Livro "BRASIGUAIOS"

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OS BRASIGUAIOS --:cÁCIA CORTÊZ

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AGRADECIMENTOS

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A Gera}.do Garcia, meu companheiro de vida, João K. Cortêz, Liliana Lavoratti, Paulina Aguiar, Ing Schilling, Jan Rocha, Michael Nolan, Ricardo Brandão, Marcia Maia Sprandel, Luís Carlos Batista, Maurilei Ruggi, Nanei e Nancineid" Silva, Damarci Olivi, Pedro e Leila Teruel, pelo incentivo, acompanhamento, debate e conversas esclarecedoras. Ao Clamor e à Christian Aid, que possibilitaram a realização desse trabalho. Aos companheiros e amigos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, pelos ensinamentos.


Para Isaak Akcelrud.


À memória de Justino, o outro nome de meu pai. João Batista, jovem sem-terra. •.

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SUMARIO

Apresentação............................................................ ll Nem brasileiros, nem paraguaios........................... 13 A violência institucionalizada................................. 17 OtratadodeltaipueamortedeSeteQuedas......... 27 Fronteira viva................................,......................... 35 O caminho de volta para casa................................. .41

Aorganizaçãoparaoretomo.....................................45 Oretomo; ...................................................................53 O porto de chegada.....................................................54 A cidade de lona.........................................................58 Torturados................................................................ 60 Mutirão de saúde........................................................70 )

O cerco à cidade de lona........................................... 75

O diário do poeta....................................................... 82 NovoHorizonte....................................................... 89

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Acidadedosbrasiguaios ...........................................95 Novospersonagens .................................................. 101 Emancipação........................................................... 105 Novoretomo........................................................... 107 . ..


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Aos brasiguaios, reforma agrária no Paraguai... .... 113

Por trás das cortinas.................................................. 119 Os acordos de cúpula................................................ 122 Uma colônia do Brasil. ............................................. 128 Brasiguaionãoentra....................................;............ 131 A resistência dos campesinos paraguaios .............. 135

CasoZarnpieri .......................................................... 136 Colônia Santa Tereza............................................... 137 "--VirgemdeFátirna,LaPaloma................................... 141 Reloj Cué................................................................. 142 Tavapy II.................................................................. 143 Sociego.................................................................... 144 Malvinas-Se!:,ruinCué........................................... 145 L A queda de Stroessner.. ............................................. 146 Opesadelo .............................................................. 149 L Federação campesina................................................ 155 A resistênciacontinua............................................... 157 Rompendo o isolamento ......................................... 163 As milícias do latifúndio ........................................... 168 Novo cerco aos brasiguaios.................................... 173

Fronteirafechada...................................................... 178 A reação das milícias................................................ 179 O socorro da Cruz Vem1elha ................................ l 83 Violência oficial.. ..................................................... 185 Trabalho escravo e suicídios.................................... 189 )

Os brasiguaios e o Mercosul. .................................. 193 Cidadãos excluídos .................................................. 194 União de forças .......................................................... 198 Subimperialismo brasileiro................................................. 19 8 Em defesa da "ordem pública".................................. 202 Cronologia ...............................................................209 Bibliografia.............................................................213


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APRESENTAÇAO

Em julho de 1985, o Clamor (Comitê para a Defesa dos Direitos Humanos no Cone Sul) recebeu uni apelo da Comissão Pastoral da Terra do Mato Grosso do Sul: "vem ver a situação dos brasiguaios, eles precisam de ajuda", disseram. Nem sabíamos direito o que eram os brasiguaios, mas eu e o advogado Fermino Fecchio viajamos de avião e jipe até chegar em Mundo Novo, na fronteira com o Paraguai. Ficamos hospedados numa casa de freiras. Levados por uma jornalista, fomos conhecer os brasiguaios. A jornalista era Cácia Cortêz. Eu ainda lembro daquela cena: filas de barracas de plástico preto num campo enlameado. Dentro havia camas de casal, armários, fogões, berços e panelas amontoadas no pequeno espaço. Era um acampamento de milhares de refugiados, só que refugiados dentro de seu próprio país. ) A Cácia já os conhecia pelo nome e sabia de suas histórias individuais. Nos apresentava a homens de pele enrugada pelo sol forte e de mãos calejadas que contavam, envergonhados, histórias de tortura e humilhação sofridas no lado paraguaio. Agora, de volta ao Brasil, eram novamente humilhados, como marginais pedintes, pela Polícia Militar. Muitos tinham

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fugido com os poucos bens que couberam num pequeno caminhão ou numa carroça. Não eram ladrões ou assassinos. O seu terrível crime era querer voltar para sua Pátria e ter um pedaço de terra para plantar, cultivar e sustentar a família. De volta a São Paulo, o Clamor fez o que pôde para divulgar a inju::ta situação dos brasiguaios e pressionar as autoridades para achar uma solução o mais breve possível. Quando a Cácia propôs um a pesquisa e documentação sobre os brasiguaios, nós apoiamos com entusiasmo, porque sabíamos que não existia alguém mais qualificado que ela para esse trabalho. Intermediamos o projeto com a Christian Aid, entidáde de apoio da Inglaterra que, de imediato, se propôs a enviar apoio fmanceiro para o trabalho. De lá para cá se passaram oito anos, muitos fatos aconteceram, que vieram agravar ainda mais a crise política, econômica social e moral nesse país e que só serviram para penalizar ainda mais os trabalhadores. A situação dos brasiguaios também se agravou e eles continuaram retomando em condições ainda piores. O resultado da pesquisa, agora publicado como livro, justifica plenamente a nossa confiança e mostra a conjuntura geopolítica em que os brasiguaios acabaram sendo os peões àa história.

JanRoch c. -Clamor )

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NEM BRASILEIROS, NEM PARAGUAIOS

Os brasiguaios são o resultado da expropriação ê· expulsão violenta de centenas de milhares de agricultores do Sul do país, iniciada na década de cinqüenta, no sudoeste e oeste do Paraná, quando as terras devolutas, ocupadas por colonos, foram sendo anexadas às das colonizadoras, para serem comercializadas ou incorporadas a novos latifúndios, iniciando, assim, a concentração de terras na região. Na década de sessenta, a expulsão se intensificou com a substituição, em grande parte, da cultura do café pela monoculturamecanizadada soja, amparada pelo novo modelo agrícola voltado para a monocultura de exportaÇão. Esses fatores e a estratégia geopolítica de penetração e ocupação de fronteiras dos governos militares, traçaram o percurso do êxodo forçado de cerca de quinhentos mil agricultores para o território paraguaio, onde se refugiaram até que novo processo de expulsão se repetisse, trinta anos depois, de forma ainda mais drástica. O palco desse êxodo é uma vasta extensão de terra banhada pelo rio Paraná. Do lado esquerdo, a região do oeste paranaense; do lado direito, a região do Alto Paraná, no Paraguai. Separada por uma fronteira de


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águas e ligada pela Ponte da Amizade, entre as cidades de Foz do Iguaçu e Ciudad Del Leste, a região, que possuía fartos recursos naturais e o solo considerado L o mais fértil da América Latina, foi praticamente devastada nas últimas décadas pela voracidade das "'--' indústrias madeireiras e das empresas colonizadoras. É uma terra gosmenta, vermelha arroxeada que, sob a chuva abundante, escorre feito sangue e G avermelha o caminho dos rios, dos córregos, picadas "---' e clareiras abertas na mata virgem- feridas expostas 0 pela derrubada de árvores centenárias. A caminho das madeireiras, as toras exalam o perfume doceamadeirado de suas seivas, que saem em forma de v resinas transparentes dos círculos dos anos, revelados nos cortes das lâminas das motosserras. · '-Despida da cobertura verde, a terra se gruda pesada I._., nas botas dos bate-paus, dos capatazes e nos pés descalços dos peões. Inutilmente eles buscam se livrar do barro pegajoso, com o mesmo esforço que fazem "---' para retirar da profundidade do solo as raízes decepa- 0 das, abrindo crateras lamacentas. Elas se transformam em armadilhas a engolir tratores e caminhões, que vão "---' singrando com dificuldade as veias de lama movediça, levando a madeira - ainda úmida pelo musgo 0 verqe que a envolve. Quando o vento de agosto chega, levanta a poeira do chão trincado pelo estio avermelhando o ar. Só se destaca a silhueta dos homens cicatrizando o solo com línguas de fogo das queimadas, adçadas pela ventania. No seu rastro ficam tocos e galhos carbonizados, cadáveres insepultos do que restou da mata, estendidos na terra até onde a vista alcança, em meio a fumaça leitosa. Quando a mata silencia, com a debandada das aves "'--' e a fuga dos bichos, de longe o vento traz o ruído do G rio que grita e esbraveja nas curvas. Mas logo é domado pela montanha de concreto a entupir-lhe a


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artéria e afogar suas margens no grande lago. As águas, enfurecidas, rompem pelas frestas da grande muralha, jorrando energia, num derradeiro suspiro Itaipu. Esta região, que extrapola a área banhada pelo pelo rio, era chamada pelos Guarani de lvy Ma rã Ve' y Terra Sem MaL Durante séculos, apesar da dominação dos colonizadores, eles souberam extrair dela o necessário para a sua subsistência, sem precisar escalpelá-la, nem violar suas entranhas, como vêm fazendo, há muito, os homens da civilização. Primeiro foram os espanhóis, em busca de ouro e prata. Depois, os bandeirantes que a entranharam para alargar os domínios portugueses. Ambos, escraviza- ·. ramos Guarani e impuseram-lhes o medo e a subserviência a um outro deus, implacável com seu povo. Mais tarde, a grande guerra (1864 - 1870) quase dizimou o povo e tirou-lhe parte de seu território. Por algum tempo a região permaneceu intocável, enquanto digeria os corpos de milhares de Guarani tombados em sua defesa. Se fertilizou, expandiu suas raízes, purificou seus riachos e sangas, e continuou parindo seus bichos e abrigando o que restou do povo, mesmo tendo sido esquartejada pelos marcos das novas divisas, impostas pelos vencedores da guerra. Mas não demorou muito para que os dois povos tivessem novos tiranos, que como os antigos senhores, eram sedentos por aumentar seus domínios, em nome do desenvolvimento, do p rogresso, da modernidade. E, aos olhos desses novos senhores, a terra representava uma riqueza ainda maior: era um torrão à espera das motosserras, das máquinas ceifadeiras, dos inseticidas e herbicidas, das sementes lnbridas e uma nova fronteira a ser possuída. A Terra Sem Mal dos Guaranis foi transformada em lvy fi eme' e, Terra Distribuída, para quem quisesse


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e pudesse transformá-la em mercadoria. Para participar de sua "partilha", bastava ser aliado dos novos mercadores. Desta vez, eles já não precisavam mais escravizar os índios que restaram, para o trabalho de abertura de novas fazendas, como fizeram os primei- v ros colonizadores. Seus sucessores agora só teriam o trabalho de empurrar, para além fronteira, os colonos que estavam expulsando do oeste paranaense, onde haviam se fixado, vindos do Sul, atraídos pela fertilidade do solo. Assim, os novos mercadores garantiriam não só a mão-de-obra para as derrubadas e o início da colonização, mas, também, o domínio da nova fronteira, com o apoio estratégico dos governos, através de incentivos fiscais e das estruturas dos quartéis. \......

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A VIOLENCIA INSTITUCIONALIZADA

Geremias Lunardelli foi o primeiro a iniciar o proces\. ___ so de ocupação da fronteira paraguaia. Em 1952, ele recebeu do então chefe do Exército paraguaio, Alfredo Stroessner, a concessão de 450 mil hectares de terra. Lunardelli era conhecido como o Rei do Café e "---' próximo do ex-governadordoParaná, Moisés Lupion, '-- dono da Companhia Clevelândia Industrial e Territorial (CITLA). A grilagem de terras no Paraná era rotina na '-- época e contava com a aprovação do próprio governa'- dor,queestevenopoderde 1946a 1950erecebeu,em 1951, através da CITLA, uma concessão de 425.731 hectares do governo federal. As terras estavam sendo cultivadas por posseiros na região de Missões e Chopin. - "- A transação envolveu suborno e corrupção, atingindo até o governo de Getúlio Vargas, paf!:idário de Lupion, conforme relata o geógrafo Luiz Carlos Batista. Em 1956, Lupion volta ao poder, eleito pelo partido Social Democrático. No mesmo ano, também "- eleito pelo PSD, Juscelino Kubitschek assume a Presidência da República. Isso permitiu a continuidade "- da troca de favores entre colonizadoras e escalões do governo. A partir daí, a ação dos colonizadores sobre '- os colonos se intensifica, com violentas expulsões,


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aumentando os conflitos em todo o Sudoeste paranaense. Os conflitos atingem a década de sessenta, com as '--' colonizadoras executando "operações arrastão" para desalojar os posseiros. Nessa época, Nilton Lange, agricultor gaúcho de Encantado, que tinha migrado para Clevelândia (PR), testemunhou o que ele chama de "revolução dos colonos", contra as colonizadoras e a polícia de Lupion. Segundo ele, em 1959, o Exército, sediado em Palmas, foi mobilizado para acabar com os conflitos. Os colonos estavam amotinados no munícipio de Santo Antônio e, para chegar "---" até eles, o Exército requisitou os caminhões d~ Nilton '--' e de seus amigos Armando Tomazini, Francisco Z~lio L c Domingos Anzeleiro para transportar cerca deduzentos soldados. Próximo a Francisco Beltrão, na '-ponte de acesso, os colonos tinham colocado armadi- ~ lhas que fariam o comboio despencar rio abaixo. Isso forçou o exército a desviar o percurso, entrando na Argentina e regressando pelo munícipio de Barracão. Algumas semanas depois, os caminhões voltaram vazios e não se teve mais notícias dos soldados nem \...dos colonos. "Até hoje nunca mais se ouviu falar do que aconteceu naqueles dias", relata Nilton. Ele diz que um dos caminhões trouxe vinte soldados mortos, vistos por um de seus amigos, "ek levantou a lona e ~ viu os corpos", recorda. ~ Hoje, Nilton é urn próspero agricultor em Dourados, Mato Grosso do Sul. Ele)comenta, com reservas, que as brigas por posse de terras, na época, eram provocadas pelos homens de Lupion e deixaram mui- ~ tas viúvas. Só do sargento Moacir, um pistoleiro, existiam em Clevelândia 23 viúvas de agricultores 'vitimados por ele. Nomes como os de Abílio Camei- L ro, Mário Pacheco, Coronel Aroldo (um grileiro) e o pistoleiro Li Teixeira, eram famosos na ocasião por


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fazerem parte do grupo de Lupion. "Eles se juntavam no PSD e no PTB, liderados na região pela família Martins, e fizeram muito estrago". Nilton recorda ainda que o Rio Iguaçu foi utilizado para o desaparecimento de colonos. "Ali muita gente foi enterrada", diz ele, que prefere esquecer "os acontecidos daqueles dias". Carlos Batista analisa que a autonomia do governo estadual sobre a jurisdição das colônias federais no Paraná, à época, permitiu o monopólio da empresa do governador e uma generalizada situação de corrupção, com o fornecimento de títulos "fantasmas" a pessoas que não existiam, mas tinham como procuradores membros do governo estadual, articuladores da·vitória de Lupion, que receberam em troca grandes propri. edades nas áreas já ocupadas pelos lavradores nas colônias. "Os conflitos aconteciam com os agricultores que vinham do sul para o sudoeste e oeste do Paraná e iniciaram a ocupação de terras na região de fronteira com o Paraguai. Na colônia Osório-Congo, eram quinze mil pessoas com títulos fornecidos pelo governo federal". Em 1957, um ano após asegundapossedeLupion, a CITLA vende as mesmas terras a outros, como a Apucarana e a Comercial Agrícola Paranaense Ltda., que voltaram a cobrar as terras dos agricultores. A CITLA incorporou terras nos municípios de Palmas, Clevelândia e Pato Branco. No início dos anos sessenta, as colonizadoras continuar<)Ill agindo com violência. A Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (SINOP), a Companhia Brasileira de Colonização (COBRINCO) e a Fundação Paranaense de Colonização atuavam em Cascavel. O novo governador, Ney Braga, que tomou posse em 1961, realizou a "Operação Jagunço", na tentativa de conter a violência em Cascavel e anulou títulos de 45 mil alqueires em Laranjeiras e Guaraniaçu, para atender 1.100 famíli-

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as. E, na região de Capanema, o governo federal desapropriou terras da CITLA. No entanto, com o golpe militar de 1964, os processos que envolviam a CITLA foram para julgamento no Tribunal Federal, em 1965. As causas foram vencidas através de recursos enviados pelas empresas e os colonos expropriados novamente. Com os governos militares, as questões agrárias foram centralizadas na esfera federal, o que permitiu a continuidade da concentração de terras com novos componentes: a mudança do sistema agrícola, com a adoção de uma política agrícola de incentivos à monocultura, altamente tecnificada e voltada para o mercado internacional, e o declínio da cafeicultura, já menos competitiva que a soja no mercado externo. A pressão dos governos militares, para provocar mudanças no sistema agrícola, modificou drasticamente as relações no campo. As pequenas propriedades com até 50 hectares foram sendo incorporadas por empresas agrícolas, modificando a paisagem e esvaziando colônias. As grandes propriedades, que substituíram os cafezais por cultivos de soja e trigo, passaram a predominar. Aos milhares de agricultores que não conse&ruiam a legalização de suas posses e nem garantias de auxílio fmanceiro e técnico para compelir com a monocultura que surgia, restava a migração. Onovo sistema aglicola não lhes reservava ~spaço, as novas tecnologias dispensavam o trabalho braçal das famílias que cultivavam, quase artesanalmente, produtos para o abastecimento interno. Paralelamente à prioridade dispensada às empresas agroindustriais, o governo favoreceu a entrada do capital estrangeiro para a instalação de empresas multinacionais. Elas passaram também a incorporar grandes áreas, aumentando ainda mais a concentração da terra e o êxodo rural, em todo o país. .

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Para as famílias do oeste paranaense, restaram as terras paraguaias do outro lado do rio. Deixaram para trás estradas, pontes, colônias e cidades que ajudaram a erguer e a povoar, sem saber que estavam sendo objeto de um projeto previamente traçado pelo regime militar, que previa o esvaziamento dos conflitos, limpando a região para a instalação de grandes empresas agroindustriais e a consolidação da monocultura mecanizada; e, ainda, da estratégia expansionista dos militares: as fronteiras precisavam ser ocupadas, o "Brasil Grande" tinha que alargar e garantir os seus domínios. Como uma boiada que o fazendeiro ma,nda tocar para fora de suas divisas, na ânsia de fazer as çercas andarem, os militares, com a ajudadas colonizadoras e empresas agrícolas, empurraram os agricultores, forçando-os a atravessar o rio, onde seriam, novamente, arrebanhados no Paraguai por em presas de colonização, madeireiras e empresários, que passaram a aplicar seu capital na compra de vastas áreas de terras no país vizinho. Muitos destes eram paranaenscs, que para lá se dirigiram com o intuito de repetir a façanha realizada no sudoeste c "exportar tecnologias", como um favor ao governo paraguaio e uma gentileza às empresas agrícolas, em troca do livre comando para explorar a região. Pois não bastava apenas ser beneficiado com concessões de terras. Era preciso desmatálas, retirar sua madeira, colonizá-las e tomá-las rentáveis. E, para isso, dispunhmn da valentia e abnegação de milhares de famílias de agricultores que iniciaram o processo de desbravamento, cultivo e povoamento da nova fronteira, repetindo o que haviam realizado no Paraná, na esperança de, finalmente, ter a sua terra para sobreviver. "A década de setenta foi significativa na emigração camponesa para o Paraguai. Alguns arrendavam

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terras do IBR - Instituto de Bem Estar Rural-, o INCRA paraguaio , pagando todo ano uma taxa pelo uso da terra. Muitos arrendavam terras de proprietários paraguaios ou brasileiros que exploravam grandes áreas, enquanto outros eram apenas empregados. A maioria pensava em explorar três ou quatro anos as terras r.depois voltar ao Brasil. No começo iam apenas os homens e depois de um ano, mais ou menos, levavam as famílias. Em muitos lugares, a partir de 1975, chegavam oito a dez famílias por dia em caminhões. Devido a procura de terras no Paraguai, fazendeiros no Paraná compraram grandes propriedades c levavam brasileiros para trabalhar como arrend~tári- 'os", descreve Carlos Batista. Segundo ele, a intensidade do povoamento dà fronteira paraguaia por brasileiros ocorreu em dois momentos historicamente considerados: o primeiro entre os anos 1950e 1969,cooutroentre 1970e 1979. No primeiro momento, foram emigrações de curta distância, principalmente devido a vantagens com relação aos preços das terras e a fertilidade do solo, que atingiram principalmente as colônias Santa Rosa, Naranjal, Catuetê, General Dias, Gleba-4, Cedrales, Corpus Christi e La Paloma. Entre 1970 e 1979, a 0 emigração aumentou, registrando o segundo e mais representativo movimento migratório, devido principalmente à modernização da agricultura brasileira e aos incentivos para o cultivo de soja. Nos anos 1980 a 1984, o mesmo processo de modernização da agricultura, ocorrido no Brasil, atravessa a fronteira nas mãos das grandes empresas agroindustriais. Os colonos já tinham "amansado" a maioria das terras, onde haviam construído novos povoados. E as colonizadoras passam a agir na especulação imobiliária, retirando violentamente os agricultores de suas posses. "As oportunidades só existi-


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ampara aqueles que podiam comprarterras, regularizálas no cartório de Assunção e continuar investindo no Paraguai. Os pobres foram transformados em agregados ou parceiros, enquanto várias famílias começaram a pensar no retomo ao Brasil", conclui Carlos Batista. A emigração acelerada de brasileiros para a fronteira paraguaia favoreceu não só a estratégia expansionista dos militares, mas também a política entreguista de Stroessner, que condicionou o desenvolvimento paraguaio ao Brasil, numa aliança política firmada através de vários acordos e tratados, e penalizou a soberania do povo guarani. O namoro começou em 1954, quando Alfredo Stroessner assumiu o governo e procurou se desven- • cilhar das relações com a Argentina para aliar-se ao Brasil. Os laços já vinham se consolidando desde o governo de Getúlio Vargas, com um acordo assinado em 1941, que permitiu, entre outras coisas, um porto livre para o Paraguai em Santos, a abertura de crédito para o comércio, a viabilidade de estudos de navegação do rio Paraguai c a possibilidade da construção de uma ferrovia entre Concepción e Pedro J uan Caballero. Na época, a construção de uma ponte sobre o Rio Paraná, ligando os dois países, foi mencionada. Ao assumir efetivamente o poder, após o golpe de 4 de maio de 1954, a instabilidade política de Stroessner era patente devido às ligações econômicas com a Argentina. Era preciso buscar ou~ro forte aliado, para garantir apoio às suas iniciativas, buscando a aproximação definitiva com o Brasil. "Em troca da dependência com a Argentina, surge a dependência com o Brasil, cujas relações econômicas eram fundamentais para Stroessner", afirma o geógrafo Carlos Batista. A construção de uma rodovia de 1.200 quilômetros ligando a capital do Paraguai, Assunción, ao


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Porto de Paranaguá, no Brasil, fortaleceria essas relações. E isso exigiria a edificação de uma ponte sobre o rio Paraná, lançada simbolicamente em 6 de outubro de 1956, por Juscelino Kubistchek, e inaugurada em 1966. A Ponte da Amizade selou as relações entre os dois países c serviria de portal para a ocupação brasileira ria fronteira guarani. Ela ligou, também, duas marchas migratórias de origens semelhantes. Uma foi a marcha para o leste, dos agricultores paraguaios, iniciada na década de cinqüenta e fomentada pelo governo, com o objetivo de expandir a fronteira agrícola e ocupar os espaços vazios na divisa com o Brasil, integrando a região à economia nacional, e de ' deslocar os camponeses, que se aglomeravam em minifúndios próximos a capital, para evitar tensões sociais. A marcha foi capitaneada, em 1956, pelo antigo Instituto de Reforma Agrária (IRA), hoje Instituto de Bem Estar Rural (IBR). A outra foi a marcha para o oeste, no Brasil, também iniciada na década de cinqüenta, com o deslocamento da fronteira do café no Paraná c os deslocamentos dos conflitos e, mais tarde, intensificada pelos governos militares, através dos projetos de colonização do INCRA. Nesse encontro predominou a presença brasileira que, num processo acelerado, expropriou os agricultores paraguaios, fazendo desaparecer várias colónias de pequenos produtores. A partir daí, os departament0s (estados) fronteiriços paraguaios de Alto Paraná; Canindeyú e Amambai sofreram um processo de estrangeirização. Para o sociólogo paraguaio Ramón Fogel, esse fenômeno representa o expansionismo brasileiro, pois seus cidadãos possuem, nos departamentos do Paraguai, mais terras que os próprios nacionais. Segundo ele, os brasileiros somam 41% dos proprietários, excluindo as empresas agroindustriais constituídas por socieda-

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des, c possuem 17% da superfície total da fronteira. A esmagadora presença estrangeira, basicamente brasileira, "comporta um processo compulsivo de assimi'--' lação que leva, com freqüência, os paraguaios ao '- reconhecimento da superioridade destes estrangeiros", afirma Ramón. Para ele, esta cstrangeirização do espaço facilitou a expansão, nas colônias nacionais, de empresas de brasileiros, espanhóis e imigrantes de outros países, "limitando o exercício da soberania nacional na região, que se expressa não só na propriedade e uso da terra. O pagamento de salários é efetuado em cruzeiros e é muito limitado o cumprimento das leis paraguaias. O 'senhorio' de alguns estrangeiros- com numerosos guarda-costas- nãO parece ter contrapeso algum", afirma Ramón Fogel. A voracidade das colonizadoras, madeireiras e empresas agrícolas em ocupar a região, intensificou o desmate indiscriminado para extrair madeira- que até hoje é contrabandeada para o Brasil- e paulatinamente foi substituindo a produção de subsistência, dos pequenos c médios agricultores, pelo pasto e pela monocultura mecanizada, com incentivos dos dois governos. E, para isso, as colonizadoras se valeram da conivência cntreguista de Stroessner, que lhes garantiu o apoio estratégico. O exército paraguaio serviu de suporte para atuação das colonizadoras c madl:ireiras. As sedes dessas empresas foram instaladas nos quartéis, que ofere~eram serviços de agrimensura e seus escritórios, além de atuar na repr~ssão e expulsão violenta de milhares de agricultores, não só brasileiros como paraguaios.

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O TRATADO DE ITAIPU E A MORTE DE SETE QUEDAS

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O território paraguaio tem 406.752 quilômetros quadrados, 1.339 quilômetros de fronteira leste com o Brasil, 759 quilômetros com a Bolívia, ao sul e a oeste, 1.699 quilômetros de divisa com a Argentina. Desde a guerra da Triplice Aliança contra o Para,guai (1864 a '---" 1870), o Brasil sempre preferiu nas suas fronteiras um "inofensivo" Paraguai a uma "agressiva" Argentina, segundo observa o historiador Enrique Piregelli. Daí o '- empenho em manter o Paraguai "manso", com a forte L e intimidatória presença militar nas suas divisas. Após o Golpe de 64, os governos militares, através das táticas 0 de reaproximação, exercitam uma manobra expansionista sobre o país vizinho, firmando vários acordos. L O principal deles, o Tratado de Itaipu, tomou o Paraguai definitivamente atrelado ao Brasil. O tratado, assinado em 26 de abril de 1973, previú, entre outras coisas, a construção da Hidrelétrica de Itaipu, erguida sobre o rio Paraná, 14 quilômetros acima da Ponte da Amizade. A represa inundou uma área de 1.400 quilômetros quadrados rio acima, cobrindo o Salto de Sete Quedas, ou Salto del Guairá, área reivindicada pelos paraguaios desde a guerra. Os estudos para a construção da hidrelétrica foram iniciados em 1962.


O engenheiro Otávio Marcondes Ferraz, realizador da Hidrelétrica de Paulo Afonso e presidente da Eletrobrás, no governo Castelo Branco, foi um opositor à construção de Itaipu, que fez desaparecer o Salto. Em um depoimento tenso, feito no dia 27 de abril de 1976, no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, ele dá testemunho das táticas adotadas pelos militares para a assinatura do Tratado e a construção da hidrelétrica. Ele considerou, na ocasião, oportuno o seu relato, "nesta altura dos acontecimentos, quando a construção de I taipu já foi iniciada". Mas entendia que não é "por termos sido colocados diante de fatos consumados que devemos silenciar em um ppuco digno conformismo". Em março de 1962, o engenheiro foi solicitado pelo então ministro de Minas c Energia, Gabriel Passos, para fazer estudos preliminares para o aproveitamento do Salto de Sete Quedas. Mesmo sabendo que iria entregar um relatório negativo, pois tivera notícias de que nas cheias o salto praticamente desaparecia, ele aceitou o convite. "Uma vez sobre o terreno, verifiquei que o declive do rio entre o sopé do Salto e Porto Mendes era considerável e a partir daí muito fraco pois, a partir de Porto Mendes, existia uma incipiente navegação, apesar das cnorm<::s variações do nível do rio nesse ponto. Apareceu assim uma solução que evitaria os inconvenientes da queda nos meses de grande cheia. Em nossos estudos não violamos ) a fronteira com o Paraguai, todos os estudos foram feitos nas margens brasileiras, inclusive os levantamentos aerofotogramétricos, feitos em convênios pelo Serviço Geográfico do Exército, sob a direção do General Braga Chagas", relatou. Ao apresentar a solução estudada, no Clube de Engenharia, um engenheiro paraguaio quis saber de Marcondes se o seu país tinha direitos.

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do dos estudos técnicos e que os direitos paraguaios constituem um problema político que estava fora de minha alçada", disse . Em 1963, ao saber que o ministro das Minas e Energia, Oliveira Brito, iria para o Paraguai para tratar do problema, Marcondes Ferraz procurou alertá-lo "sobre os inconvenientes de se tratar do problema político antes que uma comissão mista tivesse feito um estudo sobre o problema técnico. Não fui ouvido". Em dezembro do mesmo ano ele escreve ao ministro das Relações Exteriores, Araújo Castro, alertando que o problema estava sendo mal conduzido. Em 1964, já como presidente da' Eletrobrás, Marcondes Ferraz interrompeu os estudos ·sobre o Salto de Sete Quedas, mas continuou insistindo na questão. No ano seguinte, aproveitou a transferência do embaixador Gibson para Assunção, para alertá-lo "sobre a delicadeza do problema", mas não obteve resultados. Em 1966, é assinada a Ata de Cataratas, ou ata de Foz do Iguaçu, sem o conhecimento do presidente da Eletrobrás, atribuindo ao Paraguai metade da energia total disponível e acertando que os estudos técnicos seriam feitos em comum. Em março do ano seguinte, Marcondez Ferraz deixa a Elelrobrás e a nova direlOria retoma os estudos em 1970. Em dezembro daquele ano, ele recebe a visita do Gr:neral Borges e do Engenheiro Léo Pena, <hnbos diretores da Eletrobrás, que solicitam dele "discrição sobre o problema, para não perturbar as negociações com o Paraguai, naturalmente delicadas. Permaneci discreto até meados de 1972, fato que muito me arrependo", diz ele. Na época, tivera notícias de que a "solução Itaipu traria entre outros inconvenientes o desaparecimento do Salto de Sete Quedas, o que reduziu grandemente a


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força moral das autoridades para defender a ecologia e a natureza". A notícia apanhou o engenheiro de surpresa: "Nunca imaginei que um projeto desse porte fosse adotado em segredo de estudos e em segredo de Estado", afirmou. Em novembro de 1972, o engenheiro decide recorrer ao então presidente Emílio Garrastazu Médici, para alertá-lo sobre a delicadeza do problema e a sua estranheza quanto ao segredo do projeto, pois na sua opinião "estava se criando uma nova zona de atrito, como a do Canal do Panamá". Ele recorreu também ao então presidente da Petrobrás, General Ernesto Geisel, sem conseguir êxito. Finalmente, no dia sete de abril de 1973, já às vésperas da assinatura do Tratado, Otávio Ferraz obteve alguma resposta. Os engenheiros Mário Bhering e Léo Pena, respectivamente presidente e diretor da Eletrobrás, informaram a ele, em visita pessoal, que o que estava sendo realizado obedecia o estipulado na Ata das Cataratas. Ou seja: a "solução simétrica". E como ele tinha apresentado uma "solução assimétrica", não era aceitável pelo Paraguai. "No dia seguinte, procurei conhecer os termos exatos da Ata e fiquei extremamente chocado por não encontrar qualquer alusão sobre "simetria" ou "assimetria". Inconfomtado, ele procurou ainda a Comissão de Minas e Energia do Congresso N acionai, onde fez, no dia 17 de abril, uma ~xposição de quatro horas. Na véspera da assinatura do Tratado, Ferraz tentou um último apelo junto ao ministro das Relações Exteriores, para que fosse introduzida uma cláusula que permitisse uma revisão do tratado. Recorreu também ao ministro das Minas e Energia, Shigeaki Ueki, e à imprensa, mas não obteve êxito. A proposta apresentada pelo engenheiro, em substituição à adotada pelos militares, foi a seguinte: seria

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construída uma pequena barragem de 10 metros de altura, em média, no topo do Salto. Em um rio de grande 1argura, seria fácil de ser desviado por etapas. Uma barragem dessa altura não encontraria, segundo '--" ele, problemas geológicos. "As águas desviadas por um canal formado por um dique, em terra, de 60 km. com altura média de 30 metros, alimentariam as três casas de máquinas subterrâneas, nas quais se instalariam geradores com uma potência total e firme de 1O mil MW. Sendo subterrâneas, estariam naturalmente '-.-· protegidas contra grandes variações do nível da água na parte jusante. A altura da queda seria de 120 metros e a sua redução nas cheias seria tecnicamente compensada, de modo a se obter uma potência constapte durante todo o ano. Tudo seria no Brasil e o Salto de Sete Quedas não seria prejudicado. Faríamos o que se fez no Niágara: respeitaríamos a natureza". A proposta de Marcondes Ferraz previa a inundação de uma área pequena, evitaria grandes deslocamentos de habitantes da região e não avançaria sobre o território paraguaio. Itaipu foi o contrário: uma barragem de concreto sobre o leito do rio, com uma altura de 225 metros e uma base de 273 metros. Segundo o engenheiro, "foi prevista a impermeabilização de brechas e o enchimento de bolsões, isto é, problemas geológicos". A área inundada pela represa foi de 1.400 quilômetros quadrados de superficie (600 Km 2 no Paraguai e 800 Km 2 no Brasil) e represou )29 bilhões de metros cúbicos de água. A potência varia de 9.360 milhões a 11.400 milhões de MW, podendo atingir 12.600 milhões com 10% de sobrecarga. A usina desalojou mais de 20 mil habitantes das áreas atingidas e circunvizinhas. Para Marcondes Ferraz, a complexidade do Tratado e das notas reversais e dos regulamentos, tendiam


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a tomar o organismo binacional uma máquina emperrada. Ele defendia a solução de cada país construir a sua usina. "Nações com maior experiência técnica, administrativa e política adotaram a solução de cada um fazer a sua parte, como ocorreu no aproveitamento de energia do Niágara, onde os Estados Unidos e o Canadá construíram cada um a sua usina. O mesmo aconteceu no aproveitamento do Douro Internacional. A Espanha e Portugal fizeram um acordo sábio, ficando cada país com um trecho do rio e nele construíram a sua usina". No caso de Itaipu, reforça, "o resultado será que a obra se atrasará (como de fato ocorreu), custará mais caro e o contribl,!inte de cada país pagará os prejuízos e terá uma energia mais cara", previu Marcondes Ferraz. • "Ao optar por Itaipu e adotar uma solução binacional, ao invés de uma multinacional, o Paraguai abandonou pela primeira vez, desde a paz draconiana que lhe foi imposta pela Tríplice Aliança, em 1870, sua posição neutra em relação ao seus dois grandes e poderosos vizinhos: optou pelo Brasil, incorporou-se, praticamente, ao mesmo", afirma o economista Paulo Schilling. Segundo ele, "uma absurda rivalidade mantida durante um século e meio pelas classes dom inantes e militares argentinos e brasileiros, intensamente fomentada no passado pelo imperialismo inglês e, posteriormente, pelos norte-americanos, impediu uma solução c·Jnjunta (do aproveitamento da Bacia do Prata). A opção bi>asileira por Itaipu deu início a uma intensa e dura polêmica entre os dois países (ambos sob férreas ditaduras), que fez deteriorar as relações argentino-brasileiras ao pior nível de sua história neste século, chegando a um passo do conflito bélico. Foi uma típica manobra geopolítica com objetivos claros: satelizar o Paraguai e prejudicar o desenvolvimento argentino", ressalta Schilling.

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Ao mesmo tempo em que "neutralizava" a Argentina e se consolidava como o "satélite privilegiado" do imperialismo americano, segundo as veleidades geopolíticas do general Golbery do Couto e Silva, o '----' Brasil, com a construção de Itaipu, afogou definitivamente a disputa pelo Salto de Sete Quedas, área de território reivindicada pelo Paraguai desde a Guerra '- da Tríplice Aliança. O historiador Enrique Peregelli '- lembra que, quando se firmaram os tratados complementares de limites em 1929 e o protocolo MorenoMargebel de 1930, o Brasil especificou: a) trata-se de '- complementar os itens "obscuros" sem nenhum pro, pósito de alterar a demarcação de 1872; b) o Salto de Sete Quedas está - segundo 1872 - dentro do "- território brasileiro. A uma nota da chancelariã paraguaia sobre a questão de limites, o Brasil respondeu em 1970: não estamos dispostos nem hoje nem '- nunca a discutir o assunto; Sete Quedas é brasileiro '--"' integralmente; qualquer continuação de atividades da "- comissão mista de demarcação de fronteira exige uma declaração prévia do governo paraguaio de não alterar em nada, direta ou indiretamente, os acordos interna'-- cionais já assinados". O custo inicial da hidrelétrica, orçado em 1973, foi '- de 2,5 bilhões de dólares, que atualizados, ficaria em "'-- tomo de üS$ 5 bilhões. O general Costa Cavalcante, presidente da binacional, situou esse custo em ". U~$ 15,29 bilhões. Esse valor foi corrigido outra vez '- pela nova administração da hlnacional, que tem à '- frente outro general, Ney Braga, em 20 bilhões de dólares, o que, segundo Paulo Schilling, é o caso mais '- flagrante de corrupção em escalamonJ.Imental: "Como foi possível que o custo inicial fosse multiplicado por . seis? Serão os engenheiros, os projetistas, os calculis~ tas, responsáveis pela obra, os mais irresponsáveis do '- mundo? Ou estamos frente a um escândalo cujas

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dimensões reduz o roubado nos casos Capem i, Coroa B rastel e outros mais recentes a milho para os pintos"? "O fato de Itaipu ter sido construída por uma empresa binacional, não submetida aos controles orçamentários, às normas estabelecidas para concorrên- '-cia pública, à aprovação pelos tribunais de contas dos países membros, de forma praticamente clandestina, sob o manto protetor dos regimes militares então vigentes no Brasil e Paraguai, fez crescer, é óbvio, desmedidamente, a corrupção que tradicionalmente se verifica na construção de obras públicas em nossos países", acrescentou Schilling. A energia paraguaia de Itaipu é a principal riqueza conhecida do Paraguai, afirma o economista paragúaio, Ricardo Canesc. Segundo ele, Itaipu está em condi- -....... ções de fornecer por ano 12.600 MW de potência, c metade dessa potência representa um faturamento de 1,4 bilhão de dólares por ano, 40% superior ao total das exportações paraguaias de 1990. Os 50% de Itaipu que pertencem ao Paraguai representam 1Obilhões de ~._,­ dólares, já que o custo total foi de 20 bilhões. Isso significa 5 vezes o total da dívida externa paraguaia no fmal de 1990 (1,6 bilhão de dólares). Além disso, o tratado impede o Paraguai de vender a energia de Itaipu a terceiros países, o que poderia gerar dividendos para o país. Ricardo Canese afirma ainda que o Tratado vem sendo sistematicamente violado: "Na prática ele não é respeitado rk'm nos poucos pontos em que defende os interesses paraguaios".


FRONTEIRA VIVA

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O braço colonialista dos militares brasileiros sobre o paísvizinho,comacomplacênciadolesa-pátriaf\lfredo Stroessner, foi além do Tratado de Itaipu. Em dezembro de 1975,EmestoGeiseleStroessnerassinamoTratado de Aliança e Cooperação Econômica, que estabelecia o apoio tecnológico e a segurança continental, prevendo a ocupação de uma área de 121.889 quilômetros quadrados, 33% do território paraguaio, para ser povoado por 1.120.000 habitantes, 45% da população total paraguaia. Nessa região viviam, já em 1975, 40 mil brasileiros. Esse número foi aumentando consideravelmente a cada ano, transformando a região numa "fronteira viva" ao redor de Itaipu, cumprindo a estratégia de segurança do projeto, traçada pelos militares. O general Meira Mattos, geopolítico seguidor de Golbery do Couto e Silva e defensor da doutrina de Segurança NacionaL escreveu, em 1978 SJUe as "fronteiras vivas (ou de tensão, quando ligadas a interesses políticos, econômicos ou militares) estão submetidas à pressão do Estado mais poderoso. Esta pressão é sempre real e se faz sentir pela expansão cultural ou econômica tendente a levar para o lado oposto a influência do lado mais forte. Nos períodos de tensão, essa pressão pode vir a assumir caráter militar". Ao possibilitar, sem ressalvas, a ocupação brasileira no Paraguai,Stroessner

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"Itaipu é o resultado de um tratado leonino e está cumprindo o seu papel geopolítico de impedir o desenvolvimento industrial paraguaio. É uma forma de dominação e de expansão do Brasil no Cone Sul", afirma Lafaiete Santos Neves, professor de economia da Universidade Federal do Paraná. Para ele, a presença de mão-de-obra e de capital brasileiro no Paraguai servirá para abastecer o pólo agroindustrial que se fonnará ao redor de Itaipu, ao longo do lado brasileiro c atrelará ainda mais a economia paraguaia. "Atualmente, a agricultura do país vizinho depende do fornecimento de adubos, sementes e maquinários do Brasil e para o escoamento de sua produção agrícola, principalmente, depende dos portos e dos corredores de exportação brasileiros. O Paraguai não pode expor-· tar a energia produzida por Itaipu para outros países, a não ser para o Brasil a um preço ínfimo". Segundo Lafaiete, a abertura política nos dois países, com a instalação de governos neolibcrais não mudou em nada essa relação de dependência. "O Brasil continua sendo a ponte de dominação imperialista para manter a dependência do Cone Sul da América Latina ao primeiro mundo", afirmou. A ganância das classes dominantes e a prepotência c boçalidade dos regimes ditatoriais nos dois países movimentaram uma nnssa humana de meio milhão de pessoas, ou mais, pois não há controle censitário, para uma região estrategicamente importante, pela sua localização geográfica, recà rsos hidrográficos e solo fértil, semeando uma complexidade de problemas e atritos para o futuro. A expressão humana dessa complexidade são os brasiguaios, que encerram uma crise de identidade nacional na região. Eles não têm direitos no Brasil, nem no Paraguai. É um contingente de deserdados, como também são deserdados os campesinos paraguaios, vítimas dessa ocupação .

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A abertura política, desde a Nova República, não alterou essa realidade. O famigerado governo Collor e Andrés Rodrigues (um dos empreiteiros de Itaipu), no Paraguai, não se mostraram dispostos a rever os tratados. O primeiro indício de rompimento dessa situação é o retomo dos brasiguaios, em forma de êxodo invertido, iniciado em 1984, via Mato Grosso do Sul, através de ocupações de terra e acampamentos, e a rearticulação e retomada da luta pela reforma agrária pelos movimentos populares no Paraguai, com a queda de Stroessner. O regresso dos brasiguaios, atravessando a fronteira seca com o Mato Grosso do Sul, é significativo, pois o Estado incorporou rapidamente o processo de modernização da agricultura e à economia de expor- · tação. Na década de setenta o Mato Grosso do Sul foi uma das frentes de colonização do INCRA (Instituto Nacional de Colonização c Reforma Agrária), que aproximou a população rural da fronteira com o país vizinho. Os municípios do cone sul do Estado como Mundo Novo e Sete Quedas, na fronteira com o Paraguai são resultantes dessa frente de colonização, que recebeu a partir de 1971 uma população composta em sua maioria de agricultores paranaenses. Três anos depois, as áreas desses municípios, formadas em -grande parte de pequenas prop,-iedades, já estavam sendo anexadas a latifúndios, enquanto os colonos eram obrigados a migrar para o Paraguai ou para Rondônia, em nova frente de atrf.ção. Mato Grosso do Sul é um dos estados com maior concentração fundiária no país, com um território de 35.054.800 hectares, dos quais 30.743.739 hectares agricultáveis. Os latifundiários, que representam apenas 12% dos proprietários possuem 83% das terras, segundo o senso de 1980, realizado pelo IBGE. Já os pequenos produtores, com até 50 hectares, são 54%

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dos produtores e ocupam apenas 1,22% das terras do Estado. Os médios produtores somam 32,95% e detêm 15,45% das terras. Apenas seis latifundiários --.. possuem, juntos, mais que o dobro da área ocupada "--" pelos pequenos agricultores, ou seja 2, 75%, o equivalente a 876.060 hectares. A concentração de terras pelos latifundiários foi intensificada na década de setenta com a monocultura da soja, a modernização da agricultura e a instalação de empresas de insumos e maquinários agrícolas, que se desenvolveram principalmente na região Sul do Estado, acelerando a expropriação de colonos e, de fom1a drástica, a expulsão e a desagregação das culturas indígenas de suas terras ancestrais, principalmente os povos Guaranie Kaiowá, habitantes naturais da região. Nesse período houve um redução de quase dez mil estabelecimentos agropecuários. "A imposição de um modelo agrícola exportador resultou em danosas conseqüências para o meio rural do Estado. Trazendo como o "canto da sereia" a chamada ideologia da modernização, este modelo concentrou-se basicamente na monocultura. Abocanhando preferencialmente as terras antes dedicadas à policultura tradicionalmente fornecedora de alimentos para o mercado interno", analisa o geógrafo e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Laerte Tetilla. Segundo ele, o '-- Estado possui pelo menos dez milhões de hectares de terras aptas para a implantjlção de lavoura, e menos de 20% desse total está sendo utilizado para a agricultura; o restante dessas terras aptas encontra-se, em sua maior parte, ocupada com pecuária de corte, com uma baixíssima produção (apenas 50 ou 60 quilos de carne por hectares ao ano); também é muito baixo o alcance econômico e social desse tipo de pecuária predominante, quando confrontada com a agricultura, pois


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demanda poucos insumos, pouco ativa o mercado, demanda pouca mão-de-obra e concentra fortemente a renda", afirma Tetilla. Para ele não se justifica, do ponto de vista do conjunto da sociedade, que a pecu- '-ária se mantenha em terras férteis, próprias para a 'prática agrícola, que tem maior significado para o desenvolvimento sócio-econômico do Estado. "Não se quer negar com isso a importância nem o espaço da agropecuária. Ela tem condições de dar idênticas respostas se desenvolvida nos outros 25 milhões de hectares de terras de que dispõe o Estado", salientou. Hoje o Cone Sul do Estado, principalmente os municípios de Mundo Novo, Sete Quedas, Tacuru, tomado por latifúndios de soja e gado, é a porta de entrada dos brasiguaios em regresso à Pátria; na tentativa de reaver as terras perdidas para continuar se reproduzindo enquanto agricultores e resgatar a sua '-cidadania, se integrando na luta pela reforma agrária no Brasil. No entanto, a volta para casa se tomou ainda mais dramática do que a saída, pois o Estado brasileiro '--" ainda não os reconhece como cidadãos nacionais.

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Georgina da Rosa morava a cem quilômetros no Paraguai, depois da fronteira seca com o munícipio de Ponta-Porã, no Mato Grosso do Sul. Ela, os dois fllhos e o marido trabalhavam na fazenda Santa Maria. O vizinho mais próximo ficava a sete quilômetros e a cidade era Pedro Juan Caballero. Numa manhã de abril, de 1984, Georgina foi passear com os filhos na casa dos pais, em Naviraí, Mato Grosso do Sul. Era só atravessar a fronteira, depois de andar a pé algumas horas até a cidade, pegar tun ônibus e seguir por mais quatro horas.. "Cheguei na casa dos meus pais às dez da noite. Eles ainda estavam acordados, pensando nas terras. Eu ainda não tinha conhecimento do que estava se passando. Depois de um tem eles começaram a me falar do problema das terras. Meu pai disse que estava com medo, que ele queria ir, mas a coragem não deixava", conta Georgina da Rosa. "Aí eu perguntei: meu pai, por que nós não vamos? Ele disse que ·não tinha vida pra esse negócio. Eu insisti muito, mas ele pensava nos jagunços que podiam estar lá dentro das terras."

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Mesmo sem o pai, Georgina foi. "Cheguei e falei pra comissão. Contei o meu problema. O meu marido, no Paraguai, não estava sabendo, mas eu ia entrar nas terras mesmo assim. E se me liberassem, pra voltar depois de oito dias, eu ia. Eles me disseram que, se eu \...... tivesse coragem, podia ir. Então deixei meus filhos com o pai, juntei as trouxas e fui". Namadrugadadodia29deabrilde 1984,Georgina era uma das quinze mulheres entre mais de mil agri- 'cultores que apeavam de vinte caminhões na Fazenda Santo Ângelo, nas margens do Rio Guiraí, única passagem para ocupar o outro lado, a Gleba Santa !dalina- à época com mais de trinta mil pectares em mata virgem-, no município de Ivinhema (sudeste doMS). • \.,....0 pelotão da Polícia Militar chegou logo depois, mas não conseguiu impedir que os colonos atravessassem, a nado, o rio e realizassem naquele dia a primeira ocupação de terra organizada no Estado e uma das maiores do Brasil. Eram ex-arrendatários, meeiros, bóias-frias, pequenos produtores paranaenses, catarinenses, gaúchos c nordestinos - a maioria tinha migrado na década de setenta para o novo "Eldorado Brasileiro" e se fixaram nos municípios do sul do Estado, principalmcntc no Cone Sul, região de Mundo Novo, fronteira com o Paraguai. Além de Georgina, estavam Lenir Pereira Dias, Lurdcs Tomazzini de Melo, Valdomiro Henrique Figueiró, Antonio Cândido Rodrigues e mais dezenas de agricultores vindos do Paraguai, que se somaram àquela travessia para reaver, mais uma vez, um pedaço de terra para trabalhar. Mas desta vez, não mais como iludidos compradores de "terras roxas próprias para café e algodão" das colonizadoras, ou mesmo como arrendatários de fa-

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zendeiros paulistas, mineiros c paranaenses, que outrora lhes garantiam três anos de produção após o desmate para depois virar dono de um sítio. Também, diferente dos nordestinos, trazidos como "gatos ensacados", esperançosos de conseguir uma colocação com seu trabalho nas colheitas de algodão, na capina de soja, feijão, mandioca ou como meeiros. Ambos, sulistas e nordestinos, sabiam pela vivência que se continuassem esperando as vontades dos donos das terras, nada ia sobrar para eles. Os desmates já estavam terminados e, com eles, os arrendamentos iam dando lugar para o gado ou a soja. E, por fim, o trabalho dos bóias-frias e meeiros estava dispensado. Aos poucos, a pequena produção mingubu no meio do boi e do mar de soja. Nem as casas des arrendatários escaparam da fúria dos tratores. No lugar onde moravam os trabalhadores, foram erguidos barracões gigantes para abrigar colheitadeiras, tratores, inseticidas. Ou para armazenar os grãos até serem exportados para alimentar vacas e porcos na Europa e Estados Unidos. A solução era ocupar as veredas ainda vazias de gente, mas cheias de animais, madeiras e solo fértil. Mesmo intocadas, estas terras geram riquezas nos bancos para colonizadoras e latifundiários como a Sociedade de Melhoramentos e Colonização Someco - , proprietária da Gleba Santa Idalina e de 60% das terras elo município de Ivinhema, "Terra Prometida" na língua guaraÃ.i. Muitos já tinham tentado as usinas de álcool, "subido" para Rondônia e Acre. Mas, abatidos pela malária e pelo abandono, retomaram. Um grande número, depois de várias saídas, seguiu para o Paraguai, ao encontro de novos arrendamentos e das glebas das mesmas colonizadoras dos fazendeiros paulistas e paranaenses, e ao encontro de milhares de


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outros agricultores que, como eles, continuavam sonhando o mesmo sonho nas terras guarani. Como havia prometido, alguns dias depois, Georgina deixou os companheiros de ocupação cercados pelo aparato policial- que a essa altura já recebia o soldo da Someco - , no meio da mata cerrada. Ao atravessar o cerco policial, para não ser identificada, ela usou nome falso e voltou para casa. "Aí eu falei pro meu marido o acontecido. Ele disse que cu era louca e que se fosse ele, não entrava numa boca dessas. Me disse essas palavras, mas bravo não ficou não. Quando eu soube do despejo e que o pessoal tinha ido acampar em Ivinhema e depois pra Vila São Pedro, em Dourados, cu resolvi deixar de vez o Paraguai, e o meu marido veio para a luta". Georgina foi assentada, precaria e provisoriamente, com as 420 famílias que restaram, na gleba Padroeira do Brasil, no município de Nioaque, sudoeste do Estado. Muitos de seus companheiros voltaram para o Paraguai. Preferiram não trocar mais uma vez o certo pelo duvidoso. A terra adquirida pelo governo do Estado para o assentamento era de baixa produtividade e necessitava de corretivos de solo. Para cada família, coube pouco mais de cinco hectares. "Nesse caso era melhor continuar lá no Paraguai, onde as terras produzem sem precisar ccrrcção. Aqui o governo não garantia que ia dar condições de plantar", lembra Antônio Cândido. "Até que aparecesse uma oportunidade de voltar pa;a o Brasil, ia agüentando do jeito que dava. A gente ouvia dizer que ia sair a Reforma Agrária no Brasil. E enquanto ela não vinha, a gente planejava o que fazer para não esquentar o lombo nas mãos dos tarrachis- soldados paraguaios - , e ia agüentando mais um pouco enquanto ainda tinha arrendamento". Não seria ainda naquele ano que os brasiguaios

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iriam tirar o sono dos latifundiários, lá e aqui, dos órgãos públicos, da Nova República, das duas embaixadas, ou dar trabalho aos agentes do SNI, gerar polêmicas na imprensa e, principalmente, reforçar a luta pela Reforma Agrária. Eles trariam à tona um problema antes mencionado escassamente nos meios de comunicação, acobertados pelos discursos de "boa vizinhança" dos políticos brasileiros com o ditador '-" Stroessner. Mesmo assim, o Brasil continuou a ignorar a dura realidade de dezenas de milhares de agricultores e suas famílias, exilados da história recente, banidos de suas terras pelo poder econômico e pela políticas econômica e agrícola dos governos pós-64. Em 1984, já eram 400 mil os brasileiros que haviam transposto a fronteira com o país vizinho, fugindo da marginalidade e buscando do outro lado o que continuavam lhes negando aqui: o direito à terra e de continuarem produzindo como cidadãos nacionais. A ORGANIZAÇÃO PARA O RETORNO

_ A notícia da Reforma Agrária da Nova República, as ocupações bem sucedidas, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o avizinhamento de eleições nas cidades de fronteira, além do cerco no Paraguai, provocado pelo fim dos arrendamentos, em 1985, foram o sinal para os agricultores de que era hora de voltar para casa. A essa altura eles já sabiam que o retomo não poderia ser isolado e esparramado, como foi a ida para a Paraguai. Tinha que ser em grupo, "igual queixada" . .__ O que exigia paciência, muita conversa, sorte e coragem. O feito da ocupação de Ivinhema já tinha corrido solto pelas colônias brasileiras. Todos já sabiam como deveria ser o retomo. As conversas e reuniões aconteciam escondidas, pois se os tarrachis ou os membros

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do Partido Colorado soubessem, era prisão na certa. As reuniões aconteciam no meio das roças, nas caminhadas pelas estradas. Toda vez que um estranho passava no local a reunião era imediatamente disfarçada. Na terra de Stroessner, até para rezar era necessário pedir autorização aos comissários. As missas, que reuniam as comunidades e traziam padres do Brasil, eram um risco de infiltração de gente interessada a "malfadaro governo do Generalíssimo Comandante Supremo Stroessner", segundo alegavam os comissários de polícia. José Farias, uma das lideranças, conta que as reuniões eram marcadas em Mundo Novo ou Pararmos, do lado brasileiro, só com os líderes, para pensar nD jeito de voltar. "Lá a gente se encontrava com o pessoal dos Sem Terra, da CPT c do sindicato. Cada líder tinha que reunirna sua comunidade, ir de casa em casa ou nos roçados pra repassar o acontecido e fazer a lista de quem ta v a com planos de deixar o Paraguai". Ao todo eram vinte líderes de comunidades que se responsabilizavam por cinqüenta a duzentas famílias, distribuídas na faixa de fronteira, de acordo com seus locais de origem: Puente Kijá, Santa Rosa, Guavirá, Santa Clara, Alvorada, Catuetê, Corpus Christi, Guadalupe, Mbaracayú, Caarapã, Figueira, Bom Jesus, Fazenda !bel, Encruza Guarani, Jean Pierry, Puerto Adel, numa faixa de 100 a 200 quilômetros dentro do Paraguai, na regiãd dos departamentos de Alto Paraná, Canindeyú e Amambai. "Tem tanta gente querendo sair do Paraguai, que é só estalar os dedos que, em dez dias, mais de mil famílias passam a fronteira. Elas ainda não vieram porque estão esperando as últimas colheitas, para ver se sobra alguma coisa para garantir a vinda", adiantava José Yamashita, 55 anos, paulista, que durante treze anos foi pequeno arrendatário na colônia Santa Clara.

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Era o dia 13 de março de 1985. Em dias chuvosos como aquele, as estradas da fronteira, sem asfalto, ficam interditadas. Era quase impossível sair, mesmo a pé, sem pagar o permiso de passagem aos policiais das aduanas, para chegar até Mundo Novo. Mesmo assim, aproximadamente duzentos agricultores chegaram cedo na Casa Paroquial de Mundo Novo para discutir a data da saída com o pessoal da CPT Comissão Pastoral da Terra e com João Eleutério, do MST - Movimento dos Sem Terra, que liderou a ocupação de Ivinhema. Motivos para retomar não faltavam. Segundo as lideranças, cerca de trezentas famílias teriam que desocupar os arrendamentos c as pequenàs posses de terras em áreas de fazendeiros brasileiros e do Instituto de Bem Estar Rural (IBR), o INCRA do Paraguai. Os agricultores compraram lotes de cinqüenta a duzentos hectares, com prazos de pagamento de três e cinco anos. Ao término dos pagamentos, no momento de receber o registro definitivo de posse, que deveria ser emitido pelo IBR e registrado em cartório, os agricultores se deparavam com a anulação dos pagamentos pelo IBR (que não deixava outra alternativa a não ser refazer os mesmos contratos de compra ou devolver as terras já pagas). A explicação do Instituto era de que os diretores anteriores tinham vendido os mesmos lotes para outros agricultores. O mesmo acontecia com os arrendamentos. Ao final de três anos de contrato, os agricult0res tinham que refazer os pagamentos ou devolver as terras sem nenhuma indenização ou garantia de rever as benfeitorias construídas nesse período.A documentação de emigrante, exigida pelo governo paraguaio, cada vez mais cara, dificultava a permanência dos brasileiros. A validade desses documentos e taxas de obtenção variava de acordo com o período de permanência dos funcionários res-


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ponsáveis pelo setor, onde predominava a corrupção, geradora de tensões entre os agricdltores, oficiais e comissários dos departamentos. O documento mais exigido de adulto e criança em idade escolar, era o permiso, renov-ado a cada quatro meses. Cada permiso - autorizaçãÓ:t'ie permanência -custava 150 guaranis. O Residelll~ Zafral, que é o comprovante da residência no pais~ custava 24 mil guaranis para maiores de quatorze.ános c tinha, em média, noventa dias de validade. A libreta (Libreta dei Serviçio de Conscripción Via!), uma espécie de carteirinha do Ministério de ~!.as Públicas y Com unicaciones de La Direccion General de Juntas Viales, comprovante das taxas pelo livre trânsito, tinha validade de um ano e custava~ para cada mem 6ro da família, quarenta mil guaranis: O imposto para a conservação de estradas, escolas, postos fiscais, igrejas e pontes, beneficios esses constluídos pelos próprios agricultores, custava em tom,o de cinqüenta a cem mil guaranis, cobrado toda vez que uma obra 'dessas era iniciada ou reformada. Outro documento exigido dos agricultores era o Visto de Migrante, da Diretoria General de Migración. V alia por dez anos e custava, na época, em tomo de 80 mil guaranis. Para consegui -lo, o agricultor tinha que it até Assunção, ou pagar as despesas de viagem de um~o{icial ou funcionário do escritório de migração dQ :departamento. A Tarjeta de Desembargo era outra taxa paga pelos migrantes, toda vez que pass~vam a· fronteira, e custava 30 mil guaranis por trinta dias. Já a Identidade de Migrante tinha validade para quatro anos e custava 90 mil guaranis. Além desses documentos, de exigência rotineira, existiam ainda várias outras taxas cobradas dos agricultores, principalmente em épocas de colheitas. A travessia de grãos por uma ponte, dependendo da

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disposição dos guardas, não saía por menos de 30 mil guaranis ou uma parte dos produtos, descarregados nas aduanas e destinados aos quartéis. Toda mercadoria que saísse pela fronteira, por mais insignificante que fosse, custava ao seu dono uma taxa de "exportação". Até o dia 25 de abril de 1985, os agricultores precisavam renovar a Identidade de Migrante e o permiso. Aqueles sem condições de pagar teriam de entregar algum bem ou sair do país. As famílias, geralmente numerosas, não tinham meios de ficar quites com o Estado. E mesmo quem já havia regularizado os documentos teria que refazê-los. Os fiscais percorriam as casas e prendiam aqueles que não dispunham da quantia. Os presos, na maioria dos casos, eram torturados. Por isso, 50% dos agricultóres das Colônias Santa Clara, Corpus Christi e Figueira estavam clandestinos e impedidos de trabalhare andar livremente nos povoados. A qualquer momento eles podiam ser surpreendidos. Tudo dependia do humor dos policiais e comissários. Outro problema enfrentado pelos brasiguaios era a dificuldade com a comercialização das colheitas, principalmente da soja, milho e hortelã. Sem uma política de financiamento para a produção, eram obrigados a vender as safras para os cerealistas. Quando conseguiam fugir das fiscalizações dos comissários e, conseqüentemente, dos confiscos dos produtos em troca de pagamento do permiso e Identidade de Migrante, os agricultores tentavam trans~ortar os produtos para o Brasil, mas eram descobertos pelos agentes da Polícia Federal brasileira e tinham a produção apreendida como contrabando. Em épocas de colheitas, surgiam leis e taxas de cobrança para tudo. Em muitos locais tinham que pagar 5% da produção para o comissário- a maior autoridade nas colônias-, em caso do produtor ser

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arrendatário ou proprietário, além dos 20% a 30% de pagamento para o proprietário das terras. Do contrário, a punição era a prisão e o confisco de toda a produção, como castigo e exemplo para os outros. A agricultora Maria do Carmo, de 66 anos, viúva, 24 filhos - dezenove vivos - , natural de Águas Belas, Pernambuco, exemplifica bem a história de muito desses agricultores. Depois de perambular por quase todos os estados, trabalhando como bóia-fria, ela foi para Hernandárias, no Paraguai, em 1965. "As coisas não davam certo, era tudo muito difícil e perigoso. Aquilo era terra de ninguém. Muita gente vivia de briga por terra e os mais fracos sempre se davam mal. Lá não existia lei", narra Maria. Em 1970, ela resolveu voltar, passou por Cascavel, Romelândia c Diamante do Norte, no Paraná, sempre trabalhando como bóia-fria ou agregada nas fazendas, na esperança de juntar algum dinheiro para comprar seu pedaço de terra. "Mas aquilo não era vida, só trabalhava pela comida", explica. "Quando foi em 1979, nós voltamos para o Paraguai, em Caarapã. Ali nós fomos enganados. Falaram que lá era muito bom e que a gente podia ternossa terra. Mas a vida virou um inferno. Aquilo que a gente colhia com sacrifício não tinha preço. E, para a polícia, brasileiro é bandido". "Eu nuncc tive problema com a lei, nunca dei motivo, ando sempre em ordem. Mas não dá mais pra trabalhar pros outros, dan~o os produtos de mão beijada pros cerealistas. Corre muita conversa de que a gente vai sair. Eles sabem que o Paraguai vai ficar vazio. Mas tem muita gente passando fome, mesmo quem conseguiu terra. O papel que eles receberam e que prova que eles pagaram, agora não vale nada. Os comissários do IBR agora querem tomar de volta as posses e passar pros mais graúdos. Isso está acontecendo com muita gente. Arrendar não ?á mais, os


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desmates estão terminando", conta Maria do Canno. "Eles dizem que é pra gente ficar, não falar mal deles. Mas cu falo o que é certo, não estou aqui para mentir", justifica. "Os meus filhos? Estão espalhados por esse Brasil todo, só fiquei com seis e minha nora", conta, apontando Salete João da Silva, que não sabe a sua idade - aparenta ter 17 anos - e nem onde nasceu. Ela tem dúvida se a volta será melhor. "Se Deus quiser, quem sabe, dá certo", diz, enquanto segura no colo a filha de poucos meses. Os comentários de que os agricultores estavam para deixar as colônias, fez aumentar a pressão dos comissários c o clima ficou mais tenso. Era preciso agilizar o retomo o mais breve possível. Do contrário, muitas famílias começariam a sofrer repres-álias das autoridades, dos proprietários das terras arrendadas e o aumento das exigências para nonnalização da documentação. Todos os brasileiros, independente de já possuírem documentos, estavam sendo chamados nos escritórios de migração para "esclarecer" a sua situação. Era o pretexto para um longo interrogatório. "Eles diziam que a Nova República do Brasil estava tomada pelos comunistas e por isso a fiscalização na fronteira estava mais forte. Diziam que estávamos influenciados pelas idéias dos comunistas e que era pra ter muito cuidado com os líderes", relata José dos Santos, baiano de Poções, 43 anos, morador de Mbaracayú. Enquanto isso, as lideranças percorriam as col&nias, realizando o levantamento das famílias e a situação de cada uma. A comissão composta para organizar o retomo decidiu, antes, procurar o ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro, em Brasília. No dia 26 de maio de 1985, a comissão dos brasiguaios e a comissão de arrendatários de N aviraí, no cone sul do Mato Grosso do Sul, que estavam na


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iminência de entregar as terras, mantiveram uma audiência com o ministro Nelson Ribeiro. Com um documento em mãos, relatando a situação vivida no pais vizinho, os agricultores pediram garantias de retorno, estrutura para acampar e terra para serem assentados. "O ministro disse pra gente que lá no Paraguai ele não podia fazer nada, mas se a gente viesse, em trinta dias ele resolvia o nosso problema. Então, como a gente estava de planos de vir mesmo, só faltava marcar o dia e o local, que tinha que ser um lugar onde todo mundo pudesse se juntar e que não ficasse muito longe, pra facilitar a vinda de lá. A saída tinha que ser meio amoitada mesmo, pra não correr riscos", lembra V aldomiro Martins, trinta anos. Eles sabiam que se a vida no Paraguai se tomara dificil, a saída também não seria fácil. Os agricultores tinhamquecumprirosvárioscompromissosassumidos antes de deixar o país. Tudo tinha que ficar em ordem, "pra não deixar o que falar depois", explica Valdomiro. Muitos compromissos, porém, eram impossíveis de cumprir. Os arrendatários, por exemplo, tinham que entregar a terra com capim para o gado do fazendeiro, ou com algodão plantado. Isso significava a aplicação de recursos e toda mão-de-obra da família. Os bói<!s-frias empregados nas fazendas só tinham o salário para o rancho do acampamento. E se o patrão descobrisse os planos, corriam riscos de ficar sem receber nada. Muitos estavam devendo nos armazéns dos fazendeiros. Outros tinham dívidas com os cerealistas, que só poderiam pagar com as próximas colheitas. Mas estavam reservadas para a volta ao Brasil. A solução foi vender os animais, alguns maquinários e móveis, para saldar as dívidas. "A gente foi se desfazendo de tudo: fogão, armário, carroças. Só ficamos com panelas, colchões, uma


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chapa de fogão e uma mesa pequena. Juntamos os trapos e ensacamos tudo. E com o dinheiro que sobrou, deu pra comprar um pedaço de lona. Feijão, arroz e milho a gente tinha para o sustento de alguns dias. Deixamos tudo para os paraguaios. Depois de seis anos, tivemos que plantar capim no lugar da lavoura. E viemos embora", recorda Maria Aparecida Alves, 37 anos, baiana.

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O RETORNo- - - J

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Na madrugada do dia 14 de junho, as primeiras famílias começaram a atravessar a fronteira, que fica a pouco mais de 14 quilômetros do centro de Mundo - Novo e iniciaram o acampamento num quarteirão v.azio- reservado para a contrução de uma escolano centro da cidade, ao lado da prefeitura. "A gente veio vindo, já tava tudo combinado e fomos ficando por perto esperando o dia marcado. Tinha que puxar o cordão pros outros virem atrás, pra eles ter confiança. Quem sempre foi escorraçado, quando tem que lutar, precisa de um apoio. Então, nós '- começamos, tomamos a frente", relata José Farias. "Mas muita gente veio foi porque foram obrigados a sair de qualquer jeito. Esses já estavam em casa de amigo ou com padre na di vis2, em Japorã- distrito de Mundo Novo", relata José Farias. A primeira providência foi armar os barracos antes de amanhecer, pra surpreender os moradores da cidade e, principalmente, as autoridades. As próprias lideranças não tinham ainda a dimensão do movimento que estavam encabeçando. José Lino Martins, de 51 anos, gaúcho de Santa Maria, recorda "palmo por palmo" a saída: "Eu até já respi'rava mais fundo por ter passado do lado de cá. Mas não sabia como as coisas iam acabar e nem o que ia passar


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no acampamento. Teve gente que veio de carroça, camionete, charrete, de bicicleta e até a pé mesmo, quando o povo viu que o acampamento ia sair, não teve dúvida. Tratou de vender as tralhas, reservar matula e se atirar de volta pra nossa terra. Aqui é que nós somos gente, filhos de Deus. Parecia uma carreira de saúva, uma atrás da outra. O pessoal que morava mais perto da fronteira vinha cortando o caminho pra escapar das aduanas", recorda Lino. Ao notar a movimentação dos agricultores, os soldados e comissários paraguaios passaram a cobrar o permiso de salida. O valor cobrado variava de acordo com a posse do colono. Se não tivesse dinheiro, entregava o que tinha de melhor, os animais, Õs utensílios domésticos. Muitos, ao sair, foram obrigados a entregar tudo aos comissários. Gaúcho de Jeriá, João Adão Correia, de 57 anos, foi um dos colonos que deixaram o Paraguai com a "roupa do corpo". "Eu tinha nove alqueires em Caarapã e tive que trocar por uma brasília velha pra pagar uma promissória de 18.710 guaranis que me fizeram assinar sem dever nada. Se não pagasse ficava preso e era pior. Me tomaram quatro bois e dois cavalos. Deixei tudo lá e vim com um carro velho". Para ele, as dificuldades sofridas no Paraguai, são conseqüências da vontad~ dos "tubarões de engordar tanto". "A gente não tinha que ir se humilhar no estrangeiro. A terra é deles e a ~ente não tem garantia de nada. Então, eles se aliam com os fazendeiros, pra tirar de nós até a vergonha... " O PORTO DE CHEGADA O município de Mundo Novo foi fundado em 21 de julho de 1972, a partir de um projeto de colonização do INCRA, com o objetivo estratégico de ocupar as


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terras do extremo sul do Mato Grosso. O Projeto Integrado de Colonização Iguatemy envolvia uma área de 73.034,5 hectares, na fronteira com a Repúbli...._ ca do Paraguai, e previa o assentamento de agricultores migrantes da região sul do país. A área total foi dividida em 1.266 parcelas rurais de trinta a cem hectares, 45lotes para-rurais (chácaras), e 4.548lotes urbanos, que deram origem ao município, que conta hoje com uma população de aproximadamente40 mil habitantes c é um dos principais núcleos urbanos do sul do Estado. Depois de quase três anos de emancipação do projeto de colonização, a cidade, que até então era uma das portas de saída de pequenos produtores desagregados de suas terras (mesmo de projetos de · colonização) para o país vizinho e para o norte, passou a ser o porto de chegada desses colonos em regresso à pátria. Em poucas semanas, o acampamento abrigava mais de oitocentas famílias lembrando os primeiros paranaenses, trazidos no início da colonização, esperançosos de ali prosperarem com a nova variedade de café, chamada Mundo Novo, ideal para o clima da região. E desta vez, embora muitos acampados fossem daquela época, não tinham o apoio do governo e sua proteção. Não estavam em clareiras abertas na mata virgem, mas esperavam que o INCRA abrisse as terras que sobraram, ou mesmo redividisse os antigos lotes, agora já agrupados em) latifúndios para a agropecuária. Trazendo à lembrança os tempos dos primeiros agricultores da região, os acampados mudaram a paisagem e o ritmo da cidade. Seriam quase sete mil pessoas comprimidas numa área de dez mil metros quadrados, repleta de barracos de lonas de plásticos e papelão, sustentados por forquilhas de madeira,

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com altura máxima de um metro e meio no seu espigão. Além dos poucos utensílios domésticos e móveis, os agricultores conseguiram abrigar os seus quinhentos cachorros e gatos, papagaios, macacos e pequenas criações, como galinhas, porcos e alguns cabritos. Ali, eles permaneceriam seis meses, enfrentando um calor de até quarenta graus durante o dia e o frio à noite. A presença de milhares de agricultores, em tão pouco espaço, sem condições de sobrevivência, necessitando de todo o tipo de ajuda e com tanta gente ociosa, despertou o temor dos comerciantes, que sentiram-se invadidos. Era um contingente de possíveis fregueses, mas que não dispunham de produção c meios de conseguir renda a curto prazo. Isso acendeu o temorde saques, assaltos, invasões de casas, pelo "batalhão de esfomeados". Para garantir a segurança dos comerciantes e proprietários rurais, a Polícia Militar reforçou a segurança com mais dois pelotões da região para vigiar os acampados. Por outro lado, os pequenos comerciantes, instalados nas proximidades, reforçaram seus estoques, principalmente de bebidas e cigarros, para atender a clientela extra, aumentando também os preços. O número de vendedores ambulantes, sorveteiros, salgadeiros e doceiros, duplicou. A grande maioria passou a orbitar a "cida~e de lona", para atender a demanda de mais de tres mil crianças e adolescentes. · Não faltaram também os sitiantes da periferia da cidade oferecendo galinhas, ovos, leite, mandioca, verduras, banha de porco e até mesmo carne de gado, cameado nos fundos dos quintais. Em poucos dias, esse comércio, caseiro e clandestino, se esgotou c as reservas dos consumidores também.


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O então prefeito da cidade, Adernar Antonio da Silva, de 37 anos, depois de se refazer do susto com a chegada de tantos vizinhos, assediado por jornalistas, apoiava as razões da vinda dos agricultores e preconizava a chegada de mais famílias. "Eu mesmo já atendi um lavrador que foi espancado no Paraguai por não ter documentos. Essa gente já vem sofrendo há muito tempo e agora a situação parece que ficou insuportável", observava. Pressionado pelos proprietários de terras da região, comerciantes c pelos prefeitos das cidades vizinhas, temerosos de serem também surpreendidos com acampamentos de agricultores, o prefeito recorreu ao governo do Estado, antes que a situação fugisse do seu · controle. "Nós não temos médicos, remédios, alimentação, lonas, ipfra-estrutura e muito menos terra para essa gente. Quando começar a faltar alimentos c surgir '-' epidemias vai ser uma catrástrofe. Não podemos assumir essa responsabilidade sozinhos", alertava o prefeito em reunião com os vereadores do município. Os vereadores chamavam atenção para o fato de que se o governo atendesse as rcinvidicações dos acampados, dando-lhes assistência, até que o INCRA providenciasse a desapropriação de terras - que podia ser no município- mais famílias acampariam na cidade. Era preciso a intervenção dos órgãos de segurança para levantar o volume de pessoas vindas do Paraguai c ter o contrgle do limite de famílias a serem atendidas. Pois, paralelo ao problema dos agricultores, o município convivia com outro parecido: 1.500 agricultores bóias-frias e ex-arrendatários estavam há mais de um ano reinvidicando terra. Mas ainda era um problema administrável. As negociações, através do sindicato, se limitavam ao cadastramento das famílias e às promessas de que seriam atendidas pelo

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de sessenta mulheres grávidas necessitam de atendimento. Uma criança nasceu morta e três morreram com poucos dias de vida. A maioria das crianças estão com vemünose. Há deficientes físicos que precisam de maiores cuidados. Existem companheiros que vieram do Paraguai espancados". Após seis meses de acampamento seriam 27 mortes, a maioria crianças, recém -nascidos, velhos c mulheres que não resistiram o pós-parto. Nos dias chuvosos, a gripe aumentava e os casos crônicos não eram aliviados com remédios caseiros. A Comissão de Saúde ficou sob a responsabilidade da enfem1cira prática Dirce Gorch, catarinense, 41 anos, três filhos. No dia dezenove de junho ela relatou em uma entrevista: "A gente faz de tudo o que é possível, mas faltam antibióticos para as infecções. À noite, precisa ver, é um barulho de tosse de crianças, velhos c moços. Não tem quem escape da gripe. Quando chove, a enxurrada vai passando por debaixo dos barracos e tudo fica úmido, fazer o quê? Tem mãe que acha que a gente não quer atender. No hospital não tem mais lugar", desabafou. "Só hoje cu levei doze pessoas, umas com pontadas - pneumonia - , recém-nascido desidratado e mulher com hemorragia. Já teve noite que atendi três partos. Enquanto um terminava de nascer, tinha de sair logo e pegar outro que já estava vindo. Graças a Deus foi tudo bem. Até mesmo embaixo de ventania e pouca luz nos barraco~ nasceu criança na minha mão", disse a enfermeira. A situação de precariedade vivida pelos agricultores no Paraguai, principalmente aquelas famílias que estavam clandestinas, sem condições de se fixarem, por falta de documentos, era percebida na subnutrição das crianças e seria a principal causadora das mortes, agravada pelas condições do acampamento.

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A tensão vivida pelo grupo também era notada nas crises nervosas das mulheres. "Tem muita mulher que ainda não acredita que está no Brasil. Tem medo do que pode acontecer. Por enquanto, a gente só viu polícia. Nada de terra, nada de ajuda. Nenhuma autoridade disse pra gente uma palavra de que aqui vai ser diferente. Isso preocupa muito as mães e causa muita crise de choro, de nervosismo", analisava Dirce. A tensão não atinbriu só as mulheres, a enfermeira atendeu também muitos homens com febre alta c alucinações. "Tem pai de família que varia muito à noite c começa a falar coisas lá de onde eles vieram", observava.

TORTURADOS (Com a ajuda da enfermeira e das lideranças, o Movimento dos Sem Terra e o Clamor, entidade de defesa dos Direitos Humanos, ligada à Arquidioccse de São Paulo c a Comissão Pastoral da Terra, registraram o depoimento de vários casos de brasiguaios vítimas de torturas. Considerando o estado psicolóbrico dos acampactos, em decorrência das condições do regresso, muitos vieram fugidos, outros espancados c perseguidos, a falta de segurança devido a localização do acampamento - próximo da fronteira - , além da ~xtrcma prcc0ricdadc vivid~, foi muito difícil colher jepoimentos das vítimas. A maioria preferiu não se dentificar, com medo de represálias. Os casos ·egistrados ocorreram no períocta cte 1985 a 1986. Os estcmunhos foram gravados ou com as próprias vítinas ou com parentes e testemunhas.

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José de Freitas, 27 anos, casado, pai de dois filhos, le Chavantes, SP. Morava em Corpus Christi. Foi 1reso por tês dias, apanhou muito com cabo de aço. ;oi obrigado a pôr as mãos sobre uma barra de ferro,


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para que os policiais as martelassem. Ficou com as mãos deformadas e ainda possui cicatrizes pelo corpo. Motivo: foi para a cidade para fazer compras e não levou documentos. João Maria Pader, 53 anos, casado, pai de seis filhos, natural de Teixeira Soares, PR. Morava em Vila Vinã. Trabalhava na Fazenda Coronel Peralta. Segundo ele, lá os brasileiros eram cativos. Havia muitos espancamentos e chicotadas com cabo de aço. Trabalhavam em troca de comida. Ele foi espancado c depois obrigado a comer o sal que é dado para o gado, em cocho,junto com os animais. Motivo: ele se recusou acontinuartrabalhando na fazenda. Saiu de lá fugido c disse que mais brasileiros ficaram presos na fazenda. Getúlio de Assis, 29 anos, solteiro, natural de Itabirinha, MG, criado em Toledo no Paraná. Foi preso no quartel próximo aPaloma com um caminhão carregado de milho, que foi confiscado pelos soldados do exército. Foi espancado nas solas dos pés. Ele disse que tinha mais brasileiros presos e todos foram espancados, muitos estavam acorrentados, não soube o nome deles, pois foi proibido de conversar. Antônio Bento Alves, 53 anos, casado, natural de Peixe Branco, MG. Morava em Maracaju. Foi preso e espancado na delegacia local, onde pennanece~ oito dias. Apanhou nas solas dos pés e nas palmas das mãos. Quando foi solto, estava completamente inchado. Motivo: sua vaca leiteira e' capou e foi parar na lavoura de um agricultor paraguaio, que o denunciou para o comissário. José Vi/mar, 25 anos, casado, natural de tenente Portela, RS. Morava em Puerto Adel, na Fazenda Zam pie ri, de Hugo Zampieri. Fazia parte de um grupo de posseiros. Ao serem expulsos, todos foram espancados. O advogado Eriberto Alegre, o líder Pedro


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Ajala, paraguaios, Antônio Gonçalves e outros líderes foram presos e espancados. Os instrumentos usados pelos soldados foram os mosquetões e mangueiras de gasolina. Gentil José de Oliveira, 56 anos, casado, pai de nove filhos, de Santo Ângelo das Missões, RS. Morava há dezenove anos no Paraguai. Passou pelas localidades de Puerto Adélia, Marangatu, Colônia Tabapã. Quando foi denunciar que sua terra tinha sido invadida, apanhou com a bainha do facão do comissário. Foi em Puerto Stroessner denunciar ao IBR. Lá recebeu ordem para ficar na terra. O comissário local (não se recordava do nome) não aceitou e ele foi novamente espancado pelo próprio comissário. De- · pois foi entregue aos soldados, que o continuaram espancando. Ficou algemado, com as mãos para trás, por quatro dias. Nesse período sofria "sessões" de espancamento. Depois o levaram para Arroyo S. Luzia, um destacamento. Lá foi obrigado a beber, à força, àgua por uma mangueira. Quando a mangueira estava em sua boca, os soldados aumentavam o jato de àgua. Depois o abandonaram quase morto. Ele foi socorrido por companheiros e tem sérios problemas de saúde em conseqüência das torturas que sofreu. Ele contou também que na mesma época, início de 1985, um paraguaio foi morto c o agricultor Milton Cordeiro foi preso c acusado pelo assassinato. Segundo ele, era comum os brasileiros serem acu).sados por assassinatos cometidos por paraguaios. Valmor Teófilo, 52 anos, casado, pai de sete filhos, de São Joaquim, SC. Morava há 16 anos em Puerto Adel, na costa do rio Caarapã. Foi obrigado a assinar um contrato de venda de suas terras. Ele conta que a situação no Paraguai vem piorando nos últimos três anos, principalmente as exigências com a documentação, "quando o comissário decide, tem que renovar


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todos os documentos e pagar ainda mais caro". Disse que saiu fugido do Paraguai para não ser preso sem a documentação e deixou tudo que possuía. Seus amigos afirmam que ele foi preso c muito torturado, mas ele nega, "os soldados não conseguiram me pegar", afirmou. Edemar Quezi, paranaense. Foi preso e espancado com cabo de aço, mosquetões c correntes, sem motivo aparente. As informações são de seus companheiros de acampamentos. Na Fazenda Três Mil Alqueires, ou Primavera, como é chamada, de propriedade do "Dr. Perques", o juiz Francisco Sarub c o comissário de Puerto Adélia, chamado Duarte, perseguiram, torturaram e expulsaram da fazenda, em dezembro de 1984, sem direito a levar seus objetos pessoais, os seguintes brasileiros e '- suas fâmílias: Alfredo Pedro da Silva, 42 anos, casado, pai de três filhos; Pedro Moreira de Lima, 43 anos, casado, pai de sete filhos, de Francisco Bcltrão, PR; AntonioRodriguesPaiva, 38 anos, casado, pai de quatro filhos, de Capelinha, MG; Valdir Moreira de Lima, vinte anos, casado, de Catanduva, PR; João Inácio Machado, 42 anos, casado, pai de dois filhos, de Campo Mourão, PR; Valdoziro Rodrigues, 54 anos, casado, pai de qu:J.tro filhos, de Iraí, RS; Marcílio de Oliveira, 47 anos, casado, pai de sete filhos, gaúcho; Miguel de Jesus, 28 anos, casado, pai de três filhos, de Ampere, PR; Adernar Olessa, 26 anos, de Tenente Portela, RS. Estas foram as famílias localizadas, de um total de trezentas, segundo informações. Durante o despejo, muitos agricultores foram presos, outros espancados na frente dos companheiros e alguns conseguiram fugir para o mato, onde ficaram escondidos por alguns dias .


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lzair de Alcântara, 26 anos, casado, pai de um filho, de Francisco Beltrão, PR. Estava há sete anos em Puerto Adélia, na companhia do pai, que tinha comprado um lote de terra. Depois de se desfazerem do que possuíam para saldar a dívida, os paraguaios lhe tomaram a terra. Pediu autorização ao juiz Francisco Sarub para derrubar a madeira, única forma de rever o que havia perdido com a compra da terra. Quando o comissário soube, mandou prendê-lo. Foi ameaçado de ser levado para Vila Rica, uma prisão temida pois, segundo ele, "quem vai para lá não volta". Depois de espancado, foi trancado, durante quatro dias, num quarto escuro, sujo, úmido e fundo, onde os ratos roeram seus pés. Nesse período, ficou sem ser alimentado e perdeu a noção de tempo. Só saiu com vida porque seus companheiros o socorreram e se cotizaram para pagar a sua fiança. A sua terra foi incorporada pela Colonizadora Geminis. Ele ainda tinha alguns bens no Paraguai, mas estava ameaçado caso retomasse. Altair Alcântara, 28 anos, casado, pai de três filhos, de Salgado Filho, PR. Morava há sete anos em Puerto Adélia. Seu filho Cláudio, com um ano, morreu vítima de tétano, sem ser socorrido no hospital local. Ele era posseiro e várias vezes foi vítima de perseguições, sempre em época de colhcit<l. Foi preso pelo comissário chamado Duarte com a autorização do juiz Sarub. Levado para a delegacia, foi brutalmente espancado por três policiai~ obrigado a trabalhos pesados e ameaçado de ser levado para a prisão de Vila Rica. Foi solto depois de ter pago trezentos mil guaranis e toda a colheita de algodão. Segundo ele, quando dois brasileiros iam presos, um era escalado para espancar o outro. Henrique Figueiró, 33 anos, de Santo Antônio, PR. Ele narrou que Cleusa Duarte, de quatorze anos e .....

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sua mãe, Helena Duarte foram presas porque um paraguaio tentou violentar a menor. Os brasileiros, em defesa da menina, entraram em luta corporal com o paraguaio e seus amigos. Após a briga, o juiz "-- Francisco Manoel Sarub e o comissário prenderam a .__. menina. A mãe seguiu junto para proteger a filha. Ambas sofreram humilhações na prisão e foram '-- ameaçadas de morte. Os brasileiros que defenderam a '-- menina foram perseguidos e tiveram que fugir para o Brasil. Segundo Henrique e outros acampados, os 'soldados costumavam invadir as casas de brasileiros '-' para raptar suas filhas. Após alguns dias do rapto a -.. . moça aparece, muitas vezes trazida pelo próprio seqüestrador, que as entrega para a família. Não esca: '- pam nem as mulheres casadas. Se denunciasse, quem '- ia presa era a mulher, acusada de prostituição. Em con~eqüência, muitas famílias ficam caladas, ou mu.__ dam-se para outro local no Paraguai ou retomam, '-- quando podem, para o Brasil. ..__ Valdemar Cardoso de Lima, 33 anos, casado, pai de três filhos, de Laranjeiras do Sul, PR. Morava há cinco anos em Figueira. Foi espancado brutalmente "- no posto de migração, por não ter dinheiro para refazer seus documentos que tinham sido apreendidos no próprio local. Ele foi detido no posto quando ia '-- para Guaíra (Paraná), buscar socorro para sua filha '-- Cristiane, de dois anos, que tinha sofrido queimaduras graves num acidente. Ao chegarno acampamento, em '-- Mundo Novo, Valdemar estav<? muito doente e com .__ deslocamento dos quadris. Sua filha foi encaminhada ao Hospital Universitário de Campo Grande, onde foi '- operada . ..._ Arlindo Tavares da Silva, 38 anos, casado, pai de '-" três filhos, de Palmeiras dos Índios, AL. Ele estava trabalhando na fazenda Estância Campo Aguaé, a ~ vinte quilômetros de Curuguati, departamento de


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Canindeyú. Foi espancado no dia 26 de setembro de 1985. Ele suspeitava que o motivo tinha sido porque encontrou uma grande plantação de "uma planta esquisita. Lá só os homens do fazendeiro (Valdir Fachini) podiam chegar". Os jagunços Raimundo Bezerra e Gaúcho o espancaram por várias horas. À noite, fingiu que estava desmaiado e, quando os jagunços se afastaram, fugiu pelo mato. Quando chegou no acampamento, estava visivelmente perturbado, tinha hematomas no rosto e braços, andava e respirava com dificuldades e chorava constantemente. Recusou-se a fazer exames médico, pois temia ser perseguido. Foi encaminhado para Rancharia (São Paulo), onde estavam sua mulher e filhos. Jorge Moreira, 44 anos, casado, de Clevelândía, PR. Morava há sete anos em Puerto Adélia, departamento de Canindeyú. Ele presenciou o espancamento do companheiro chamado Hélio Preto, a mando do juiz Francisco Manoel Sarub. Foi obrigado a trabalhar na construção do porto. Perdeu suas terras depois de ter construído benfeitorias. José Ramalho Teixeira, 25 anos, deFranciscópolis, MG. Morava há nove anos em Puente Kijá. Foi preso e espancado durante oito dias, por ordem do comissário chamado Canno, e submetido a trabalhos pesados. Na prisão presenciou o espancamento de outros brasileiros (não sabe dizer os nomes, pois não os conhecia e foi proibido de falar com eles). Tem marcas das torturas pelo corpo. Ele foi de~pejado de suas terras e depois perseguido quando quis reavê-las. José de Sousa Oliveira, 39 anos, pai de quatro ftlhos e seu irmão, Luiz de Sousa, de 35 anos, ambos de Carlópolis, PR. Foram presos, sem motivo aparente, a mando do comissário de Corpus Christi, onde por doze dias foram torturados. Eles contaram que um amigo chamado Albino (não lembram o nome completo),

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também foi preso e torturadonodial4 de junho del985. Os soldados enfiaram agulhas embaixo das unhas das mãos, foi muito espancado e obrigado a trabalhos pesados nos cinco dias que permaneceu preso. Quando ,.. saiu, estava enlouquecido e dizia que ia fugir para o Brasil. Não tiveram notícias dele depois que acamparam. Júlio Gonçalves dos Santos, 42 anos, casado, pai de oito filhos, de Águas Boas, MG. Morava em _ Mbaracayú. Depois de ter pago duas vezes a mesma terra de 15 alqueires, foi obrigado pelo comissário a assinar um documento de desistência das mesmas. Foi despejado antes de poder colher a última safra. Seus filhos não possuem documentação brasileira, pois casou no Paraguai, onde formou família. Antes de . voltar, foi preso sob a alegação de não ter emplacado sua bicicleta. Foi brutalmente espancado. Cassimiro Ozaga, 40 anos, casado, de Luiz Gonzaga, Nordeste (não se lembra mais em que estado). Teófilo Cezário da Silva, 31 anos, casado, de Garanhuns, Pernambuco. Manoel Inocêncio da Silva, 77 anos, casado, deBela Vista,PR.Arnoinocêncioda Silva, 22 anos, solteiro, de Peroba!, PR. José Luiz da Rocha, 45 anos, casado, de Montes Claros, MG. Isaltino dos Santos, 34 anos, casado, de Guarapuava, PR. Antonio da Silva, 35 anos, casado, de Guaíra, PR. José da Silva, 32 anos, casado, de Santo Antônio da Platina, PR. Todos esses agricultores c mais alguns companheiros que não conseguiram acampar, foram expulsos e depois presos por se recJsarem a dar trinta dias de serviços sem remuneração em fazendas de comissários e membros do exército. Foram "aconselhados" a deixar o Paraguai em 48 horas. Eles residiam em Pacová, na fazenda do "Dr. Zacarias" que, segundo afirmaram; era deputado federal. Jair Alves Ferreira, 19 anos, solteiro, de Ubiratã, PR. TambémmoravanafazendaZacarias,emPacová.


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Foi preso por não ter documentos e espancado com baionetas. Tem marcas pelo corpo. RolfWeigman, 29 anos, casado pai de cinco filhos, de Lontra, SC. Morava em Corpus Christi. Foi preso e prmaneceu o dia inteiro algemado enquanto era espancado e ameaçado de morte. Ficou com cicatrizes no rosto e pelo corpo, principalmente nos braços e nas pernas. Motivo: não tinha documentos. Sebastião Mateus, 44 anos, casado, de Campo Novo, SC. Morava em Puerto Adélia. Foi expulso da terra e teve que se refugiar no mato pára escapar da perseguição do comissário. Maria Antonia Ferreira, 43 anos, casada, mãe de nove filhos, de Caratinga, MG. Morava há nove anos no Paraguai, na faixa de fronteira, em Santa Luzia. Ela conta que seu filho de dezenove anos, Jaise Aires Ferreira, foi preso, acusado de roubar um cavalo. Na prisão teve seus dedos martelados sobre uma chapa de ferro, além de ter sido muito espancado c humilhado. "Colocaram ele de quatro para apanhar e preparavam ele para ser fuzilado". Seu filho voltou com todos os dedos deformados. José Macedo Pereira, 27 anos, solteiro, de Malacacheta, MG. Foi preso c espancado a mando do comissário de Paloma, chamado Canno, sem motivos aparentes. Foi libertado depoi:; de pagar trezentos mil guaranis. João Vieira Gonçalves, 21 anos, casado, pai de dois filhos, de J aracatiá, SC. .Morava há dois anos em Guadalupe, na fazenda Dois Mil Alqueires, de Lino Rossi, de São Paulo. Foi despejado a mando do fazendeiro e muito espancado pelos soldados. Adernar Bach, 29 anos, de Três Passos, RS. Estava há um ano e meio em Caarapã. Ele presenciou o espancamento de vários companheiros a mando dos comissários.

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Em novembro de 1985, na localidade chamada Figueira, próxima a Paloma, as famílias de Antonio Lopes, Benedito Lopes, Antonio Bueno e Castelar foram presas e espancadas. Elas continuavam no Paraguai esperando para retomar ao BrasiL Os espancamentos foram em conseqüência dos preparativos que faziam para deixar o país. Em Pacová, a 15 quilômetros da fronteira com o Brasil, os soldados paraguaios, comandados pelo comissário Canno, percorreram toda a comunidade e forçaram os lavradores a subirem em caminhões. Foram levados para uma festa do Partido Colorado, em outubro de 1984. Lá foram obrigados a cantar o hino do partido c aplaudir os representantes. Depois, receberam um cartão como comprovante de sua presença na tal festa. Os que se recusaram a ir para a festa estavam sendo caçados pelos soldados e obrigados a pagar quarenta dias de trabalhos pesados no quartel do exército. Poucos dias depois da festa, os soldados percorreram novamente as casas dos colonos, e aqueles que estavam sem o cartão foram presos e espancados com correias de bicicletas e machetes. No período de 11 a 17 de outubro de 1985, na localidade de Alvorada, os policiais efetuaram uma prisão em grupo e espancaram vários moradores brasileiros, inclusi vc menores e mulheres. Famílias inteiras foram presas. Os soldados tinham o propósito de humilhar os agricultores. Levaram os presos para a praça da cidade onde foram forçàdos a repetir, várias vezes, que os brasileiros que saíram do país são marginais, bandidos e ladrões procurados. Os agricultores não quiseram se identificar com medo de represálias; muitos ainda tinham parentes no Paraguai. O comissário de Paloma, chamado Canno, esteve no acampamento em Mundo Novo para ameaçar os agricultores, principalmente as lideranças. Conforme as


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ameaças do comissário, aquele que passar a fronteira do lado paraguaio não volta vivo. Outra vítima do comissário Canno foi o lavrador Francisco Plantes de 22 anos, natural de Dois Vizinhos, PR. Ele morava há treze anos na localidade de Guadalupe. Foi preso em Paloma por ordem de Canno, sofreu torturas e espancamentos, levou choques elétricos nas orelhas c mãos. Desde que saiu da prisão, passou a ter distúrbios mentais e amnésia. Foi encaminhado ao Hospital Universitário de Campo Grande.

MUTIRÃO DA SAÚDE

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Nos dias 25, 26 e 27 de julho, o governo do Estado enviou uma equipe de doze médicos da Secretaria de Saúde para realizar um "mutirão da saúde" junto aos brasiguaios. A equipe levou um estoque de remédios para abastecer os postos de saúde do município, que já estavam sem medicamentos. Quando a equipe chegou, coordenada por Licarion Tenório de Oliveira, a Comissão de Saúde do acampamento já tinha nove parteiras e vinte agentes de saúde treinados pela dona Dirce e agentes da Pastoral de Saúde da Diocese de Dourados. Durante os três dias, a equipe realizou 274 atendimentos médicos, 441 consultas odontológicas, 754 extrações dentárias, 337 atendimentos de enfcrma~em, 150 aplicações de injeções, 38 curativos, 58 me"dições de pressão arterial e 1.059 aplicações de vacinas (BCG, triplice e antisarampo). No acampamento, que já contava com mais de quatro mil pessoas, sem saneamento, com apenas dez torneiras de água, disputadas por centenas de mulheres (para lavar roupas, dar banhos nas crianças e abastecer suas cozinhas), a equipe enviada pelo Estado, para socorrer as famílias, ministrou onze palestras


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sobre os temas "Alimentação e Saúde", "Saneamento Básico", "Higiene Pessoal", "O que é Cárie", "Diarréia e Desidratação" e "Amamentar é Amar", para uma população subnutrida, doente e sem as mínimas condições de aplicar aqueles ensinamentos básicos sobre o bem-estar. Após a visita dos médicos e enfermeiras, que seria '- a única, a população do acampamento, que aumentava a cada dia, ficou nas mãos da Comissão de Saúde e de dona Dirce. Ela continuou "pegando crianças" do mesmo jeito que fazia no Paraguai, trabalho que desempenhava com muito orgulho. "Teve um ano no Paraguai que atendi mais de oitocentos partos. Tinha noite que cu pegava quatro crianças. Até os médicos de lá me chamavam para ajudar". O atendimento médico no Paraguai não era muito diferente, "eles nunca dão valorpra aqueles que '-- não têm dinheiro, e quando atendem é muito mal. E, depois, os brasileiros não confiavam nos médicos. Então cu acabei virando médica, enfermeira, parteira. Atendi muita gente espancada", atestou. Os dois hospitais particulares de Mundo Novo não ofereciam estrutura física e humana para atender a tanta gente. Por dia, em média, trinta pessoas eram encaminhadas pela Comissão de Saúde. Os corredores ficavam lotados de doentes à espera do médico, que muitas vezes não aparecia. No final do dia, seu Yamashita voltava para o acam~amento com sua brasília - o único transporte da comunidade lotada de doentes. "Dali um ou dois dias morria uma pessoa, lembra Clarinda da Silva. A sua filha, Ducilene da Silva Barbosa, com três meses de vida, morreu no dia 17 de agosto, no Hospital das Clínicas de Mundo Novo. No atestado de óbito, assinado pelo médico Reinaldo Sales Ribeiro, a causa mortis foi "falta de assistência


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médica", conforme consta no Registro de Óbitos nQ 1542 do cartório da cidade, datado do mesmo dia. Clarinda recorda que recorreu ao hospital várias vezes, "e sempre o médico mandava voltar. Até que um dia ela ficou muito ruim mesmo, fraquinha. Então eu levei ela de novo pro hospital, mas não teve jeito", conta resignada. Apesar das enfermidades, que aumentavam a cada dia, a maior preocupação dos líderes nos primeiros vinte dias foi a falta de alimentação. Muitas famílias chegavam sem nenhuma reserva. Outras repartiam o que traziam com vizinhos e parentes. Nos primeiros quinze dias as reservas já tinham se esgotado. "Então foi o que a gente pensou: se não tiver comida para sustentar o pessoal, o acampamento vai se esvaziar, pois qual é o pai crente em Deus que fica vendo seus filhos passar fome?", lembra José Farias. "O pessoal de uma usina de álcool de Rio Brilhante chegou de madrugada oferecendo emprego. Nós não estávamos ali acampados por falta de emprego, mas por falta de terra que desse pra gente um pouco de sossego. Se fosse pra trabalhar em usina, a gente nem tinha saído do Paraguai", justificou Farias. A oferta da usina era tentadora. Toda segundafeira os caminhões iriam buscar os agricultores e retomariam no final de semana. Enquanto isso, as mulheres e crianças cuidap am da manutenção do acampamento. Isso garantiria algum dinheiro para comprar o necessário para se manterem. Mas significava, também, a desmobilização da luta. A questão foi discutida em assembléia e os acampados decidiram não aceitar qualquer oferta de emprego: "Se fôssemos trabalhar em usinas ou como bóias-frias nas madeireiras e fazendas vizinhas, o INCRA não ia se preocupar com a gente e em vez de acampamento aquilo ia virar uma favela", lembra


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Valdomiro. Mas, apesar da decisão, muitos agricultores aceitaram o trabalho oferecido. Em julho, o Ministério do Interior, através do MIRAO, firma convênio de três bilhões de cruzeiros com o Governo do Estado para a alimentação, remédio c lonas para os acampados. A Coordenadoria de Defesa Civil, chefiada pelo Tenente Coronel Soares, foi encarregada de administrar a verba.

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O CERCO ' A CIDADE DE LONA

Além de administrar as negociações com o Estado, de intermediar as questões entre acampados e a opinião pública, manter uma articulação de apoio com· as entidades do movimento popular e sindical, a Comissão Central, ou Comissão de Negociação dos Acampâdos, administrava também os problemas de uma cidade de lona e as implicações que isso acarretava. O acampamento era um território distinto. Um espaço "geopolítico" organizado de forma a solucionar, mesmo que precariamente, os momentos de crise de seus habitantes e o agravamento das condições vividas internamente. Uma morada provisória, emergencial, em contraste com o seu vizinho, mais barulhento e hostil, que era a fortaleza políLica dã cidade, o centro do podere das decisões- a prefeitura municipal. Local de concentração dos políticos, comerciantes, madeireiros, pastores e vigários, o edifício público se transformou na assembléia permanente desse poder que, naquele momento, se via ameaçado e impotente diante do desafio que a presença daquela gente trazia, toda vez que ultrapassava o espaço físico do acampamento. E tomava de assalto- para ocupar como palco de guerra - o território político da

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prefeitura, das ruas da cidade e do centro comercial para pressionar. Para ultrapassara limite territorial dos brasiguaios, '-" a polícia, o prefeito, vereadores e representantes "beneficentes" tinham que receber o "salvo conduto" da Comissão. As poucas exceções eram para algumas pessoas e entidades que com punham o pequeno grupo de aliados, conquistado antes mesmo do retomo. O marco da divisa desse território de refugiados, era o mastro da bandeira brasileira, já rota, que num ritual melancólico era hasteada toda manhã e recolhida ao anoitecer, tarefa executada pela Comissão dos Jovens. Um ritual que muitas vezes aconteceu ao som ..._... da "Voz do Brasil" vinda dos rádios à pilhas ligados nos barracos ao entardecer. Foram raras as vezes que o programa mencionou a sua existência. O culto aos símbolos nacionais era um costume trazido do Paraguai, praticado nas aduanas e nos quartéis, onde os jovens foram recrutados à força, aos dezesseis anos. Era um ritual aprendido também nos quartéis do exército brasileiro e nas escolas das cidades de seus estados de origem, onde lhes ensinaram a "defender a pátria e a honrar a bandeira". O gesto repetido metodicamente pelos jovens, não representava apenas a obediência aos deveres de cidadãos, mas um esforço para dizer que tinham uma pátria, mesmo que fosse restrita aos limites dos barracos. Onde tinham, também, scas regra~de conduta, suas leis de disciplina e obediência - não a um comandante supremo, mas a um coletivo. E tinham princípios de igualdade e critérios de punição estabelecidos conforme as necessidades. Embora não existissem fronteiras físicas do ponto de vista convencional, existia a fronteira social. E esta era evidente. Estava demarcada e vigiada por soldados da PM, prontos para investir contra o território de


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brancaleones, que lutavam pelos direitos à terra e uma cidadania, enquanto contavam suas baixas. O instrumento de defesa da comunidade era a ..._ Comissão de Segurança, composta por quarenta homens, em média, que se revezavam na vigilância dos barracos, para garantir a ordem e a tranqüilidade das famílias. Sua principal tarefa consistia em defender o '- espaço contra a ação do Estado que os hostilizava com a presença do policiamento ao redor. A reação policialesc a do governo estadual contra as fan1ílias foi contestada pelo então deputado federal Sérgio Cruz, do PDT, através de uma carta pessoal ao governador Wilson Barbosa Martins, do dia 17 de junho. Na carta, o deputado afirma que "a ação moderada de acampar tem o significado maior da compreensão de que a luta passou a ser tratada democraticamente. O que é penoso, sobretudo para os que são enxotados do Paraguai, é a ameaça da repressão policial, seca e taxativamente anunciada por V.Exa". Afinal, diz o deputado, "são brasileiros aturdidos com o peso do cassetete da polícia paraguaia e não é patriótico que o nosso governador os receba com ódio e desconfiança. Afinal, é do ódio que estão fugindo". Mais adiante, ele reforça: "Os acampados não estão precisando de prevenção policial. Este tipo tacanho de atenção já tiveram em demasia no estrangeiro, onde foram hum ilhados, roubados, torturados e expulsos como animais. Carecem imediatamente de alimentos e remédios para assegurar a tranqüija transitoriedade do acampamento e da terra, para a efetiva fixação, como sujeitos da reforma agrária". A ameaça de invasão do acampamento pela polícia era constante. E a decisão da Comissão era de impedir, pois significava entregar o controle da organização, correndo o risco de desmobilizar o movimento. "Nós tínhamos muitos problemas internos, desde brigas '--


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entre as famílias e desajustes entre as Comissões. Outro problema eram as constantes provocações de 'gente de fora. Entravam no acampamento à noite para buscar confusão, incomodar as mulheres e provocar brigas. Por isso, nós tínhamos que criarnormas internas para controlar as crises e impedir que a polícia encontrasse uma desculpa para entrar", explicou José Farias. O tenente-coronel Soares, coordenador da Defesa Civil do Estado, foi o primeiro a tentar furar o bloqueio interno dos acampados. Nomeado pelo governador Wilson Barbosa Martins para administrar a verba de três bilhões de cruzeiros do convênio para a manutenção das famílias, o coronel planejou a "Operação Regresso", que previa a transferência do acampamento para uma área isolada, sob o argumento de evitar maiores tumultos. O novo acampamento seria armado pela Defesa Civil, que controlaria, inclusive, a entrada e saída de pessoas no local. A aceitação da transferência estava condicionada ao recebimento dos recursos do convênio- vital para as famílias. A resposta dos acampados foi discutida em assembléia: era uma tentativa de desmobilizar a organização e, além de desperdiçar os recursos, ia tirar a autonomia da Comissão e impor novas regras às famílias. Antes mesmo de consultar os acampados, a Defesa Civil gastou 260 milhões na limpeza ào novo terreno, compra de encanamentos, ferramentas e combustíveis para os maqu~nários. "Esse dinheiro daria para resolver o problema de ~úde, com a compra de remédios", afirmavam os agricultores. Além do quê, o convênio não previa a liberação de recursos para a mudança de acampamento. "Só aceitaremos a tansferência para a terra definitiva", avisaram. Para resolver o impasse e iniciar a remoção das famílias- que considerava uma questão de calamidade pública -,-o coronel Soares foi até Mundo Novo


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com um grupo de policiais, disposto a entrar no acampamento e desarmar os agricultores. Foi impedido terminantemente pela Comissão. Os agricultores receberam o coronel no barracão de reuniões, enquanto seus soldados esperavam no limite da entrada da área - em frente ao mastro da bandeira. O clima da reunião foi tenso. "O coronel queria que os soldados entrassem nos barracos, pensando que ali tinha bandido foragido do Paraguai. Mas teve que recuar quando nós dissemos pra ele que, se desrespeitasse as nossas normas, ia ter que enfrentar a segurança. Eles tinham que entender que se a gente era foragido da lei, não era ali que ia se esconder, ao lado da prefeitura, e ninguém estava escondendo nada de arma. Nós somos trabalhadores, brasileiros igual a eles e com direito de voltar para nossa pátria", insistiam .. Contrariado, o coronel ameaçou "puxar o meu 8 milímetros e resolver o caso". "Não teve coragem. Naquele dia tinha uma jornalista estrangeira (Jan Rocha, da BBC de Londres) e um advogado (Fermino Fecchio) assistindo a reunião. Eles viram que a coisa ficou preta. Mas a gente não estava de volta pra nossa terra pra ser humilhado igual lá no Paraguai. Ele sentiu a nossa firmeza e teve que recolher os soldados e ir embora... ", lembra Vaidomiro. Sob os olhos de visitantes curiosos, repórteres afoitos, padres misericordiosos, polítiços duvidosos e autoridades prepotentes, existia umcí cumplicidade entre os brasiguaios no trato com essa gente. Eles passaram a se pronunciar sobre aquilo que cada interessado queria ouvir. A satisfazer cada interlocutor e se resguardar desses mesmos visitantes. Não foram poucas as histórias com nomes, locais e informações trocadas que os repórteres levaram para as redações - na maioria dos casos a imprensa se posicionou


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contra o retomo dos agricultores. As infonnações sem '---distorções eram aquelas divulgadas através das cartas 'à população e dos documentos entregues ao INCRA, além das relatadas nas reuniões de negociação com órgãos dos governos estadual e federal e com entidades de apoio, principalmente a Comissão Pastoral da Terra e o Clamor - Comitê de Defesa dos Direitos Humanos no Cone Sul, ligado à Arquidiocese de São Paulo. Era preciso se proteger, afinal, o sonho de retomar para casa e encontrar um pedaço de terra tinha se transfonnado, por enquanto, num espaço coberto de lonas, cheio de caminhos e ruelas entremeadas de . fossas a céu aberto. Onde a única distração era a algazarra de centenas de crianças silenciadas à noite por "uma orquestra desafmada de tosses, chiados de pulmões e choros de recém-nascidos", como relatava Dona Dirce. Fora dali, as relações eram iguais e até piores que no país vizinho. A diferença estava na língua falada e na cor da farda dos soldados. Lá, como aqui, tinham que se submeter às regras de quartéis, à subserviência aos políticos da situação e, igualmente, eram marginalizados pela população ao redor. E eram obrigados a peregrinações em hospitais e postos de saúde, em busca de assistência médica. Como também não tinham acesso à educação e não participavam das decisões políticas. O ano de 1985 foi um ano de éleiçõe'> nas cidades consideradas áreas de "Segurança Nacional". Mundo Novo, por ser na fronteira, estava incluída. Os brasiguaios participaram de um processo eleitoral semelhante a tantos que presenciaram no Paraguai: em dia de eleições, os caminhões do exército paraguaio passavam nas colônias para recolher os eleimres e levá-los aos locais de votação. Lá, os títulos- mais um documento obrigatório - eram recolhidos pelos


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Apesar das diferenças internas, inclusive em rela- ção à condução das negociações, os brasiguaios respondiam como um só corpo, dando unidade às reivindicações e respaldando a Comissão Central. Enquanto permaneciam acampados, reivindicavam duas coisas básicas: condições para sobreviver cnqt:anto permaneciam acampados e terra, o motivo da volta. "Por isso fizemos tanta pressão. Não querí- amos ficar empatados nos barracos, recebendo umas migalhas de ajuda. Tínhamos muitos braços pra roçar o primeiro mato que a gente encontrasse pela frente. Mas, antes, íamos esgotar todas as formas de negociação. E local pra gente plantar é que não faltava, era só fazer a ocupação", lembra Antônio Vieira. · O DIÁRIO DO POETA Carlos José Rodrigues, pernambucano de 19 anos, começou no dia 30 de junho, de 1985 um diário, onde registrou os principais momentos da vida no acampamento. A distribuição de alimentos pela Polícia Militar, que era realizada em clima de tensão (a cesta de 'alimentos distribuída, a cada dez dias, era insuficiente), foi registrada no diário do Poeta, como Carlos José 'ficou conhecido entre os companheiros: "No dia da "alimentação, o povo fez aquela fulia. O povo ievando o seu sacão, com pouco alimento para passar dez dias." ) "Chegaram dois caminhões carregados de alimentos. Na mesa ficava o Capitão, circulando ficava o Sargento. Chegaram uns visitantes para ver a distribuição. Acharam insignificante, o tipo do feijão. A nossa mercadoria era arroz, sal, farinha, leite e jabá. Biscoito açúcar e macarrão. Logo no início, eles faziam a distribuição para o povo passar dez dias. E depois de quinze dias vinham cheios de razão".


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A cesta de alimentos tinha pouca comida para os dez dias previstos. Quando a equipe da Defesa Civil retomava para distribuirnova remessa, os acampados '-já estavam sem alimentos há mais de três dias, sendo que o processo de distribuição das cestas levava em tomo de quatro dias por causa do número de famílias e da falta de pessoal para o trabalho. Na segunda quinzena de agosto, a Defesa Civil suspendeu o fornecimento de alimentos para sessenta famílias que não foram classificadas no cadastro do 'INCRA, por não atenderem os requisitos exigidos para serem assentadas. Sem comida, as famílias seriam forçadas a deixar o acampamento. A medida . '-causou revolta na comunidade, pois os "desclassifica'- dos" receberam a notícia no dia da distribuição dos 'alimentos. Eles não receberam orientação do órgão para o cadastramento e não foram informados com '-antecedência, para que pudessem ter acesso às causas '-da desclassificação. Na mesma semana, a Comissão Central descobre que o depósito de alimentos estava sendo assaltado, há vários dias, por soldados da Polícia Militar, que faziL ama guarda das mercadorias, contra possíveis saques dos brasiguaios. O delegado do município, Osmar Canedo Campo, depois de receber a denúncia da Comissão, realizou, somente num dia, quatro autos de apreensão de mercadorias em posse de soldados. Os alimentos roubados somaram um total de cinco mil \_ quilos, com valor aproximado, h a ocasião, em cinco milhões de cruzeiros. Apenas um dos envolvidos, Eurico Rufino dos Santos, que não era soldado, foi preso. Ele estava vendendo as mercadorias no comércio da cidade. '"A gente ouvia dizer que os brasiguaios não esta'- vam precisando de comida, porque estavam vendendo jabá (carne-seca) e outros alimentos nos bolichos do Paraguai e nas vilas da cidade. Então resolvemos inves\..,....-

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tigar. E descobrimos que quem vendia as mercadorias eram os soldados que protegiam os estoques. Fizemos a denúncia ao governador e ele não quis aceitar. Mas depois teve que admitir, inclusive diante da imprensa, que quem estava saqueando era a polícia. Os alimentos roubados não foram devolvidos", atesta José Farias. A notícia do saque no depósito de alimentos e a desclassificação das sessenta famílias no dia 20 de agosto, manteve a comunidade em vigília por dois dias. O momento de maior tensão foi quando as mulheres cercaram os caminhões carregados para exigir que os alimentos fossem para todos, sem distinção. "Então, houve uma manifestação e dentro de alguns momentos juntou-se todo o povão. Chegou o capitão, o tenente, o sargento. O povão ficou de frenté para o caminhão. O cabo ficou nervoso. Nunca tanta confusão entre a polícia e o povo. As mulheres fazendo pressão, as crianças chorando, xingando, chamando de malandro, vocês são ladrões. O Capitão, vendo aquele movimento todo, murmurou ao sargento: com esse povo não tem quem possa, eles querem mesmo a sua roça. As mulheres gritando: ladrões. Falavam no microfone: este povo está com fome. Queremos comida, não bala de canhão. Havia gente que não comia e já fazia uns três dias. Um companheiro falou: vamos virar o caminhão. O cabo escutou e disse, com o revólver na mão: eu dou um tiro na sua cara e passo com o caminhão em cima. Foi nesse momento que o povo pra ele disse: desce do ~aminhão. Chegou o sargento, juntamente com o capitão, e foram fazer a distribuição. E o povo se acalmou e cada um recebeu a sua alimentação", relatou o Poeta no seu diário. O Poeta pertencia àequipe de jovens que cadastrou 1.572 crianças de zero a dez anos e 2.552 analfabetos de dezesseis a trinta anos, no primeiro mês de acampamento. Esses números subiram para mais de três

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mil até a saída para o assentamento. "O levantamento de crianças em idade escolar e dos analfabetos nos deu uma idéia das necessidades de salas de aulas e professores que seriam necessários no assentamento, e ajudou as reivindicações junto ao INCRA para, já de início, a gente ir se preparando para organizar o sistema educacional. Enquanto a gente não tinha um lugar para estudare pra se divertir, ia planejando o que fazer quando chegasse na terra", explica Valdevino Mezzari, da Comissão de Jovens. Todos os levantamentos realizados foram tarefas desempenhadas por essa Comissão. Organizar grupos de oração também era papel dos jovens que chegaram a realizar mais de trezentos batizados. Ativos dentro da comunidade, os jovens tinham as suas rcivintlicações próprias junto à Comissão Central. "Eles não concordavam com algumas críticas e exigências que ·a gente fazia, como aos sábados poder se reunir até mais tarde, fazer festas e campeonatos de futebol, pôr música no alto-falante. Nós precisávamos se divertir um pouco. Mas mesmo assim não deixamos de participar das decisões e das tarefas que eram pra gente fazer", justifica Valdevino. "A gente reunia as crianças, conversava com elas o que estava se passando, falava das nossas coisas com elas, dava ensinamentos da Bíblia, cantava e os violeiros animavam os encontros. Era assim que a gente tentava passar o tempo. No fundo, apesar das brigas, a gente era uma faJlília só. Ninguém de nós deixava alguém falar mal dos brasiguaios, cada um se defendia e defendia a todos. Agora, aqueles que não tinham jeito mesmo, entregava pra polícia. Tinha que tomar a decisão de dentro pra dar exemplo. Mas isso não foi preciso fazer sempre não", lembra Valdevino. O diário do Poeta registrou que o mês de junho foi o mês de muitas novidades:" A nossa vida no acampa-


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mento não é nada fácil. Está faltando alimentação, lonas, medicamentos e agasalhos. Estamos precisando de tudo. Tem bastante gente doente, principalmente crianças. Muitas famílias há doze dias estão nessa situação e continua chegando muito mais. No dia quatorze, sexta-feira, chegaram vinte famílias e a previsão é de chegar de duzentas a 250 família~ até o dia trinta de junho". Esta data era o limite do prazo permitido para a vinda das famílias, que ainda estavam para retomar do Paraguai, e fazia parte do acordo entre a Comissão de Negociação e o governo estadual. A partir dessa data, o acampamento seria fechado para a entrada de novos agricultores; do contrário, o governo suspenderia as negociações. No dia vinte de junho, o diário do Poeta registra: "Estiveram em Mundo Novo um senhor e uma senhara daM igración dei Paraguai. Eles queriam dizer que era mentira o que nós falamos. Mas foi provado por mais de doze companheiros por meio de documentos e depoimentos que era pura verdade. Todos nós já tínhamos sido presos e espancados no Paraguai. Pena que não deram chance para que aqueles depoimentos fossem filmados pela televisão". Ainda no dia vinte: "Dez companheiros foram a Campo Grande para encontrar com o ministro Nelson Ribeiro. Ele prometeu enviar uma cornissãodoiNCRA para estudar a nossa situação. Dia 21 de junho: eles se encontraram com o m;nistro da Reforma Agrária. Na entrevista ele falou que>já tinha conhecimento das condições do acampamento e que ia enviar técnicos para estudar a situação e fazer um levantamento das terras da região. Depois de ouvir o relato e receber o relatório por escrito da Comissão, o ministro disse o seguinte: 'Eu estive hoje com o governador que me deu esse quadro que os senhores estão me relatando aqui, e amanhã estarei em Brasília e me reunirei com

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o presidente do INCRA, José Gomes, com os documentos que vocês estão me entregando. Espero, na segunda-feira, mandar uma comissão estudar com o governador e com os trabalhadores, uma solução "---- definitiva. Este percurso nós temos que seguir. De maneira que eu espero ainda, quando eu chegar a Brasília,, conversar com o presidente do INCRA para ver se começamos a equacionar soluções com a brevidade e emergência que a situação exige'." Dia 22 de junho: "Seis companheiros voltaram para o acampamento e quatro ficaram para providenciar alimentos, agasalhos e medicamentos. Procuraram o governador e não encontraram. Conversaram com a mulher dele, a qual falou que o governo não tinha dinheiro c não podia ajudar em nada. Apenas disse que nós deveríamos pedir dinheiro à Igreja, l_ porque elã é a maior latifundiária do mundo". Dia dois de junho: "Visitas no acampamento. Recebemos a visita de uma caravana. Pela qual foi fci ta uma grande celebração. Onde todo mundo participou junto. Nós do acampamento e também o povo da cidade e o povo de Guaíra (cidade que fica no L estado do Paraná, na beira do rio do mesmo nome e faz divisa entre os dois estados). Foi uma grande animação para nós. Neste dia recebemos muitas visitas de L amigos e parentes áa cidade. Também esteve presente, acompanhando a nossa luta, o pastor Nilton, da Igreja Luterana de Amambai (tamtlém cidade da L fronteira com o Paraguai, localizada mais a oeste). "---- Pelo qual nós agradecemos mais uma vez as doações recebidas. Também recebemos algumas cartas de apoio e solidariedade. Foi grande a nossa animação '-.../ com essas visitas". "No dia 25, o acampamento ainda estava naquela correria, aquela agitação, caminhões vindo do Paraguai carregados de mudanças, de gente, animais. Então foi


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feito um pedido aos sorveteiros, vendedores de pipocas, que não vendessem nada no acampamento, pois os pais não tinham dinheiro, nem o próprio alimento. Esse foi o resultado da ida dos companheiros a Campo Grande: deu para seotir que há pouco empenho por parte do governador para encontrar solução para os acampados. Diante de tudo isso, a comissão deixou a público claro que, se não houver ajuda de alimentos, no prazo de cinco dias, não se responsabilizava pelo que pudesse acontecer. E ' o tempo foi passando", escreve José Carlos, "a nossa Comissão lutando, numa fase mais difícil da vida ... ".

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I ~ NOVO HORIZONTE

Em 17 de outubro de 1985, é assinado o decreto nº 91.792, desapropriando 18.468 hectares da gleba '-'Horizonte Escondido', no município de Ivinhema. ~ Era a gleba Santa Idalina, que tinha sido ocupada ~ pelos primeiros brasiguaios em 14 de abril de 1984 e, finalmente, entregue aos agricultores. Foi a primeira desapropriação após a aprovação do Plano de Reforma Agrária da Nova República. A partir daí, o governo do Estado reinicia a Operação Regresso, para a transferência das famílias. O "-- discurso oficial passa a reconhecer a legitimidade do \...._. retomo dos agricultores ao país. Sem, no entanto, abandonar o tratamento policialesco e segregacionista dispensado a eles- como acontece na maioria das ocupações e acampamentos dos sem-terra em todo o país. Com o argumento de que o Estado precisa \_ "garantir a normalidade social no campo, prevenir a desordem e dar segurança aos produtores contra as ameaças às suas propriedades". Como não conseguiu desarticular a organização dos acampados e vendo que eles passaram a ser personagens da imprensa nacional, o Estado trouxe para si o discurso da reforma agrária, enquanto capitaneava a transferência para a área - exaltando o espírito de luta dos agricultores e a sua vocação

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agrícola. Afinal, no próximo ano haveria eleições e o governador, Wilson Barbosa Martins, queria eleger seu sucessor. Paralelo à Operação Regresso, o secretário de Segurança Pública, Aleixo Paraguassu Neto, tenta desencadear a Operação Desarmamento dos acampados. Mas a fama do secretário era bastante conhecida dos agricultores: "A Polícia Militar, chefiada pelo famoso Aleixo Paraguassu, aquele que comandou mais de seiscentos soldados no despejo violento das famílias que ocuparam aáreadaSomeco, em Ivinhema, quer montar uma operação para desarmar os brasiguaios, assim que nós formos assentados. E nós respondemos que quem tem que ser desarmados são os latifundiários, responsáveis pela violência no cam·po", registraodiáriodoPoeta. "A polícia quis nos dar um golpe e nós nos defendemos. O povo juntou-se, as pessoas falaram, gritaram, xingaram. Havia mais de quarenta soldados que nós conseguimos expulsar. Quiseram tomar as nossas armas, mas não conseguiram, sempre saúnos como vencedores", afirma o Poeta. Para agilizar a transferência, os agricultores se ofereceram para preparar, na área, os locais do novo '-...../ acampamento, onde as famílias permaneceriam até que os técnicos do Estado realizassem o projeto global, com as delimitações de lotes c a implantação de infra-estrutura do assentamento. Em novembro, uma comissão de 53 aca,npados percorre o local e encontra oito nUiquinas escavadeiras retirando madeiras, dez motosserras, quatrocentas cabeças de gado soltas em 121 hectares com milho plantado. Embora a gleba estivesse vigiada pela PM, os ex-proprietários tratavam de retirar, o mais rápido '--./ possível, os recursos naturais da terra, como a madeira de lei (que serviria para a construção de casas e barracões para as famílias).


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Os locais escolhidos para o novo acampamento ficaram próximos às nascentes, planos, de fácil acesso c receberam nomes característicos. A distribuição das famílias nos novos locais foi coordenada pela Comissão, obedecendo a mesma organização interna, para evitar que os grupos se desfizessem- e ti veram no v a referência de espaço: o grupo Puente Kijá ficou no local denominado Água do Guiraí ou Fazenda do Escondido; os grupos Santa Rosa e Canindeyú, na Água da Bica; Alvorada, Corpus Christi e Guadalupe, na Água da Ocupação; Guavirá e Santa Clara, na Porteira do Escondido; Caarapã, Figueira c Maracaju, na Água do Adelino. No dia nove de dezembro, a cidade de lona dos brasiguaios começou a ser transferida. Foram necessários dois ônibus e onze carretas para transportar as famílias e seus pertences (animais, utensílios domésticos, charretes e ferramentas de trabalho). Alguns desses veículos, que tinham sido apreendidos nos postos de policiamentos da fronteira com contrabando, foram cedidos pela Polícia Federal. Segundo o diário do Poeta, às sete horas da noite, o primeiro comboio deixou a cidade debaixo de muita festa, ptincipalmente dos políticos e do governo do Estado- que prepararam, desta vez, uma calorosa manifestação de apoio - , não faltando os fogos de artifícios, as "autoridades competentes" e as reportagens dos jornais e TV s para documentar o "ínício da reforma agrária no M~o Grosso do Sul", segundo apregoava o então coordenador do Terrasul, Aparício Rodrigues de Almeida. A "epopéia" dos brasiguaios seria difundida nos meios de comunicação como suporte da propaganda do governo estadual, cuja atuação na questão agrária era tida como exemplo nacional, por conseguir administrar o conflito.


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A caravana passou por Itaquiraí, às nove horas da noite. Ao sair da cidade, um dos ônibus, que transportava mulheres e crianças, ficou quebrado na estrada. Dois caminhões e uma carreta também ficaram no caminho por falta de combustível. Às cinco horas da manhã, os primeiros caminhões chegaram a Ivinhema. Na entrada da área, uma guarnição da PM garantia o ingresso do comboio, a pedido do INCRA, pois os exproprietários haviam contestado a desapropriação e ameaçavam impedir que a terra fosse ocupada. Muitos daqueles soldados eram os mesmos que participaram do despejo das famílias que ocuparam o mesmo local, em 1984. As marcas da sua presença eram visíveis: na beira do rio Guiraí, agora chamado Água da Ocupação pelos novos habitantes, os troncos das árvores ainda conservavam as marcas do cabo de aço que foi atravessado sobre o rio e amarrado de uma margem à outra, pelos agricultores, para conseguir vencer a correnteza. Com a mesma rapidez com que chegaram, os brasiguaios desocuparam o acampamento. Em apenas três dias o quarteirão foi esvaziado. A Prefeitura Municipal cobriu a terra com cal e inseticidas para desinfectar o local e apagar as marcas da passagem dos agricultores, e cercou a área com arame farpado para impedir que outros grupos, aproveitando o espaço vazio, armassem novo ·acampamento. O reforço policial permaneceu na região por algum tempo para desencorajá-los. ) "E, quando chegamos em terra firme, começamos a construção dos nossos barracos. E mais famílias foram chegando, mais mudanças, mais gente e mais barracos no meio do mato. Até parecia tribo de índio" escreve o poeta narrador. Mais adiante ele diz: "Nós fomos os primeiros a chegar, viemos abrindo caminhos para os que lá ficaram" (no Paraguai).


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Mesmo estando em "terra firme", as famílias continuaram acampadas por mais dez meses, convivendo com os mesmos problemas de Mundo Novo, exceto a falta de espaço para a instalação de seu barracos. A morosidade na demarcação e distribuição de lotes, a falta de sementes para plantar, as dificuldades de transporte, os problemas com a alimentação e a saúde, seriam questões corriqueiras das pautas das reuniões da comissão com as autoridades estaduais. Carlos José da Silva, escreve, logo nos primeiros dias, o que seria o próximo ano dos brasiguaios: "No dia 17 de dezembro Uá no assentamento) houve uma reunião com a comissão e quatro senhores do INCRA. As lideranças discutiram bastante sobre a nossa alimentação, porque já tinham passado treze dias sem receber. E na entrega passada (de alimentos), muita gente ficou sem receber arroz no grupo Guadalupe, e tem gente passando fome. Se até o dia dezoito não vier a alimentação o pessoal vai matar os bois da Som eco (ex-proprietária), que estão soltos nas nossas terras, e eles (o INCRA) serão os responsáveis''. "Dia vinte de janeiro: às dez horas, chegou uma caravana com o governador, o ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro, o prefeito de Ivinhema, Luís Saraiva e outras autoridades. O governador falou bem, disse que era pra nós continuar sempre áesse jeito para dar um bom exemplo. O ministro da Reforma Agrária falou que a nossa luta foi difícil e que ele fez ludo que estava ao seu alcance. E o prefeito prometeu que ia abrir estradas e colocar transporte. Eles falaram que era pra continuar firme porque os inimigos estavam à nossa volta e que a nossa luta é bem mais forte do que eles pensavam ... Também foi entregue um documento ao governador e ao ministro exigindo: educação, verba para comprar sabão, bombril, fósforo; merenda escolar, médicos e dentistas, transporte, sementes etc ... "


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"E assim chega o mês de março- registra o diário - muitas coisas e muitas histórias: mataram um homem pensando que era capivara. Outro enfrentou a polícia de facão, outro foi caçar e chumbou a perna do companheiro. Briga de casal- coisa comum. Maus conselheiros, a Pastoral da Terra é criticada entre os evangé~icos- a maioria é contra. A caça é proibida, mas o povo, por baixo do pano, caça. A alimentação que era para ser partida (distribuída) três vezes por mês, só é feita duas vezes. Brasiguaios presos por matar vaca. Líderes que sofreram abusos (desrespeitados). Nós os brasiguaios estamos presos, longe da cidade, cercados por fazendas e um rio. Para sair, temos que passar pela polícia - (a polícia militar controlava a entrada e saída das pessoas no acampamento e proibia a entrada de bebidas alcoólicas e armas de fogo). Alguns da Comissão não aceitam os grupos de jovens. Um deputado disfarçado entra no acampamento (não diz o nome). Brasiguaios yassam fome de nove dias. Um acidente no grupo Aguada Onça: uma garotinha de onze anos foi morta por um caminhão que passou sobre ela, morte horrível e instantânea". "Nestor Sandeski e outros companheiros apreenderam em Ivinhema, numa serraria, toras que foram furtadas, envolvendo alguns líderes, polícia e até mesmo o INCRA. A coisa ficou preta para o nosso companheiro. A madeira era nPssa, conforme foi acertado em assembléia em Mundo Novo e que nós seríamos os fiscais das madeiras. Os homens não tiveram resposta (defesa)". "Este Nestor, Alcem ar e mais outros treze, mataram gado de fazenda. Foi quando os comestíveis passaram do prazo de ser distribuído. Já tinha gente comendo palmito, miolo de palha de coqueiro e milho com sal ... " "Os lotes não foram demarcados e as

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famílias continuam acampadas ... Só ficamos na pro-' messa de tennos lotes. Este ano é um ano de política e então ficam nos segurando como fizeram lá em Mundo Novo. SóviemosparaNovoHorizontedepois das eleições" ... "No começo de maio o governo chegou para tirar novos títulos. Só os que precisam de título são quase quatro mil eleitores s~gundo os levantamentos nossos ... ". No início de outubro, em plena campanha eleitoral para governadores e deputados constituintes, o governador, Wilson Barbosa Martins, realiza a entrega dos lotes aos acampados, durante um comício com a presença de candidatos a depu tado e Marcelo Miranda, que seria eleito governador, com maciça votação no "---' interior, principalmente entre os sem-terra acampados e assentados. À CIDADE DOS BRASIGUAIOS Domingo de Ramos, abril de 1990, gleba Novo Horizonte, Ivinhema, sudeste tio Mato Grosso do Sul: a missa começou mais tarde naquela manhã, para que as famílias das linhas mais distantes chegassem a tempo. As charretes, os cavalos encilhados e os caminhões, que puxaram a colheita de algodão durante a semana, descansain no pátio da Igreja da Padroeira Nossa Senhora Aparecida, à espera do final da celebração. O calor intenso pro!onga o verão e os fiéis discretamente se aproximam da porta para) pegar uma brisa que não '----' vem. Olham o céu e -se interrogam sobre a falta de chuva para refrescar e preparar a terra para o novo plantio. "Esse abafamento é sinal de chuva grossa, o v céu está se fonnando". Lá dentro o ar está pesado. As mulheres, incomodadas com o suor que molha a roupa de domingo, se abanam com os ramos trazidos para a benção.


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Os cantos falam do "Povo de Deus", dos peregrinos, da caminhada para a libertação e da união dos oprimidos. As vozes ecoam no teto de zinco da igreja nova, ainda sem acabamentos. Não há banco para todos e o reboco está por fazer. Nas paredes, entre vitrais coloridos, destacam-se as doze paradas da Via Sacra, desenhadas e pintadas à mão, emolduradas em madeiras com proteção de vidro. O culto não obedece os rituais do Sacramento, pois a comunidade, que é atendida pela paróquia de Glória de Dourados, ainda não tem um padre fixo. As leituras bíblicas são conduzidas pelos animadores dos grupos de oração sob os cuidados das irmãs e seminaristas, que às vezes fazem o papel do sacerdote ausente. Uma criança,

vestida de anjinho, chama a atenção das outras, atrapalhando a concentração dos adultos. Sua mãe percorre os olhos entre os presentes buscando a aprovação pela promessa cumprida. Após a cerimônia, antes de deixar a igreja, os animadores discutem os preparativos para a festa da padroeira no final do mês. V ai ter frango assado, salgados, bolos, bebidas, leilão de novilhas, bingo e coroamento da rainha da festa. "O baile será abrilhantado pelo conjunto Skala", anuncia o cartaz da festa, patrocinado pela Coopasul, Casa Yamashita, Casa de Carne Caçador, Distribuidora de Bebidas, Cerealista Camargo, Supermercado Viana, Escritório Panamá, Drograria Bergamo e Tornearia Brasiltodos instalados no Patrimônio. Os festeiros "desde já agradecem". Missa de domingo é momento de encontro de jovens - troca de olhares, piscadinha dos rapazes, sorrisos das moças e assuntamento dos pais. É dia de encontro das comadres, dos grupos de oração, do balanço dos acontecimentos da semana que passoufala-se da colheita, dos preços dos produtos, da coo-


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perativa, da assoc1açao, de venda de lotes, do INCRA, da peleia dos homens e de política. É dia de doces e sorvetes para as crianças, de galinha gorda na panela com macarrão ou um bom churrasco pra juntar a vizinhança. É dia de tirar retrato. Mas o fotógrafo do Foto Parafso, Vanderlei Carlos José de Souza, de 21 ~mos, não apareceu. Desde que o Patrimônio começou, ele registrou os principais acontecimentos da comunidade com suas três máquinas Olimpus- os animais, os barracões de criação de bicho-da-seda, as festas, acidentes, nascimentos, batizados, casamentos e tomeios de futebol . Ele conhece a gleba como a palma da mão e diz que vai crescer com ela, pois "aqui todos começam por baixo". Filho de uma família de agricultores de Governador Valadares, Minas Gerais, Carlos já tinha.a intenção de ir para a cidade buscar outro destino, quando migrou para o Sul. Passou por Guaíra e Cascavel, no Paraná, e foi pararem Mundo Novo, no sul de Mato Grosso do Sul, onde se descobriu como retratista. Em cinco anos de profissão fez clientela em Salto Guaírá, Ciudad Del Leste e Encruza Guarani, no Paraguai. Retratando as coisas boas e ruins da vida das pessoas- era chamado para tirar retrato de defunto, recém-nascido, colheitas, queimadas, festas, comícios, acontecimentos importantes .;_' Carlos diz se sentir útil, é um pouco "parentr de todos". Assim que passar a crise e os produtos subir~m de preço, ele espera reaver seu salão do Foto Paraíso, que perdeu por falta de dinheiro para pagar o aluguel. Naquele domingo não deu para fotografar o anjinho da missa, mas ele já se preparava para fotografar a rainha da festa. Tia Rosa também não foi à missa. Domingo é dia de almoço especial no Hotel dos Viajantes e ela quer que a peãozada que carrega os caminhões com algo-


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dão saia bem servida. Trabalho que faz há mais de dois anos, quando se instalou no patrimônio, seguindo conselho de uma amiga. As famílias ainda estavam acampadas no meio da mata, cortada de picadas à espera de lotes e seu hotel- um barracão coberto de lona . e cheio de colchões espalhados pelo chão recebia os viajantes. Apesar do sacrifício "que era a vida de todos", aquela futura cidade podia dar um destino melhor para a sua vida. Com 49 anos, sete filhos, viúva do segundo marido e separada do primeiro, Idalina Rosa de Jesus, mineira de Governador Valadares, decidiu começar de novo e, quem sabe dessa vez, fincar raízes num lugar que tinha tudo para ser feito "e não era só eu que estava começando". Até chegar ali, antes passou por Cruzeiro D' Oeste, no Paraná, Paranhos e Sete Quedas, no Mato Grosso do Sul, onde virou gata- empreiteira de bóias-frias -nas fazendas, mas não tinha muito jeito, "cansei de ver o sofrimento dos outros". Quando deixou de alugar o trabalho alheio, se empregou em lanchonetes · e mercados. Mas aquilo também não lhe "dava destino". Então, deixou de ser empregada para montar seu próprio negócio: vender salgadinhos nos bares e restaurantes, até que conseguiu emprestado, de uma fazendeira, um salão que transformou em hospedaria com onze quartos. Quando soube da notícia da Gleba resolveu se arriscar, e hoje o Patrimônio está crescendo e com ele o hotel, que já tem treze quartcs - o restaurante serve trint11 refeições por dia. Além dos peões, que continua atendendo, ela hospeda os motoristas de ônibus, os vendedores, madeireiros, comerciantes de terras, empregados do governo, pesquisadores e jornalistas. Seu único medo é ver a gleba virar _/ pasto de boi, como as outras: "Se o pessoal vender os lotes pros fazendeiros, isso aqui se acaba, mas se eles resistirem, vai continuar crescendo".


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Ainda naquela manhã foram realizados cultos evangélicos nas dezessete congregações espalhadas pela gleba. As leituras bíblicas e as pregações dos pastores visitantes também abordaram a história do "povo de Deus" e "os sacrifícios dos irmãos em Cristo na luta por melhores condições de vida". Na prática da solidariedade, harmonia no trabalho e convivência cristã. Há também aqueles que, católicos "de batismo", preferem cultuar a religiosidade espírita, prestando homenagens e dedicando orações aos guias da mata e das·rochas e aos pretos velhos. As sessões são realizadas à noite no meio do que restou da mata ou discretamente em suas. casas, para não chamar a atenção e não receber críticas das outras religiões. Mas as benzedeiras ainda são procuradas para curàr sapinho, dor de barriga, umbigo, quebranto e lombriga, que maltra1am as crianças. No início da tarde, os alunos da única escola de primeiro grau do "Patrimônio", realizaram uma festa com concurso de poesias, cantos e danças. A professora Laura Sanches, de 26 anos, filha de Luiz Sanches, do Bazar Belém, tem interesse especial em incentivar as crianças a aprenderem bem o português. Elas ainda trocam "falar"por"hablar", "licença" por "permiso", "apagador" por "borrador". Até pouco tempo só sabiam desenhar a bandeira paraguaia e, no acampamento, quando a bandeira brasileira era hasteada, algumas cantavam o Hino N :,cional Paraguaio. Nas brincadeiras, distraídas, falam o castelhano. A mistura de expressões nos dois idiomas também foi problema para os professores. Laura estudou até a oitava série do primeiro grau no Paraguai, quando morou · oito anos em Paloma. Segundo ela, a maioria das crianças em idade escolar foi alfabetizada em castelhano "misturado com guarani", e vai demorar · ainda algum tempo para elas se acostumarem a escre-


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ver em português. Hoje, "falar em paraguaio", como eles dizem, faz parte das brincadeiras, não é norma geral, pois os alunos se misturam com aqueles que não vieram do Paraguai. Já nas escolas das linhas é mais comum a mistura de expressões "paraguaias" com portuguesas. Ao todo são quinze escolas distribuídas nas comunidades, com quatro turmas em regime multisseriado. São mais de dois mil alunos distribuídos em 45 turmas para 24 professores. Laura lamenta que a maioria dos alunos das escolas das comunidades não tenha condições de freqüentar o ginásio do Patrimônio. A distância impede e quem consegue chegar, é obrigado a andar até doze quilômetros. Não - · existe nenhum transporte e, por isso, cerca de oitenta alunos em cada comunidade estão fora das salas de aula. O ginásio tem aproximadamente trezentos alunos, com cinco professores e três turmas. "A maioria dos estudantes são do Patrimônio, filhos dos comereiantes. Os brasiguaios mesmo não têm condições de continuar os estudos", conta ela. Mais tarde, ainda com sol quente, o jogo de futebol dos times das linhas Matão Porteirão uniu as diferenças religiosas no Domingo de Ramos. O time do Matão ganhou a preliminar de um a zero, mas o jogo entre os titulares não foi possível: a chuva de verão, tão esperada, varreu-a gleba. A disputa estava valendo para as eliminatórias do campeonato interno. À noite, como acontece todo final de semana, vai ter baile no Salão Real, o clube da cômunidade. E se a chuva não atrapalhar, virá gente de Ivinhema e Glória de Dourados. Futebol e bailes aos sábados e domingos são os principais momentos de lazer da comunidade, além das festas da padroeira e de aniversário. Quando os times vão jogar com as outras glebas da região, nas festas dessas comunidades, é um bom motivo para ~ caravanas de visitas e integração entre a juventude.

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Depois da missa e do passeio pela cidade, os carrinhos (as charretes) e os caminhões retomam com as famílias pelas estradas empoeiradas, ressecadas pelo sol, que levam para as linhas Gaúcha, Matão, Erveira, Porteirão, Guavirá, Guadalupe, Santa Rosa, Água da Onça, Toco de Ipê e Represa, rasgadas na mata para dar caminhe para as roças, casas, capelas e carvoarias. Sobrepondo essas estradas, veio a rede de energia elétrica e as pontes, que possibilitaram a entrada dos cerealistas e a saída da produção, destinada aos estoques do governo ou às cooperativas da região e do Paraná. Aquelas estradas abertas com as máquinas da Prefeitura demoraram a chegar. Hoje, a família de Donato Hobold, de 38 anos, e Valdomira Boeng, de 37, catarinenses de Tubarão, com os três filhos, percorrem, pelo menos uma vez por semana, no carrinho de passeio, esses caminhos que ainda são -- parecidos com as estradas das colônias do Paraguai. A sombrinha colorida protege Valdomira do sol "ardido". E ela não abandonou o lenço impecavelmente branco para limpar as mãos dos meninos e enxugar o suor do rosto, costume trazido de sua terra no Sul. As mudanças em busca de novas terras separaram a família. Suas memórias estão espalhadas em muitos lugares por onde passaram. Dois irmãos ficaram no Paraguai,emAlvorada,noDepartamentodeCanindeyú: "lá eles estão bem de vida e não querem sair, plantam soja e têm criação de gado". Em Santa Catarina ficou a lembrança dos pais e )a vida dos avós emigrantes alemães. "Aqui, se as coisas melhorarem, diz ela, a gente pretende criar os filhos com mais melhoria... "

NOVOS PERSONAGENS Atrás dos sitiantes, e em função deles, vieram as linhas de ônibus para Naviraí, Ivinhema, Mundo


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Novo e de lá para SaltoGuairánoParaguai. Vieram os políticos, negociantes de terras, aventureiros, as cooperativas, os pastores, padres e comerciantes. O primeiro foi Floriano Kowalski, dono do supermercado que levá seu nome. A decisão de montar comércio no patri~nio aconteceu quando ele assistia uma reportagem na televisão, sobre a transferência das familias de Mundo Novo para a gleba, e pensou que algum comércio podia dar certo no meio de daquela gente. Iam precisar de muitos produtos pra começar a vida na terra, desde querosene até lâmina de barbear. Com 41 anos, gaúcho de Palmeiras das Missões e filho de agricultores -esteve no campo até os 21 anos-, ele ainda não tinha perdido a vontade de se aventurar para buscar melhora. Desde nove anos de idade, quando saiu de sua terra com a família, Floriano não se "assentou" muito num lugar só. Por isso, quando viu os agricultores na televisão, percebeu que podia tentar de novo junto daquela gente e criar os seus filhos num lugar só. Já tinha passado por Santo Antônio do Sudoeste e Toledo, cidades no Paraná, e Cuiabá (MT), tentando viver como gerente de supermercado. E cada vez mais se via distante da terra e do sonho de montar o seu próprio negócio. Começar de novo não seria fácil. Nem para as famílias de agricultores. "Mas quando todos começam juntos, um dá segurança pros outros", pensou Floriano. Ele foi sozinho ._,e r o acampamento das famílias no mato, an)es da demarcação dos lotes. O executor do projeto, Samuel Vidal de Campos, do INCRA, lhe disse para esperar abrir as estradas, e que só depois é que ele poderia instalar o seu negócio nos lotes reservados para a vila. Mas o material já estava comprado e o capital não podia ficar empatado. Um amigo de Ivinhema cedeu a máquina para fazer a derrubada e terraplenar o terreno. Abriu o mato por


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conta própria. Poucos meses depois, quando seu cunhado veio visitá-lo, o chamou de louco. "Você vai vender mecadorias para os tocos?", perguntou. Mas ainda faltava levantar o barracão, trouxe a madeira de Ivinperria e construiu a casa para trazer a família. Hoje o súperinercado Kowalski atende a comunidade e já é - servido diretamente pelos viajantes, sem inte:mediários. "Esse é o maior acontecimento da minha vida, nunca vi ou ouvi falar do nascimento de uma cidade tão rapidamente. Isso aqui há menos de dois anos não tinha nada, só mato, acampamento de lonas, faltava de tudo". O cunhado, Natalino Pereira de Souza, que pouco tempo atrás estava na roça, mudou para a vila. Com uma Rural Willys, movida a gás, iniciou o negócio de transporte, mas seu plano é conseguir um lote na gleba e continuar sendo agricultor. "O pessoal aqui é muito unido e esperto, eu acho que ainda vai crescer muito", prevê ele. Depois do mercado dos Kowalski, veio o mercado Viana, de Raimundo Viana de Toledo (PR), outro de Sebastião Trevisato. A primeira farmácia- "Novo Horizonte"- é de João Ribeiro da Silva, que era empregado de uma drogaria em Dourados. A Borracharia Brasil é do seu Amadeus, que veio de Ivinhema. O primeiro cerealista, foi José Pina, de Mundo Novo. Depois veio a Cerealista Camargo, de João Camargo, vindo de Japorã- um distrito de Mundo Novo nr. fronteira com o Paraguai. Os comerciantes de Mundo Nov~, Sete Quedas e Paranhos foram atrás da freguesia que tinham desde os tempos do Paraguai, principalmente os que moravam mais perto da divisa e faziam as compras no Brasil. "Muitos vieram para tentar um lote na gleba, foram ficando e, pra sobreviver, montaram comércio", observa Floriano. "Todos aqui têm o umbigo enterrado na roça", justifica.


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Em abril de 1990, o núcleo do Patrimônio contava com aproximadamente mil casas, seiscentas construções em andamento e uma população estimada em 2 mil habitantes. "Um núcleo como este deve ter uma atividade cultural forte, um jornal, um bom time de futebol e um grupo de teatro que represente a comunidade para fora e qae mostre a criatividade de sua juventude. Temos muitas pessoas que sabem cantar, declamare escrever. Aqui nós já tivemos até um poeta que escreveu sobre a nossa vida no acampamento desde quando viemos do Paraguai." A argumentação é de "Pastel", como é chamado Luiz Agostino. Desde o acampamento, Pastel vem se preocupando com a atividade cultural do grupo, a sua documentação e a divulgação nos meios de comunicação da região. Seu sonho é editar um jornal, "com propaganda e tudo". Mas só tinha conseguido comprar uma cometa de som para fazer anúncios, dar avisos e tocar músicas nas festas e manifestações políticas. Outra atividade que ocupa quase todo o seu tempo é a montagem de uma peça de "teatro de verdade". O roteiro da história da luta está pronto para ser apresentado. Outra preocupação é montar uma boa equipe de futebol para concorrer com os times da região e, para isso, ele é o técnico mais cotado na gleba. Quadras para os treinos não faltam, estão espalhadas em quase todas as linhas, sempre ao lado da capela ou das escolas. A Unidade Mista de Saúde, com capacy:Iade para pequenas cirurgias de emergência, um médico, dois enfermeiros e uma ambulância, instalada no centro do patrimônio, substituiu o primeiro posto de saúde inaugurado em 23 de maio de 1986. Antes dele, um barracão de lona servia de enfermaria, farmácia de remédios caseiros e maternidade. A irmã Adair Cavalcante, da Pastoral da Saúde da Diocese de Doura-

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dos, responsável pelo atendimento no posto, não se lembra do número de crianças que nasceram sob seus cuidados. "Depois que passei a contar, somente no ano passado nasceram 120, mas juntando com os outros, deve passar de quinhentas crianças". O trabalho de medicina caseira desenvolvido pela Pastoral da Saúde desde o acampamento é a única alternati v a para as famílias. O médico do posto fica uma semana e falta um mês, a ambulância tinha sido levada, há três meses para Ivinhema e não retomou. No lugar dos dois enfenneiros, dois assistentes que moram no Patrimônio foram treinados pelas innãs para atender as famílias. Se precisar de uma consulta, só em Ivinhema ou Glória de Dourados, distantes mais de sessenta quilômetros. "A grande maioria prefere ser atendida aqui mesmo", diz a innã Adair. Ela já se habituou ao ritmo e às queixas das mulheres principalmente. "Esse povo já se acostumou a sobreviver sem a presença do doutor", conclui a religiosa. ·

EMANCIPAÇÃO A cidade de Novo Horizonte do Sul, foi emancipada em 29 de abril de 1992, aniversário da ocupação da área, há oito anos, pelos primeiros brasiguaios e semterra, que deram impulso à luta pela rcfonna agrária no Estado. No mesmo ano Novo Horizonte do Sul elegeu o seu primeiro prefeito, Luiz Carlos Augustim -o Pastel-, pelo PTB, e noye vereadores. A cidade reproduz os aspectos dos povoados do início da colonização do Sudoeste do Paraná, das décadas de cinqüenta e sessenta. As casas de madeira, cobertas de telhas e com duas portas frontais, enfeitadas com flores nas janelas e quintais grandes, lembram as colônias no Paraná, do início das derrubadas para as plantações de café, milho, algodão. A chegada da soja


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e da mecanização, trazendo a concentração da terra, foi a responsável pela continuidade da migração dos agricultores. Somente na década de setenta, segundo o Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, migraram do Paraná 1.201.457 pessoas, que foram para o Paraguai ou para as novas fronteiras agrícolas de Rondônia e Mato Grosso, despovoando vilas inteiras, deixando cidades quase fantasmas, transfonnadas em sedes político-administrativas de latifúndios mecanizados. A população restante sobrevive vendendo sua mão-de-obra nas lavouras de soja e nas poucas colheitas de algodão e, mais recentemente, nas agro-indústrias. Três décadas depois, Novo Horizonte é a teimosia desses pequenos agricultores migrantes em novamente construir o seu espaço, suas vilas e povoados. De se estabelecerem em um novo lugar, reeditando os mesmos desbravamentos realizados no Paraguai, onde deixaram as terras amansadas para a monocultura de soja e a criação extensiva de gado da fazenda moderna, do progresso com papel passado, que tem aval do banco, dispensa os povoados e desagrega o pequeno agricultor tradicional. Novo Horizonte poderá ter o mesmo destino dos outros povoados. Está cercada por latifúndios de gado, lugar antes reservado para os projetos de colonização do Estado e das colonizadoras particulares. É uma fratura exposta no coração do latifúndio "coalhado de boi nelore", como costuma dizer o baiano de Vitória da Conquista, Antonio Cândido. A preocupação dele e das principais lideran~as não é em vão. Pois o retomo ao Brasil não representou propriamente uma ·conquista. Cerca de 30% dos assentados já repassaram seus lotes para terceiros. Destes, os que ainda não deixaram a área se aventuram na busca de trabalho como bóias-frias nas colheitas de algodão e, em muitos casos, nas lavouras dos companheiros que receberam terras com maior fertilidade e, por isso, consegui-

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ram boa produção. O sítio de Antonio Cândido, com pouco mais de trinta hectares, localizado na beira do rio Guiraí, na linha Guadalupe, é ponto de encontro dos pescadores nos fins de semana e um símbolo da luta. Foi por ali que começou a história dos brasiguaios. Antes de servir como principal canal de acesso para a ocupação da terra, o rio dos Pássaros - Guiraí na língua Guarani-, serviu de escoadouro para a produção de erva-mate, transportada no final do século passado, nas antigas embarcações da Companhia Mate Laranjeiras e que desembocavam no rio Ivinhema. Lugar de índio, "território sem dono" dos paraguaios, o local virou Mata do Escondido - os fundos da Gleba Santa Idalina, parte do projeto de colonização da Som eco. Depois, recebeu o nome de Comunidade Venceremos, por quinze dias, em abril de 1984, quando os primeiros brasiguaios atravessaram o rio caudaloso e fundo. Único acesso para a ocupação da mata, o Guiraí foi o pqnto de referência para o movimento de retomo dos agricultores. Antonio Cândido, hoje com 53 anos e nove filhos, era um dos que desafiaram a correnteza e chegaram do outro lado do rio, na madrugada do dia 29 de abril daquele ano. Olhando o rio, ele observa que ainda "tem muito brasiguaio vivendo uma vida emprestada no Paraguai". NOVO RETORNO

As chuvas mal haviam dissolvido a cal da terra, removida pelas máquinas da prefeitut a na tentativa de eliminar os vestígios do acampamento dos agricultores no quarteirão vazio, Mundo Novo presenciou novamente, a mobilização de retorno de mais brasiguaios. Em abril de 1986, um grupo estimado em 4.600 famílias, segundo afirmavam as lideranças, inicia as


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negociações para retomar, junto ao ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro. No dia primeiro, dez lideranças relatam em audiência a situação das famílias no Paraguai e deixam evidente que com ou sem a ajuda do governo estavam dispostas a atravessar de volta a fronteira, pois as condições de vida no país vizinho ccntinuavam dificeis. Mas apesar da promessa de apoio do ministro, as famílias são impedidas de retomar. O esquema policial montado nos dois lados da fronteira impede o retomo dos agricultores, antes mesmo de alcançarem a fronteira. Na madrugada do dia 25 de abril, um caminhão com seis famílias de Paloina consegue furar o cerco. Já em Mundo Novo, quando iniciavam a construção dos barracos, no mesmo local do primeiro grupo, são detidas e levadas para delegacia da cidade. Os policiais agem com violência, agridem mulheres (uma grávida) e crianças, que são obrigadas a permanecerem por horas em cima do caminhão sob o sol quente e sem água para as mamadeiras dos filhos. O novo prefeito, o médico José Carlos da Silvaque viu seu hospital "invadido" pelos primeiros brasiguaios- mandou despejar as famílias, ao anoitecer, no munícipio vizinho de Eldorado, a dezoito quilômetros, na beira da rodovia de acesso. A essa altura, muitas famílias já tinham conseguido atravessar a fronteira dias antes e se alojarar1 nos quintais de amigos e parentes à espera do dia marcádo para acampar. A polícia percorre as periferias e interroga os moradores que "escondem" brasiguaios em suas casas. A polícia militar monta barreira na rodovia que dá acesso a Salto Guairá, no Paraguai e Guaíra- cidade paranaense que faz divisa com o Mato Grosso do Sul e o pais vizinho - via rio Paraná. Os carros são revistados e aqueles que transportam mudanças de


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agricultores são detidos. A ordem é "fazer voltar todo caminhão com colono e mudança". No Paraguai, a operação se repete, os agricultores são surpreendidos logo que deixam as fazendas. Abordados no meio do caminho, são proibidos tanto de _ retomar, como de seguir viagem para o Brasil. As notícias trazidas por amigos e parentes, que conseguiam despistar o cerco, viajando de ônibus ou de carona em caminhões que transportam madeira da região, era de que seus companheiros estavam em beira de estradas proibidos de armar barracos - à espera de novo emprego ou terra para plantar. O pequeno produtor João Eleutério, de sessenta anos, membro da direção estadual do Movim.ento dos Sem Terra, passa a ser o principal alvo de ataque dos prefeitos das cidades de fronteira, por ter "incitado" as famílias a acampar. Acostumado a percorrer de bicicleta as estr(;ldas "subcarreteiras" da fronteira paraguaia e as fazendas da região, conhecido não só dos agricultores, mas também dos policiais dos postos de fiscalização, Eleutério passa a receber ameaças e é retirado de sua casa, pela polícia, várias vezes, para "prestar esclarecimentos". Nas aduanas, uma foto sua é fixada na parede para reconhecimento dos soldados. E sua casa passa a ser vigiada por pistoleiros. "Eles estacionam carros de frente para minha janela e acendem os faróis para fazer clarão, ninguém consegue dormir, isso quando não fazem provocações ou dão tiros". ) Para ele, a decisão de voltar ao Brasil é dos colonos. "A gente só deu apoio com conselhos nas reuniões, ajudando a organizar. Se eles não tivessem precisão de voltar por falta de terra e por causa das perseguições, ninguém ia obrigá-los a voltar e passar humilhação e necessidade debaixo de um barraco, vendo os filhos morrer de fome".


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Com a notícia da vinda de mais famílias, o governador Wilson Barbosa Martins anuncia o envio de dois pelotões da Polícia Militar para dar reforço à seg1.1rança do município que dispunha, na época, segundo o delegado Ismah Canedo Campos, de 25 soldados PMs. A Polícia Civil, de dois agentes, três inspetores e dois funcionários burocráticos. Embora tivesse ordens para deter as famílias que atravessassem a fronteira, o delegado dizia ser impossível barrálas. "São muitas e estão espalhadas", observava. A movimentação no centro da cidade era normal, ao passo que nas vilas da periferia, compostas na maioria por pequenos agricultores e bóias-frias, a calma rotineira se transformou em corre-corre com as n9tícias de prisão dos caminhões. As conversas reservadas, animadas com tererê (um tipo de chimarrão gelado tomado em cuias de chifres de boi ou em canecas de alumfuio), alimentavam a solidariedade com os companheiros alojados em seus quintais, ouvindo histórias bastante familiares: Sebastião Alves Filho, de 36 anos, seis filhos, gaúcho de Lagoa Vermelha, conta que morava em Marechal Rondon no Paraná e era arrendatário. Quando acabaram os arrendamentos, há quinze anos, foi para Caarapã, no Paraguai, "pois no Brasil não se conseguia mais terra para arrendar". Sebastião e mais três companheiros aguardavam a hora de acampar, assim que todos os grupos saíssem do Paraguai. "Lá, os brasileiros são obrigados a dar praticamente de graça toda a produção. Quando chega a colheita, a terra produz bem, mas os preços são muito baixos e não dá para pagar nem a semente. Quem reclama vai preso, é espancado e obrigado a roçar capim no quintal da polícia". O governo estadual, que tinha proibido, desde setembro de 1985, novos acampamentos, passa a


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exigir dos sem-terra atestado de moradia de dois anos no estado, como critério para entrar nas listas de espera por assentamento dentro do Plano Regional de Reforma Agrária, que previa o atendimento a 4.600 . famílias naquele ano. O governador Wilson Barbosa Martins alegava que no estado já não havia mais terra para todos. O secretário de assuntos fundiários, Aparício Rodrigues de Almeida, avisa que só vai assentar "gente que nasceu no Mato Grosso do Sul"; os que vieram de fora, "que façam reforma agrária nos seus estados de origem". E mandava o recado: "Brasiguaio vai ter que comer brasiguaio com farinha '-- se quiser acampar, porque nós não vamos sustentar mais niguém". Com o fechamento da fronteira e as ameaças de repressão contra os líderes, o Estado consegue desmopilizaro retomo organizado de mais famílias de brasiguaios. No acampamento, em Eldorado, cerca de duzentas famílias conseguem se juntar às seis primei- ras. Desse grupos, só restaram 46. Mesmo assim, naquele ano, o Cone Sul do Estado presencia a formação de doze acampamentos de semterra. Em Eldorado, seiscentas famílias acampam em fevereiro. Em maio surgem acampamentos em Bataiporã (180 famílias), Dourados (162 famílias), Bataguassu (oitenta famílias), Ribas do Rio Pardo (quatorze famílias), Taquarussu (410famílias), Nova Esperança ( 11 Ofamílias), Três Lagoas ( 129 famílias), Nova Andradina (sete famílias) e ~aarapó (51 famílias). Em todos esses·acampamentos existiam famílias que retomaram do Paraguai. Em junho, Aparício de Almeida comandou pessoalmente o despejo violento dos acampados, mas não conseguiu impedir que os agricultores se reagrupassem novamente em acampamentos.

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AOS BRASIGUAIOS, , REFORMA AGRARIA NO PARAGUAI

A desinformação - ou o desinteresse - sobre as condições de vida e o número de agricultores brasileiros em território paraguaio, o impacto do retomo de um grupo significativo e organizado, a tensão causada nos dois lados da fronteira- trazendo apreensão aos latifundiários e temor aos prefeitos da região, de verem seus municípios invadidos-, a repercussão na imprensa e as manifestações de apoio de diversas entidades nacionais e estrangeiras e, ainda, a possibilidade de perder o controle da situação numa área consiàerada de segurança nacional- onde os preíeitos eram nomeados - ,tudo isso levou o governo Sarney a convocar a reunião do Grupo de Cooperação Consular Brasil-Paraguai, 4ue não se reunia desde 1982- quando foi criado-, envolvendo vários ministérios e os governos dos estados limítrofes com o Paraguai: Mato Grosso do Sul e Paraná. Em primeiro lugar, oEstado precisava, "compreender'' o processo que causou o êxodoinvertido de uma população .. até então ''esquecida'' e que tinha sido transportada-com seus problemas- para o país vizinho.

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Os documentos e as atas lavradas das reuniões ocorridas durante os dois encontros seguidos, realizados entre as duas embaixadas, demonstram que a presença de agricultores no Paraguai é resultado das demonstrações de "apreço, amizade, cooperação e mútuo respeito" entre as duas nações. Afinal, os brasiguaios estavam, e estão, gerando riquezas com a transferência de tecnologias, mão-de-obra e "tradição agricola" ao Paraguai. Compreender este processo, do ponto de vista da "segurança nacional", era esquadrinhar a região, mapear os pontos de encontro dos grupos, identificar as lideranças, se antecipar às suas estratégias, localizar seus aliados, mostrar forças através dos efetivos militares, ter "voz de comando" para impor a ordem, garantir a normalidade e submeter os agricultores à sua direção. E, de preferência, impedir que as negociações tivessem canal direto com órgãos federais, uma afronta às autoridades regionais, pois dava ao grupo uma condição política privilegiada além de impedir o seu avanço territorial. O método, bastante conhecido para situações como esta, consistia em deslocar agentes para a região e contratar informantes locais- geralmente auxiliares e cabos eleitorais de políticos, algumas lideranças cooptadas na igreja, sindicatos e entre comerciantes e funcionários públicos municipais. Um relatório datado de 25 de junho, assinado por José Seabra Neto, encaminh~do ao INCRA- sem identificar sua função e nem a pessoa a quem se dirige, denominando apenas "Sr. Coordenador de Comunicação Social" - , é um exemplo do tratamento policialesco dispensado aos agricultores que regressavam ao país. O relatório entregue se assemelha muito aos relatos feitos pelos informantes dos órgãos de repressão que tinham o objetivo de identificar a

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periculosidade social de grupos organizados. Era uma · tática bastante conhecida para preparar o terreno para a repressão aos movimentos sociais. Quando o autor não se identifica claramente no relatório e nem a seu destinatário, não é difícil imaginar o objetivo da tarefa. E não identificados, se isentavam de prestar contas à opinião pública.

De Campo Grande, Mato Grosso do Sul, segui viagem com destino a Mundo Novo, município na fronteira com o Paraguai, no extremo sul do Estado, onde estão acampadas algumas centenas de agricultores em situação de miséria. Estima-se que para os próximos 15 (quinze) dias esse número se eleve a 3 (três) mil famílias, todas em busca de terra. Sãó contraditórias as informações acerca da transferência. Os trabalhadores sustentam que o tratamento dispensado pelas autoridades paraguaias os induziu a regressarem ao Brasil; as autoridades daquele país (com quem estive oficiosamente) negam maus tratos, acentuando seu inconformismo com as críticas feitas pelos trabalhadores, quando chegam ao Brasil, contra o governo paraguaio. A situação se apresenta mais polêmica, com a afirmação (de autoridades de Mundo Novo) que os "brasiguaios" foram induzidos pelo depuíado Sérgio Cruz (Pl'v!DB-lv!S) a regressar ao Brasil, onde se implantava a reforma agrária com terra para todos. Haveria, paralelamente, a participação da Pastoral da Terra. ) Basicamente as informações são as que seguem, ilustradas através de fotos do local: (... )no dia 27 de maio,já se tinha notícia de que 2.500 famílias estariam deixando o Paraguai para voltar ao Brasil. Teme-se por saques nos próximos dias, face à escassez de alimentos. Os proprietários de mercados

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e armazéns asseguram que, se houver saques, abrirão as portas, evitando violência. Depois vão procurar receber pelas mercadorias eventualmente retiradas. Os líderes do acampamento são Walter Benitez, João Eleutério e Paulino do Banco do Brasil, todos ligados, segundo o prefeito Adhemar Antonio da _.. Silva (um protestante conservador), à Pastoral da Terra e subordinados às dioceses de Dourados (cujo "bispo é D. Deodato) e de Três Lagoas (D.Ivo). As ações são coordenadas pela irmã Clotilde, resident _., em Camapuã, afirma o relatório.

O temor de saques partia apenas da cabeça dos comerciantes, acostumados a negociar com fa~endei­ ros e capatazes (sempre bem mais apessoados e de idoneidade garantida), do que com um bando de . acampados que tomaram a cidade de assalto de um dia para o outro. Os saques não estavam na ordem do dia das lideranças- pelo menos nos primeiros meses-, não por falta de motivos, mas pela presença ostensiva dos soldados da PM em tomo do acampamento e do patrulhamento que faziam no centro comercial e bancário da cidade. E, depois, os acampados sabiam muito bem que se tomassem qualquer atitude desta natureza, as negociações com o governo seriam interrompidas e não teriam a população a seu -favor. A necessidade de demonstrar à população de 'Mundo Novo que não estavam ali para hostilizá-la era o que mais pesava nas >análises das direções. Na verdade, o temor maior partia dos próprios acampados - o de serem agredidos pelos compatriotas e interpretados como pessoas agressivas e perigosas, como de fato aconteceu. Nesse quadro, qualquer um com um pouco mais de senso crítico e responsabilidade iria perceber que o temor de saques era infundado.

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Considerar como líderes do acampamento apenas três pessoas, à frente de centenas de famílias, era algo no mínimo absurdo. W alter Benitez era um ex-funcionário do INCRA, da época dos projetos de colonizaçãoda região, que se transformara em pequeno produtorno Paraguai. A sua influência vinha do fato de que ele conhecia internamente as normas de trabalho do órgão e todas as terras da região passíveis de desapropriação. Walter não tinha grupos de famílias sob sua responsabilidade, a exemplo das dezenas de líderes, embora tenha participado ativamente das negociações-justamente por conhecer o trato com o INCRA -e, depois, na organização do assentamento. Ele não foi beneficiado com lotes por ser um ex-parceleiro, e não via a CPT com simpatia. João Eleutério, um pequeno produtor de café em Mundo Novo, era ligado ao Movimento dos Sem Terra do estado e servia como apoio estratégico para os acampados, fazendo-se de ponte entre o Movimento e os agricultores no Paraguai. Nunca rei vindicou assentamento, embora tenha participado de algumas negociações. Já o "Paulino do Banco do Brasil", tratava-se de Paulino Alves de Almeida, bancário, membro da Pastoral da Juventude. Ele residia num bairro da cidade e ajudava a organizar visitas de grupos de moradores ao acampamento, em apoio aos agricultores, e a coordenar campanhas de recolhimento de '--- alimentos, agasalhos e rep1édios para as famílias. Paulino, na época, era militante do PDT da cidade. Quanto à irmã Clotilde, que "comandava as ações", o informante deve ter errado de nome, pois não se tem notícias, de nenhuma freira com essa responsabilidade e atuação junto aos brasiguaios. E, muito menos, de Camapuã- uma pequena cidade localizada no norte do Estado, a 700 quilômetros de Mundo Novo. Em

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relação à Pastoral da Terra e às dioceses de Três Lagoas e Dourados, os equívocos se repetiram. Emboraoinformante tenha chamado o bispo D. Teodardo Leitz de "Deodato", o apoio dado pela igreja católica era de conhecimento público. O enviado a Mundo Novo recorreu justamente ao prefeito da cidade, "um protestante conservC~.dor" que, provavelmente, tinha informações superficiais sobre a estrutura e funcionamento das pastorais. Ou foi problema de escolha de fonte ou, realmente, sua intenção era outra. As informações distorcidas a respeito dos agricultores eram muitas e criaram uma paranóia entre os escalões do governo do Estado, despreparados para lidar com uma situação como esta. Armados de posturas preconceituosas, reforçavam o medo e a preven- ._/ ção contra os acampados. Nos dias 28 e 29 de julho, o assessor do Ministério da Reforma Agrária, Everton de Almeida, e o recémnomeado diretor do INCRAno estado, Alberto Manna, mantêm os primeiros contatos com os acampados. Depois de se reunir por horas com dezenas de lideranças, no salão paroquial da igreja, e de percorrer o acampamento, Everton,já mais aliviado, mas visivelmente preocupado com a situação, desabafava: "Viemos aqui sob muita tensão, pois nos disseram que iríamos encontrar um bando de amotinados perigosos que teriam armad~ guaritas para enfrentar a polícia. Fomos prevenidos a não entrar no acampamento, o --.. . .que seria perigoso". Ele reconhecia que a situação era delicadà, "pela precariedade do acampamento e o grande número de pessoas". Já Alberto Manna, ex-membro do Getat (Grupo Especial de Terras do Araguaia e Alto Tocantins), iria desabafar quase três anos depois: "Aquilo foi uma bucha quente que tive de pegar logo que assumi o

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INCRA; eu mal havia chegado e tive que enfrentar aquela situação, sem entender bem o que era aquilo". Naquela semana, depois de sobrevoar o acampamento na companhia do delegado de polícia do Interior, Milton Atanabi Toshibatsu e do' 'capitão Amauri", que se dizia assessor do SNI, o secretário de Segurança Pública, Aleixo Paraguassu Neto, se reuniu com o prefeito da cidade para analisar a situação e fazer um relatório ao governador Wilson Martins. A preocupação do secretário era tranqüilizar os proprietários da região c evitar que eles agissem por conta própria para impedir invasões. "Não gostamos da ação dos proprietários de terras da região, que se armam para defender propriedades", afirmou Paraguassu, "pois a atribuição da defesa da ordem pública é do Estado e pr9curaremos buscar solução dentro da ordem legal". O problema dos acampados, segundo o secretário, era de ordem social, "e se for solucionado não haverá problemas de indisciplina de ordem pública".

POR TRÁS DAS CORTINAS Enquanto isso, no segundo andar do Palácio do Itamaray, em Brasília, o Departamento de Assuntos Consulares iniciava os preparativos para a segunda reunião do Grupo Consular Brasil-Paraguai. A ptimeira reunião preparatória aconteceu no dia 30 de jcnho, quinze dias após o início da chegada do~ brasiguaios. Estavam presf ntes o embaixador Victor Silveira, conselheiro e secretário do Itamaraty, os representantes da Polícia Federal (controle aduaneiro de área de fronteira), do IBGE, da Esaf (Escola de Assuntos de Fronteira) e o do Mirad, Sílvio Rocha Santana. O Grupo de Cooperação Consular foi criado com a finalidade de tratar de problemas consulares. Na


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primeira reunião conjunta, em dezembro de 1982, foram discutidas questões relativas à população brasileira no Paraguai e paraguaios no Brasil, população fronteiriça e problemas de contrabando. Na época, as informações disponíveis davam conta que existiam vinte mil brasileiros registrados no Paraguai. Mas, segundo o Itamaraty, "o número re-al é desconhecido e as estimativas variam de cem a quatrocentos mil". O tema brasiguaios, terceiro item da pauta de preparação, tomou a maior parte do tempo. O embaixador disse que o governo paraguaio tinha interesse na permanência dos brasileiros no Paraguai, "pois estão gerando riquezas a baixo custo. Existe, contudo, intenso tráfego de pessoas brasileiras que estão organizando agricultores na defesa de seus direitos, e com o anúncio do PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária) esses agricultores, que agora estão em um Brasil novo (a Nova República), decidiram voltar". 0 representante do Mirad informou que já estava tomando providências para atender o grupo acampado. Mas dependia de créditos, que estavam sendo negociados. Ele temia que, ao realizar o assentamento das primeiras famílias, outras retomassem. E o órgão não tinha condições de, num curto prazo, assentar grupos significativos como os brasiguaios. Foi sugerido que, simultaneamcilte à discussão de implementação do PNRA, seria necessário evitar uma volta maciça d',' brasileiros. "Falou-se também na possibilidade dos dois governos trabalharem)juntos, criando condições de permanência (assentamento) dos brasileiros no Paraguai e, ainda, sobre um eventual acordo de migração", afirma o relatório do representante do INCRA na reunião. O acordo de migração entre Brasil e Paraguai, para frear o retomo em massa dos brasileiros daquele país, como "solução intermediária", foi debatido na segun-

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assim desejassem, adquirir propriedades agricolas. L Ou seja, seriam potenciais beneficiários de um programa de reforma agrária. É nosso entendimento que as riquezas geradas no país vizinho seriam as L contrapartidas oferecidas pelo povo brasileiro. É pos- L sível que o Itamaraty disponha de algumas formas de compensação (via entrada de paraguaios no Brasil) para assegurar que os brasileiros lá radicados tenham seus direitos integralmente respeitados ou, altemati- L v amente, que lá se sentiriam tão recompensados quanto se fossem beneficiários de um programa de reforma agrária no Brasil", afirma a proposta apresentada pelo Mirad.

OS ACORDOS DE CÚPULA A jusficativa para o acordo proposto pelo Mirad se

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baseava na impossibilidade do órgão de atender a grande demanda e, nesse sentido, via com "apreensão os movimentos de arregimentação dos brasiguaios para um retomo em grande número", argumentava a proposta. "É nessa perspectiva que favorece uma solução negociada com o governo paraguaio, de tal forma que, satisfazendo ambos os lados, possamos resolver os problemas dos brasileiros que lá se encontram''. A proposta de solução apresentada pelo Mirad, do tipo "uma mão lava a outra", foi motivo de discussões ~ "bastante intensas", prevalycendo a posição do Itamaraty sobre as prováveis contrapartidas que o governo paraguaio imporia para tal acordo. O relató- · rio, datado do dia 19 de agosto de 1985, apresentado . por Túlio Barbosa, representante do Mirad na reunião, demonstra a posição do Itamaraty: "No momento seria prematuro propor ao governo paraguaio um acordo de migração em razão de dois fatores princi- \.__,

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pais: a) a experiência no trato com os paraguaios indica que, seguramente, aquele governo irá solicitar compensações financeiras no bojo de um acordo desse tipo e b) ainda não é conhecida a extensão do problema, isto é, o número de brasileiros residentes no Paraguai e as causas que os estão levando a retornarem ao Brasil". A segunda reunião do Grupo de Cooperação Consular Brasil-Paraguai foi realizada nos dias 29 e 30 de outubro de 1985, no Palácio do Itamaraty, tendo como chefes das delegações o embaixador Victor José Silveira -chefe do Departamento de Assuntos Consulares do Ministério das Relações Exteriores- pelo Brasil, e o general Adolfo Samaniego, embaixador do Paraguai. Da parte brasileira, a delegação era composta pelo Cônsul Geral de Presidente Stroessner, Rodrigo Amaro de Azevedo Coutinho, por membros do Ministério das Relações Exteriores (J adiem Ferreira de Oliveira, Abílio Machado Cantuária e Matias Antonio de Vilhena) e mais José Sampaio Braga, do Departamento da Polícia Federal do Ministério da Justiça; Oscar Andrade Mota, do Ministério da Fazenda; Túlio Barbosa, do Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário; Celso Cardoso da Silva Simões, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e João 1\tlenàonça Lima Neto, o segundo secretário da em baixada em Assunção. Da delegação paraguaü~ faziam parte os cônsules Justo Eris Almada, d~ Paranaguá, Aparício Fretes Farias, de Foz do Iguaçu, Inocêncio Fretes Moran, de Guaíra e, ainda, os representantes do Ministério do Interior, Jorge Sebástian Miranda; do Ministério da Fazenda, Miguel Angel Britos, da Diretoria de Aduanas, Oscar Alvarez Colmone, do IBR (Instituto do Bem Estar Rural), Guillermo G. Veras, e o secretário da Embaixada do Paraguai, Gerônimo N. Torres .

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A agenda da reunião contou com quatro temas distintos: assuntos legais, aduaneiros, estatísticodemográficos e imigrações, mas ficou "bastante evidente que a razão da reunião foi o tratamento do problemas dos brasiguaios". Houve reconhecimento claro, por parte de ambas as delegações que, de fato, "existem problemas que precisam ser resolvidos prontamente, antes de se transformar em uma questão política mais séria entre os dois países. Isso desfavoreceria acordos, projetos e outros interesses mútuos", segundo tece em seus "comentários reservados" sobre a reunião, datados de primeiro de dezembro, o representante do Mirad, Túlio Barbosa. Durante o encontro, houve uma conversa entre os delegados brasileiros e o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima, então Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores, que "exigiu da delegação, uma posição firme nas negociações e entendimento com os paraguaios''. Flecha de Lima respondia interinamente pelo Ministério e tinha sido chamado duas vezes pelo presidente Sarney, "que externou sua procupação com os brasiguaios e com os riscos que pudessem ser transformados em motivos de dificuldades políticas maiores no relacionamento entre os dois países. Mostrou, também, a preocupação com a exploração da questão, em especial por parte da imprensa, e que o assunto foi tema de encontro recente entre os presidentes Sarney e Stroessner", afirma Túlio Barbosa. ) A delegação paraguaia contrariou a expectativa ao não assumir uma postura nacionalista, mas teve uma atitude cooperativa e disposta ao entendimento. "Em encontros pessoais, tanto comigo como com o representante da Polícia Federal, um delegado paraguaio revelou estar o Paraguai muito preocupado com a saída de brasileiros, atraídos pelo PNRA. Ao Paraguai

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interessa a permanência dos brasileiros e não, ao contrário do que podetiamos imaginar, a sua saída. Essa revelação, feita em oportunidades diferentes e a pessoas distintas (... ) e levada ao conhecimento da delegação brasileira, colocou-a em posição vantajosa no sentido de exigir melhor tratamento aos brasileiros radicados naquele país", relata Túlio Barbosa. Durante a reunião, ficou evidente que nenhuma das delegações tinha informações confiáveis sobre o número de brasileiros residentes no Paraguai e na faixa de fronteira, dedicados à exploração agrícola. Em seu comentário, o representante do Mirad observa que "os dados apresentados com toda a certeza são muito inferiores (em magnitude) aos números reais. De outra parte, os dados fornecidos são conflitantes· com dados anteriores (primeira reunião), fornecidos pelas autoridades paraguaias". A dúvida da delegação brasileira era se a apresentação de números inferiores pelos paraguaios pudesse ser uma estratégia "no sentido de minimizar o tamanho do problema ou reduzir a importância da reforma agrária como atrativo para os brasiguaios. Os cônsules brasileiros presentes à reunião acreditam que existem no Paraguai cerca de 400 a 450 mil brasileiros. Já os censos paraguaios indicam pouco mais de 9 mil brasileiros classificados corno produtores individuais e uma população total de pouco mais de 86 mil pessoas (da(bs referentes a 1982)". Sem informações confiávei~ sobre o número de brasileiros no Paraguai e também de paraguaios no Brasil, as duas delegações trataram de discutir em cima de hipóteses ou, no máximo, baseando-se em informações da imprensa e num levantamento de casos em Mundo Novo (MS), sobre a população acampada, realizado pelo Mirad. Isso foi todo o subsídio usado nas deliberações diplomáticas.

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BRASIGUA/OS

As denúncias de arbitrariedades sofridas pelos agricultores, apresentadas na reunião e baseadas no levantamento por amostra junto aos brasiguaios, surtiram reações diferentes da delegação paraguaia: "De um lado, demonstrando certa incredulidade e exigindo provas e evidências( ... ), de outro, reconhecendo a possibilidade de que 'autoridades menores' do Paraguai, de fato, possam ter cometido as arbitrariedades relatadas (especialmente no que conceme às exigências de documentação); ou ainda jogando parte da culpa às autoridades consulares brasileiras que, em algum as circunstâncias, não teriam demonstrado maior interesse em resolver o problema ou relatá-lo às autoridades consulares paraguaias". Para a delegação brasileira, o consenso foi dé que "a raiz dos problemas dos brasiguaios é a documentação pessoal dos imigrantes; uma vez resolvido este problema, abre-se o caminho para a solução dos demais. Já a delegação paraguaia, ao contrário das denúncias apresentadas pelos agricultores - com cópias de dezenas de documentos exigidos - garantiu, enfaticamente, que a única documentação exigida por lei é o camê de imigrante, cuja posse garante todos os direitos, idênticos aos paraguaios, seja no sentido da radicação, locomoção, trabalho, aquisição de bens (inclusive terra) ou de acesso a serviços e investimento de apoio (crédito, assistência técnica etc). A delegação paraguaia se prontificou em legalizar a situação dos imigrantes sem documentos, contando, para isso, com o apoio das autoridades consulares brasileiras_:_ que solicitaram oficialmente o estudo da viabilidade de isentar ou pelo menos reduzir as taxas e emolumentos cobrados aos imigrantes brasileiros fixados, na época, em 12 mil guaranis para adultos e 1 mil para crianças". Ficou acordado que os dois governos fariam a

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L ___________________C~A~C~M~C~o~R~r~à~--~~~27 '- entrega das exigências feitas em cada um dos países

L aos imigr:llltcs, poismuitosproblemasdedocumenta'- ç3c>eram por falta de infonnaçllo por pane das repartiçOcs consulares. "Assim, caber:! às autoridades con~ sulrues brasiletras informar as dispOSições paraguaias a que cstarJo sujeitos naquele país". Caso houvesse solidtação de outros documentos que não o câmê de imigrante ou que lhe seja cobrado taxa superior à estipulada, "dever:! o imigrante recorrer ao cônsul, -... que fica obrigado a relatar o fato ao consulado paragua10 na área que, por sua vez. se obriga a investigar c adol:lr as medidas cabíveis. O reverso se '-" aplicar:! aos imigranteS paraguaios". Os outros acordos firmados no ..:gundo encoruro '- do Grupo de Cooperação Consular, 3 respeno dos - brasigua1os. garantiram 3 possedatcrr:t c a segurança ..._ de direitos dos brasileiros quando envolvidos "em arrJnjos de arrendamentos e/ou parceria. tanto em terras possuídas por paraguaios como por brasileiros ._ ( ... ).Ficou claroqueosimigr:llltCS brasileiros podem, sem rostriçOcs de qualquer ordem, exceto às que se '- aplicam aos paraguaios, ser proprietários de terras, ._ com títulos respeitados c garantidos (...) e podem rc1vindicar a propriedade de terras públicas (/iscales), seguindo os trâmites requeridos aos posseiros paragua1o:;". Para solucionar os connitos por posse de terras, ficou acordado, durante a reuni ao, que as repartições ~ consulares disporão de livros p~prios para o registro de títulos (de propriedade de terra) c de contratos de am:ndamcnto e parceria. ''Na eventualidade de o imigrante brasileiro se sentir e:;bulhado ou prejudica'- do em seus direitos (vítima de grilagem de terras, quebra de contrato de arrendamento ou parceria sem pagamento de indenização devida etc.), o registro de títulos ou contrato no consulado brasileiro será doeu-

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8RASJGUAIOS

mcmo hábil para permitir ao consulado comunicar

com o seu comrapane paraguaio para a defesa dos

direitOs do imigrante. ld~ntico procedimento será adotado para imigrantes paraguaio:; no Brasil". Isso implicaM, para 3S repaniçõcs consulares, "na reserva de um papel extremamente ativo que, efeuvamentc, terão que monitorar a situação dos imigrantes". Túlio Barbosa termina os seus "comentários reservados·· ali m1ando estar convencido de que o anúncio do PNRA c a expectativa de sua implementação"desempenhou papel muito imponamc na comccução dos acordos relatados". UMA COLÔNIA DO BRASIL

O reconhecimento dos direttos dos imigrantes para~:uaios c brasileiros e a normalização de sua documentação são requisitos básicos para a pcrmanfncia de qualquer cidadão em país estranho c deveriam ser cumpridos pelas duas embaixadas. PrincipalmemcnumaárcadegrandeOuxocomoafronteirados dois países, onde a realização de um censo seria imprc.çcindível para se conhecer a amplitude dos problemas. E. no cruanto, por ru.OCs não esclarecidas até aqui, esses expedientes foram negligenciados, embora ti ,·c•scm sido aco1dado; entre as duas represcmaçOcs. ., • Admitir que a raiz dos problemas dos brasiguaios advinhadedocumcmação~.ndmfnimo, um subterfúgio das autoridades para não aceitar que a presença massiva de cidadãos brasileuos no Paraguai tem precedentes sociais c político:; maiores que um problema legal que a burocracia pod.:ria resolver. Os principais fatores. que forçaram o êxodo parao Paraguat, foram as alianças entre as duas ditaduras recentes- que traçaram uma estratégia de política


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agrícola. favorecendo a concemrnçifo de terra; a ex- propriação e descaracterização do pequeno agricultor, com o surgimento da monoculturn mecanizada e de alta tecnologia voilada para os mercados externos; a política de expansão das fronteiras agrícolas, garan'- tindo, através de conce!>sões às colonizadoras c empresas agrícolas, o domínio de vastas extensões de cem1s para, num primeiro momento, extrair os recursos naturais, depois atrair os agricultores com promessa de terras féneis c baratas, próprias para a reprodução de suas atividades c. num terceiro momento, retomar as áreas já "amansadas" e, por isso, mais valorizadas. para a implantação da monoculturn c a criação extensiva de gado- usando os mecanismos de força que as ditaduras ofereciam. Segundo PauloSchilling,em anigonaFoLha de S. Paulo em 26 de fevereiro de 1984,esses agricuilores"protagoni7.am inconscientemente um processo de expanSionismo, de ocupação como o verificado na fronteira mexicana-none-americana. nas primeiras décadas do século passado." Ponanto, não era necessário olicializaro acordo de migração proposto pelo Mirad, com o intuito de rcsol ver os problemas dos braSiguaios (lá no Paraguai), pois a presença "espontânea" de milhares de brasileiros naquele país já camcterizava o processo. Bastava apenas legalizá-lo através da normalizaçfto da documentação dos agricultores. enncedendo-lhcs as mesmas condições, "como se ~araguaios fossem, com direi los de, inclusive, poder reivindicar terras pdblicas, como se fossem beneficiários de uma reforma agrária". E ainda, para comrolar tal medida, os consu'"- lados brasileiros serviriam de canórios de registro de útulos de propriedade c de contratos, ''independente do cumprimento da legislação vigente no país da rcalir.açfto do ato jurídico", segundo reza o item 2 do ~

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8RASICUA.IOS

anexo Vl da Ata da segunda reunião do Grupo de Coopcraç:loConsularBrasii-Paraguai,assinadapelos cmb:Wiadorcs Ronaldo Costa, pelo Brasil c Miguel Angcl Rcycs, ministro conselheiro da embaixada paraguaia, em nome do emhai;o;ador Adolfo Samaniego, chefe da delegação. Es>-a medida representou a consolidação, via represcm~ç:lo diplom~tica, da presença de mecanismos jurídicos para legalizaras posses brasileiras no país vizinho, beneficiando principalmcmc os latifundiários e emprcs~rios rurais, que possuem mais recursos e aces~ às informações e assessoria jurídica. As dua.~ reprcscn!3Çõcs não contavam com a disposição dos brasiguaios de reivindicar sua cidadania, ao continuarem !1'30Spondo a fromeira em regresso à pátria, exigindo a terra que lhes fom expropriada. E. tamb<!m, nno esperavam a rcaç3o organizada dos campesinos paraguaios em re10mar as regiôe.~ antes oeup~das pelos seus antepassados, através da luta pela reforma agrária. O raciocínio simplista c legalista das autoridades servia de btombo para esconder a profundidade da qucstãoque,Malguosanos,jávinhascndodenunciada às autoridades e através da imprensa. O jornal paraguaio ABC Color publicou. nos mesc.~ de agosto, sctl!mbroeouwbrode 1979. uma ~ri c de rcponagens intitulada Desde lafromero, sobre a penetração brasileiro. Já r. a ocasião, os autores das matérias, jornalistas Alccbiades Gonzales del Yallc c Efrain Martinez Cucvas, chamavam a atenção para os conflitos de terra entre os agricultores. latifundiários e os colonizadores, as perseguições de autoridade.~ paraguaias, a cvaslo dos recursos nawrais do pais através do con· trabando de madeira e gado e a influ~ncia brasileira sobre os povoados da fronteira paraguaia. Em 1981, o jornal FolhadeS.Paulopublicou, tamb<!m, uma série


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de reportagens do jornalista Luiz Salgado Ribeiro. imilulada A ilusão brasileira no Paraguai, ttazendo um perfil da situação dos agricultores naquele país, narrando as dificuldades com a documentação da terra, a violência, a subserviência ao Partido Co! orado como garantia de vida c permanência no país, a falta de estrutura, as fraudes nas vendas de terras c a corrupção. BRASIGUAIO NÃO ENTRA

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A posiÇão do governo federal respaldava a atuaÇão do governo do Mato Grosso do Sul Era preciso frear o retomo em massa dos brasiguaios pois, segundo um documento encaminhado ao Mirad pelo então diretor do Tcrrasul (Dcpanamcmo de Terras do Estado), Aparício Rodri gucs de Almeida, os acampamentos de brasiguaios - segundo ele uma auto-denominação em buscadcimpactonaimprensaenaopiniãopública - "trouxernm a tensão social, o risco de desestabi lizar o meio rural e a produÇão agropecuária, a possibilidade de caos econômico c social. o perigo da desestabilização da reforma agrária e a possibilidade do rerrocesso político". No documento, ele cla.~sifica as cidades parnguaias de Paloma c Corpus Cllrisú como "vcrdacieiias cidades br.;sileiras·· c prevê o regresso de 10 mil famílias. Embora admitisse o direito dos agricultores de voltarem ao Brasil, Aparício} enquanto coordenador das questões agrárias no Estado, impõe reslriçõcsparn o regresso c a permanência deles no Mato Grosso do Sul. para impedir que os riscos previ.~tos se concreü:.:assem. Em primeiro lugar, alegava que o Estado não dispunha de terras e estrutura para atender a grande demanda; em segundo lugar, os brasiguaios não eram oriundos do Mato Grosso do Sul e, portanto, não se


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8RASJCUAJOS

sentia na obrigação de recebê-los. Atender as exigências dos brasiguaios, segundo Apancio, "seria criar um grupo privilegiado em detrimento dos agricultores sem-term do estado, provocando uma rivalidade entre eles e conflitos com os proprietários". Outro argumento era que os bntSiguaios não podiam ser cadastrados dentro das normas do lNCRA. pois estavam sem documentação que comprovasse sua capacidade produtiva c não se cnquadmvam nos critérios exigidos para serem incluídos como beneficiários de projcws de assentamento. Ou seja, se no Paraguai eles não tinham a documentação legal para continuar produzindo enquanto agricultores. aqui eles também não eram "legalmente" accüos por estarem fora das normas que garantiam o seu retomo como produ(orcs rurais. Mato Grosso do Sul, estado da federação brasileira, não os aceitava pelo simples fato de não serem matogrossenscs. É bom ressaltar que a população do Mato Grosso do Sul é composta de migmmes do Sul c<loNordeste. A maioria dos grandes proprietários é composta de empresários c proprietários rurais do Paraná, São Paulo c Minas Gerais. A população nativa de várias nações indígenas e de paraguaios sempre foi minoria. desde a guerra contra o Paraguai, quando se iniciou a ocupação do c•tado pelo sudoeste e, posteriormente. a colonização dirigida com agricultores do Sul, vindos principalmente do Paraná. Para bloquear o fluxo das familias em regresso e minimizar o "perigo" que representavanJ, Apancio estabelece um novo critério para o cadastramento dos sem-terra: a comprovação de residência de mais de dois anos no Estado. Uma fonna de comprovação era a ficha de filiação nos sindicatos de trabalbadores rurais, enm data anterior a esse penado. Enquanto isso, a repressão na fronteira aumentava. "para possi-

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bilitar o levantamento das famílias que já haviam retomado", já que er4 imposSÍvel devolvê-las ao Paraguai ou aos seus estados de origem. Também pesou para essa mudança de atitude a determinação do ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro, de dar tratamento emergencial aos acampados, depois de recebê-los em audiência. O assemamemo deveria sair independemc do Plano Nacional de Refom1a Agrária.

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, A RESISTÊNCIA - DOS CAMPESINOS PARAGUAIOS

-. Enquanto os agricultores brasileiros se organizavam para rctoroar do Paraguai a panir de 1984, o movi'mento dos agricultores paraguaios continuava resis- lindo aos despejos. mones, prisões, torturas e perseguições. A violenta repressão contra os sem-terra, tinha à frente o exército paraguaio, para manter intocáveis os latifúndios ociosos, a maioria em mãos de empresas brasileiras situadas nos depanamemos paraguaios fronteiriços com o Brasil - estados do 'Paraná e Mato Grosso do Sul. Nesse período, o Prog•ama de Ayuda Cluisiiana (PAC), entidade de apoio jurídico aos campesinos, acompanha vários conflitos de terra na região dos '-- dcpanamcmosdeCanindeyâ,AltoParanáeAmambay. ,_ Em 1986, o advogado doPAC, Eriberto Alegre, que fôra torturado e preso por dez meses por defender os '- agricultores, relatou alguns dos conflitos envolvendo '-- camponeses paraguaios e latifundiários, que ilustram _ bem a violência vivida pelos sem-terra paraguaios, promovida pelos latifundiários c colonizadores, com a conivência do governo paraguaio.


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8/!JIS/GUAJOS

CASO ZAMPIERI

Apropricdadcsimada no Dcpan:uncmodc Canindcyú. pertencia a Hugo Zampicri. São duas~ com uma superfície total de 17 mil hectare~. ocupadas pOr colonos pamguaios c brasileiros. Os locais IT'aJs confiilivos sno Cristo Rei, São Sebastião, Ap:1recida c Pozuelo. Quatroccnt:ls famílias têm a posse das terras. O JUiZ de Pude lpcjhú, Abraham Rolón, fabificou a a.,,; natura de Primo Z:unpicri c vendeu as terras para Alcidc.' Diaz de OJh·cira, Emigdio Vallcjos Callar, Valcnun Gamarra, Alberto Gurgoing, Rcné Fclix So,tarc c outros. Ao todo. foram dct. compradores. o- ocupantes que não aecit:un comprar as terras com títulos falsos são ameaçado-. c coagidos. Um colono foi detido, como foi o ca<;O de Oscar Ambrusch. que conseguiu serIibcrtado <lepoi s de assinardocumentos :1 favor de Emüio Val.lcjos c Lorenzo Freitas. Em trinta de agosto de 1985. em ofício remetido ao deI~ gado do governo do Departamento de Canindcyú, o juiz de primeira instância no Cartório Civil do Oitavo Turno, Francisco Pacci Manwní. pede "que nenhum ocupante sem título seja moltl>tado até que se saiba. mcdJantcdccisãojudicial.quem é o verclldciroproprietário UO llllÓvel". Os agricultores Pedro Vida! AyalacSabinoMoocir Ccno iniciar?11 ação judicial diante do juizado de primeira instância da cidade de P~sidcllle Srrocssncr, rontra P'.tscool ino Mazzo e Alcides Diaz de Oli,•eira, que possuem títulos falsos. Nessa ação, foi expedido mandado de prislo rontra os indiciados. Em Salto de! Gu:Wá. o juiz Artcmio Bcnitez suspendeu o m.mdJto de prisao. As ameaças c prcssilc:s pioraram. Os ocupantes estão praticamente sitiados. não podi:m lTlO\'Cr« livremente. Reina uma grande tensão c um ambiente de muito temor.


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Um \'crcador do Quilômetro 28, de sobrenome VillalbJ, nomeou como segurança os capangas do:; pretensos proprietários, que pas~ciam, impunemente, em sua companhia. Apcs:rr das oon.~antes negociações com o IBR c reprcso:ntantcs do go,·emoe de pedidos de garantias, 3 situaç3o continua tCll.'<."l. Os lfdc.rcs dos agricultores são COIIS!3ntementcpresoseamcaç:adoscan tonuras(rolcta russa c espancamentos). Todo:; os represcmames da Comi~-Jo Vicinal -representantes dJ$ colôniasestão sob mandado de captura, obrigados a viver ru clandestinidade. Entre eles, Pedro Ayala, 48 anos. ttts tilbos, pmguaio, oito \'C7CS preso: Pedro Barros, de ltatiba do Sul, RS, 47 anos. dez ftlhos c morJdor há qu:uorf.c :mos m :lrea,e ValdcmiroGonçalves~1acha· do, dcJúliodc Castilho, RS, 36 anos, um filho. Embora tenham solicitado ao consulado brasileiro em HemandáriaseadcputadosdoPMDB p3T3113CilSCp3T3 intc.rccdcr junto aos proprietários br.tSilciros c às autoridades, nenhuma providência foi tomadl. O representante de Hugo Zampicri, sucessor de Primo Zampieri c administ.radordc f37.cndas em Assis Chatcaubriand, no Pamnrt, Hcinz Manin Guths. c o engenheiro agrônomo Carlos AJ frcdo Viccncini, são os principais portadores das prcssõc:. c ameaças aos agri. cul:orcs br...,iieiros c paraguatll~. A siluação ua área continuava tensa em 198&. Sem a prcsc11Ç3 de seus lfderes, os colonos sentiam-se mais vulncrnvci• aos a~ Osadvogadosoo PA,C.can oapoiodccnlidadcs ctedcfcsadosdireitoshwnanoscorganizaçõcspopularcs. cmscguiram jwJro ao lBR aexpropriação da área COLÔ NIA SANTA TEREZA

É considerada a colônia maL~ antiga, habitada em grande pane por colonos brasileiros. Li no MarcheUi .


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BIWIG~'A/()j

paranacnsc de Londrina c Thymios loannids, grego. se conheceram em Silo Paulo, na década de cinqücnm. Ambos eram sócios de uma madeireira em Santarán. no Pará Em meados de 1967, Lino Marchcui dcilla .._ seu sócio no norte do Pará e compra no Paraguai cerca de 15 mil hectares de terra d3 !tato Paraguaia S.A., c cria a Complnhia ParagU3ia-BrasileirJ Parbras, que recebe autorização do IBR para colonizar a área. A colônia foi denominada inicialmente de Acaray S.R.L. no disuito de Yhú. No início, os lotes foram vendidos sem título. sem o nome da coloni7.adora. sem medição judicial das terras c com muodução de ~ colonos brasileiros de fomta irregular, atraídos por numerosos corretores que percorreram o interior do Paraná c Sanm Catarina, ofercccodo terras a preços baixos e com obras de infra-estrutura (tx>l;to de saúde. ~ escolas c luz elétrica). Logo nos primeiros anos, migraram duas mil famüias para a nova coiOnia. chamada de Duarte Cué. depois balil:lda de Santa Tereza. Al~m dos 15 mil hectares, Lino Marcheui comerciali7.ou outros 30 mil dos arredores, de propriedade dc:;conhccida. Depoasdef3liramadeireiradcSaman!m, Th}mio, se empregou como medidor de madeira na Colonizadora Acaray e em pouco tempo passou a tomar conta dos ncgocaos do ex-sócio. Em 1970, Thymios aparece como recebedor de madeira, iniciando a pcrseguiçao aos colonns. Nesse mesmo ano, a colonizadOf<! sofre imerdJ~. por n3o atenderas exigências do IBR. Nocmanlo, a Coloni7.3· dora Acaray não detinha nenhum tírulo de propriedade. As terras estavam em nome de Li no Marchetti. que transfere o imóvel parao nome de UlisscsGuimar.ks Ferreira. Nesse mesmo ano foi designado o funcionário público Justo Candia, com o objetivo de cferuar um censo parcial dos colonos introduzidos ilegalmente


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.._ no país. Além de realizar o censo, o funcionário denuncia a~ ações violentas do "EI Grego" sobre os colonos. Nessa época, ele já estava fonnando uma - sociedade com Maria Isabel. filha do ministro do ..._ Interior do Paraguai, Sabino Montanaro, c com o general Milcides Ramos Gimenez. com a intenção de ~ tomar coma tanto da coloni7.adora, como do negócio ~ de "introdução de arrendatários brasileiros". Com estasociedade,conscguiuacxpulsãodeLinoMarchetú edeoutrosbrasileirosquescmanifestaram contrários - a ela Nesta altura, "EI Grego" já havia falsificado a escritura das terras em seu nome. Em 1971,soba influenciadonovosó<-iodeThymios - o Generdl Montanaro -.o ffiR transfere para ele _ a adminisunção da colônia, que começa a atuar através de La Greco-Paraguaia S.A. Em 1972, o IBR amplia a colonização de 15 mil para 30 mil hectares. La Greco-Paraguaia dava prioridade para a venda de terras a brasileiros, impedindo o acesso de colonos paraguaios, que foram expulsos da região. Depois de sofrer várias intervenções, por irregularidades e uso de violência contra os colonos- que haviam comprado as terras de Lino Mareheui e se ~ negavam a pagarnovamcmeoslmes- ,eporscncgar a assentares parnguaios, criando um clima de tcrrorna '- colônia, .E! Grego tr.msfere, em 198i, as terras da colonização para o bar;!o Rol f Emest Von Lasperg. ~ Este passa a ser o sucessor. representado pela barone~ sa Corina Von Laspcrg ---7brasüeira, com residencia em São Paulo c sócia de El Grego. 'Em 1988 e 1989 Colina e "El Grego", administradores da Greco-Paraguaia, entram na justiça de '- Villarrica para efetuar vários despejos de agricultores. Eml988 foram constanresosdespcjosc perseguições aos camponeses. A Comissão Vicinal se viu obrigada a buscar segurança em Assunção, para que


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BRASIGUA!OS

os agricultores não fossem despejados de suas lavouras. Na delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu, no Registro de Inquérito Policial nº 3.923, constam várias denúncias de colonos expulsos pelas forças de El Grego, com a ajuda de jagunços e matadores brasileiros contratados por ele. Os colonos brasileiros dispostos a ajudar os colonos paraguaios da Reserva Paraguaia- também sob o domínio da Greco-Paraguaia- são sumariamente castigados, através de denúncias falsas, despejos, ameaças e pressões. "Estes métodos, a mentira, as falsas denúncias, as ameaças, as expulsões, a duplicação de pagamentos das terras, são coisas correntes na Colônia Santa Tereza, feudo de Thymios Ioanhidis e sua colaboradora Corina Von Lasperg, criando uma verdadeira situação de pânico nos moradores e um · sistema onde a lei é Ioannidis e não as leis paraguaias. Thymios Ioannidis nasceu em uma cidade grega chamada Kiparisia c assim denominou uma localidade na colônia para moldar suas veleidades feudais", diz um dossiê realizado por moradores de Santa Tereza. Além da Greco-Paraguaia, ele utiliza testas-de-ferro, capangas e sociedades satélites- Santa Basílica e Agro Indutrial Redchy S.A. -para enganar os colonos e duplicar as obrigações. El Grego tem vários antecedentes criminais, inclusive dois mandados de prisão por falsificação de documentos e assinaturas de colonos em notas promissóri<tj> para, com a alegação de não pagamento, seqüestrar seus bens. Na Argentina, "El Grego" tem também processo por falência. O último fato grave ocorreu em 1990, quando o padre brasileiro Júlio Soster (que dava assistência aos colonos) e a jornalista brasileira, Rosana Bond, que na epoca trabalhava no jornal O Estado de S. Paulo, sofreram atentado na colônia, em emboscada prepara-


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da por jagunços de "El Grego". Das duas mil famílias iniciais, restam pouco mais de seiscentas. E é impossível encontrar em Santa Tereza, entre brasileiros e paraguaios, quem não foi vítima de pressões de Corina e "El Grego". São várias as pressões: expulsões, perseguições, destruição de bens, confisco de maquinários, queima de casas, destruição de lavouras, confisco de colheitas, espancamentos c torturas contra agricultores, pequenos comerciantes, donos de oficinas de consertos de maquinários agrícolas, professores, padres, índiosnem mesmo os vizinhos da colônia são poupados-, sempre com o apoio de autoridades e da força policial. E, na ausência de policiais, havia jagunços suficientes para dar conta do serviço. VIRGEM DE FÁTIMA -

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LA PALOMA

O local fica a 32 Km de Salto del Guairá, capital do Departamento de Canindeyú, fronteira com o Brasil. No final da década de sessenta, José de Assunção chegou ao Paraguai. Deixou dois fllhos no Brasil e se mudou com Dulce Zanaldi, sua mulher. Em Salto del Guairá comprou vários terrenos e em poucos anos possuía 978 hectares. Em 1971, famílias do Departamento Central, São Pedro e das Cordilheiras, migram para esta área, ainda mata virgerr.. No começo, alternavam os trabalhos com agricultura e extração de pMmito. Depois de superar inúmeras dificuldades, chegaram os primeiros colonos autorizados a se instalar ali por Pablo Benitez - da administração do IBR de Salto del Guairá, que lhes disse que as terras eram públicas. Em 1973, os camponeses começaram a ser pressionados pelas autoridades para desocupar as terras de "donos brasileiros". Em setembro daquele ano, José


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BRASIGUAIOS

de Assunção e Argemiro Assunção Sobrinho reivindicaram na justiça "imóveis rurais em Sallodel Guairá". Em dez anos, o presidente da comissão dos agricultores e outros dirigentes foram detidos várias vezes em Sal to dei Guairá e na prefeitura de La Paloma. Em 1975, o Juizado de Villarrica condenou os agricultores " desocupar os imóveis. Em outubro de 1976, vários agricultores foram detidos. No ano seguinte, outros doze membros receberam pressões para deixar as terras e ficaram presos por doze dias. Em junho de 1978, a comissão dos agricultores recebeu o reconhecimento do IBR. Mas, já no mês seguinte, foram intimados a desocupar o lugar. E, apesar das ameaças e das forças públicas usadas para perseguir e pre11der os líderes, os a§sentamentos não foram abandonados . Em agosto de 1978, os agricultores conseguiram a e?Cpropriação de quinhentos hectares. Daquele momento até 1981, os colonos de Virgem de Fátima foram vítimas de novas pressões, perseguições e prisões. Nos primeiros meses de 1984 houve, finalmente, um acordo com o IBR, que permutou as terras com o proprietário brasileiro, que recebeu terras em outros lugares. RELOJ CUÉ

Os moradores em sua maioria residiam em Juan E. O'Leary, na localidade de JuGJn L. Mallorquín. Não tinham terra própria, viviam em casas de parentes. Ocuparam o lugar em maio de 1984. A maioria é originária de Caaguazú-Paraguai e Cordilheira, de onde saíram com suas famílias por falta de terra para cultivar. A repressão não se fez esperar. Em poucos dias, o prefeito de E. O'Leary e um representante da "Colonizadora Técnica" foram ao local para intimidar os agricultores e forçá-los a

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CActA CoRn'z

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sair do lugar. Em junho, vários agricultores foram expulsos. Os soldados destruíram as melhorias e os ranchos, levaram mercadorias e inutilizaram um poço de água. Muitos agricultores se esconderam na mata com medo de ameaças das forças policiais, que pretendiam não cessar as perseguições até colocar todos na cadeia. No mesmo mês, os agricultores recorreram ao IBR para buscar uma solução para o conflito. Como proposta, receberam oferta de terras em Canindeyú, na Colônia Caballero. Ao retomar para a área, vários agricultores foram presos c um foi brutalmente torturado. Funcionários do IBR, o prefeito e o presidente da Seccional Colorada do lugar informaram que eles _ estavam sendo indiciados por "usurpación de propriedatf' e roubo de madeira No dia 16 de agosto do mesmo ano, o juiz Pedro Farías, de Stroessner, acompanhado do prefeito e de vários policiais, retoma à área para amedrontar os agricultores, ameaçando-os com fuzis. E, ao tentar deter sete lideranças, elas foram protegidas por seus companheiros. Os 117 chefes de família e mulheres, num total486 pessoas, cercaram as lideranças. Para o juiz isso foi "uma tática de luta de Gandhi. Existe um cérebro nesta organização". O exército, solicitado, pelo juiz para intervir na área, se negou a agir (isso .raramente ocorre), devolvendo o caso para a polícia. Em 1985, cC'm a resistência das famílias, o qm parcelou a área e legalizou a ocupação. TAVAPY 11 Localizada no distrito de Domingos Martinez de Irala, a 1500 metros da estrada VI (Presidente StroessnerEncamación), a colônia faz divisa com as seguintes propriedades: a de um japonês da Colônia Iguazú,


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BRAS/GUA!OS

com a Agrícola-Ganadera Paranbú SRL, de Roberto Garcia Kohlcr, cidadão chileno, parte de cujas propricdades é a ocupada; limua-sc ~.,om a Estância Kufíataí de propriedade de um cidadão francês (ao que parece, o verdadeiro proprietário das terras), e finalmente, com a colônia Tavapy, do IBR. Os primeiros moradores entraram nas terras a partir de março de 1984. Chegaram primeiro em tomo de uns quarenta agricultores. Na semana seguinte o número ultrapassava quatrocentas famílias. A área ocupada tinha aproximadamente cinco mil hectares que, para evitar a expropriação, foram divididos em três partes. O número de ocupantes oscila entre quinhentos c seiscentos, cada um com dc.z hectares. Em muitos casos, um lote é dividido com outros familiares. A maioria dos chefes de família são homens jovens, com filhos de pouca idade. A ocupação foi declarada ilegal.

SOCIEGO Esta com unidade está assentada no distlito de Domin~o M. de I rala, a 35 quilômetros de Presidente Franco. E demarcada com as colônias Ara-Potí, Itá-Poti, Ordonez c Ituti, com terras pertencentes a Angclin Fcmandez, um cidadão brasileiro. A história é a seguinte: em outubro de 1979começou a ocupação do lu-~ar e só terminou no início de 1982, com 45> famílias. A extensão da área ocupada é de 450 hectares. Angelin só tem títulos de 250 hectares, mas como limitam com excedentes fiscais (terras públicas), ele tenta ocupar todo o terreno. Para isso usa tratores na derrubada da mata, destrói as melhorias e fraciona a terra entre vários presta-nombres- testas-de-ferro. As famílias são originárias de Villarrica, Caaguazú c Caazapá. Elas abandonaram as poucas terras de seus pais,.....incapazes de garantir a sobrevivência de suas

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famílias. Sem terras próprias, trabalhavam em changas - carregamento de cargas - ou nas safras. Geralmente, indo a Guairá para os cortes de cana ou em colheitas de algodão no Alto Paraná. A partir de março de 1984, a repressão aumentou. Doze campesinos foram arrastados e presos por policiais. Os restantes tiveram que se refugiar na mata. Doze ranchos foram queimados e os poços de água envenenados. As ações de depredação estavam a cargo de brasileiros que, armados com revólveres e escopetas, chegaram apoiados por forças policiais da Delegação do Governo, aterrorizando os agricultores.

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SEGUÍN CUÉ

Fica no distrito de Iiakyry, a 82 quilômetros ao norte da cidade de Hemandárias, Departamento Alto Paraná. Os primeiros 33 moradores entraram na terra em maio de 1983. Em três meses se iniciava a ocupação de 12.700 hectares, tamanho total da área de propriedade do argentino Carlos Seguín. Os ocupantes foram presos. Dias depois foram libertados e voltaram para a área. Atualmente a comunidade possui mil famílias, alguns residiam numa colônia cercada - Moreira Cué-outras nos bairros marginais de Puerto Franco, Hcmandárias e Ciudad Presidente Strossner- hoje Ciudad Del Leste- ou em Campo Limpo, pen o de Seguín Cu é. Parte deles migrou de C:!azapá, outros de Caaguazú. Em julho de 1984, o Poder Executivo autorizou a ocupação da área, dando a posse aos agricultores. Atualmente a região chama-se Colônia MingaPorã. Estes são alguns das dezenas de conflitos de terras ocorridos no Paraguai, no período de 1984 a 86. O tratamento dado aos campesinos paraguaios por parte

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das autoridades daquele país, desde comissários até oficiais e autoridades do poder executivo, tem sido igual ou pior que o dispensado aos agricultores brasiguaios, se é que é possível fazer comparações desse tipo. A QUEDA DE STROESSNER

O golpe de 13 de fevereiro de 1989, comandado pelo general Andrés Rodrigues, que derrubou seu sogro, Stroessner, do poder, não desarticulou o aparato repressivo no Paraguai e tampouco acabou com o stroessnismo. Mesmo porque o novo regime demonstrou ter a mesma face do anterior. É apoiado pelo empresariado nacional e cstrahgeiro é está assentado na estrutura repressiva que controla todos os setores da vida públic<;t do país. Aproveitando a brecha para a democracia, os trabalhadores não esperaram para testar a abertura democrática acenada pelo novo presidente, Andrés Rodrigues. Em todo o país se levantaram as vozes dos setores organizados da população. Mas o teste não tardou a demonstrar que o velho stroessnismo continuava intacto. No dia 23 de junho, um grupo de quarenta agricultores das localidades Juan Mcna e Clero Barreto, que se aglomeravam em frente à Catedral Metropolitana de AssuP-;ão para marchar até o parlamento e reivindicar a reforma àgrária, foi violentamente reprimido por policiais militares com cães amestrados, assim que iniciaram a caminhada. Foi a primeira das dezenas de ações repressivas, comandadas pelo exército, contra as organizações de trabalhadores, desencadeadas pelo novo governo paraguaio. Mas não foi o suficiente para desarticular a retomada da ofensiva das organizacões sindicais e populares em todo o país .


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No dia 13 de agosto é fundada a Central Unitária de Trabalhadores (CUT), com a participação da Coordenação Nacional de Produtores Agrícolas c Movimento Campesino Paraguaio, que tiveram a maior representatividade na fundação da Central. A partir daí, a CUT passa a coordenar c dirigir dezenas de greves em vários setores, mudando o cotidiano da capital paraguaia, com a presença teimosa de centenas de trabalhadores em greve. No dia 27 "-- de setembro, uma segunda-feira, ao meio-dia, centenas de operários almoçam nas escadarias da Catedral ~ Metropolitana de Assunção. Uma faixa os identifica - para os passantes curiosos e rcssabiados: Trabajadores de Munich despedidos por sindicalizar-se. Nas manchetes dos jornais, a CUT desafia o empresariado para '- o debate público, denuncia perseguições c demissões em massa c anuncia uma marcha por salários dignos. Em Ciudad Del Leste - chamada de Presidente Stroessner até a queda do ditador - mais de cem agricultores acampam na praça central em vigília pela liberdade de seus líderes presos durante um despejo violento, c no aguardo do reassentamento. Na região do Alto Paraná, as ocupações de terra se multiplicam. Só nas vinte primeiras ocupações mobilizaram mais de oito mil agricultores, segundo informações da Associação dos Agricultores do Alto Paraná- Assagrapa. ;.Hay democrácia? No, todavia. Mas os trabalhadores paraguaios já retomaram às ruas para mostrar la cara e dizer que não s~o contra, apesar dos perros c · dos fuzis dos soldados do exército. Estas cenas passaram a ser comuns nas principais cidades guarani. "Com o golpe se abriu uma brecha de democracia que temos de alargá-la," afirmava o então presidente da CUT, Victor Maez Mosqueira, "nós estamos perdendo o medo de nos organizar, de protestar contra a exploração e de exigir nossos direitos".


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Com poucos meses de vida, a CUT já tinha apoiado a criação de um sindicato por mês e coordenado quatorze greves de diferentes categorias. Só a realizada pelos trabalhadores de Itaipu- que sofreu repressão dos soldados do exército, semelhante a ocorrida na CSN, em Volta Redonda- mobilizou quatorze mil trabalhadores. Em contrapartida, a reação dos empresários e do governo havia contabilizado 670 demitidos depois que a Junta de Conciliação e Arbitragem do Ministério da Justiça passou a decretar a ilegalidade das greves. Segundo Mosqueira, o governo não proíbe oficialmente as greves: "as assembléias são realizadas sem a presença de policiais e não há prisões - prática comum da ditadura. Mas, por outro lado, não revê a Lei 1172/85 que, embora permita a organização sin- dical, não garante a estabilidade aos dirigentes". Setenta por cento dos trabalhadores paraguaios não recebiam o salário mínimo legal, que era de 164,64 guaranis- cerca de 150 dólares em 1989. "Até mesmo o Estado não cumpre essa lei, c no setor privado não fiscaliza o cumprimento do Código de Trabalho, que é violado abertamente pelos cmpresáIios". O secretário de Conflitos da CUT, Silvio Ferreira, informava que o momento era de reorganização de forças para "garantiimos, em primeiro lugar, os direitos básicos como oito horas de trabalho, pagamento das horas-e'<tras, previdência, salário família, décimo terceiro, direito à organiz~ção e legalização dos sindicatos", reconhecendo que não era uma tarefa fácil: "Os trabalhadores, em sua maioria, nem sabem que têm esses direitos e o processo de organização e conscientização é lento. Fomos silenciados por mais de três décadas", afirmava Silvio Ferreira. Mesmo assim "já realizamos mais greves que no período do stroessnismo", contabilizava.

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Se a abertura de Andrés Rodrigues é limitada, o movimento sindical paraguaio é ainda frágil. "Antes nós nos organizávamos para combater a ditadura e todos - inclusive a burguesia e alguns setores do governo - eram a favor. Hoje nós lutamos para construir um movimento sindical classista, que atenda as expectativas dos trabalhadores e que seja uma ferramenta a fim de conseguirmos uma democracia não só política, mas econômica e social, e nem todos estão a favor", analisa Victor Mosqueira. Segundo ele, o processo de construção da central e a retomada das organizações populares, que apenas havia se iniciado, "foram o suficiente para provocar a reação da classe patronal, que sem ovimenta com valores fascistas e autoritários". Em setembro de 1989 a CUT paraguaia contava com oitenta entidades filiadas, com mais de 500 mil trabalhadores em suas bases. O PESADELO CONTINUA

As organizações dos camponeses paraguaios- Coordenação N acionai de Agricultores Paraguaios (Conapa), Movimento Campesino Paraguaio (MCP), Organização Nacional Campesina (ONAC) e União Nacional Campesina, Onondivepa- não tiveram nenhuma supresa quando o novo governo entregou ao exército a tarefa de administrar conflitos de terra no país, criando o Conselho N acionai de Coordenação para o Desenvolvimento Rural, spb controle direto do poder executivo, tendo como presidente o coronel Ugarte Ramirez. Quando assumiu o comando do Conselho, Ramirez anunciou que seriam assentadas ,___ apenas quatro mil das dez mil famílias sem-terra que reconhecia existir e indicou que criaria uma escola de formação de líderes campesinos e organização de cooperativas rurais. O coronel, além de não dialogar


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com nenhuma organização de agricultores, tratou Jogo de mostrar a que veio: despejou violentamente milhares de agricultores sem-terra, com destruição de baiTacos, espancamentos, destruição de roças e outras melhorias das áreas e prisão de dezenas de lideranças. A estratégia de desalojamento dos agricultores também não é diferente da adotada pelo aparato repressivo de Stroessner: primeiro há o isolamento da área, com o bloqueio de estradas, sitiando os camponeses c impedindo a entrada de grupos de apoio. Em poucos dias os agricultores ficam sem alimentos nem água. Depois, a primeira am1a é utilizada, nom1almente à noite: dezenas de cães treinados são soltos nos acampamentos à caça dos agricultores, causando pânico c terror entre os acampados, forçando a dispersão mata adentro. Em seguida, no rastro da destruição c do pavor deixado pela voracidade da matilha, chegam os soldados do exército para fazer a varredura da área, usando fuzis, metralhadoras c cassetetes. O acampamento é destruído e seus ocupantes são espancados, humilhados, arrastados para fora "das terras particulares" c atirados, dispersos, em beiras de estradas distantes do local do conflito. O reaparecimento dos campesinos não demora. Em poucos dias já estão reunidos em praças, acampados em fi·cntc a latifúiJdios ou ·beira de estradas, reivindicando a liberação de seus líderes presos. Pois se permanecerem isolados não terão como resistir, até mesmo para aplacar a fome e curar seu feridos. Durante a campanha 3residencial, Andrés Rodigues prometeu a realização de reforma agrária para solucionar o problema das famílias de sem-terra existentes -segundo informações da Associação dos Agricultores do Alto Paraná (Assagrapa), são 300 mil famílias. "Essas promessas alimentaram as esperanças dos camponeses, que passaram a realizar ocupações

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massivas e a organizar comissões vicinais. Segundo Tomas Zaias, presidente da Assagrapa, somente na região de Alto Paraná foram criadas 36 comissões, 27 latifúndios foram ocupados por 8.600 famílias. Nessas ocupações, alguns brasiguaios - impedidos de voltar para o Brasil, com o fechamento da fronteira e es:Jerançosos com a nova situação do país - se juntaram aos agricultores paraguaios nas ocupações de terra nas regiões próximas à fronteira. Nesse contexto, surgem novos personagens: a presença de centenas de agricultores brasileiros, a maioria bóias-frias, trazidos do Paraná pelas empresas colonizadoras, para se protegerem das possíveis desapropriações e para camuflar as áreas desabitadas c improdutivas. Em 1989, o Projeto Jica Internacional, empresa japonesa, levou seiscentas famílias de agricultores sem-terra para uma área de 92 mil hectares na Colônia Iguazú, e a colonizadora GrecoParaguaia levou cem famílias para uma área de 30 mil hectares. A maioria das famílias não possuía documentos para permanecer no país, nem dispunham de instrumentos e recursos para iniciar os trabalhos de desmatc e não tinham nenhuma segurança dos proprietários para permanecer nas terras. A única garantia era um contrato de arrendamento, durante o qual os colonos deveriam trabalhar por três anos nas terras. Nesse período, o proprietário não se compromete a prestar nenhum tipo de ajuda, seja em acidentes de trabalho ou prejuízo~ a outros, somente facilita a terra. "As melhorias introduzidas dentro do imóvel arrendado, ficarão em beneficio exclusivo do proprietário", estabelece uma das cláusulas do documento. O agricultor fica proibido de retirar madeiras da área e, depois de três anos, o colono terá que devolver "limpo o terreno arrendado, pronto para a mecanização", segundo o contrato de arrendamento firmado entre


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Kietsu Yoshida, da Colônia Iguazú (projeto Jica) e Adelino Guaresi, sem-terra paranaense. Segundo Brás Roberto Aldercte, presidente da Comissão Central de Campesinos Sem Terra do Alto Paraná, cerca de mil famílias de brasileiros foram levadas para camuflar terras improdutivas. "Muitos foram trazidos de avião pelas colonizadoras, como a de José Domingos Campos" afirmou. Segundo o líder sem-terra, as famílias estavam sendo introduzidas nas terras paraguaias com carteiras de migração falsificadas, o que, "está causando um conflito nacionalista c racista entre paraguaios c brasileiros e, no entanto, os dois estão na mesma situação de exploração c miséria". Com as noticias de que os proprietários estavam rccditando os arrendamentos, centenas de famílias de agricultores brasileiros sem -terra, instalados nas periferias de Foz do Iguaçu e cidades da região, passaram a transpor a Ponte da Amizade, obrigando a direção de Imigração de Cidade Del Leste a "fechar" a fronteira para a entrada desses agricultores, no mês de junho de 1989, por45 dias. O então cônsul geral do Brasil em Ciudad Del Leste, Ricardo Borges, reconhecia o aumento do fluxo de entrada de brasileiros no Paraguai e alegava que a sua imcrfc:rência se limilava a rcsoiver problemas de documentação dos brasileiros, sem interferir na problemática da terra "Isso vai depender do governo, embora a mim me preocupe", salientava. O cônsul via com otimismo a presença do Coronel Ugane Ramires à frente do Conselho de Coordenação para o Desenvolvimento Rural. "A vantagem é que ele está ao lado do presidente que é um homem bastante ponderado", justificava. Na cidade de Cedrales, oriunda de um projeto de colonização, dos cerca de vinte mil habitantes, oitenta


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por cento são brasileiros que detêm noventa por cento da propriedade das terras, a maioria pequenas e médias propriedades. A aproximadamente trinta quilômetros do centro da cidade, na colônia Ituty, quatrocentas famílias ocuparam um latifúndio suíço, a fazenda Soledade, com mais de 30 mil hectares, que tinha como encarregado o brasileiro Nelson Beltoni. Nesta ocupação, a presença de brasileiros era grande. Silmar Pinto de Oliveira, de 38 anos, pai de dois filhos, de Ubiratan, no Paraná, tinha participado da ocupação junto com os paraguaios. "Aqui todos são iguais e a situação é a mesma aqui como do outro lado da fronteira. Por isso é que não há briga entre a gente", disse ele. E acrescentou, animado: "Daqui nenhum brasileiro vai sair corrido de paraguaio sem-terra". Na colônia Viporã, quilômetro48, um total de 120 famílias resistiam na ocupação da fazenda do exdiretor da Rádio Nacional do Paraguai, Alexandra Cáceres de Almeida, com 4.347 hectares. Um grande número de ocupantes era de famílias sem-terra brasileiros. Já na colônia Iguazú, as quatrocentas famílias de brasileiros introduzidas pelo Jica foram expulsos por paraguaios que ocuparam quase toda a extensão das terras, obrigando os colonos brasileiros a se alojarem na sede da fazenda. Eles estavam à espera da interferência do cônsul brasileiro em Ciudad Del Leste, Ricardo Borges. No entanto, a presença de sem-terra brasileiros nas ocupações- a maioria exarrendatários, meeiros e bói()s-frias que plantavam para subsistência- não havia eliminado o conflito com os campesinos paraguaios. No dia 26 de setembro de 1989, um grupo de agricultores sem-terra paraguaios ocupou uma pequena propriedade de colonos brasileiros na Colônia Santa Fé, região de Hemandárias, resultando em dois agricultores feridos. Em Santa Tereza, outro grupo de

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camponeses queimou casas de agricultores brasileiros. A queda de Stroessner e a retomada das ocupações massivas das organizações de agricultores paraguaios reacenderam o sentimento nacionalista na população paraguaia do campo e o principal alvo são os brasileiros, que ocupam quase a totalidade das terras da faixa de fronteira do país vizinho. "Esses connitos servem para o exército justificar a sua atuação na região", analisa o secretário da Assagrapa, Tomás Zaias. "Estamos em total desacordo com a ocupação de minifúndios e igualmente não estamos de acordo com os enfrentamcntos c que um paraguaio ponha em risco a vida de outro campesino pobre, seja de qual nacionalidade for", esclareceu. A Assagrapa, preocupada com os cnfrentamentos, divulgou em setembro uma nota à opinião pública e um chamamento aos brasileiros para "não deixar-se utilizar como elemento de defesa dos proprietários para manter seus latifúndios incultos, com contratos falsos, como estão fazendo os japoneses no distrito de Iguazú, contra a luta dos campesinos paraguaios por um pedaço de terra para sustentar suas famílias geralmente numerosas". E continua a nota: "Com relação ao lamentável episódio de cnfrcntamento entre campesinos paraguaios e brasileiros, oconido no lugar cha111ado 1º de Março, reiteramos, uma vez mais, que não ~ aprovamo~ fatos dessa natureza, que interferem negativamente em nossa metodologia de negociações legais ... " Mais adiante o documento reforça: "A solução não virá mediante um grupo de valentes encabeçado por um líder heróico. A mudança está nas mãos de todo um povo organizado e consciente que tem um compromisso por um ideal e objetivo concreto, que é 'devolver ao autêntico agricultor as terras que lhes

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correspondem, e que hoje estão em poder de uns latifundiários que a utilizam como mercadoria, explorando pobres colonos brasileiros e nacionais". Em relação às terras da faixa de fronteira, o mesmo documento ressalta: "Instamos ao governo e às autoridades competentes que considerem como problema da Nação o caso das terras da fronteira, povoadas em sua maioria por estrangeiros. Porque, embora o governo afirme ter freado o ingresso de mais colonos estrangeiros, estes seguem entrando na zona e conseguindo terras. Com isso se complica ainda mais o problema de nossos compatriotas carentes de terra". O documento termina chamando toda as organizações campesinas, os movimentos populares, partidos políticos democráticos e sindicais, para que "assumam um compromissomaiorem favordocampesinatoque está em plena luta por terra c por uma reforma agrária integral e democrática, que lhe permita participar do desenvolvimento soei al, político e econômico de nosso país". FEDERAÇÃO CAMPESINA

Em junho de 1991, foi criada a Federação Nacional Campesina Paraguaia, a FNC, sem vinculacão à CUT, que aglutinou as várias organizações de trabalhadores. A partir daí, a luta pela terra no Paraguai toma maior impulso. Várias ações massivas são desencadeadas, através de ooupações e manifestações nas principais cidades do país. Mais de cem ocupações são realizadas, principalmente nos departamentos fronteiriços. Em Canindeyú, Corpus Christi, La Paloma, Villa Rica, San Pedro, Guairá e Itapuã, a repressão contra os agricultores é maior. A FNC está organizada em onze regionais que antes compunham a Coordenação Nacional de Agri-


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cultores do Paraguai- Conapa- e mais três organi- '--' zações, duas regionais e uma zonal de Caaguazú, San Pedro e Canavieiros de Taquari. Para Gregório Bordon, da Associação Regional Campesina de Canindeyú, ligada à FNC, a única alternativa para os agricultores sem-terra tem sido as ocupações. "A necessidade obriga os campesinos a realizar a ocupação, pois são mais de trezentas mil famílias sem-terra no Paraguai, sem contar as milhares que foram obrigadas a emigrar para a Argentina c que não têm como sobreviver sem a terra para produzir". Segundo ele, o governo de Andrés Rodrigues "acenou apenas com uma abertura para falar, ele não tem interesse em implementar a reforma agrária, c a violência continua, em toda a parte há repressão". Em relação aos brasiguaios, Gregório afirma que o problema afeta os dois lados da luta. "Porisso, estamos Eiispostos a ajudar os agricultores brasileiros a se organizar para voltar para o seu país e lutar por seus interesses, pois aqui eles estão trabalhando para garantir os interesses do imperialismo", ressaltou. Ele acredita que será preciso unir as lutas por terra dos dois países para "ajudarno regresso dos brasiguaios e na recuperação de sua identidade, como brasileiros que são". Os conflitos ocorridos entre paraguaios c brasileiros na fronteira, segundo ele, são pmvocados pelos latifundiários. "O problema não é ser brasileiro ou paraguaio, pois ambos são explorados. O problema é o imperialismo queosman)iou para ocuparas nossas terras", disse Gregório. Ele ressaltou ainda que "há muitos latifundiários com lavoura mecanizada e que produzem mais, mas nós somos os donos dessa terra e estamos sendo expulsos, ela não retomará para nós se não recuperarmos a nossa soberania", acrescentou. Gregório Bordon denuncia a existência de colonização militar no Paraguai. Segundo ele, os militares

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estão vendendo terras para brasileiros e contrabandeando a madeira, o que faz reduzir enormemente o preço do hectare, além de depredar o meio ambiente. "O Paraguai é o único país que tem colonização militar, eles deveriam ser os guardiães da soberania nacional e não administradores de terras", destacou. Um dos projetos de colonização, em implantação pelos militares, no distrito de Corpus Christi, Departamento de Caninde yú, está sob o comando do general Bernardino Cavallero. Há outros em Capyvari, no Departamento de Caaguazú, em San Pedro e outro no Chaco. "Eles venderam toda a madeira, reservaram vinte por cento das terras para os campesinos e o restante está sendo negociado com brasileiros", afirma Gregório. Para ele, a prioridade dada aos brasileiros vai gerar ainda muitos problemas: "Lá não há polícia, juiz, prefeitura, tudo é administrado pelos militares que prestam serviço aos brasileiros".

A RESISTÊNCIA CONTINUA

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Caio Benites, antigo militante da luta pela terra e da resistência a Stroessner, que esteve exilado por mais de vinte anos, interpreta a abertura política no seu país dentro de uma conjuntura de mudanças na estratégia do imperialismo noite-americano. Segundo ele, a experiência de luta dos povos em nível mundial mostrou que já não havia mais necessidade do imperialismo manter as colônias àtravés da estratégia de segurança nacional. Por isso, produziu um reacomodamento, uma reorientação, nos termos da guerra de baixa intensidade. "No Paraguai, o governo de Andrés Rodrigues responde concretamente a esse projeto do imperialismo, com uma democracia restrita, tutelada pelas forças armadas, muito mais restrita que em outros países latino-americanos, pelas condi-

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ções da estrutura econômica e social do país e, ao mesmo tempo, da debilidade das forças de esquerda, que foram praticamente descabeçadas". Segundo Cayo, as organizações de esquerda no Paraguai foram ressurgindo através dos movimentos sociais, a partir de 1979, com a greve de Itaipu, que deu início a um novo movimento sindical e, posteriormente, a um movimento intersindical que desem bocou na formação da Central Unitária dos Trabalhadores. Por outro lado, surgiu o movimento campesino, produto dos restos das Ligas Agrárias Camponesas, nascidas nos anos de 1967-68, que também foram praticamente aniquiladas nos anos de 1974-76, numa grande repressão desencadeada pelo stroessnismo. Os remanescentes desses grupos formaram o movimento campesino, algumas organizações vicinais (comunidf.des rurais) que, posteriormente, criaram uma coordenação de pequenos agricultores (a Conapa), movimentos estudantis c de profissionais, como os médicos do Hospital da Clínicas de Assunção, dando um impulso importante ao processo de luta popular no Paraguai. Isso foi o suficiente para provocar uma maior contradição no seio do stroessnismo, causando uma divisão no partido dominante, o Colorado, c um rompimento com a Igreja. "Então", afirma Caio, "para ac.liantar-se ao processo de recomposição das organizações populares, antes que essas tivessem condições política --; de rompimento do regime, o golpe veio como uma fórmula prcvent~va, com o objetivo de paralisar a luta, desativando-a e tratando de buscar consolidar o regime de democracia restrita que deu lugar a uma enorme ascenção do movimento popular, nunca visto na história do Paraguai". Esse processo, segundo ele, condensou os quarenta anos de ditadura militar. Quando parecia que no Paraguai não existia nada, não se falava em movimentos populares, a não ·


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ser algumas figuras de oposição, como Domingos Laino e outros. Na realidade, havia organizações, di versos grupos estavam trabalhando dentro do movimento social, do movimento gremial, que não apareciam como tal. Quando surgiu a abertura política, esses grupos emergiram através de várias organizações que ajudaram a desmascarar o novo regime. "Fundamentalmente a luta pela terra, que já produziu em um ano depois do golpe cerca de duzentas ocupações, mais de 180 despejos e centenas de camponeses assassinados". Segundo Cayo Bcnites, o desmascaramento do governo de Andrés Rodrigues começou quando foi criada a Coordenação de Reforma Agrária, dirigida por um coronel da Inteligência, Hugarte Ramires, logo desmascarado. "Depois formaram uma nova organização especializada para a repressão, a Força de Operação Conjunta Especializada, que também foi desmascarada e tiveram que desmantelá-la". Caio avalia que "a falta de composição dos partidos políticos tradicionais, que caíram em crise profunda e numa divisão, obrigou o exército a mostrar a cara rapidamente, intervindo nas lutas sociais, isolando o governo. Por isso, tiveram que mudar novamente sua intervenção nos movimentos populares, com outro nome, formando a Polícia de Operações Especializada. As Forças Armadas, então, trataram de assumir uma postura independente dos partidos, o que não mudou muito, pois continuam ligadas ~o Partido Colorado. O stroessnismo foi a época da militarização do Partido Colorado e da colorização das Força Armadas, que têm vfuculos muito estreitos na intervenção política dentro do nosso país". O processo de avanço dos movimentos sociais no Paraguai vem se desenvolvendo rapidamente e tende a desembocar numa coordenação das organizações


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populares, criando condições de desenvolver um processo de luta maior - recentemente foi criada a Coordenação N acionai de Luta Por Terra e Moradia, organização que dirige as intervenções c reinvidicações dos sem-teto nas grandes cidades, apóia a luta pela reforma agrária e tem coordenado dezenas de ocupações de espaços vazios nos centros urbanos. As organizações sociais no Paraguai ainda não realizaram uma análise mais profunda sobre a questão dos brasiguaios, mas há, principalmente da parte das organizações camponesas, uma disposição de intervir no auxílio do regresso dos agricultores brasileiros. Na opinião de Caio Benites, o fenômeno brasiguaio é a conseqüência da colonização acelerada do país pelo imperialismo, através da oligarquia dominante no Brasil, e está relacionada à dominação do Paraguai. "Desdeaguerra,oBrasilficouencarregadodasegurança do Paraguai, para que nunca levantasse a cabeça, e a Argentina ficou com a tarefa de manter-nos sob sua influência cultural, pelo idioma castelhano. Nunca existiu um esforço no sentido de se criar uma formação e uma educação autenticamente paraguaia, sempre fomos educados para a dependência", salientou. Os brasiguaios, segundo Caio, estão dentro desse processo de recolonização do Paraguai, iniciado com o Tratado de ltaipu, que possibilitou, juridicamente, legalizar uma vasta extensão de terra com a ocupação brasileira e a venda de terras públicas na fronteira, para permitir o avanço da colonidção. "E, para isso, a burguesia dos dois países utilizam os agricultores brasileiros para garantir seus interesses de domínios concretos, criando falsos conflitos entre os trabalhadores rurais brasileiros e paraguaios, para não permitir a unidade de interesses do setor social em relação à luta pela terra. Para isso dividem, debilitam as organizações do campo que vão avançando e se de-


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senvolvendo". Ele ressalta que uma confrontação entre brasiguaios e campesinos só vai prejudicar o desenvolvimento da luta pela terra nos dois países. Para impedir que isso ocorra, é necessário um trabalho de esclarecimento nos dois lados, para que os camponeses "não caiam no jogo do imperialismo e da burguesia local", advertiu.


ROMPENDO O ISOLAMENTO

As organizações de camponeses pela reforma agrária no Brasil e Paraguai, proscritas no período das duas ditaduras, têm hoje muitos motivos para se articula. rem. Um deles é a ação conjunta de resistência contra a repressão orquestrada pelos latifundiários e gover'- nos, que usam mecanismos idênticos contra as ocupações e acampamentos. O surgimento dos brasiguaios foi o indicativo da possibilidade dessa articulação, pois assim como o avanço do capitalismo no campo não tem fronteiras, o braço do latifúndio também não distingue a nacionalidades de suas vítimas. Os brasiguaios são hoje testemunhas vivas da tmnsposição dos limites territoriais do terror agrário implantado durante as duas ditaduras. Os milhares de brasiguaios representam, para os dois movimentos, o refor~o da luta pelo fim do latifúndio, da violência no campo, da miséria e expropriação dos pequenos agricultores, com a implantação de 'uma reforma agrária justa. Eles demonstraram ser capazes de mexer nas estruturas dos dois governos, ao mobilizar as representações diplomáticas, vários ministérios e as polícias fronteiriças. E, principalmente, '- ameaçar o latifúndio.


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Já para os dois governos, os brasiguaios representam, também, interesses comuns: para o governo brasileiro, enquanto eles permanecerem no Paraguai, não ameaçam o processo "lento, gradual e restrito" da implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária. Continuam transferindo para além-fronteira os conflitos de terra e são a "cerca viva" para o domínio colonial que o Estado brasileiro exerce sobre o povo paraguaio. Para o governo brasileiro, é preferível que o fluxo de migração para lá continue, pois dessa forma alivia as tensões nas cidades fronteiriças, surgidas com o aumento do contingente de sem-terra, incapaz de ser absorvido pelo mercado de trabalho, cada vez mais exigente de mão-de-obra especializada. Para o governo paragl}aio, por seu lado, a presença de agricultores brasileiros em seu território significa a geração de riquezas a baixo custo e mão-de-obra barata para o o desenvolvimento da agricultura. E não importa que isso custe o preço da migração das populações nativas e, conseqüentemente, a sua violenta desagregação cultural econômica e social. Até aqui, os que mais se beneficiaram desse "desenvolvimento" da fronteira foram os altos escalões do governo, sustentados pela burguesia ascendente no período stroessnista, que barganhou a soberania paraguaia pelo pregresso via "milagre brasileiro" e pelo "cavalo de Tróia" chamado Itaipu. A aceitação pâSsiva, sem restrições, à penetração brasileira, protege as estruturas do latifúndio: enquanto os milhares de brasiguaios continuarem ocupando as faixas de terra mais férteis do país, independente de suas condições de sobrevivência, o governo paraguaio ganha tempo para adiar a implantação da reforma agrária. E enquanto permanecerem por lá, ajudam a impedir que a pólvora escape do barril e seja atingida por uma fagulha de camponeses rebeldes. Para os sem-terra paraguaios e

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brasileiros, a explosão do barril é só uma questão de tempo. Para Eriberto Bobadilla, secretário de Relações Internacionais da Federação Nacional Camponesa do Paraguai, FNC, existe uma situação especial na fronteira, onde se produz a ilegalidade. "O problema tem que ser resolvido avançando a luta pela terra na fronteira. As organizações camponesas querem avançar à fronteira e, antes que os problemas comecem a agravar-se, é importante envolver setores populares e democráticos, e a partir daí criar uma consciência na população para forçar o governo a solucionar este problema. Pois é fundamental para a soberania nacional ampliar os territórios agrícolas na fronteira", afirmou. Segundo ele, para os brasiguaios é fundamental o retomo ao Brasil porque, pela extensão territorial, haveria mais condições para assentá-los nos milhares de quilômetros quadrados de terras inexploradas. "Temos definida uma posição política em relação à questão econômica: a saída dos brasiguaios vai ampliar as áreas agrícolas na fronteira e possibilitará a realização de assentamentos modelos. Com assistência técnica, e creditícia, os próprios agricultores teriam condições de produzir em grande quantidade não só soja, mas diversificar a produção em beneficio do desenvolvimento do país. Na parte social, a saída dos brasiguaios é também favorável, pois vai existir mais terra a ser reinvidicada e o governo teria condições de a~entar mais agricultores, que hoje já chegam a quatrocentos mil sem-terra e a cada ano se somam mais vinte mil, principalmente de jovens que não conseguem entrar no mercado de '--- trabalho nas cidades", prevê Bobadilla. Mas para isso haverá muita luta, principalmente com as milícias da fronteira. "Principalmente dos latifundiários entrangeiros em Canindeyú, Amambay


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e Alto Paraná. Eles estão formando grupos de matones a sue/do que atacam sistematicamente os camponeses e suas famílias e dirigentes. Na zona de Amambay, os narco-traficantes têm batalhões de matones a sue/do, que garantem as suas atividades na fronteira em cumplicidade com autoridades estaduais e nacionais do Paraguai", denunciou. Outro problema a ser enfrentado pelas organizações camponesas do Paraguai são as colonizações que vêm sendo desenvolvidas pelo exército paraguaio. Segundo Bobadilla, elas devem ser extintas porque estão à margem da lei, pois foram criadas por decreto. "A única instituição criada por lei para administrar questões agrárias é o IBR. Por isso, queremos que os bens dessas colonizadoras sejam transferidos ao IBR que, embora não funcione bem, é o responsável. Os mais de quarenta mil hectares de terra, em posse da Colonizadora Número Um, em Bernardino Cavallero, no departamento de Canindeyú, distrito de Corpus Christi, colônia Yjhovy, não são aceitos pelos agricultores, pois têm que submeter-se às leis ditadas pelos militares (obediência à hierarquia militar, proibição de organização e trabalho coletivo), pois consideram que eles não têm atribuição para administrar a distribuição da terra", afirma Bobadilla. Segundo Egídio Bruneto, membw·da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (do Brasil), os brasiguaios, enquanto continuarem nesta COI)dição, não são jlpenas um contingente de sem-terra. "E um povo sem pátria em busca de sua cidadania. E, guardadas as proporções, estão nas mesmas condições do povo palestino, pois no Paraguai não têm condições de ter sua terra e continuam com a referência cultural brasileira. Poucos se naturalizaram, a maioria ainda não possui documentos de migrante. Muitos, pela teimosia em continuar como


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brasileiros, atravessam a fronteira para casar e registrar os filhos no Brasil". Na análise de Egídio, se depois de algumas décadas os brasiguaios ainda não conseguiram a cidadania paraguaia, "aqui continuam não sendo reconhecidos como brasileiros porque o Estado não lhes dá condições de regresso. Parao dirigente doMST, "eles estão num vácuo histórico, passaram por duas ditaduras e agora, com a abertura política e a redemocratização dos dois países, procuram voltar ao Brasil da forma que lhes é mais familiar, isto é, migrando- desta vez em regresso- na busca de terra para produzir". Esse esforço também é motivado pelo fato de que seus filhos, além de não terem a esperança de se afirmarem como agricultores no Paraguai, não são paraguaios, embora nascidos lá. E, também, não são brasileiros, pois mesmo registrados aqui, não nasceram e não foram criados no Brasil. "Esta falta de identidade é angustiante para os jovens, que cresceram na expectativa do regresso à terra de seus pais", afirma Bruneto. O avanço da modernização da agricultura na fronteira paraguaia está reproduzindo o mesmo processo ocorrido no Brasil, que estimulou a migração para lá. "Os brasiguaios terão que migrar novamente e, na medida em que o movimento campesino vai crescendo, a disputa pclü espaço no mercado agrícola começa a se esgotar", prevê Egidio. Segundo ele, as poucas terras férteis do Paraguai já estão ocupadas por estrangeiros e é por essa terra ql.)e os camponeses paraguaios estão lutando. Voltando ao Brasil, os brasiguaios irão se integrar à luta pela terra. "Aqui, ao contrário do Paraguai, existe muita terra ociosa e mal aproveitada, pronta para se tomar produtiva nas mãos dos sem-terra". Por outro lado, não há mais terras fiscais (públicas) no Paraguai. Até 1962 existiam 8.500.000 hecta-

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res de terras públicas. Em 1989, o IBR não possuía mais nenhum título. "Elas foram distribuídas aos altos escalões do governo e seus amigos latifundiários e empresários brasileiros", acrescenta Bobadilla. Ele ressalta que os camponeses paraguaios têm direito à terra, assim como os brasiguaios têm o direito de voltarem para o seu país. "Por isso as organizações camponesas terão que ampliar suas forças em coordenação com as organizações populares no Brasil, para debater o problema c lutar conjuntamente pelo repatriamento dos brasiguaios e pela ocupação dessas terras por camponeses paraguaios". AS MILÍCIAS DO LATIFÚNDIO

Entretanto, os brasiguaios terão que enfrentar a militarização da fronteira, mais ostensiva desde a vinda dos primeiros grupos, e as milícias dos latifúndios, que se vêem ameaçados cada vez que um acampamento é armado na região. Eles reforçaram a segurança das áreas contratando mais jagunços. Um a parte da segurança na fronteira é feita pelos pistoleiros armados, a outra é feita pela polícia da fronteira e pelo Grupo de Operações de Fronteira- GOF, criado pelo governador Marcelo Miranda, do Mato Grosso do Sul, coincidentemente· depoi$ do -surgimento dos brasiguaios, para reprimir o contrabando e o tráfico de drogas, mas que atua também para ajudar a reprimir qualquer movimento de at;ricultores nessa área. Em 1991, a imprensa paraguaia denunciou o GOF por estar atuando como esquadrão da morte. Seus membros seriam os responsáveis pelo assasinato, no dia 26 de abril, do radialista Santiago Leguizamon. Ele vinha apoiando o movimento campesino e as ocupações recentes ocorridas no Departamento de Amambay, além de denunciar a existência de planta-


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ções de maconha na região, o tráfico de drogas, contrabando, roubo de carros e assassinatos encomendados pelas quadrilhas. Leguizamon era proprietário da rádio Mburucuyú, de Pedro Juan Caballero, capital do Departamento, que faz divisa com a cidade de Ponta Porã, no sul do Mato Grosso do Sul. O assassinato do jornalista desencadeou uma série de denúncias na imprensa paraguaia sobre a atuação do GOF como grupo de extermínio. Em matéria publicada no dia 15 de maio de 1991, o jornal Correio do Estado, de Campo Grande, afirma que a decisão de abrir inquérito no lado brasileiro (para investigar a morte do jornalista) foi tomada pelo juiz criminal, após a publicação de uma matéria no jornal ABC Colar, de Assunção. Citando o jornal paraguaio, a matéria diz que fontes da polícia secreta paraguaia apontam como autores do assassinato pessoas identificadas como membros do Grupo de Operações de Fronteira, chamado de Esquadrão da Morte pois, segundo fontes, "os membros do GOF estão acostumados a matar, já que sua tarefa específica é eliminar delinqüentes reincidentes na fronteira( ... )". O jornal paraguaio indicou também que a "polícia paraguaia suspeita que um dos motivos pelos quais a polícia federal brasileira se mostra muito relutante em colaborar para o avanço das investigações, é o CUill'1ccimento de que os responsáveis pelo assassinato seriam membros do Esquadrão da Morte. Segundo o jornal, "o coronel da reserva, Adibf1assad, chefe do GOF, negou categoricamente envolvimento de sua equipe. O coronel resumiu o caso como sendo "conversa fiada"( ... ). "Isso tudo é problema deles, porque tinha alguém acusando e os acusados eram todos do Paraguai". O GOF é a cristalização de um projeto que vinha sendo idealizado, há décadas, para acabar com a

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criminalidade na fronteira. Nas décadas de cinqüenta e sessenta, a violência na divisa com o Paraguai, era considerada "espontânea". A facilidade de se furtar à responsabilidade por atos criminosos era maior que em outras regiões e proporcionava uma certa violência que era absorvida pela população como modus vivendi (numa disputa entre duas pessoas, onde uma era assassinada, o criminoso atravessava a fronteira e não respondia pelo crime). Essa perspectiva de impunidade gerava a violência, mas não chegava a provocar um desequilíbrio, e era considerada dentro dos parâmetros normais das regiões de fronteira. Ao lado disso, a atividade ilícita, como o contrabando, o descaminho (passagem de produtos sem recolher tributos) e o tráfico de entorpecentes em pequena escala, também criaram uma mentalidade de desobediência civil né! população. A organização do contrabando em nível de investimento empresarial, o surgimento do tráfico de drogas pesadas em larga escala, a necessidade de contratação de mão-de-obra criminosa para operar nesses negócios, num mercado florescente e compensador de comércio de canos roubados no lado paraguaio, transformaram o perfil da fronteira. Abandonou-se a atividade ilícita de sobrevivência para a atividndc ilícita com objeti·vos de lucros cada vez maiores, num Estado atrasado, com deficiência de recursos frnanceiros e uma polícia aparelhada com trinta anos de atraso. A impossibilidade crônica de se dar combate ao crime foi o caldo de cultura em que floresceram organizações como o GOF. A impotência do Estado, para fazer face ao crime e à criminalidade crescentes, proporcionou a criação de uma estrutura subordinada diretamente ao secretário de Segurança, ou seja, ao governo estadual. Extremamente discreto nas suas ações para o combate da


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criminalida.de, esse tipo de organização não tem praticamente que dar satisfação de seus atos. Na prática, em muitos casos, não prende, abre inquérito e encaminha os criminosos ao juiz, como é a norma. Mas os eliminam, pois têm know-how para assassinar. E podem ser utilizados para vender proteção, pois recebem uma espécie de pagamento de segurança exteffla de alguns latifundiários. No decorrer dos últimos três anos, foram várias as denúncias na imprensa sobre as vinculações do GOF com violência contra a vida. Um relatório da OABMS, de 1991, embora não acuse a organização, manifesta a sua preocupação pelo fato de que nos últimos sete anos, mais de 500 cadáveres foram deixados na faixa de fronteira. Na região próxima à fronteira com Aral Moreira e.Paranhos, famfiias paraguaias tinham como forma de vida o sepultamento de cadáveres desovados pela polícia brasileira em território guarani. O GOF surgiu, enquanto estrutura organizada, na gestão do ex -secretário de Segurança Leal de Queirós, que pregou abertamente a eliminação física de criminosos. O GOF, em que pese as acusações, continua em operação e já está atravessando o terceiro governo, com Pedro Pedrossian. Diante destas evidências, o dirigente do MST, Egídio l3runcto, conclui que existe um esquema muito bem montado na fronteira para camuflar e proteger contrabando, roubo de carro, madeira e tráfico de drogas. É um poder próprio, dentro e fora da região, muito parecido com o narcotráfico na Colômbia. À medida em que os agricultores se articulam, põem em risco esses mecanismos, podendo desnudá-los. Mexem com a estrutura agrária e política criada para lhes dar uma fachada legal. Para Bruneto, não dá para esquecer que o latifúndio armado é um dos braços de sustentação dos governos, estaduais e federais, nos dois países.


NOVO CERCO AOS BRASIGUAIOS

Catuetê, Paraguai, a cem quilômetros da fronteira com o Brasil, município de Sete Quedas, sul do Mato Grosso do Sul. As chuvas que caíram durante toda a sexta-feira, dia 22 de maio de 1992, atrapalhou os planos das famílias de agricultores brasileiros de retomar ao Brasil naquele dia. Os caminhões já estavam contratados, os mantimentos e utensílios domésticos ensacados. Mas a lama que cobriu as estradas impediu que a caravana saísse e deixou as famílias "em meia viagem". Eles já tinham entregado as terras arrendadas, as casas e o que sobrou da colheita para pagar as dívidas e juntar recursos para o retomo. O grupo da Linha São Pedro se reúne no sítio de Fredo Herman, 47 anos, gaúcho de Santa Rosa, para esperar notícias dos outros grupo~ que também já estavam prontos para a partida. O único meio de comunicação entre eles, capaz de percorrer os caminhos de lama e as estradas esburacadas, é uma moto, pilotada por Valdir Correia, 25 anos, ftlho de agricultor paulista, criado nas fazendas de invernadas da fronteira. Vencendo a lama, ele percorre os grupos levando notícias e ajudando a decidir sobre o melhor momento da saída do comboio. Em cada local que


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chega, dezenas de famílias se reúnem para trocar informações e notícias dos outros companheiros, pois, só daquela região, oito grupos, com uma média de setenta famílias cada, já estão prontos para sair. Valdir faz a ponte também com os grupos de outras regiões das fronteira, mas a essa altura, a chuva interrompeu o contato. Além do mau tempo, a falta de dinheiro para fretar os caminhões para o transporte das famílias também dificulta o retorno. Cada caminhão vai custar de oitocentos mil a um milhão de cruzeiros para levar as famílias até o município de Amambai, onde planejam armar acampamento na fazenda Itapoty que, segundo eles, além de improdutiva, está com documentação suspeita. Há mais de três meses as famílias vêm se preparando, mas.não conseguiram recursos suficientes para o frete dos caminhões com a venda de móveis, animais, e algum objeto de valor, por falta de comprador. Os que conseguiram alguma quantia, comercializaram bicicletas, fogões, camas, vacas de leite e o que restou da produção, mas foi insuficiente. No sábado à noite, Valdir vai à casa de Amo Lenhardt, 4 2 anos, gaúcho de Três Passos, que está no Paraguai desde 1976. Ali, outro grupo de famílias se encontrou para debater os últimos acontecimentos. "É só a chuva passar e o sol secar um pouco as estradas, que já vai dar para carregar o caminhão", planeja Lenhardt ao redor do fogão de lenhW, com uma cuia de chimarrão na mão, enquanto repassa para Valdir as decisões tomadas na reunião. No domingo de madrugada, Valdir segue para Puerto Adélia, a aproximadamente trezentos quilômetros, fronteira adentro, já na divisa com o Paraná, próximo ao lago de ltaipu. O percurso é difícil, e é necessário passar por estradas dentro de fazendas. Entre elas, a fazenda Ibel, que leva


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mais de quarenta minutos para atravessar. No "fundão", 350 famílias, a maioria descendente de alemães, há mais de três dias estão com as mudanças prontas, se - alimentando de arroz, feijão e mexericas. As crianças dormem no chão, pois até as camas foram vendidas. O caminhão, contratado para sexta-feira, foi dispensado e não há mais tempo para encontrar outro antes do sol, que começa a aparecer, secar o barro das estradas. Na impossibilidade de reunir todo o grupo, por causa dos atoleiros, Valdir percorre casa por casa e combina que os caminhões já acertados para levar os outros grupos voltarão para buscá -los. Na linha Pira y, João Alves Domingos Neto, de 41 anos, paranaense de Marechal Cândido Rondon, fica responsável por reunir as famílias, assim que os veículos retomarem, no máximo na segunda-feira. No barraco de chão batido onde mora, só a cama está armada, no meio dos sacos de ·mudança, para sua mulher, Ana Maria de Oliveira, 33 anos, grávida de oito meses e meio, acamada há mais de três meses, com anemia. A última vez que ela conseguiu atravessar a balsa da Puerto Adélia para Cândido Rondon, há mais de quatro meses, o médico lhe aplicou sangue e recomendou internação. "Mas não dá para deixar as crianças sozinhas em casa, é muito longe e não tem comunicação", conta ela, que não se lcmbra ·du nome da cidade paulista onde nasceu. Teve oito filhos, "mas só quatro são vivos, sempre fiquei muito doente e eles já nasciam fracos", acrescenta. Ela espera) que o próximo ftlho nasça no Brasil. "Lá tem mais recursos", diz com esperança. À tarde, Valdir retoma, evitando os atoleiros, a ,. tempo de encontrar, ao anoitecer, as famílias da Linha São Pedro carregando as mudanças. Dali sairá um caminhão apenas, o "trovão azul", e muita coisa vai ficarparatrás. Oimportanteéiromáximodepessoas.


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A mulher de Fredo, Zuleide Quaquer, de 40 anos, distribui laranja para as crianças enquanto toma chimarrão com as mulheres. Ela e o marido vão ficar, pois ainda não conseguiram pagar ao banco Paraguaio a hipoteca do sítio de 450 hectares: "faz dois anos que estamos com essa dívida e já entregamos animais, dois tratores e uma parte da terra, mas a cada ano que passa ela fica inaior", explica Zuleide. "Nesse tempo, a produção foi toda para pagar as contas, não conseguimos comprar nem roupa no final de ano". Ela se preocupa também com os estudos dos filhos. "Eles falam alemão em casa, português com os vizinhos e espanhol quando iam na escola, por isso não aprenderam nada". Para ela, a única saída é voltar ao Brasil. "Pelo menos lá a gente vai estar em cima da nossa terra, com mais futuro. Aqui, só os fazendeiros que têm mais influência e dinheiro se deram bem". Zulcide estocou queijo, reuniu ovos, assou pão, passou algu- mas mudas de roupas, ensacou arroz, feijão, milho pipoca, banha, duas panelas, facas, uma chapa de fogão e arrumou a "matula" numa caixa de madeira para o filho menor que segue com os vizinhos. Com ela vaificarNoemiPires, de 33 anos, também gaúcha de Erval Seco, com parte dos onze filhos. O ma rido e os filhos maiores vão na frente para preparar os baíracos. T~nto ela como os filhos não possuem nenhum tipo de documentos. "A gente nunca conseguiu reunir dinheiro para pagar as despesas com a documentação. No Brasil, vai ser a primeira coisa que vou fazer", planejava. No grupo de Amo, o problema é o mesmo, não há transporte para todos. Em uma rápida assembléia, eles ..... decidem deixar a maioria das mudanças. Levarão alimento para dois dias e seguirão com o maior número de pessoas possível no único caminhão que


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conseguiram contratar. Um grupo vai ficar para cuidar dos pertences dos companheiros e Amo decide ir sozinho. A sua mulher, Marlene Lúcia, de 31 anos, e três filhos ficam para a próxima viagem. Às oito horas da noite os caminhões seguem, deixando na beira da estrada dezenas de famílias à espera da segunda viagem. Ao chegarem na entrada de Catuetê, esperam os outros caminhões. De lá, evitando os atoleiros das estradas oficiais, continuam pelas estradas clandestinas, mais conservadas, usadas pelos arrastadores de carros e contrabandistas. Na moto, Valdir vai à frente de batedor, conduzindo o grupo, evitando os postos de controle da polícia paraguaia. Durante o percurso só falam o necessário, de vez em quando a moto se afasta sem dar sinal. É um momento de alívio, pois significa que não há problemas no caminho. A expectativa de romperem a fronteira sem problemas e a chuva que começa a cair novamente silenciam a todos. O comboio não encontra nenhum outro veículo no percurso, e até mesmo as aduanas e os postos estão com poucos soldados que se agasalham do frio dentro das guaritas. Cinqüenta quilômetros antes de passar a fronteira, Valdir se afasta novamente dos caminhões e segue para Sete Quedas para aguardá -los e encontrar os outros grupos que deverão romper a divisa por outras estradas. Uma hora da manhã: dois caminhões atravessam a fronteira e estacionam na estrada>internacional· que separa os dois países. Por precaução, não entram em território brasileiro antes de se juntar aos outros caminhões que estão para chegar. Dos dois lados da estrada, as cidades estão em silêncio, nem mesmo os postos de gasolina estão abertos. Há uma pequena pausa para descanso. As crianças, que não dormiram durante a viagem, reclamam por água e comida. Mas é preciso


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continuar o trajeto por mais cerca de duzentos quilômetros até Amambai e, de lá, reunir-se aos outros grupos para, juntos, seguirem até a fazenda.

FRONTEIRA FECHADA Ao passarem pelo posto da Polícia Rodoviária Estadual, na entrada de Amambai, sete caminhões são detidos, os motoristas têm seus documentos c os carros apreendidos. O encontro com os outros grupos é retardado. Enquanto isso, um ônibus com parte do grupo atravessa a fronteira, via Ponta Porã, e segue até a entrada da fazenda e é recebido à bala por pistoleiros e soldados da Polícia Militar. O grupo armado inicia perseguição ao ônibus com uma caminhonete D-20 e, por duas vezes, disparam contra os agricultores e obrigam o veículo a seguir até a cidade. Ao amanhecer, quatrocentas famílias já estão detidas ao lado do Batalhão da Polícia Militar e num campo de futebol de Amambai. Elas só seriam liberadas, sem os veículos, dez horas depois. A PM apreendeu facas, machados e foices entre os pertences dos agricultores. Durante o dia, enquanto uma comissão recorria ao prefeito da cidade, Anilson Rodrigues de Sousa, do PT, para intermediar as negociações com a PM, liberai os caminhões e deixar a fronteira aberta para o regresso das outras famílias, a cidade foi tomada por grupos de fazendeiros e jagunços armados. Eles circularam ao redor ~as famílias e em frente à prefeitura, onde acontecia a reunião, e se juntaram aos soldados da PM que cercavam o restante dos agricultores na praça da cidade, onde aguardavam o retomo da comissão. O clima de tensão obrigou os comerciantes a fechar seus estabelecimentos. O sub-comandante do Quarto Batalhão da PM de Ponta Porã, Major Edson, já esperava as famílias

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desde a madrugada. Ele foi acordado pelo secretário de Segurança, José Riskhallah, que o mandou seguir L com um reforço de vinte homens, para Amambai, pois estava acontecendo "mobilização de sem-terra na fronteira". Ainda pela manhã, um grupo de agricultores e os caminhoneiros foram ouvidos na delegacia de polícia, onde o delegado José Fernandes Machado se recusou a registrar a ação dos jagunços, explicando que iria "dar muita confusão". À noite, depois de muita negociação, as famílias, 1.200 pessoas, entre elas seiscentas crianças, foram alojadas numa área da prefeitura, reservado para um conjunto de casas populares, ainda em construção, próximo ao quartel do exérei to. Os caminhões só seriam liberados quatro dias depois, com o pagamento de multa. A REAÇÃO DAS MILÍCIAS

A chegada de novo grupo de brasiguaios, desta vez em Amambai, cidade de reduto tradicional do latifúndio da fronteira, provocou uma reação orquestrada dos fazendeiros. Desta vez eles colocaram nas ruas, sem nenhum disfarce, suas milícias armadas em toda a região do cone sul do Estado. Grupos de jagunços, com escopetas e metralhadoras automáticas, ficaram a postes na entrada das áreas, ~nquanto outros passaram a circular ostensivamente na cidade, exibindo seu arsenal. Além de suas milícias, os latifundiários contaram com mais dois albdos. O reforço da PM, enviado de Ponta Porã, passou a vigiar "todos os pontos estratégicos da fronteira", para impedir oretomo de mais famílias, segundo anunciou o coman'--' dante do Policiamento do Interior, Coronel Edson Borges. Ele afirmou ser "ilegal" a passagem de tanta gente de um país para o outro, "sem prévio aviso". O outro aliado foi o GOF. O grupo já vinha, pelo menos

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transportou as famílias, José Alves de Vasconcelos, de 39 anos, foi assassinado a sangue frio por um pistoleiro. Ele vinha sendo seguido e ameaçado por apoiar o regresso dos brasiguaios. No dia seguinte, os acampados fizeram uma passeata até a Câmara Municipal para pedir o apoio dos vereadores ao projeto de emergência, encaminhado pelo prefeito, solicitando autorização para liberar recursos para alimentação e remédios para os acampados. Encontraram as portas da Câmara fechadas. Enquanto as famílias percorriam as ruas da cidade, vigiados pela PM e jagunços, os comerciantes iam fechando as portas. Dois dias depois, na noite do dia 14, um grupo de pistoleiros a cavalo fizeram vários disparos no acampamento, causando pânico entre as famílias. Houve mais duas tentativas dos acampados para demonstrar à população da cidade que, ao contrário do que diziam os vereadores, não eram marginais e não iriam pôrem risco a cidade, e que precisavam da ajuda da população, pois a fome e doenças já se faziam presentes. Na primeira vez, foram às escolas para conversar com os alunos e professores, mas não foram aceitos. E, na outra, foram em comissão numa das sessões da Câmara de Vereadores pedir a palavra, não foram ouvidos. Mas apesar da rejeição da população, reforçada pela imprensa c pela indiferença das autoridades do Estado, os brasiguaios continuaram rompendo a fronteira de volta para casa. Vinham à pé, de bicicletas, em '-- ônibus e caminhões, quansJo conseguiam despistar os postos policiais das rodovias. O grupo de Puerto Adélia, onde ficou o maior número de famílias para a segunda viagem, só conseguiu retomar quinze dias L depois. Ana deu à luz a uma menina, sozinha em seu barraco, numa tarde fria e chuvosa. Quando foi se banhar no rio, após o parto, já não tinha mais forças. Os filhos maiores tentaram, sem conseguir, tirá-la

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para fora dalamada beira do rio, onde ficou caída, até "-' ser socorrida pelas vizinhas que ouviram os gritos das crianças. "A gente se acostuma com o sofrimento", diz ela protegendo a menina do frio, "mas aqui a gente pode ter mais esperança, não estamos mais abandonados igual lá no Paraguai". A história de Ana não é a única no acampamento. Há dezenas de gestantes e cerca de duzentas crianças com menos de um ano de idade. "O Brasil já nos rejeitou há mais de três décadas, quando nos arrancou da terra e nos obrigou a buscar refúgio no Paraguai. Hoje o Paraguai, da mesma forma, não nos dá condições de sobrevivência e uma cidadania digna. Estamos sem terra e sem pátria. Nem brasileiros (pois não temos nossa cidadania reconhecida) c nem paraguaios, pois lá somos estrangeiros. Somos os brasiguaios e lutamos pelo direito de voltar ao Brasil e dar ao~ nossos filhos uma pátria que os receba", afirmam os acampados em uma carta endereçada às entidades de defesa dos direitos humanos, nacionais e estrangeiras, no dia 26 de maio. "Por que as autoridades brasileiras não nos dão o direito de retomar para o nosso país? Por que nos tomam instrumentos de trabalho para 'evitar' conflitos, e não desarmam os jagunços e os fazendeiros, que estão com metralhadoras c escopetas c agem com a proteção da própria PM? Será que somos menos cidadãos brasileiros que os jagunços e os fazendeiros que nos ameaçam?( ... ) A quem dcv) mos reclamar os nossos direitos de cidadãos, de retomar para nosso país e continuar produzindo na terra de onde tiramos nosso sustento?", perguntam os agricultores. A comissão dos brasiguaios finaliza a carta afirmando que não pretendem ficar embaixo de lonas vivendo na ociosidade, "se não tivermos o apoio e a garantia dos nossos direitos, romperemos a primeira cerca, não só a da


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fronteira, para fugir da marginalidade e da miséria que querem nos atirar". Até o final de outubro, morreriam duas pessoas e nasceriam 28 crianças. O SOCORRO DA CRUZ VERMELHA

Uma equipe de voluntários da Cruz Vermelha no Estado tentou dar atendimento emergencial às famílias, uma vez que o governo estadual negou assistência a elas, alegando que não eram sul-mato-grossenses e, por isso, não tinha a obrigação de atendê-las. Os voluntários, que permaneceram cinco dias no acampamento, encontraram um "quadro triste e estarrecedor, pois aproximadamente dois mil seres humanos, brasileiros, estão vivendo em situação deplorável, expostos à fome, doenças, chuva e ao frio, morando em barracos de plástico, dormindo no chão cobertos por trapos, bebendo água contaminada e vivendo em total promiscuidade, gerando e transmitindo uma série de doenças", denunciaram os voluntários. A entidade contabilizou vinte adultos e sessenta crianças com broncopneumonia, casos de leishmaniose e hanseníase, surto de gripe e diarréia entre as oitocentas crianças, trezentos adolescentes e setecentos adultos. A chefe do Departamento de Voluntários, Maria Emília Leão Martins, observou que o Estado estava cometendo o crime de omissão de socorro às famílias. "Elas estão sendo discriminadas no atendimento médico e totalmeute abandonadas pelas autoridades estaduais. A subnutrição é visível entre as crianças e poderá aumentar os casos de doenças, podendo se agravarnas condições em que estão vivendo", alertou. Os voluntários foram discriminados por atender as famílias e só conseguiram que os doentes fossem atendidos no hospital da cidade depois que ameaçaram denunciar os médicos por omissão de socorro.


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Durante uma passeata dos acampados no centro da cidade para pedir apoio à população, a equipe realizou vinte atendimentos no percurso, principalmente de crianças com broncopneumonia e infecção intestinal. "O mais triste foi ver a cidade inteira fechar as portas G para a passagem dos brasiguaios que só pediam solidariedade", afirmou Maria Emília. A presença da Cruz Vermelha no acampamento não foi o suficiente para minimizar os problemas dos acampados. A ausência total de infra-estrutura e remédios no acampamento e nos postos de saúde impediu que os voluntário pudessem realizar seu trabalho. E a estrutura de atendimento médico da cidade não suportou o aumento da demanda e começou a entrar em colapso em pouco tempo. A saída encontrada pelo secretário de Saúde do município, Sandro Arthur Beilner, foi encaminhar os doentes, alguns em estado grave, outros portadores de doenças infecto-contagiosas como hanseníase e tuberculose, para Campo Grande, em dois ônibus da prefeitura, aos cuidados da Cruz Ver- L melha. Amam bai recebeu de uma hora para outra um aumento populacional de oito por cento de pessoas já debilitadas pela fome e que nunca tiveram acesso a qualquer tipo de asistência médico-odontológica. "Esse estado,já precário, se agravou em conseqüência das condições do acampamento. Os três hospitais da cidade, todos conveniados com o Inamps, não suportaram a demanda excessiva, pois não tiveram nenhuma suplementação de)recursos e nem de pessoal. Por G outro lado, o governo estadual também fez vistas grossas para situação, e a saída foi pedir socorro à Cruz Vermelha", explicou Sandro Arthur. Na primeira semana do mês de julho, de 1992, a sede da entidade, em Campo Grande, foi transformada em ambulatório médico e recebeu cerca de duzentas pessoas doentes, a maioria crianças. Lá elas passaram

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por uma triagem e foram encaminhadas aos hospitais, sob a proteção dos voluntários. Entre elas estavam Ana Domingos, com anemia, e sua filha, Elisete, com quase dois meses de vida, com problemas respiratórios. Os doentes graves foram internados, e os que necessitavam de tratamento ambulatorial medicados e alimentados na sede da entidade durante o dia. E à noite, alojados nos sindicatos dos trabalhadores Públicos em Saúde e Previdência - Sindisprev, e em Telecomunicações - Sintel. Foi preciso armar barracas de lona no quintal da sede para receber os doentes. "À medida em que iam melhorando, retomaram para o acampamento para continuar a sua luta pela sobrevivência", registraram em um relatório do dia 15 de julho, Maria Emília c Herivelto Ribeiro Bezerra, chefes dos departamentos de Educação e Saúde e de Voluntários da Cruz Vermelha. Nesta data, a entidade aind·a tinha sob seus cuidados, 18 pessoas internadas na Santa Casa, em Campo Grande. VOLÊNCIA OFICIAL

Indiferente à situação dos acampados e aos apelos de entidades nacionais e internacionais para que prestasse ajuda humanitária às famílias, o governo do Estado, através do secretário de Segurança José Rizkallah, nomeia o delegado especial, João Batista de Almeida, para comandar a repressão aos acampados e instaurar um inquérito policial para inveSj:igar a responsabilidade do regresso dos brasiguaios. O acampamento dos brasiguaios é cercado por policiais militares e os agricultores proibidos de deixar o local, sem antes passar pelo seu controle. E mesmo impedido pelos brasiguaios de entrar no acampamento, o delegado passa a fazer ameaças de prisão e despejo e a usar o terror psicológico sobre as famílias. De megafone em

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punho, ameaça várias vezes por dia - e à noite invadir o acampamento para prender as lideranças. Os acampados são acordados várias vezes no meio da noite, com o anúncio da invasão do acampamento pelo delegado, que em seguida era suspenso. Isso obrigou as famílias a permanecerem em vigília e tensão constantes. O cerco ao acampamento ocorreu logo depois dos brasiguaios recorrerem ao saque de um caminhão boiadeiro, no dia 16 de julho, de onde retiraram quatro animais para alimentar o acampamento. O mesmo já tinha ocorrido no acampamento de trezentas famílias de sem -terra no município de Rio Brilhante, instalado às margens da BR-163, que liga Dourados a Campo Grande. Os agricultores saquearam uma carga de frangos resfriados no dia 30 de junho e, quase um mês depois, no dia 29 de julho, um carregamento de óleo de soja, que pretendiam negociar com o Estado em troca de alimentos básicos e remédios. A repressão não se fez esperar. No dia seguinte, quatrocentos policiais do Pelotão de Choque da PM invadem o acampamento usando bombas de efeito moral, metralhadoras e cacetetes. Ferem a tiros duas pessoas, espancam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, prendem 27 acampados, dos quais nove pcmíeneccram presos. O major Navega, comandante · da operação, ordenou a apreensão da pouca alimentação que ainda restava dos acampados e seus instrumentos de trabalho e uso cotidiano, como facas, tesouras, lâminas, garfos, serras, machados, foices, enxadas etc. Toda a operação foi acompanhada à distância, com o auxílio de binóculos, por membros da UDR (União Democrática Ruralista), entidade dos grandes fazendeiros da região. Esta não foi a primeira ação violenta sofrida pelos acampados de Rio Brilhante. O grupo foi despejado violentamente no dia 17

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de maio, de um latifúndio da família do ex-prefeito de Campo Grande, Lúdio Coelho, membro da oligarquia rural do Estado. O despejo foi realizado por policiais PMs, trazidos de Campo Grande e de Dourados, mas comandado pelos jagunços dos fazendeiros da região-, transportados até a área em aviões. Nem mesmo a imprensa que fazia a cobertura do despejo foi poupada. Houve agressão a cinegrafistas e repórteres. Enquanto os acampados eram despejados, sob forte chuva, um grupo de fazendeiros e jagunços seqüestrou vinte agricultores. Eles permaneceram presos por mais de trinta horas numa invernada da região, onde foram humilhados e torturados. Entre eles estava Egídio Bruneto, da direção nacional do Movimento dos Sem Terra. No dia seis de agosto, Joel de Oliveira, liderança dos brasiguaios, é retirado por policiais de dentro do carro do assessor de imprensa da prefeitura de Amambai, MárioMarcio Cabrera, depois de regressar de uma reunião com entidades na sede da prefeitura. Joel, que é deficiente físico e possui somente um rim, permaneceu mais de uma semana incomunicável na delegacia da cidade, numa cela com mais nove presos comuns. Foi preciso a intervenção da Anistia Internacional para que ele pudesse receber visitas, até mesmo do seu advogado. No dia seguinte, o juiz de Amam bai, Odenilson Roberto de Castro decreta a prisão de mais treze lideranças, entre elas Valdir Correia e Egídio Bruneto, por formaçãp de quadrilha. No mesmo dia, o delegado Joel Carlos Mendes, do Grupo de Operações Especiais, invade a secretaria do Movimento dos Sem Terra, em Campo Grande, sem mandado de busca, para prender outras lideranças. No dia 12 de agosto, Dom Luciano Mendes, presidente da CNB B (Conferência Nacionai dos Bispos do Brasil), de passagem pelo Estado, visita os acampados

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em Rio Brilhante e os agricultores presos em Dourados. Ele mantém contatos com os ministérios da Ação Social, Justiça, Agricultura e Reforma Agrária, Relações Exteriores e com o governo do Estado, sem obter nehum resultado. O mesmo aconteceu com vários deputados estaduais c federais de outros estados que tentaram interceder a favor dos acampados junto ao governo do Estado. A Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, preocupada com os brasiguaios, pois grande parte deles são gaúchos, enviou uma comissão oficial ao Mato Grosso do Sul para verificar pessoalmente a situação. Os deputados Antônio Marangon, do PT, Darci Pompeu de Matos, do PDT, José Maria, do PTB c Beto Albuquerque, do PSB, chegaram ao Estado no dia 25 de agosto e foram direto para o acampamento dos brasiguaios em Amambai, onde permaneceram por cerca de três horas ouvindo os relatos dos agricultores. No mesmo dia, os deputados tentaram uma audiência com o governador Pedro Pedrossian mas não foram recebidos. Os deputados federais Luci Choinask, de Santa Catarina e Adão Preto, do Rio Grande do Sul, ambos do PT, também não foram atendidos. O tratamento policialesco dispensado aos semterra e agricultores em regresso ao Brasil, sob o comando do sccrt:tário de Segurança Públ;ca, José Rizkallah, reforça a política adotada pelos governos anteriores em relação aos brasiguaios e faz parte da estratégia de, através 9a repressão, acabar com as organizações populares no Estado, principalmente a organização da luta pela reforma agrária. Pedro Pcdrossian, a maioria dos seus auxiliares e grande parte do legislativo e do judiciário, são latifundiários ou seus representantes. Os proprietários das principais redes de televisão, rádio e jornais, também são latifundiários.

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Os interesses dos chefes políticos e seus séquitos repousam nas benesses que tiram ao utilizar as instituições públicas para defender e proteger o latifúndio criminoso. Principalmente na fronteira, onde a lei segue e obedece a truculência do mais forte. Onde a divisa entre a criminalidade da violência e a sua institucionalização é estabelecida e moldada de acordo com as conveniências políticas do momento e a subserviência de juízes e delegados. TRABALHO ESCRAVO E SUICÍDIOS A quantidade e a diversidade da violência no campo em Mato Grosso do Sul, fez com que o Fórum Nacional Contra a Violência no Campo, coordenado pela Procuradoria Geral da República e pela Ordem dos Advogados do Brasil, se reunisse em Campo Grande, nos dias 16 e 17 de outubro. O Fórum já vinha recebendo diversas denúncias de trabalho escravo de trabalhadores rurais e índios em usinas de álcool, carvoarias e fazendas. Mas foram as denúncias em relação à segregação imposta pelo governo estadual aos brasiguaios e sem-terra acampados e a perseguição policial às lideranças, que impuseram a necessidade do Fórum ser instalado no Estado. O sub-procurador Geral da República, Augusto Ribeiro da Costa, os procuíadorcs João Eliofar de Jesus c Wagner Gonçalves, o representante da OAB Nacional, Sérgio Servolo, representantes da OAB do Estado, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Campo Grande, sindicatos, movimentos populares e diversas entidades de apoio, presentes no Fórum, ouviram dezenas de relatos de vítimas e testemunhas de trabalho escravo, perseguições, torturas, mortes e desaparecimento de índios e agricultores no interior de destilarias de álcool, carvoarias e fazendas, praticados por policiais, jagunços e milícias particulares .


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A violência contra os povos indígenas também foi debatida no Fórum. Principalmente os Guarani e Kaiowá, as maiores vítimas da voracidade do latifúndio. Expulsos de seus Tekohás, lugar onde viviam, os índios foram sendo confinados em "reservas" e seus territórios vendidos ou doados a fazendeiros que, quando encontravam aldeias, usavam de violência para arrancá-los de seus terras. São inúmeros os casos de destruição e morte de comunidades inteiras. Mais recentemente, os índios estão sendo expulsos pelos latifundiários c despejados em outras reservas ou no Paraguai, com o apoio das instituições públicas, de políticos e da oligarquia regional, denunciaram o Conselho Indigenista Missionário e a Associação de Índios Desaldeados - Kaguateca. A maioria das comunidades indígenas do Estado não tem suas terras demarcadas ou reconhecidas pela Funai, c são disputadas por fazendeiros. As aldeias Guassuty, no município de Aral Moreira; Jaguapiré, em Tacuru, e Jaguari, em Amambai, há vários anos vêm sofrendo despejos violentos e ameaças de fazendeiros, como JoséFuentes Romero, Otávio Junqueira Leite de Moraes e Constância de Almeida, apoiados pelo Senador Rachid Saldanha Derzi, do PFL, um dos maiores latifundiários do Estado. As táticas usadas para expulsar os índios de suas terras são várias: despejos, ameaças aos líderes, destruição dos vestígios das com unidades como os cem itérios, proibição de plantar>nas áreas, muitas delas transformadas em pastagens e ocupadas por centenas de cabeças de gado. Em junho, na comunidade Guassuty, uma criança Kaiowá, Ramona Gomes, morreu pisoteada por bois. Seus pais retomavam para a reserva quando houve um estouro de boiada. A mãe, Narcisa de Sousa, correu em direção a uma cerca de arame para se proteger, mas tropeçou, deixando cair a


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criança que foi pisoteada várias vezes pelos animais. Sem seus Tekohá, que são a sua vida, humilhados e usados como trabalhadores escravos nas usinas de álcool ou obrigados a parambular em beira de estradas e nas cidades, os índios buscam o suicídio como forma de acabar com seu aniquilamento cultural e econômico, abreviando o sofrimento. Nos últimos três anos, foram registrados 96 suicídios de índios, todos de jovens e adolescentes. Pedro Pedrossian também não recebeu em audiência o sub-procurador Geral da República, Augusto . . . Ribeiro da Costa, nem Sérgio Servolo, da OAB Nacional e representantes de entidades, que pretendiam apresentar ao governador as denúncias e solicitar o atendimento aos acampados c comunidades indígenas, impedidas de retomarem para suas terras, e a imediata apuração dos casos de violências registrados durante o Fómm. A comissão foi recebida pelo vicegovernador, Ari Rigo. Ele afirmou, categoricamente, que o Estado não iria atender os brasiguaios para não incentivar a formação de novos acampamentos e encaminhou as denúncias para as secretarias de Justiça e Segurança Pública- responsável pela repressão aos agricultores. O Fómm encaminhou também as denúncias em audiências com ao ministérios da Jus ti'-- ça, Ação Social, Agricultura e Reforma Agrária e Relações Exteriores, e à Presidência da República. 'Na opinião do advogado Ricardo Brandão, coar- . "-- de nadar da Comissão d0s Direitos Humanos da OAB Nacional, que acompanhou o Fórum, a posição intransigente do governo estadual em não receber os sem-terra vindos do Paraguai pelo fato de não serem sul-mato-grossenses, é um subterfúgio para não acatar esses patrícios e com isso manter intocados os 'latifúndios improdutivos. Para Ricardo Brandão, os ~ brasiguaios são um problema do Mato Grosso do Sul.

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"Eles passaram a ser a herança e a conseqüência da velha relação que temos com o nosso vizinho Paraguai, de marcha e contra-marcha, uma herança das duas ditaduras", diz ele, ressaltando que o extremo sul do estado foi colonizado pelos gaúchos, que conheceram a região durante a guerra da Tríplice Aliança c, depois, retomaram para se fixar nela. Hoje, quando os agricultores saem do sul do país, migram para o Paraguai c de lá retomam, com o objetivo de se fixar aqui, "estão refazendo o mesmo trajeto percorrido pelos seus antepassados", observou. O regresso des- , scs agricultores brasileiros, reinvidicando terra e sua cidadania, é uma atitude de auto-anistia de uma dívida política c econômica que não fizeram, mas que foram obrigados a arcar por mais de três décadas.


os BRASIG~AIOS E O MERCOSUL

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Em março de 1991, Brasil, Paraguai, Argentina c Uruguai assinaram, em Assunção, o Tratado do Mercado Comum do Sul, o Mcrcosul, que prevê, entre ou.tras medidas, a livre circulação de bens, serviços, recursos fmancciros e trabalhadores nos países signatários, a partir de 1995. "O que pode parecer uma solução, em termos individuais, para os cerca de 400 mil brasileiros que vivem em território paraguaio c para os quase 300 mil paraguaios que vivem na Argentina, que seriam idealmente isentados de taxações, poderia apenas estar institucionalizando uma estratégia de exportação de tensões que vem sendo executada subliminarrocntc pelos governos dos dois países, os quais, através desse procedimento, vem se isentando de prowover reformas agrárias efetivas que fixem seus cidadãos no camp<1', analisa a historiadora e antropóloga Márcia Anita Sprandel. Márcia caracteriza os brasiguaios como uma identidade política, que surge em situações de tensão social e de confronto, e como uma identidade ética, que funde em si os adjetivos pátrios de Brasil e Paraguai e se utiliza de alementos nacionais e de experiências vividas principalmente no Paraguai.


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Segundo ela, o fenômeno 1:) iguaio se dá na medida em que eles buscam a solução de seus problemas através da pressão sobre autoridades diplomáticas, governantes e organismos fundiários do governo brasileiro. Para a antropóloga, antes de brasileiros, estrangeiros ou imigrantes, os brasiguaios são indivíduos que buscam manter sua condição de pequenos produtores rurais cruzando uma fronteira político-administrativa que pouco significado jurídico tem em termos imediatos. Com a criação do Mercosul, que prevê a livre circulação da força de trabalho, idealmente terminariam os focos de tensão na região de fronteira. Márcia observa que "se por um lado existe uma expectativa de ação sindical transnacional, que permitiria lutas conjuntas contra os 'escudos latifundiários' que caracterizam as regiões de fronteira internacional do Cone Sul, por outro lado, a relativização destas fronteiras diante das propostas de macro-mercados e integração, enfraqueceria as lutas políticas internas, por grupos que reinvidicam direitos de cidadania baseados na nacionalidade. Os governos, desta fmma, poderão se isentar da responsabilidade diante de suas demandas".

CIDADÃOS EXCLUÍDOS Em seu trabalqo sobre os brasiguaios, Márcia Sprandel afim1a que os brasiguaios são um dos desdobramentos mais contundentes do )enômeno de conOitos em áreas de fronteira brasileiras. Desenvolveram uma trajetória que, circus~ncialmente, parece sem retorno. "A menos que seja realizada como solução individual, de grupos familiares. Ou seja, nos moldes de equilíbrio que a idéia de 'fronteiras vivas' historicamente preconizava e que o Mercosul atualiza. Vivem numa situação de liminariedade, bem expressa nas


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representações do documento divulgado pelos acampados em Amambai: "Estamos sem pátria e sem terra (... ) se não tivermos apoio e garantias de nossos '- direitos, romperemos a primeira cerca, não só a da '-- fronteira( ..)." Segundo Márcia, as reinvidicaçõesdos brasiguaios parecem longe de serem atendidas, "numa 'conjuntura de integração institucional, que relativiza os princípios de nacionalidade". Mas os brasiguaios não são um caso isolado. Em toda a região de fronteira com a Argentina, Uruguai e '- Bolívia, outras situações sociais tendem a encami.___ nhar-se para embates e problemas semelhantes aos enfrentados pelos brasiguaios. Segundo o levantamento realizado pela antropóloga, há incidência de vários fatos que caracterizam uma situação de tensão social nesses regiões de fronteiras: desde a década de 70, a imprensa vem divulgando a intrusão no território '- de Missiones, na Argentina, por agricultores brasilei..._ ros, notadamente do estado do Rio Grande do Sul. A reação do governo argentino muitas vezes foi de "deportar" esses pequenos produtores. Em 1989, houve a prisão de sessenta lavradores, acusados de "invadir a fronteira", mais tarde expulsos do país . . .__ No Uruguai, na década de 70, foram re&ristrados deslocamentos transfronteiriços de pequenos produ'- ~o res rurais brasileiros; hoje pícvalecem os empresários rurais, grandes proprietários de terra, principal'- mente do Rio Grande do Sul e São Paulo. Em 1987, . .__ contabilizavam-se ~m tomo de trinta mil hectares de terra, grandes propriedades, em mãos de brasileiros. - Em 1991, acredita-sequededezaquinze por cento do território uruguaio seja de propriedade de estrangei..._. ros. Sessenta por cento da produção de arroz daquele país saíram, nesse mesmo ano, de lavouras de brasilei- ros. Declarações de lideranças ruralistas do Rio Gran'- de do Sul analisam este interesse por terras uruguaias

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como decorrente da política para o setor agropecuário c pelo fato do governo uruguaio "não permitir invasões de terras". Com o crescimento da atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nos municípios fronteiriços de Santana do Livramento e Bagé, produtores rurais e o governo uruguaio deram demonstrações de temor diante de uma possível "invasão de sem-terra brasileiros" em seu país. "A Bolívia, que vem pleiteando sua participação no Mcrcosul, convive com uma situação semelhante. De um lado, a presença de pelo menos doze mil famílias de scrin- , guciros brasileiros em seu território. Pressionados para regularizar sua situação, eles têm desenvolvido estratégias de retorno organizado ao Brasil, rcinvidicando "repatriamcnto". Garimpeiros, que seriam em tomo de sessenta mil, estariam ocupando os departamentos de Panda c Bcni, c são expulsos sistematicamente pelas autoridades. Por outro lado, o governo boliviano tem incentivado o ingresso de grandes proprietários de terra no país. Por exemplo Olacyrde Moraes, um dos maiores produtores de soja no Brasil, proprietário da fazenda Itamaraty, no município de Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, desenvolve experiência piloto para cultivo de soja em área estimada de setenta mil hectares, na região de Santa Cruz de la Si erra. A antropóloga prevê momentos difíceis para o movimento social na c; regiões de fronteira. O" escudo latifundiário" resiste às in~ursões de pequenos produtores rurais em regiões historicamente sob seu domínio. Os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul registram as organizações mais estruturadas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em todo o país. Contra esse avanço do MST, os latifundiários reagem de forma violenta. A União Democrática Ruralista no

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Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul arma milícias privadas. Muitas vezes, as autoridades municipais conclamam a população a reagir em armas contra as ocupações, como registrou-senos municípios de Bagé c Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, Reserva c Roncador, no Paraná, e Amambai e Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul. Márcia observa ainda que as propostas de ação sindical transnacional podem acirrar a reação de grandes proprietários de terras nas regiões de fronteira dos quatro países. "Os trabalhadores rurais discutem a necessidade urgente de uma 'reforma agrária no Cone Sul'. Denunciam a violação das leis trabalhistas nas áreas de fronteira, como a ocorrência de trabalho escravo cnvol vendo trabalhadores brasileiros no Paraguai c paraguaios na Argentina c irregularidades na contrataçãe de assalariados brasileiros no Uruguai". O processo de acirramento das lutas sociais nas regiões de fronteira é irreversível e põe em descoberto a injusta concentração de terras, as irregularidades trabalhistas, o crime organizado, a prática da contravenção, do tráfico de drogas c do comércio de roubo de carros, muitas vezes protegidos e acobertados pelo que Marcia Sprandel classifica de "escudo latifúndiário". "Algumas reflexões precisam ser feitas", afirma a antropóloga. "A criação do Mercado Comum do Sul representa a conquista de uma nova cidadania ou virá refC'rçar o 'escudo latifundiário' nas regiões de fronteira? Verifica-se um 'rosárid' de acampamentos de brasiguaios c trabalhadores rurais sem-terra nessas mesmas regiões, o que abre uma perpectiva de futuro onde o cidadão estaria compulsoriamente vivendo uma situação de limbo, sem acesso aos seus direitos básicos, à terra e à cidadania. A categoria brasiguaios está sendo empurrada para acampados, exilados dentro de seu próprio país", conclui.

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UNIÃO DE FORÇAS

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Comissão Pastoral da Terra, o Departamento dos Trabalhadores Rurais da CUT, a Secretaria dos Rurais do Partido dos Trabalhadores, o Centro de Estudos Migratórios e a Pastoral dos Migrantes, no Brasil, a _ Federação Nacional Campesina, a Comissão Nacional de Luta por Ti erra e Vivenda, o Partido Democrática Popular (PDP), e as comissões regionais de campesinos, no Paraguai, vêm mantendo encontros periódicos para debater a questão da reforma agrária nos dois países e a situação dos brasiguaios que atinge a região de fronteira. Num dos encontros, realizado em Dourados (MS), os movimentos afirmaram, em documento endereçado ao movimento popular, político e sindical dos dois países, que o problema dos brasiguaios está intimamente ligado à estratégia colonialista brasileira sobre o Paraguai. Os movimentos reivindicam a revisão do tratado de Itaipu e o direito de repatriamento dos brasiguaios em território paraguaio, e chamam a atenção para a necessidade de promover um amplo debate sobre o Mercosul. A íntegra da Carta de Dourados é a que se segue.

S uh imperialismo brasileird ameaça a soberania paraguaia A estratégia geopolítica de penetração e ocupação de fronteiras executada durante os governos militares, com afinalidade de prolongar seus domínios, somada à implantação do novo modelo agrícola, concentrador e excludente, com prioridade para a monocultura mecanizada, empurrou para o Para-


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guai milhares de agricultores brasileiros do Sul, na década de setenta. Hoje os chamados brasiguaios, sem terra e sem pátria, são calculados em torno de quinhentos mil. Ocupam as terras mais férteis, representam mais de oitentaporcentodapopulaçãodafronteiraparaguaia e quinze por cento dos eleitores. Sobrevivem como posseiros, meeiros, bóias-frias, arrendatários e agregados, em condições de exploração e miséria. A expressiva presença brasileira no Paraguai faz parte dos acordos firmados entre os dois países, nos quais o governo paraguaio paulatinamentefoi cedendo a soberania do país em troca da "modernização e desenvolvimento" , oferecido pelos governos brasileiros desde Getúlio Vargas, passando por Juscelino Kubistchek e culminando com a assinatura do Tratado de ltaipu, em 1975, no governo de Geisel, que previa ocupar uma área de 121.889 quilômetros quadrados (33 por cento do território paraguaio) com 1.200.000 brasileiros (45 por cento da população do Paraguai). Assim, estava selada a entrega da soberania paraguaia ao sub imperialismo brasileiro. Para isso, os brasiguaiosformam a cerca viva ao redor do lago da ltaipu, assegurando a expansão da fronteira brasileira no Paraguai e garantindo o projew expansionistú, capitaneado pelo imperialismo norte-americano. Com a chegada da "NovaRepública" que preconizava a redemocratizaç!io cJo Brasil e a realização da Reforma Agrária, há muito exigida pelos agricultores sem-terra, acendeu a esperança de milhares de brasiguaios de voltar para casa. Eles iniciaram o retorno, em 1985, com mil famílias. No ano seguinte outro grupo tentou retornar, mas para a maioria não foi possível. E de lá para cá, a fronteira brasileira está literalmente fechada para o regresso destes agricultores.


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Com a possibilidade do retorno em massa dos brasiguaios, pondo em risco a estratégia estabelecida, a "Nova República" e o governo de Stroessner retomaram as conversações para impedir a repatriação dos brasiguaios e reforçar os acordos estabelecidos. E, para garantir a continuidade da presença brasileira em solo paraguaio, os consulados brasileiros foram transformados em escritórios de registro de propriedade de terra de brasileiros (dos quais os grandes beneficiados são os latifundiários) "( ... )independente do cumprimento da legislação vigente no país da realização do ato jurídico" , conforme consta no ponto 2 do anexo VI da Ata da segunda reunião do Grupo de Cooperação Consular Brasil-Paraguai, assinada pelos embaixadores Ronaldo Costa, pelo Brasil e Higue.l Angel Reis, ministro conselheiro da embaixada paraguaia, em nome do embaixador Adolfo Samaniego, realizado em /986. Isso representa a consolidação, via representação diplomática, da presença de mecanismos brasileiros para legalizar as ocupações e compras de terra no Paraguai, dando-lhe um tratamento de colônia. Por outro lado, a abertura política paraguaia, com a queda do ditador Stroessner, é parecida com a realizada no Brasil. Andrés Rodriguez, assessorado peloPMDB parartaense, tambérnprometeudarwcratização e reforma agrária. Sem dúvida, a abertura se mostra restrita e seletiva. A questão agrár~afoi entregue em mãos e sob a tutela do exército, que ao estilo do stroessnismo, vem reprimindo sangüinariamente as ocupações e acampamentos rurais e urbanos. A repressão às organizações campesinas e movimentos populares no Paraguai contou recentemente com um aliado evidente do Brasil. O chefe da Polícia Federal, Romeu Tuma, "alertou" as autoridades paraguaias sobre as articulações existentes entre os


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trabalhadores rurais sem-terra paraguaios e brasileiros e que ambos estariam organizando "guerrilhas". Isso representa a persitência da estratégia entreguista e uma forma de impedir que os trabalhadores, independente das fronteiras, se organizem para romper com a exploração e resgatem conjuntamente a soberania de seus países. A Coordenação Nacional de Luta por Terra e Vivenda, a Federação Nacional Campesina, a Missão da Amizade, o Partido Democrático Popular do Paraguai; a Central Única dos Trabalhadores, através do Departamento Rural, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Par tido dos Trabalhadores, através da Secretaria Agrária de Mato Grosso do Sul e Paraná, estão debatendo a questão dos brasiguaios, o seu direito ao repatriamento e as várias formas de luta pela reforma agrária no Pàraguai. Pois entendem que a luta do povo latinoamericano por terra, trabalho e justiça não tem fronteira, assim como a luta pela soberania e autodeterminação dos povos, que deve ser respeitada e garantida. ~ As várias e legítimas organizações de trabalhadores no Brasil, que sempre se posicionaram contra a dominação imperialista sobre países pobres, não devem ignorar a luta do povo paraguaio contru. o vínculo entreguista estabelecido pelo Tratado de ltaipu. A presença brasileira no país vizinho é uma sucursal do imperialismo norte-americang e utiliza, como medida de força e segurança, a presença de milhares de brasil~!Jps em terra guarani, negandolhes a cidadania. / A redemocratização real dos dois países passa, necessariamente, pela revisão do Tratado de Itaipu, em condições de transparência e democracia, para que não sejam lesados, ainda mais, os interesses e o


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direito do povo paraguaio, e pelo repatriamento dos brasiguaios. Além dessas questões, as organizações populares e sindicais dos dois países devem estreitar os laços e aprofundar as discussões sobre a divida externa e a implantação do Mercosul. Dourados, MS -Brasil, 22 de agosto de 1991.

EM DEFESA DA "ORDEM PÚBLICA" Alegando a "priorização da defesa da ordem pública, em face da possível conseqüente convulsão social", o presidente do Tribunal de Justiça do estado, desembargador Milton Malulei, cassou, no dia 18 de dezembro, a liminar concedida pelo juiz de direito da 2ª Vara da ·comarca de Amambai, Luiz Carlos Pires, que obrigava o estado e o município, com base na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, a oferecer instalações físicas, condições de higiene, salubridade e segurança aos fllhos dos brasiguaios acampados em Amambai, e ainda ao fomecimento de alimentação, assistência médicoodontológica, citando também o hospital regional do município. A ação pública im pretada pelo Promotor de Justiça da Infância e da Juventude da Comarca, Gerardo Eriberto de Morais, contendp farta documentação fotográfica sobre o estado lastimável do acampamento, salientava que o não atendimento às famílias poderia causar "insuficiência de provimento fmal", ou seja a incidência de mais mortes. Ao cassar a liminar que, finalmente, garantiria a sobrevivência física dos agricultores durante a transitoriedade do acampamento, o desembargador susten-

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tou, no âmbito jurídico, a postura intransigente do governo estadual em não reconhecer a legitimidade do direito das famílias em regresso ao país, negandolhe a condição de cidadaãos nacionais. Milton Malulei acatou a justificativa do Estado para não cumprir a liminar, pois a medida possibilitaria a "ocorrência de lesão à ordem, à saúde, à economia e à segurança pública". O presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul condenou as famílias à segregação, à marginalização e à condição de expatriados, ao considerá-los uma ameaça à ordem pública, que pode gerar uma "convulsão social no Estado". Atitude que faz lembrar os atos do fascismo, pois exclui centenas de crianças e adolescentes da proteção do Estado c condena-as, por força da lei e em nome da ordem, à miséria e ao desamparo da pátria, porte rem cometido, na companhia dos pais, o "crime" de retomar c reivindicar o direito de viver e prosperar em território nacional, como brasileiros que são. Em seu despacho, o desembargador afinna: "a liminar agasalha pretensões que, embora pareçam revestidas de alto teor social e humanitário, apenas reGe te a ilusão de prosperidade a que foram levados os pobres "brasiguaios" ao deixarem o país vizinho em busca de melhores dias em terras brasilcü·as. Aqui chegando, depararam com a dura realidade da vida, sofreram, mas não se moveram e nem se movem no sentido de obter trabalhO, mas tão somente se limitam a acampar, estendendo as mãos à caridade alheia. Desse aglomerado promíscuo, nada poderá resultar, senão saques, invasões, apreensão de caminhões, furto de gado, obstrução de rodovias etc." A "ilusão da prosperidade", agasalhada pelos brasiguaios ao regressar ao país, foi e é alimentada pelo próprio Estado ao anunciar o Plano Nacional de

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RcfonnaAgrária,aindaem 1985,eprometerassentar, em 1992, mais de duas mil famílias sem-terra no estado, o que não foi realizado. A busca de "melhores dias em terras brasileiras", coisa que não conseguiram no estrangeiro, é um direito que não pode ser contestado. Foi a "dura realidade da vida" encontrada pelas famílias no Paraguai que fez com que regressassem, do contrário não teriam deixado o país. E, ao contrário do que afim1a o desembargador, o que os move para a conquista de melhores condições de vida e prosperidade é a disposição para o trabalho e a vontade de produzi r para o descnvol vimento. Rei vindicar o direito de regressar, terra para produzir, saúde, alimentação, educação e segurança, um dever constitucional do Estado, não é "estender as mãos à caridade alheia". O ato de acampar não foi somente o único recurso encontrado pelos agricultores para estar de volta à pátria, mas tem um sentido c retrata a sua própria condição de sem-terra: é um símbolo de luta pela rcfonna agrária e resistência contra as investidas do Estado através da repressão e do cerceamento do direito de ir c vir. A luta não se limita ao acampamento, limitado pela vigilância policial, mas é o passo inicial para a conquista definitiva da terra. E enquanto pennanecem na transitoriedade do acampamento, os :J.gricultorcs não estão ociosos à "espera da caridade alheia". Já realizaram trabalhos voluntários de limpeza das ruas, praças e consertos em prédios públicos e buscam trabalhos na redondeza. A omissão do Estado em possibilitar às famílias o acesso ao atendimento de suas necessidade básicas é que transfonnou o acampamento num "aglomerado promíscuo". Sem alimentos, remédios e trabalho, os agricultores foram obrigados a utilizar expedientes extremos para garantir as mínimas condições de sobrevivência, como o abate de quatro cabeças de gado,


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retirada de um carregamento de mais de vinte animais durante uma manifestação de bloqueio da rodovia próxima ao acampamento. O ato foi considerado legítimo, considerando a situação das famílias. O estado de necessidade é previsto em lei e a apreensão de alimentos, nessas condições, para aplacar a fome, é permitido. O que poderia ser evitado se houvesse vontade política do governo estadual. Na sua justificativa, o desembargador afirma ainda que "o estado de coisas reinante, caso não seja refreado, conduzirá a conseqüências graves decorrentes de uma inevitável imigração gerando transtornos de toda sorte na área social e mesmo uma convulsão social no estado. Ademais, cerca de 280 mil pessoas acham -se prontas para embarcar para o nosso Estado, vindos do Paraguai, o que representa 15% da população estadual. Essa massa humana, aqui aportando, naturalmente não conseguirá habitação, alimentos, remédios c tratamento médico, situação geradoras da revolta c desespero. A concessão da liminar constitui, por isso, um precedente sério, estimulando novas levas de 'brasiguaios' a procederem desse modo, instalando no Estado a calamidade e o caos". Milton Malulei reconhece a gravidade da situa. ção, ao considerar o número de brasiguaios que estariam em regresso. Mas, ao contrário de refletir sobiC . a origem da situação desses agricultores no país vizinho e propor soluções, prefere impor obstáoulos para o seu regresso. Será-essa atitude omissa das autoridades que poderá, isso sim, gerar convulsões sociais, revolta e caos, uma vez que "essa massa humana" não terá a quem recorrer, aqui e tão pouco no país vizinho. É certo também que, "naturalmente", não conseguirão aqui habitação, trabalho e outros benefícios sociais, como não obtiveram no Paraguai. A não ser que sejam

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aplicados os planos de reforma agrária nacional e regional, que ainda não saíram do papel , solução que certamente tratja benefícios não só para os agricultores, mas para a toda população do Estado e do país. A questão dos brasiguaios extrapola o poder das cercas do latifúndio e os limites da atuação do poder estadual. É uma situação dada, que tem precedentes históricos c que exige atenção do governo federal, ao contrário do tratamento policialesco c segregacionista que vem recebendo do governo estadual, mais preocupado em caractc1izar a 'periculosidade social" de um contingente de agricultores que quer, tão somente, participar das atividade nacionais em condições dignas para produzire viver da terra, e se negam à marginalidade dos bolsõcs de miséria dos centros urbanos. Os brasiguaios expõem a dramática realidade vi vida pelos agricultores brasileiros no país vizinho c que reivindicam o regresso. O seu repatriamento, pelo Estado brasileiro, além de ser a solução justa, ao contrário do que afim1am as autoridades, só trará benefícios à população com o aumento da produção de alimentos, num estado que importa mais de 70% dos produtos agrícolas que consome. Exemplo disso é o assentamento de Novo Horizonte, onde ficou o primeiro grupo de brasiguaios, em 1985. Hoje, transformado em município, Novo Horizonte é responsável, com outros assentamentos de agricultores, pela maior parte da produção de alimentos d)l região de Dourados, apesar da total falta de uma política agrícola de incentivo à pequena produção. A intenção do governo do Estado, de banir os brasiguaios de seus direitos, de tratá-los como um bando de perigosos que ameaçam a "ordem social", se reflete na afirmação do desembargador: "a população de Amambai condena a atitude dos acampados, pois que é constituída de cidadãos cumpridores das leis e


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contribuinte do erário, em contraposição aos 'brasiguaios', surgindo desse contraste um verdadeiro atentado ao princípio de igualdade". Esse tipo de afirmação, vinda do maior representante do poder judiciário, condena não só os brasiguaios, mas também os agricultores sem -terra do país e outros setores da sociedade, inclusive a OAB, que lutam pela Reforma Agrária, a sentar no banco dos réus. Segundo a advogada Walesca de Araújo Cassunde, membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Marçal de Souza, de Campo Grande, e defensora dos brasiguaios, "a maior garantia dos cidadãos é o princípio da legalidade c todos os atos do poder público estão assentados nesse princípio. A Constituição Federal, no seu artigo 227, que fala da criança e do adolescente, reza que Çdever da família, da sociedade c do Estado assegurar a criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, entre outras garantias; a lei federal 8069/90, o Estatuto da Criança c do Adolescente, no seu artigo 5º , veda qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, garantindo à toda criança e adolescente os direitos reclamados na Ação Cível pública do Procurador de Justiça de Amambai. Por outro lado, nunca se poderá esquecer que a única fom1a de se exercer, efetivamente, o princípio da igualdade de todos perante a lei, tão lembrado pelo presidente do tribunal de Justiç:f, é 'tratar desigualmente os desiguais', observou a advogada. Com a cassação da liminar, os brasiguaios acampados continuam sem assistência e nenhum canal de negociação com o Estado, que permanece intransigente, apesar das manifestações de dezenas de entidades, movimentos sociais e sindicais do país e estrangeiros. Por outro lado, centenas de famílias continu-


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amem situação precária no Paraguai c impossibilitadas de regressar, sofrendo as ameaças da repressão policial em toda fronteira. Em fevereiro deste ano, uma comissão composta de sindicatos rurais e urbanos das cidades de fronteira com o Paraguai, o Movimento dos Sem Terra, as pastorais das Migrações c da Terra, a CU Te um grupo de brasiguaios se reuniram com as autoridades consulares brasileiras no Paraguai, em Ciudad Del Leste, sob a coordenação do Itamaraty, na tentativa de buscar solução para os problemas enfrentados pelos agri- , cultores naquele país. A comissão cobrou do Ministério das Relações Exteriores providências quanto às dificuldades de documentação, assessoria jurídica para as questões de conDitos por posse de terra e um monitoramento maior junto às colônias de brasileiros no sentido de orientar as famílias quanto aos seus direitos e deveres. E, também, no intuito de conhecer de perto o problema dos agricultores, através de um levantamento ccnsitário, que seria realizado por uma comissão de funcionários do ministério. Através deste levantamento, seria também realizada uma campanha de documentação destes brasileiros, via consulados. Até o fechamento deste trabalho, nenhuma solução efetiva havia sido encaminhada. Por outro lado, os movimentos sindicais c populares, c entidades de defesa dos direitos humanos nos dois países continuam tenpo reuniões bilaterais para debater a questão dos brasiguaios. Destes encontros surgiu o Movimento Pelo Repatriamento dos Brasiguaios, encabeçado por uma comissão bilateral, composta por representantes dos movimentos sociais do Brasil e Paraguai Campo Grande, agosto de 1993


CRONOLOGIA

Abril de 1984: mil famílias de agricultores semterra ocupam a gleba Santa Idalina, no município de Ivinhema, sudeste do Mato Grosso do Sul. Dezenas dessas famílias vinham do Paraguai. Depois de quinze dias cercadas pela polícia e jagunços, foram despejadas. Com isso, muitas famílias retomaram para o Paraguai. Junho de 1985: mil famílias de brasiguaios deixam dezenas de localidades na fronteira paraguaia e acampam no município de Mundo Novo, sul do estado. Há forte repressão aos agricultores e afronteiraé fechada para impedir o regresso demais famílias. Durante os seis meses em que permaneceram acampadas, 27 pessoas mqrreram em conseqüência das péssimas condições no acampamento. Janeiro de 1986: o grupo é assentado na Gleba Horizonte Escondido, as mesmas terras da Gleba Santa Idalina, que tinha sido ocupada em 1984. O assentamento passa a se chamar Novo Horizonte e é emancipado em abril de 1992. Junho de 1986: seiscentas famílias da região de Paloma, no Paraguai, tentam regressar, algumas inici-


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am novo acampamento em Mundo Novo, mas são violentamente reprimidas ainda dentro do Paraguai. Cerca de trezentas famílias conseguem passar a fronteira, mas são despejadas pelo prefeito de Mundo Novo, no município vizinho de Eldorado, onde ficaram acampadas por quase um ano até serem assentadas na Gleba Marcos Freire, em Dois Irmão do B uriti. Na mesma época, outro grupo de quatrocentas famílias consegue atravessar a fronteira via município de Sete Quedas, onde acampam. Elas só foram assentadas depois que ocuparam a fazenda São José do Jatobá, já desapropriada pelo INCRA, mas ainda em disputa com fazendeiros. Março de 1987: Marcelo Miranda toma posse como governador do Estado. O então secretário de Assuntos Fundiários, Aparício Rodrigues de Almeida, anuncia: "brasiguaio vai ter que comer brasiguaio com farinha se quiser voltar". E determina que só seriam assentados os sem-terra que comprovassem residir no Estado há mais de dois anos. Nos próximos anos, os brasiguaios continuaram retomando clandestinamente, em grupos pequenos, e foram se juntando nas ocupações e nos acampamen- · tos dos sem -terra, próximos da fronteira, organizados peloMST. Fevereiro de 1989: cai Stroessner. Os campesinos paraguaios retomam <l) ofensiva da luta pela terra e realizam dezenas de ocupações de latifúndios. Em muitas dessas ocupações há a presença de agricultores brasileiros. Os despejos, brutais e sangüinários, são executados pelo exército paraguaio com a ajuda de cães treinados. Lideranças são assassinadas e perseguidas.


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1990: a crise econômica do Paraguai se agrava e a política agrícola, a exemplo do Brasil, leva à falência milhares de agricultores. Os arrendamentos continuam dando lugar ao pasto e àmonoculturamecanizada, obrigando os agricultores a deixarem as terras. Paraos agricultores brasileiros a única saída é retomar ao Brasil. No município de Tacuru, próximo da fronteira dos dois países, quatrocentas famílias ocupam a fazenda Ortigão. É o reinício organizado do retomo de mais brasiguaios.

1991: os brasiguaios retomam os contatos com os sem-terra no Brasil e iniciam as articulações para preparar novo regresso. No ano seguinte, cerca de mil famílias terão que deixar os arrendamentos e não terão como permanecer no Paraguai. Maio de 1992: quatrocentas famílias iniciam o regresso e atravessam a fronteira para o Brasil. A repressão se repete e dezenas de famílias não conseguem passar a fronteira. O novo acampamento dos brasiguaios sofre vários ataques de pistoleiros e é cercado pela polícia. O governo estadual nega ajuda humanitária às mais de seiscentas crianças e se recusa a aceitar o assentamento dos agricultores no estado. Enquanto isso, aproximadamente seiscentas famílias de agricultores brasileiros no Paraguai continuam impedidas de regressar devido às ameaças de repressão policial e das milícias dos lattfúndios. Esse número tende a aumentar, pois diversas fazendas no Paraguai já começaram a realizar despejos de agricultores.


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