

3 -https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/o-finan ciamento-da-gestao-ambiental-no-brasil-uma-avaliacao-partir -do-orcamento

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Desafios do desenvolvimento brasileiro: pobreza e desigualdades*

Pedro Cavalcante

é doutor em Ciência Política (UnB) e professor visitante na University of California , San Diego. Desde 2004 pertence à carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério da Economia. Atualmente, atua como pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

As desigualdades sociais, infelizmente, são uma das marcas registradas do Brasil, que, junto com sua irmã siamesa, a pobreza, não consistem apenas em entra ves ao crescimento sustentável do país, mas também são partes inerentes do nosso subdesenvolvimento [1]. Normalmente, esses problemas tendem a gerar efeitos negativos à economia – redução da poupança privada, baixo nível de investimentos de longo prazo e formação precária de capital humano –, bem como à sociedade – insegurança alimentar, violência e res trições às atividades de cidadania. Após avanços nas últimas décadas, a situação atual apresenta um sé rio dilema para o desenvolvimento, haja vista que a elevação dos gastos sociais, iniciada nos anos 2000, parece ter esgotado seu potencial redistributivo.

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Foto: Helio Montferre/Ipea

Assim como nossos vizinhos da América Latina, des de os anos 1990, o Brasil também passou por uma ampla virada inclusiva (inclusionary turn), pautada pela criação de instituições e políticas voltadas para a inserção de grupos anteriormente excluídos e para a ampliação das fronteiras da cidadania [2]. O movi mento ocorreu a partir de políticas afirmativas (gêne ro, negros e indígenas), de novos canais participati vos nas políticas públicas e de mais investimentos em ações redistributivas para a população mais carente. Esse abrangente e salutar processo foi implantado, contudo, sem alterar as dimensões socioeconômicas que mais contribuem para a persistência de altos pa drões de desigualdade no país: mercado de trabalho, educação e sistema tributário.

Os gráficos a seguir expõem como importante vari áveis evoluíram por duas décadas antes da crise da covid-19. O primeiro demonstra como os indicadores de pobreza, miséria e desigualdades seguem tendên cias semelhantes que, no caso nacional, foi de cons tante queda, particularmente, no período de bonança da nossa economia até 2014. Nota-se, contudo, que a desigualdade de renda no Brasil, medida pelo Co eficiente de Gini, continuou acima de 0,500, um dos maiores do planeta [3]. O período também foi marca do pelo relativo crescimento econômico constante, o que abriu uma janela de oportunidade para amplia ção dos gastos sociais, mensurado pelo percentual da função orçamentária em relação ao PIB, como é possível observar nas linhas do segundo gráfico.

Gráficos 1 e 2 - Pobreza, Desigualdades e Gastos Sociais no Brasil (2001-2019)

Fontes: Cepalstat e World Bank Open Data.

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de

Entre 2001 e 2016, esses dispêndios no âmbito do go verno federal aumentaram mais de 30%, porém com padrões diferentes entre as áreas. Parte significativa desses aumentos são benefícios previdenciários e programas de transferência de renda não contributi va e condicionadas dentro da função proteção social, que correspondeu a 76% do incremento total dos gas tos sociais. Entre 2016 e 2019, ocorre estabilidade em todas essas funções. Isto é, se a elevação constante dos gastos foi importante para redução da pobreza e da miséria num primeiro momento, a sua estagnação não conseguiu conter o posterior agravamento dessas situações de vulnerabilidade social. Uma possível ex plicação é que os governos criaram programas sociais não contributivos e de transferências condicionadas de renda, para os excluídos, sem alterar a configura ção das políticas de benefícios mais amplos aos já in cluídos – elite, classe média e trabalhadores formais. Trata-se dos tipos de reformas redistributivas fáceis [4] (easy stage), impulsionado pela folga fiscal oriun da do boom das commodities e pela menor resistência política dos incluídos, caracterizado pela adição de políticas e não de substituição.

Embora politicamente conveniente e supostamente universais, na prática, esses novos programas embu tem contradições e pavimentam o caminho para um

Estado de bem-estar residual. Por exemplo, a trans ferência de responsabilidade da mobilidade social para os pobres não é acompanhada de investimentos nas “exigências” dos outros serviços públicos neces sários para a sua emancipação – saúde, educação, habitação e assistência social. Assim, os fatores que determinaram a opção pelas reformas “fáceis”, a se letividade e o baixo custo, também ajudam a torná -las ineficazes em alterar os quadros de assimetrias sociais e de empobrecimento da população no longo prazo [5].

Por outro lado, as experiências exitosas, sobretudo das nações europeias, demandaram um conjunto de políticas mais caras e institucionalmente custosas, como subsídios à habitação popular, taxação progressiva, políticas de emprego e serviços públicos de alta qualidade na saúde e educação. Essas reformas redistributivas, denominadas de difíceis (hard phase of welfare state), requerem não apenas mais margem fiscal, como também a construção ampla de coalizões em um jogo que nem sempre é de ganha-ganha.

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Nesses casos, elas esbarram em situações de coali zões esvaziadas, materializadas pela falta de apoio ou pela forte oposição às mudanças, tendo como exem plos as propostas de tributação mais progressiva com base na taxação de dividendos e fortunas ou do fim das isenções de saúde no imposto de renda em prol de mais investimentos no SUS.

Em síntese, a pobreza e as desigualdades não são ape nas consequências, mas também as causas do subde senvolvimento dos países. Esses problemas se tornaram ainda mais complexos devido ao agravamento da situa ção social durante a pandemia da covid-19, à necessida de de se adequar às imposições oriundas da emergente agenda climática global e à conjuntura econômica no curto prazo sem as benesses das commodities. Nesse sentido, é importante sempre lembrar que a desigualda de é fruto de um conjunto de escolhas políticas, não é uma inevitabilidade. Logo, o urgente desafio de comba ter os seus altos níveis no Brasil exige atacar questões estruturais, com certa dose de criatividade na formu lação das medidas governamentais e, principalmente, muita capacidade política de articulação e construção de consensos.

Notas e referências

[1]  https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/ handle/10986/25880/210950ovPT.pdf

[2]  Kapiszewski, D., Levitsky, S., & Yashar, D. (Eds.) (2021). The Inclusionary Turn in Latin American Demo cracies. Cambridge: Cambridge University Press.

[3]  https://wir2022.wid.world/.

[4] Holland, Alisha C. & Schneider, Ben R. (2017). Easy and Hard Redistribution: The Political Economy of Welfare States in Latin America. Perspectives on Poli tics, Vol. 15: 988-1006.

[5] Lavinas, Lena. (2013). 21st Century Welfare.  New Left Review, 84 (Nov-Dec), 5-40.

* O artigo foi inicialmente publicado no jornal O Estado de São Paulo (www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/ desafios-do-desenvolvimento-brasileiro-pobreza-e-desigualda des/) e teve autorização de publicação tanto pelo autor quanto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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Herbert Daniel

O que pensa Letícia Cesarino entrevista

Por dentro da guerrilha da máquina populista digital

O populismo digital veio para ficar –e, no Brasil, ele bebe tanto de valores sombrios mais arraigados na nossa sociedade quanto da arquitetura das redes sociais, um alimentando o outro. É essa talvez a mais assombrosa constatação de horas de conversa com a pesquisadora Letícia Cesarino, especialista em desinformação e antropologia digital e professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Pouco antes de lançar seu livro O Mundo do Avesso: Política e Verdade na Era Digital pela Editora Ubu, Letícia cedeu uma longa entrevista à Agência Pública – e que, agora, a Pensar Verde republica na íntegra –, marcada pelo novo ritmo das relações mediadas pelo digital: a primeira metade foi pelo Zoom e, por questão de agenda, a segunda parte foi feita via mensagem de WhatsApp. Nada que tire o brilho das reflexões da pesquisadora, que alia conhecimentos históricos e análise antropológica à observação arguta de redes sociais – com apoio de tecnologia de scrapping de mensagens no Telegram – para entender o bolsonarismo digital.

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Letícia Cesarino, antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina - Arquivo pessoal

Para Letícia, o populismo digital está em alta porque a infraestrutura tecnológica das redes sociais não foi pensada para a política, mas para o marketing. “Na medida em que a política eleitoral começa a passar por ali, você começa a ter o realce de certas dimen sões da política que a teoria associa ao populismo”, diz ela, como a inversão da hierarquia social e a ilusão do fim da mediação entre o líder e o povo.

Para a pesquisadora, a ação digital do deputado fede ral André Janones – que recebeu a alcunha de “jano nismo cultural” – demonstra que a esquerda começa a entender que “hoje boa parte da política eleitoral vai passar por uma mobilização do tipo populista”.

No entanto, Cesarino é cabal em explicar que não exis te nenhuma simetria entre as duas forças, já que o bol sonarismo utiliza lógicas de guerra para desumanizar o inimigo e impor uma lógica patrimonialista à sociedade, de lealdade ao líder, que é oposta à democracia liberal.

Para ela, a ascensão ao poder de Bolsonaro já representou um golpe. “Só que é esse golpe que eu chamo de não linear, porque ele vai empurrando um pouquinho a fronteira do que é possível. Um tempo atrás ninguém jamais ousaria falar em mexer na composição do STF, quem faz isso é Hugo Chávez, quem faz isso é ditador. Mas, depois de quatro anos de governo Bolsonaro, boa parte da classe política já está sendo beneficiada pelo governo dele, já começa a cogitar esse tipo de coisa”. Leia a entrevista completa a seguir.

que a gente tem são períodos mais estáveis, digamos assim, nos quais as instituições estão funcionando, os poderes estão equilibrados, os grupos sociais estão sendo mais ou menos contemplados pela máquina do Estado. E a gente tem períodos mais conflitivos, nos quais o populismo emana com mais força. E os que a literatura chama de um tipo populista de política, que é aquele antissistema, geralmente de alguma liderança que vem de fora do establishment alegando representar a autêntica vontade popular que não está sendo contemplada pela elite existente, e se pretende “reformar”, digamos assim, o establishment inteiro em colocar no lugar dessa elite o representante real do povo etc. Então, tipicamente, o que a gente chama de populismo aparece em certos momentos. Às vezes, ele pode ser rotinizado, como aconteceu com Vargas, por exemplo. Mas ele se burocratiza como uma forma de governo.

No caso do Bolsonaro e das outras lideranças de direi ta que ascenderam pelo digital, é diferente, porque eles não são nem excepcionais e nem se rotinizam. Então o Bolsonaro emerge com uma característica mais típi ca do populismo, essa coisa de antissistema e tal, mas, uma vez que ele virou governo, ele continua naquela mesma atitude de antes. Então, segundo a teoria política clássica, é uma coisa um pouco paradoxal.

Agência Pública:

Em um dos seus artigos na CartaCapital, você escreveu que o populismo veio para ficar. Ou seja, que uma força como Bolsonaro não seria exatamente uma exceção, e sim uma regra na nova realidade política mediada pelo digital. Eu queria entender o porquê dessa afirmação.

Letícia Cesarino:

O que, enfim, é o populismo? Ele é sempre entendido em contraposição a uma certa norma, digamos as sim, da democracia liberal. Essa questão da divisão dos poderes, da proteção das minorias, os pesos e contrapesos, onde você cria situações que garantem o pluralismo dentro da sociedade para que nenhuma força se sobreponha à outra. Esse é um dos polos constitutivos, digamos assim, das democracias mo dernas. E a questão da soberania popular, a vontade da maioria, se o polo mais soberanista quiser, na li teratura, é o tema ao qual o populismo se associa. O

Essa nova infraestrutura tecnológica teria a ver com isso, porque ela é uma infraestrutura que não foi pen sada para a política. Ela foi pensada segundo outros princípios de publicidade e marketing. É o modelo de negócio das plataformas digitais. Mas, na medida em que a política começa a passar por ali, em especial a política eleitoral, você começa a ter o realce de certas dimensões da política que a teoria política associa ao populismo. Por exemplo, inverter a hierarquia entre margem e centro, que é o movimento principal que a Internet faz. Então, no lugar dos mediadores tradi cionais, da imprensa, dos partidos políticos, da aca demia, você coloca a proeminência de quem estava na margem, que é o usuário comum, o senso comum, porque é uma tecnologia baseada em conteúdo gera do pelos usuários.

E outra coisa: a proeminência de um tipo mais perfor mativo de política, uma política que coloca em primeiro plano a estética, os afetos, um apelo às emoções, tudo isso também se associa a movimentos populistas.

Então, é um tipo de mídia que gera um certo desequi líbrio, porque sua própria arquitetura técnica dá uma dianteira para grupos políticos que investem nesse tipo populista de política.

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O que é novo nisso é que alguém como Bolsonaro não rotiniza o seu carisma de populista. Uma vez que ele vira governo, ele continua no modo antissistema, então ele continua corroendo a democracia liberal, o equilíbrio da democracia liberal por dentro. Ele consegue fazer isso muito por conta de ter esse outro aparato de comunicação que não precisa passar pelos espaços tradicionais dos partidos, por exemplo, que o forçaria a um compromisso como Vargas teve que fazer, ou Lula, no que o Marcos Nobre e o André Singer chamam de lulismo.

Então, agora, depois de 2018, eu tenho olhado como o Bolsonaro leva a cabo esse governo permanentemente populista através dessas camadas cibernéticas alterna tivas. Ele está o tempo todo jogando entre um público mais radicalizado, ancorado nas novas mídias, e o públi co mais convencional, que é para quem ele está apelan do mais agora, quando quer convencer os indecisos [a entrevista foi realizada antes das eleições], mostrar uma face moderada. Ele age nesses dois níveis.

É algo que o campo progressista não faz, pelo menos não fazia até muito recentemente. Talvez a gente tenha começado a ver uma mudança nesse sentido, de acei tar que hoje boa parte da política eleitoral vai passar por uma mobilização do tipo populista. E, mais especifica mente, passa pela internet, que a gente vê como esse movimento que estão falando de “janonismo cultural”.

Agência Pública:

O Bolsonaro governa via digital também. Algumas das coisas que a Pública investigou, por exemplo,

foi como ele conseguiu destruir não só o Sérgio Moro, como também o Henrique Mandetta. Conseguiu destruir esses ministros fortes através de campanhas digitais e exilá-los do governo. Mas é muito difícil saber o quanto isso é do Bolsonaro, ou se o populismo digital segue com ou sem Bolsonaro.

Letícia Cesarino:

A infraestrutura de mídia propícia esse tipo de política. É um dado. Mas não significa que é sempre esse tipo de política que vai ganhar na eleição, como aconteceu com Donald Trump, que teve que sair da presidência dos EUA. Mas o trumpismo acabou? Não, porque o trum pismo continua amparado nessas mesmas camadas.

Existe uma circularidade muito grande. Essa questão da espontaneidade – o que é espontâneo, o que é fabricado – tem que ser recolocada porque os algo ritmos fazem boa parte dessa organização em nome do Bolsonaro. Quem está tomando decisão num am biente público desse? É o Bolsonaro, é o Mourão, é o Carluxo? Não. O populismo do Bolsonaro não está nem só no Bolsonaro, nem só nas pessoas em torno dele, nem só nos seguidores dele, nem só na infraes trutura de mídia. Ela é um sistema que coemerge en tre todos esses níveis, porque todos eles têm um viés nesse sentido. Então, você tem a relação líder-base, que é superimportante, porque a internet cria nos eleitores dele essa ilusão de não mediação, ou seja, de que eles têm acesso direto a ele. Porque eles não veem a mediação tecnológica, ela é invisível.

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Mas entre os dois – o usuário e a liderança – tem outra camada, que são os influenciadores. São essas figuras que segmentam a rede, na real, não é uma relação di reta entre usuário e algoritmo. O Bolsonaro é só o topo dessa cadeia, porque ele agrega equivalência entre todos os segmentos. Mas são esses influenciadores intermediários, por exemplo, que vão organizar o seg mento cristão, evangélico, os que vão organizar um segmento militarista de participação etc. Eu até diria que eles têm um peso maior em organizar o público do que o próprio Bolsonaro.

Foi muito interessante, por exemplo, a gente ver esta semana como essa confusão da maçonaria, de fato, repercutiu bem mais no segmento cristão-e vangélico. Nos outros, como entre o segmento mi litarista, ela apareceu, mas de forma muito secun dária. Então você vê que tem uma segmentação de público forte.

Mas a questão é que a relação entre Bolsonaro e o povo, a sua base, é circular. Ou seja, ele também influencia essa base, é claro, mas ele talvez seja muito mais influenciado por ela, porque ela está o tempo todo fazendo um crowdsourcing de temas, de preocupações que vêm da base. E isso é da mídia cibernética. É ela que permite em tempo real e ele está tentando o tempo todo testar, perceber, pelas métricas. Isso é uma coisa totalmente nova, que não existia nem no rádio nem na TV. Claro que existiam formas de ouvir o público, mas nem se compara com o que existe hoje. A gente tem quase uma inversão:

é o influenciado que direciona o influenciador, se ele quer manter a sua base. Então, essa circularida de é bastante central.

Agência Pública: Recentemente, em entrevista ao The Intercept, você defendeu a estratégia da campanha sobre a maçonaria. Primeiro: por quê? E, segundo, você vê diferença entre a campanha digital no primeiro e no segundo turno?

Letícia Cesarino: Sim, tem muita diferença. A campanha do PT demo rou a entrar nesse jogo. Acho que é um pouco por isso: ela está acostumada a um outro tipo de política, um outro tipo de ambiente comunicacional.

Os eleitores do PT, é como se eles esperassem sem pre a sinalização do Lula, a sinalização do partido, pois o partido é a vanguarda nesse modelo pré-digi tal. O Bolsonaro não tem partido. Cada hora está num partido. Então, o mediador não é o partido, o media dor é a internet.

Agora, a esquerda começa a querer entrar nes se jogo da internet, o que é bom por um lado. Eu imagino que o partido vá segurar ou colocar cer tos limites à entrada da esquerda nessa guerrilha digital. Eu espero. Porque quando você entra ali é a coisa do feedback , você tende a ser tragado para o lixo.

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Agência Pública:

Mas a narrativa sobre a maçonaria não ultrapassou os limites?

Letícia Cesarino:

Olha, primeiramente, não é um grupo vulnerável. Mui to pelo contrário. Aqui em Santa Catarina, a elite toda é maçônica, digamos assim. E não consigo antever ninguém atacando uma loja maçônica por causa da quele conteúdo da maçonaria. E se trabalhou com es tigmas que já estavam nos segmentos evangélicos. É por isso que deu muita repercussão.

tem aquele espaço. Ainda mais nos aplicativos, por exemplo, o WhatsApp. Até então era praticamente uma hegemonia completa da direita. Ela jogava ali sem marcação. Tanto que esses públicos hoje estão muito fechados.

Agência Pública:

Você mencionou no seu Twitter a necessidade de separar o que é narrativa da guerrilha digital do que diz oficialmente a candidatura. Vi uma crítica sua no Twitter a respeito do Lula ter falado aber tamente sobre o vídeo no qual Bolsonaro diz que praticaria canibalismo…

Letícia Cesarino:

Eu acho que é até onde ele deve chegar. Não deve pas sar disso. É um risco que vem com esse tipo de estraté gia, você se queimar. E parte do sucesso da estratégia do bolsonarismo é que [ela] consegue delegar. Ele sem pre deixou uma imagem de ambiguidade em suas falas, como a questão da vacina, da pandemia mesmo, até no sentido de falar “mas não fui eu, foram vocês que enten deram errado”. Quem passou remédio ilegalmente para pacientes, fazendo experimento com o paciente, foram os médicos. Não foi o Bolsonaro. São duas camadas que devem ser mantidas separadas.

O que me surpreendeu nessa empreitada da maço naria é que eles conseguiram perturbar, conseguiram entrar pelo menos no segmento evangélico. E aí é volume, é quantidade. A direita trabalha com disparo automatizado e a militância sempre mobilizada, por isso, tem que ter sempre uma ameaça, algum perigo. E, também, temporalidade. O dia inteiro tem que es tar sempre aquilo ativo. Quem está ali está ocupando espaço. Quem não está, já perdeu um território. É por isso que é uma lógica de guerra, uma mesma lógica de ocupação de território. Por isso, o que aconteceu foi uma ofensiva, a meu ver, relativamente bem-su cedida.

Agência Pública: E você vê alguma diferença na estratégia dos bol sonaristas entre o primeiro e o segundo turno?

Agência Pública:

A estratégia da maçonaria foi uma surpresa gran de para mim, porque, no dia seguinte a uma demonstração enorme de força política de Bolsonaro, quem pautou as redes não foi o campo bolsonarista. E você fala em alguns dos seus artigos sobre a importância de ocupar o espaço, de ocupar o ter ritório. Queria que você explicasse um pouquinho isso.

Letícia Cesarino:

É a noção de que, na internet, conteúdo e forma estão juntos. Então não é que existe um espaço já reserva do para a esquerda na internet, assim como existe no programa eleitoral obrigatório da TV, alguns minutos para cada lado. Na campanha pela internet, quem tem mais conteúdo, quem consegue chegar mais longe,

Letícia Cesarino: Primeiro turno: pelo que eles optaram ali? Pela mo deração, claramente. No primeiro, eles já vinham com esse cenário de ir para o segundo turno e, as sim, optaram pela via eleitoral. Deixaram o outro ní vel, o nível metacomunicativo, da fraude nas urnas, em banho-maria. Claro, continuavam os conteúdos nesse sentido. Nunca pararam. Mas o que a gente viu ali há dez dias da votação, com a narrativa da fraude? Ela foi transferida das urnas para as pes quisas, mas mantendo a desconfiança. Sempre tem que manter a desconfiança em algum lugar, a des confiança da regra.

Agência Pública: …do sistema.

Letícia Cesarino: Agora [antes do segundo turno] eles continuam nessa linha. Eles até intensificaram essa fase mais moderada e menos golpista, digamos assim. Se Bolsonaro perder no segundo turno, com certeza, ele vai ativar essa outra narrativa, porque isso está ali, latente. E mais uma diferença também: o inimigo principal ao longo dos últimos meses era muito o TSE, o Alexandre de Moraes. Chegando perto do segundo turno, claramente eles redirecionaram para o Lula, que até então estava aparecendo relativamente menos.

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Agência Pública:

Mas há uma coisa interessante, que é a migração do discurso radicalizado das redes para a política real. E a gente vê isso, por exemplo, com o Lira e o Congresso querendo pautar uma CPI das pesquisas também, re gulamentação de pesquisas etc. Então também não é verdade que o discurso das redes fica só ali. Bolsonaro traz para sua atuação política desconfianças que nas cem nessas conversas mediadas pelo digital.

Letícia Cesarino:

Com certeza, porque a relação entre os políticos e as ba ses, principalmente a direita, passa completamente pela internet. E, no caso do centrão, passa também por essas linhagens patrimonialistas que foram reforçadas pelo or çamento secreto. É a questão da “Orbanização” – é o modelo que eu acho mais próximo, a do Viktor Orbán na Hungria. É o que o Bolsonaro faria se tivesse um segun do mandato. É um golpismo gradual.

Não é que os militares vão chegar e dar um golpe de Estado amanhã. Desde que o Bolsonaro tomou posse já foi um golpe, só que é esse golpe que eu chamo de não linear, porque ele vai empurrando um pouquinho a fron teira do que é possível. Há um tempo ninguém jamais ousaria falar em mexer na composição do STF. Quem faz isso é Hugo Chávez, quem faz isso é ditador. Mas, depois de quatro anos de governo Bolsonaro, boa parte da classe política já está sendo beneficiada pelo gover no dele, já começa a cogitar esse tipo de coisa. Ou seja, o líder vai conseguindo apoio gradual dentro da própria classe política, que é muito o que aconteceu com Or bán. Ele construiu uma rede de políticos locais, políticos regionais. É uma rede de patronagem, é uma reversão da gestão da democracia liberal e universalista a uma “democracia” que passa por redes de fidelidade ao líder. Então você vê, quando o Moro botou o rabinho entre as pernas e apoiou o Bolsonaro, aceitaram ele de braços abertos, e ontem estavam detonando ele, né?

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É o que eu chamo de reconhecimento bifurcado. Não é um modelo de política do reconhecimento universal, que é o da democracia liberal, do Estado de bem-es tar, que distribui prosperidade, que distribui direitos… Por isso que é importante a noção do “cidadão de bem”. O seu reconhecimento enquanto cidadão e os seus direitos estão predicados na sua adesão a um grupo, no caso aqui, a fidelidade ao bolsonarismo. E quem está fora está fora, não tem direito a nada. É o inimigo. “Vai pra Cuba, vai para a Venezuela.”

completa do outro. É o fascismo, sem dúvida. É que alguma coisa ainda segura ele [Bolsonaro]. Essa inér cia das instituições, a imprensa ainda tem uma força grande no Brasil. Mas para isso ser minado pouco a pouco não é difícil, é só dar tempo suficiente. É uma questão de tempo. Por isso que o segundo mandato é crucial.

A outra via seria você mudar a infraestrutura através da qual ele se comunica com a sua base. Porque isso não vai mudar e é uma infraestrutura que tem esse viés de segmentação.

Agência Pública:

Que é o que leva muita gente a associar o bolsona rismo ao fascismo.

Letícia Cesarino:

O mesmo processo levado ao extremo, a exclusão

Agência Pública:

Fala-se muito em regulação das plataformas e moderação de conteúdo, mas muitos analistas falam em redes sociais como se elas fossem

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todas iguais. E aí eu queria te perguntar se dá para falar realmente que o ambiente dentro do Gettr não é totalmente diferente de um ambiente como o do LinkedIn ou do TikTok. E, por outro, se a regulamentação faz sentido ou se há algo que é da própria mediação do digital que leva a esse viés.

Letícia Cesarino: Não é do digital, não. Tanto que a web 1.0 era mui to diferente dessa web plataformizada que a gente tem hoje. Claro, existem diferenças, principalmente nessa interface do usuário. Mas todos estão na eco nomia de dados… E é por isso que a plataformiza ção é importante. O que é a plataformização? É a circulação de dados entre as diferentes empresas. São as APIs que permitem que o YouTube troque dados com anunciantes, troquem também no Face book. A ideia da plataforma é essa, você tem essa circulação.

Então, num nível mais fundamental, todas elas têm esse viés técnico que se parece com esse do reconhe cimento bifurcado. Porque todas trabalham com seg mentação de público, formas de clusterização, de viés, que a literatura chama de homofílico, ou seja, todos esses algoritmos trabalham junto de igual com igual. A inteligência artificial trabalha assim. Ela observa pa drões semelhantes no comportamento dos usuários e vai “clusterizar”, agregar esses usuários de acordo com padrões semelhantes. Só que na medida em que você junta igual com igual, você está separando aque le cluster do outro.

Agora – isso é uma ressalva importante – isso é uma potencialidade que está no algoritmo? Sim. Poderia ter sido programado de outra forma? Poderia. Você pode, por exemplo, conectar igual com diferente. Você pode construir um algoritmo que vai conectar alea toriamente, mas nenhuma das plataformas trabalha com isso.

Além de ser um viés embutido no algoritmo, na pro gramação, o algoritmo é um código que é vazio e ele se atualiza na medida em que ele entra em relação com usuários reais, com pessoas reais. Então, esse viés está nos dois: está no programa e está no usuá rio. E é na interação dos dois que você gera esse efei to exagerado de segmentação que chega ao ponto da bifurcação. A nossa cognição já tem esse viés de confirmação, tem até um componente meio biológico nisso, né? Então, se esse é um viés que já existe, você ainda constrói uma infraestrutura técnica que vai re forçar esse viés…

Por exemplo, uma teoria da conspiração, onde você tem públicos com realidades invertidas, que seria o tipo extremo desse tipo de segmentação. O que for ma uma teoria da conspiração? É o algoritmo? É o usuário? São os dois. São os dois em interação, por que os dois têm esse viés.

Ao contrário, você tinha que ter construído uma in fraestrutura que equilibrasse esse viés, que fosse mais parecido com o modelo da democracia liberal, dos pesos e contrapesos, em que para cada feedback positivo você tem um feedback negativo. Porque, se não, você cria esse desequilíbrio e esse faccionalis mo, que não combina com o modelo de democracia liberal que a gente adota.

Outras sociedades que não têm Estado gerenciam esse viés de outras maneiras – e a gente, na Antropo logia, vê muito disso. Mas no tipo de sociedade que a gente tem é muito perigoso você produzir esse dese quilíbrio, porque pode ter ruptura social, pode ter vio lência, pode chegar até a um tipo de fascismo. Como já aconteceu.

Agência Pública:

Pelo que você está dizendo, então o que é preciso reformular é a economia da atenção e a economia de dados. E esse é que é o problema.

Letícia Cesarino:

O ideal é amenizar o exagero de vieses técnicos, com certeza. Reforma de arquitetura algorítmica. E tem a questão da temporalidade também, porque estamos falando da questão mais espacial, que é a segmen tação. No meu livro, eu discuto também, com base em vários autores, que boa parte dos problemas está na temporalidade da mídia. Acho que se você fizesse algoritmos mais lentos, a maioria dos problemas você já resolveria. Porque essa temporalidade cria uma disposição no usuário a esse tipo de narrativa polí tica, a esse tipo de narrativa conspiratória. É um viés cognitivo inverso ao que é estimulado pelos modelos da democracia liberal clássica, digamos assim, que é a ponderação, o diálogo, a busca de ver a visão do outro, de programar, de planejar. Só que todas as pla taformas tinham que combinar isso. Ou seja, é uma regulação que tem que vir de fora.

Agência Pública: Você escreveu que o deputado federal André Janones “pesou a mão” ontem ao acusar o

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deputado eleito Nikolas Ferreira de figurar em vídeo pornô com outro homem.  Do ponto de vista do jornalismo, em especial, dessa nova área que pretende investigar as campanhas desinformativas, ou de manipulação de discurso, obviamente espalhar uma informação inverídica – que foi o caso – e fomentar discurso de ódio (homofobia) é absolutamente condenável porque ajuda a poluir o ambiente informativo. Você vê consequências de longo prazo nessa estratégia?

Letícia Cesarino:

Com certeza. Mas a gente tem que ver exatamente qual. Me parece uma tática muito focada para o con texto eleitoral, sabe? Para estar ali realmente se tor nando um centro de atração algorítmico para pertur bar, digamos assim, a hegemonia que a direita tinha.

Eu não vejo isso, do jeito que ele está fazendo agora, como uma tática mais perene. A tática mais suave, di gamos assim, está produzindo conteúdos, pautas de esquerda que podem ou não estar atacando a direita, mas de forma mais sustentável no tempo. Os canais que se automonetizam, enfim, influenciadores que podem fazer cada um seu meio de vida. Isso é impor tante, porque para se ter sustentabilidade tem que se autofinanciar.

O perigo é esse tipo de tática mais ou menos ética de trabalhar com vídeo falso, que tem o efeito de estar afastando certo perfil de eleitor do próprio Lula. É por isso que eu insisto muito que as duas coisas têm que ser mantidas separadas. Manter as duas coisas sepa radas, como o Bolsonaro, de certa forma, também faz essa face mais moderada e a face mais radicalizada.

Agência Pública:

Você menciona em um dos seus artigos que essas plataformas são construídas “mais com dinâmicas do mundo do marketing de massa, do mercado financeiro, ou mesmo das chamadas guerras híbri das”. Esses são três campos muito diferentes e eu queria entender o que se parece entre cada um.

Letícia Cesarino:

Na verdade, eles não são exatamente campos sepa rados. A literatura demonstra como esses campos que hoje se encontram mais afastados tiveram uma origem comum na Segunda Guerra, na emergência do complexo industrial militar e na própria Guerra Fria. No fundo, eles trabalham com uma lógica de influên cia na lógica performativa, de abordagem indireta.

São campos em que se atua no sentido de estar influenciando pessoas a fazer coisas. No caso do marketing, isso é óbvio e vários dos saberes de eco nomia comportamental também são utilizados dentro da indústria tech, no design de interface de usuário. E a guerra híbrida é totalmente isso. É uma guerra cor tical, no sentido de que você não está operando no “terreno”, mas está operando no terreno humano, no terreno cognitivo do seu inimigo. Então, não é à toa que tudo isso converge muito fortemente hoje, por que estruturalmente são lógicas bastante parecidas.

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O mercado financeiro parece um pouco diferente, mas também a financeirização é performativa. Ela visa produzir efeitos sobre as ações da bolsa. Assim, você vai estar interferindo no sistema e na ação dos agentes para tentar gerar um resultado positivo para você. E quando eu digo “você” é qualquer participan te. A própria algoritmização surge primeiro no merca do financeiro, depois é que ela passa a orientar esse modelo de plataforma que a gente tem hoje, que é o modelo do século 21. Mas no mercado financeiro isso vem desde os anos 1970.

A lógica de influência em todos esses campos é a ló gica que começa a presidir o ambiente de interação das pessoas com as plataformas. Todos esses pro cessos começam a convergir.

Agência Pública:

Percebo aí uma crítica – que eu também faço –àqueles que dizem que estamos vivendo uma guerra de quarta geração, que tudo seria um gran de plano dos militares ou do Partido militar etc. A estratégia bolsonarista é mais Bannon, Carluxo ou General Heleno?

Letícia Cesarino:

A diferença entre a guerra híbrida e a própria ope ração das plataformas, o modo como elas operam vai se diluindo. Então, claro que os militares são atores importantes e aí tem toda a dificuldade de a gente acessá-los, como pesquisadores. Eles são uma instituição totalmente fechada. Mas a gente vê pelo tipo de pauta da guerra memética, essa coisa muito forte do anticomunismo, essa coisa da Ama zônia também, isso vem dos militares, não vem do Bannon.

O anticomunismo e o conspiracionismo dos mili tares brasileiros têm muita ressonância no bol sonarismo hoje. Mas não é o único. Tem o seg mento evangélico, o fundamentalismo religioso, e esse segmento mais olavista que se liga à alright internacional. Na verdade, é uma combinação de todos esses segmentos. Mas essa questão da in tencionalidade está diluída entre vários atores, inclusive os atores algorítmicos, os atores não hu manos. Eles tomam decisões, ajudam a organizar o social.

Agência Pública:

Agora uma pergunta sobre a questão do ovo ou da galinha. Você nota que existe uma prolifera ção da linguagem bélica, o retorno desses termos de “guerra”: guerra cultural, guerra contra o comunismo, o globalismo. “Cruzada” também é um termo que aparece muito. Em um artigo você nota que as três dimensões da desumanização da guerra coexistem, hoje, nos públicos bolsonaristas. O quanto disso é conformado pelo meio digital (técnico) e o quanto é da essência da ideologia bolsonarista, que reúne mentalidades que já existiam na sociedade brasileira (ideologia)?

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Letícia Cesarino:

Sim, são só uns dois. É uma lógica do digital que vem da cibernética, que vem do complexo industrial mili tar, e a ideologia bolsonarista que, com certeza, vem de uma cultura política brasileira, que é personalista e que trabalha com essa ideia do reconhecimento bifur cado. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Então, não é uma cultura política que tem sedimentado, ao longo da sua história, uma sensibilidade para a democracia liberal no modelo normativo e que, em 1988, se tentou implantar. Já se está trabalhando num substrato social histórico que é complicado.

No caso do Brasil, esses vieses técnicos novos vêm reforçar algo que já é da cultura política brasileira. Agora, a questão da desumanização da guerra, os três pontos são esses. Numa guerra mais de confronto, essa desumanização do outro ocorre através de sim bologias, de anomalias, ação de monstro, fixação do outro, lembrando aqui um exemplo de cartas de sol dados, falando do inimigo como o verme.

No caso das guerras de terceira ou de quarta geração, em que você já tem uma fixação maior do conflito, por exemplo, a Guerra do Kuwait, você tem um outro tipo de desumanização, que é pela distância. Então essa guerra de videogame. Se você está lá com um drone ou com um míssil, você está operando o armamen to a distância, como se fosse um videogame mesmo, você explode uma escola, mas a única coisa que você está vendo ali na sua tela é uma imagem. Então essa distância que a tecnologia propicia entre você e o ini migo, isso desumaniza porque você não consegue ver aquele inimigo. Essa é uma segunda forma. E a ter ceira, essa da cibernética, você já vê o híbrido como o inimigo, como híbrido de humano e máquina.

É uma visão do humano que não tem interioridade, não tem moral, que é a forma como essa internet hoje molda o usuário na relação usuário-máquina algorít mica. Tudo isso converge para dar tração para esse discurso do bolsonarismo de que o inimigo não mere ce reconhecimento, que o inimigo é um monstro. Que essa é uma guerra pela eternidade, uma guerra espiri tual, e você precisa eliminar esse inimigo de qualquer forma.

Você está num ambiente que é propício à geração dessa imagem do inimigo, como alguém que não é humano, de não merecer o reconhecimento de ser do mesmo país, do mesmo corpo político, do mesmo corpo espiritual. Então você gera aquele tipo de iden tidade muito fechada: só quem é cristão, só quem é

cidadão de bem é brasileiro de verdade. E o outro não é o outro, é o bandido ou o corrupto. Ele tem que ser exterminado, ele tem que sair do país. E essa bifur cação do corpo político realmente entre o verdadeiro brasileiro e os outros, que é próprio da lógica da guer ra. Esse caso extremo de bifurcação, em que você li mita o outro fisicamente.

Agência Pública: Um dos seus artigos analisa a neutralização do crime horrendo do bolsonarista que matou o petista Marcelo Arruda por estar em uma festa temática do PT. Nele, você disseca o uso dos canais influenciadores bolsonaristas mais “moderados” e ambíguos, e mostra que eles operam em dois níveis, um do conteúdo e outro que é metacomu nicativo e indireto. Chama isso de “negabilidade plausível”. Você pode explicar o que significa isso?

Letícia Cesarino: Na verdade, são duas coisas um pouco diferentes: a atuação em dois níveis e essa atuação no nível de in teração intersubjetiva normal, digamos assim, e o ní vel meta, que é aquele que enquadra a comunicação em si. O bolsonarismo e o conspiracionismo em geral agem sempre nesses dois níveis. O nível comunica tivo vai no sentido de descredibilizar os próprios me diadores que entregam a realidade para as pessoas.

Então, “a imprensa está falando tudo sobre esse cri me”? “A imprensa está omitindo que, na verdade, ele foi agredido pela vítima”. Então você está fazendo um enunciado num nível comunicativo, normalmen te subjetivo, mas você está ao mesmo tempo fazen do uma proposição no plano metacomunicativo: de onde vem aquela informação? Podemos confiar na quela fonte?

O Bolsonaro sempre opera nesses dois níveis. É o que eles fazem com a democracia também. No caso aqui da eleição, ele joga o jogo eleitoral. Seria essa a ponta mais moderada, em que ele está agora, inclusive. Aí ele vai falar das realizações do governo. Mas ele tam bém está jogando ao mesmo tempo, no nível meta, que é esse da descredibilização do próprio processo eleitoral. E isso vai variando, uma hora era a questão das urnas, do TSE, depois, mais recentemente, virou a descredibilização dos institutos de pesquisa.

Mas mesmo quando ele está na linha mais moderada, jogando o jogo eleitoral, ele está sempre cozinhando ali, mantendo acesa a ofensiva no plano metacomunicativo

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também. E aí a negabilidade plausível é uma das manobras táticas que essa operação em dois níveis permite. Porque, como eles, mantém sempre o nível metacomunicativo, ambíguo, instável, destilando a dúvida ali naquele nível meta. Não tem ninguém, nem uma autoridade fixa, digamos assim, para dizer que o Bolsonaro está mentindo ou não. Ele joga na ambiguidade e ele tem margem de manobra para dizer: “não… não foi bem isso que eu disse”.

Agência Pública:

Em que o jornalismo brasileiro tem errado ao lidar com o bolsonarismo (ou populismo digital)?

Letícia Cesarino:

Eles plantam certas armadilhas porque eles usam muito o jornalismo para estar, inclusive, testando cer tas proposições junto a um público que não é o de les, um público maior. E quando eles veem que não foram bem recebidos, eles voltam atrás ou guardam ali no fogo baixo para voltar em um determinado mo mento. Esses testes eles fazem demais, balõezinhos

de ensaio. E de novo, o feedback de rede social, que é muito rápido, ajuda muito nisso. Mas eles ao mes mo tempo usam a imprensa e têm a imprensa como inimiga, porque ela é um dos mediadores nesse nível metacomunicativo.

A imprensa já fez algumas coisas, a meu ver, corretas. Por exemplo, a própria recusa de ficar ali no cercadi nho. Agora, quais são os cercadinhos virtuais onde Bolsonaro está colocando a imprensa? A imprensa hoje tenta pensar um pouco nesse sentido, mas eu sinceramente não vejo muito como a imprensa pode ria estar fazendo muito diferente.

E o jornalismo em si? Eu acho que está indo super bem. Ele ainda está desempenhando seu papel de fa zer denúncias. Claro que não tem a centralidade que tinha antes da internet, mas a gente vê que ainda é uma força muito importante e, eu diria, até essencial para conter o avanço da extrema-direita. É muito im portante o trabalho que vocês fazem e talvez o mais importante, junto com as próprias forças políticas que se opõem ao bolsonarismo.

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verdes em ação Quem são os verdes eleitos para a Câmara Federal em 2022

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Verde
Pensar

Revista de debates da Fundação Verde Herbert Daniel

As Eleições 2022 foram marcadas por uma luta acir rada pela democracia. A disputa para a Presidência da República acabou com uma vitória apertada da chapa Lula-Alckmin, que obteve 50,90% dos votos válidos em relação ao atual presidente, que obteve 49,10% dos votos válidos.

Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a abs tenção teve o maior percentual desde as eleições de 1998 – 20,3% do total. Dos 156.454.011 eleitores aptos a votar, 32.739.105 deixaram de comparecer às urnas. Porém, houve uma queda de quase 50% de votos nu los e brancos em relação aos últimos quatro pleitos, que registraram uma variação entre 8% e 10%. Em 2022, foram registrados 5,4 milhões de votos brancos e nulos no segundo turno, cerca de 4,5% do total. O maior percentual foi em São Paulo (5,64%) e o menor, no Pará (2,29%).

A participação do PV na Federação Brasil da Espe rança, juntamente com o PT e o PCdoB, mostrou-se elemento crucial para o protagonismo do combate à crise climática e para o fortalecimento da bancada verde na Câmara Federal.

O PV elegeu quatro novos deputados federais e reele geu dois em cinco estados e no Distrito Federal, am pliando para seis a atual bancada de quatro verdes. Além dos deputados João Carlos Bacelar (PV-BA) e Aliel Machado (PV-PR), reeleitos com 110.787 e 94.839 votos, respectivamente, passaram a compor a nova legislatura os deputados Clodoaldo Magalhães (PV -PE), Jadyel da Jupi (PV-PI), Luciano Amaral (PV-AL) e Reginaldo Veras (PV-DF).

Deputados federais eleitos em 2022 - Clodoaldo Magalhães (PV-PE): 110.620 votos - Jadyel da Jupi (PV-PI): 83.175 votos - Luciano Amaral (PV-AL): 101.508 votos - Reginaldo Veras (PV-DF): 54.557 votos

Deputados federais reeleitos em 2022

- Bacelar (PV-BA): 110.787 votos - Aliel Machado (PV-PR): 94.839 votos

Fonte: TSE

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Conheça um pouco mais sobre os novos deputados federais do PV

Além disso, proporcionou uma melhoria significativa no mapeamento das epidemias e da saúde coleti va no município por meio da capacitação dos agentes comunitários e da implementação de serviços de nu trição e enfermagem na cidade.

O médico também assumiu a secretaria de Governo no Município de Joaquim Nabuco por dois anos, com o desafio de articular as ações de todas as pastas da administração municipal, aliando planejamento e eficiência de execução.

Essas experiências desenvolveram a habilidade polí tica e pavimentaram o caminho de Clodoaldo até a Alepe. Em 2006, ele foi eleito com 57.515 votos para o primeiro mandato como deputado estadual, ao qual se seguiram mais três até este ano, quando conquis tou uma vaga na Câmara Federal.

Como médico, Clodoaldo mantém contato direto com a população, ouvindo e entendendo o que as pessoas sentem e desejam. Também devido a sua profissão, ele prioriza a saúde em sua atuação parlamentar. “Mas não uma saúde apenas assistencial, quero debater a partir do complexo econômico, passando pela pesquisa, ino vação, desenvolvimento, produção industrial dos seto res químico, farmacêutico, de biotecnologia, serviços de saúde e outros”, explica o parlamentar.

O pernambucano Clodoaldo Magalhães foi eleito deputado federal este ano com pouco mais de 110 mil votos, após quatro mandatos na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Ele foi o sexto deputado estadual mais votado em 2018. No início de 2022, Clodoaldo filiou-se ao PV e assumiu a presidência estadual do diretório em Pernambuco.

A vocação para a política apareceu desde cedo. Aos 12 anos, fez o primeiro discurso para a posse do pai, Eudo Magalhães Lyra (PSB-PE), que foi deputado estadual e prefeito dos municípios pernambucanos de Água Pre ta, Joaquim Nabuco e Xexéu.

Em 2000, dois anos depois de se formar em Medici na, Clodoaldo estreou na política como secretário de Saúde de Sirinhaém. Nesse cargo, ele garantiu uma maior estrutura para o atendimento público com a reforma do hospital municipal e a construção de postos do Programa de Saúde da Família (PSF) em cinco distritos.

Uma de suas importantes contribuições como depu tado da Alepe foi a proposição e aprovação da Lei nº 13.300, de 21 de setembro e 2007, que criou um regi me especial de atendimento em toda a rede de saúde pública e privada de Pernambuco com cirurgias plás ticas reparadoras para mulheres vítimas de violência.

Ele acredita que não se pode falar em meio ambiente sem considerar a saúde. Atribui sua preocupação com a natureza ao contato com o verde e por causa das chu vas frequentes na região onde nasceu, em Palmares, na Mata Sul do estado. O nome é uma homenagem ao Quilombo dos Palmares, instalado nas proximidades da cidade e reconhecido pela brava e duradoura resistência sob o comando de Zumbi.

Homem fervoroso e religioso, Clodoaldo acredita que somos capazes de mudar nossa rota a partir de uma jornada mais consciente e verdadeira. Para ele, mudanças sociais como o avanço da medicina e das tecnologias podem ser avaliadas como positivas. Já a degradação ambiental, que ameaça nossa espécie, e as redes sociais, que têm influência direta na forma como temos construído nossas relações, podem ser avaliadas como nocivas.

O deputado destaca a renovação e a oxigenação na Câ mara Federal com as eleições deste ano e pontua que

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Deputado Clodoaldo Magalhães (PV PE) Foto de Rodolfo Barbosa

são importantes para a democracia. Ele espera haver uma soma da experiência dos veteranos com as ideias dos novatos e acredita que poderá contribuir com o de bate e as mudanças que o Brasil precisa fazer.

Para ele, os maiores desafios são “retomar as políti cas sociais, avançar no desenvolvimento econômico, atrair mais investimentos e garantir a proteção ao meio ambiente”: “Vou atuar para que Pernambuco esteja inserido nas ações do governo Lula para forta lecer áreas essenciais como a saúde e o desenvolvi mento social”.

O trabalho do deputado federal Clodoaldo Magalhães, do PV de Pernambuco, pode ser acompanhado pelo site e pelas redes sociais Facebook (/DeputadoClodoaldoMagalhaes), YouTube, TikTok (@clodoaldo magalhaes). Ele também tem presença marcante no Instagram (/deputadoclodoaldomagalhaes) e no Twitter (/DepClodoaldoM). Além disso, os sites da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br/) e do Partido Verde (https://pv.org.br/) disponibilizam in formações sobre sua atuação.

Nascido em Teresina, Jadyel Silva Alencar, dono da Jupi Alimentos, por confiança e alinhamento com os ideais do PV, filiou-se no início de 2022 em cerimônia na sede do partido em Brasília.

Jadyel recebeu apoio de diversas lideranças políticas piauienses, do estado e dos municí pios, para disputar a corrida rumo à Câmara Federal.

A atuação do deputado federal poderá ser acom panhada pelo Instagram (/jadyeldajupi) e pelos sites da Câmara dos Deputados e do Partido Verde

Jadyel da Jupi (PV-PI)

O empresário Jadyel da Jupi, de 35 anos, venceu a dis puta para uma das cadeiras de deputado federal pelo Piauí nas eleições deste ano com 83.175 votos.

Luciano Amaral (PV-AL)

O advogado e pecuarista Luciano Amaral é um dos nove deputados federais eleitos por Alagoas. Ele foi o terceiro deputado mais votado em 2022 (101.508 votos), ficando atrás apenas de Arthur Lira (PP), com 219.452 votos, e de Alfredo Gaspar (União), com 102.039 votos.

Natural de Major Izidoro (AL), Luciano acumula mais de 15 anos de experiência no serviço público. Ele cresceu vendo a atuação dos avós na política e já exerceu vários cargos na Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE).

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de debates
Fundação
Herbert
Deputado Jadyel da Jupi (PV DF) https://jadyeldajupi.com.br/ Deputado Luciano Amaral (PV AL) Foto Assessoria

Esse contato muito próximo com a política desde cedo lhe possibilitou conhecer bastante as necessi dades do povo alagoano. Como homem público, gosta de ouvir as pessoas e considera o diálogo primordial para garantir avanços e benefícios para a população.

As prioridades do mandato de Luciano são: a defesa do municipalismo para garantir mais autonomia aos gestores públicos; o fortalecimento da agricultura fa miliar, com a criação de novos programas de inves timento, principalmente para o pequeno produtor; o apoio à criação de creches e a melhoria da qualida de da saúde pública. “Entro no Congresso com muita vontade de trabalhar. Como terceiro deputado federal mais votado de Alagoas, sei da responsabilidade que carrego. Já realizei algumas visitas, estamos montan do a equipe e vamos chegar com muitas ideias boas para tirar do papel.”

O deputado acredita que um dos maiores desafios do seu mandato será reativar o desenvolvimento socioe conômico do país. Para isso, é preciso, entre outras coisas, resgatar a credibilidade institucional do Brasil, captar grandes investidores e garantir emprego e ren da para a população.

As informações sobre a atuação do deputado federal Luciano Amaral, do PV de Alagoas, podem ser obtidas pelo Instagram (/lucianoamaralfilho)e pelos sites da Câmara dos Deputados e do Partido Verde. “Como representante do povo, tenho por obrigação ser aces sível. Essa postura faz parte da minha natureza. Amo Alagoas e gosto de conversar com o povo.”

dança educacional, social e política fez com que Re ginaldo cogitasse uma candidatura em 2013, mas era completamente desconhecido no meio político. Incentivado por amigos, colegas e alunos, ele lançou sua candidatura a deputado distrital em 2014 e foi eleito com 12.506 votos para ocupar uma das 24 ca deiras na CLDF. Em 2018, ele foi reeleito com 27.998 votos.

Como um dos compromissos do deputado é partici par apenas uma vez de reeleição para o mesmo car go, este ano ele lançou candidatura para a Câmara Federal e conseguiu 54.557 votos. “É hora de buscar novos espaços e tentar levar ideias e práticas inova doras para o restante do país.”

Os maiores desafios de Reginaldo no novo mandato são novas proposições de políticas educacionais e acompanhamento da execução de recursos federais destinados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e pelo Ministério da Educação (MEC) para a área.

A atuação do deputado federal Reginaldo Veras, do PV do Distrito Federal, poderá ser acompanhada pelo YouTube (/@ReginaldoVeras12), Instagram (/regi naldo.veras), Facebook (/professorveras), Twitter (/ reginaldoveras) e pelos sites da Câmara dos Depu tados e do Partido Verde.

Reginaldo Veras (PV-DF)

Eleito este ano pelo PV, o professor de Geografia Reginaldo Veras deixará a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) para assumir uma vaga de deputado federal a partir de 2023, tendo seu trabalho reconhecido e referendado pela população brasiliense por dois mandatos.

A prioridade da atuação legislativa do cearense de Crateús radicado no DF há 46 anos é a defesa dos serviços públicos de Educação e Saúde, bem como dos servidores públicos. Reginaldo também vem se aprofundando nas áreas tributária e orçamentária para qualificar ainda mais a sua atuação como depu tado.

Ceilandense de coração, o professor se considera um homem simples, que ama a família, a sala de aula e o Vasco da Gama. O desejo de transformação e mu

Deputado Reginaldo Veras (PV DF) \ Foto de Ísis Dantas

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País rico solo fértil

Procurando uma crônica, um artigo, um conto... para a nossa coluna Solo Fértil, me deparei com esta crônica de Lima Barreto, um dos grandes escritores da litera tura negra brasileira. Falar sobre a história do escritor, que nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1888 –e sobre sua fundamental e, infelizmente, esquecida ou desconhecida obra – daria várias páginas, e este não é o meu objetivo aqui.

Quando li esta pequena crônica, escrita em 1920, a não ser pela linguagem da época, parecia estar vivendo o agora, exatamente este novembro de 2022. E a sensa ção que me veio foi a de sempre, algo que muitos de nós sentimos: entra década, sai década, pouco muda no Brasil, tudo igual ou, ao menos, quase igual. A mi séria no Brasil não é somente a da fome, a humana. Há outras talvez tão ou piores que essa. A miséria moral é uma delas, essa miséria que não vê a fome, a necessi dade, a desigualdade, pelo contrário, a alimenta mais e mais. E, tristemente, não estamos falando aqui apenas de política e dos políticos – Ana Vilela.

1 - A crônica, publicada em 1920, pode ser encontrada em: BARRETO, Lima. Crônicas escolhidas de Lima Barreto. São Paulo: Ática, 1995, p. 59, 69.

2 - Afonso Henriques de Lima Barreto (Rio de Janeiro, 1881–1922) foi um dos ensaístas brasileiros que mais tiveram um olhar crítico e sagaz sobre as várias misérias do Brasil, entre elas, a miséria moral. Algumas de suas obras estão: O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, “uma triste impressão sobre a grande im prensa carioca em que o protagonista vende a alma para não perder o emprego e ganhar a aceitação dos seus pares”, e Bruzundangas, “o resumo de tudo o que o Brasil republicano era na época, e ainda é até hoje” (https://medium.com/correio-popular, 2016).

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“Não há dúvida alguma que o Brasil é um país mui to rico. Nós que nele vivemos não nos apercebemos bem disso, e até, ao contrário, o supomos muito po bre, pois, a toda hora e a todo instante, estamos ven do o governo lamentar-se que não faz isto ou não faz aquilo por falta de verba.

Nas ruas da cidade, nas mais centrais até, andam pe quenos vadios, a cursar a perigosa universidade da ca laçaria das sarjetas, aos quais o governo não dá destino e os mete num asilo, num colégio profissional qualquer, porque não tem verba, não tem dinheiro. É o Brasil rico...

Surgem epidemias pasmosas, a matar e a enfermar milhares de pessoas, que vêm mostrar a falta de hos pitais na cidade, a má localização dos existentes. Pe de-se a construção de outros bem situados; e o go verno responde que não pode fazer porque não tem verba, não tem dinheiro. E o Brasil é um país rico.

Anualmente cerca de duas mil mocinhas procuram uma escola anormal ou anormalizada, para aprender discipli nas úteis. Todos observam o caso e perguntam:

– Se há tantas moças que desejam estudar, por que o governo não aumenta o número de escolas a elas destinadas?

O governo responde:

– Não aumento porque não tenho verba, não tenho dinheiro.

E o Brasil é um país rico, muito rico...

As notícias que chegam das nossas guarnições fron teiriças são desoladoras. Não há quartéis; os regi mentos de cavalaria não têm cavalos etc., etc.

– Mas que faz o governo, raciocina Brás Bocó, que não constrói quartéis e não compra cavalhadas?

O doutor Xisto Beldroegas, funcionário respeitável do governo, acode logo:

Não há verba; o governo não tem dinheiro.

E o Brasil é um país rico; e tão rico é ele, que, apesar de não cuidar dessas coisas que vim enumerando, vai dar trezentos contos para alguns latagões irem ao estrangeiro divertir-se com os jogos de bola como se fossem crianças de calças curtas, a brincar nos re creios dos colégios.

O Brasil é um país rico... ”

Marginália, 8 de maio de 1920.

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coleta seletiva

Informação, o antídoto contra a extrema-direita e as fake news

Para assistir

São vários os filmes sobre o fascismo e o nazismo, entre eles, A Onda (2008), Jojo Rabbit (2019), Bastardos Inglórios (2009), Chá com Mussolini (1999), O Banqueiro da Resistência (2018), Ele Está de Volta (2015) e o Labirinto do Fauno (2006). E, sim, o nazismo existiu, deixou marcas profundas, com milhões de vítimas, não é uma invenção do cinema, mas a sétima arte pode nos ajudar a entender um pouco mais sobre essa terrível parte da história mundial. Outras dicas são: a Lista de Schindler (1993), O Diário de Anne Frank (2009), O Menino do Pijama Listrado (2008) e o clássico O ovo da serpente, de Ingmar Bergman (1977).

Sobre o Brasil: Marighella (2019), um filme biográfi co sobre Carlos Marighella, escritor marxista brasi leiro, político e guerrilheiro que viveu no século 20 e foi morto pela ditadura militar brasileira em 1969; e Olga (2004), baseado na história real de Olga Bená rio, a esposa alemã do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. Durante a ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945) foi presa e enviada para a Alemanha na zista, onde foi condenada à morte em um campo de concentração. Após o início da Segunda Guerra Mun dial, Vargas decidiu apoiar os Aliados.

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Para ler

“Tal enunciado é fato ou ficção, original ou cópia? Quem é agente e quem é paciente, ação e reação? Tal comportamento é espontâneo ou manipulado, públi co ou privado? A intenção dessa pessoa é autêntica ou espúria? Em quem posso confiar?” Em um mundo onde a internet se tornou massivamente disseminada, tornando-se a principal arena de comunicação políti ca em diversos países, essas perguntas que fazemos no dia a dia são indícios da ascensão de processos como populismo, pós-verdade, negacionismo e cons piracionismo. Em O Mundo do Avesso: Política e Ver dade na Era Digital (2022, Editora Ubu), a antropóloga Letícia Cesarino oferece uma perspectiva inovadora para ler esses fenômenos, comumente explicados por causas políticas, econômicas ou conjunturais.

E as fake news estão entre os temas estudados pelo NetLab, um laboratório de pesquisas da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Ja

neiro (UFRJ) dedicado a estudos de internet e redes sociais. Na página do laboratório (www.netlab.eco. ufrj.br/) é possível encontrar artigos e resultados de pesquisas, por exemplo, o “Acompanhamento multi plataforma da desinformação durante as eleições 2022”.

Sobre o fascismo as dicas são: O fascismo em cami sas verdes. Do integralismo ao neointegralismo, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto (FGV, 2020); Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”, de Jason Stanley (L&PM, 2018); Como conversar com um fascista, de Márcia Tiburi (Record, 2015); Fascismo à brasileira, de Pedro Dória (2020), O fascismo eterno (Record, 2018), de Umberto Eco, e A anatomia do fascismo, de Robert Paxton (Paz & Terra, 2008). A respeito da história recente brasileira as dicas são: Diário da catástrofe brasileira: Ano I – O inimaginável foi eleito e Diário da catástrofe brasileira: Ano II: Um genocídio escancarado: 2, de Ricardo Lí sias (Record 2020 e 2021).

Para ouvir

Podcast O assunto #802: Itália – neofascismo vitorioso nas urnas (27 de setembro de 2022), com a jornalista do G1 Renata Lo Prete (https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2022/09/27/o-assunto-802-italia-neofascismo-vitorioso-nas-urnas.ghtml).

Para acompanhar

Jornalismo independente https://apublica.org/ https://sumauma.com/ https://nexojornal.com.br/ https://midianinja.org/

Agências de checagem de fake news: https://aosfatos.org/ https://lupa.uol.com.br/jornalismo/ https://g1.globo.com/fato-ou-fake/ https://www.boatos.org/

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“É preciso estabelecer vínculos entre as lutas pelo direito à posse da terra com as lutas que buscam ecologicamente definir uma nova relação com a Terra.”

Herbert Daniel

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