PanoramaCrítico 06

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Nesta edição: Dossiê:

Vidas do fora

Ensaio Visual HPSP (por Lilian Gomes) Foto: Lilian Gomes

Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho


#06 – Jun/Jul 2010

Sumário da edição Nº06 - Jun | Jul 2010 1. Editorial 2. Panorama > Brevíssimos apontamentos sobre a arte contemporânea – Paula Ramos

3. Artigos > Dispositivos relacionais em processos coletivos e práticas artísticas em comunidades: hortas comunitárias e canteiros como possibilidade – Janice Martins Sitya Appel > Comunicações indiretas entre León Ferrari e Mira Schendel, sob um alfabeto enfurecido - Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak > Os espaços em trânsito da Arte: In-situ e site-specific, algumas questões para discussão - Tiago Giora

4. Ensaios > Crítica de Arte: Esfacelamento ou mudança de atitude frente aos processos artísticos contemporâneos? – Karine Gomes Perez > Arte e sistema: onde está a arte? - Paula Frassinetti > Olhares múltiplos: conferências marcam início das atividades do recéminaugurado curso de História da Arte - Rosane Vargas -Dossiê Vidas do Fora: memória, vidas e obras > Prefácio: Introduzir o que é em si – André Dornelles Pares > Vidas do fora e a escrileitura de um mundo incontável - Tania Mara Galli Fonseca > Ao som de uma cançãozinha Luiz sai de sua casa - Andresa Ribeiro Thomazoni > Natália e o universo em uma casca cor-de-abóbora - Fábio Dal Molin > Uma Vida em Acervo: experiência e escrita - Leonardo Martins Costa Garavelo > C.RCP: uma vida - Sara Hartmann

5. Entrevista > Maria Helena Bernardes – Horizonte Expandido

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Editorial Por Alexandre Nicolodi e Denis Nicola

A Revista Panorama Crítico chega oficialmente ao fim do seu primeiro ano de existência com essa nova edição. O trabalho de consolidação realizado durante este primeiro ano já trouxe algumas frutos e novas perspectivas que se apresentam no horizonte. O comprometimento com a produção critica e teórica da revista trouxe a oportunidade de nos lançarmos em busca de novos projetos. Nesse segundo ano de da revista, traremos várias novidades, sendo que algumas já se encontram nessa edição de nº 06. Ensaio Visual por enquanto é a primeira novidade da revista, trazendo fotos sobre a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro e do seu espaço do acervo. A fotógrafa e artista Lílian Gomes é a autora das fotos dessa primeira edição. Na seção Ensaios apresentamos o dossiê do

grupo de pesquisa

Corpo, Arte e Clinica, também atuante no HPSP e que recentemente produziu a exposição Eu sou, que vai até o dia 20 de Agosto no espaço da Oficina de Criatividade. O dossiê traz um prefácio, elaborado pela revista, de autoria de André Dornelles e textos de Andresa Ribeiro Thomazoni, Fábio Dal Molin, Leonardo Martins Costa Garavelo, Sara Hartmann, e da organizadora do grupo Tania Mara Galli Fonseca (organizadora deste Dossiê junto com Vitor Butkus, nosso novo colaborador). Essa seção traz ainda textos de Karine Gomes Perez, Paula Franssinetti e Rosane Vargas, onde são levantados apontamentos sobre a crítica de arte hoje, os processos artísticos, o sistema da arte e o papel do ensino em artes visuais hoje. Em Artigos Janice Martins Sitya Appel, apresenta as relações e possibilidades nos processos artísticos comunitários; Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak comentam a exposição instalada na Fundação Iberê Camargo: Alfabeto Enfurecido de Leon Ferrari e Mira Schendel; e Tiago Giora coloca em questão alguns pontos sobre site-specific e In-situ na arte contemporânea.

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Lançada originalmente na edição experimental zero, em dezembro de 2008, o Panorama desta edição é o resgate deste texto de autoria de Paula Ramos: Brevíssimos Apontamentos sobre Arte Contemporânea, onde a autora coloca em questão os modos de funcionamento e atuação do sistema da arte e da critica de arte hoje. Pontos de questionamento que serviram de motivação para a criação desta revista. Por fim, a Entrevista desta edição foi realizada com Maria Helena Bernardes, curadora, junto com André Severo, da mostra Horizonte Expandido, em cartaz no Santander Cultural, que trouxe a Porto Alegre registros, vídeos, filmes, documentos e fotografias dos mais importantes artistas da arte conceitual mundial das décadas de 1960 e 1970. A conversa debruça-se sobre a mostra, suas dificuldades e expectativas, e as relações dos artistas e trabalhos expostos com o Documento Areal. Gostaríamos aqui de expressar nossos mai sinceros agradecimentos às pessoas que nos apoiaram e incentivaram o projeto editorial da revista, permitindo assim que conseguíssemos completar nosso primeiro ano frente à desse projeto. Nossos agradecimentos vão para os membros do conselho editorial, Paula Ramos, Paulo Gomes, Maria Ivone dos Santos e Neiva Bohns, passando por nossos colaboradores mais “antigos” que acreditaram no projeto e também pelos novos colaboradores. Não podemos nos esquecer de agradecer a todos os entrevistados e aqueles que enviaram seus textos para publicação. E lógico aos nossos leitores, eu a cada edição continua, aumentando exponencialmente. Com as próximas edições, novas mudanças virão! Sempre com o intuito de buscar um aprimoramento e, se algumas coisas parecem mudar nas artes, mesmo que pareçam permanecer as mesmas, o objetivo da revista é de permanecer a mesma, com o seu papel de colocar em evidência a produção textual critica e teórica de forma independente e consistente, mas sempre se modificando, se transformando e aprimorando, buscando assim ultrapassar as fronteiras já alçadas e lançar velas aos mares já vislumbrados por nós, mas ainda desconhecidos.

Uma boa leitura e parabéns a todos!

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Panorama

Brevíssimos apontamentos sobre crítica de arte, mídia e cultura contemporânea1 Por Paula Ramos

Falar da ausência de crítica no Brasil, sobretudo no que tange às artes visuais, transformou-se em verdadeiro clichê. Há pelo menos 30 anos este assunto é corrente no meio e, na esteira dele, como também não poderia deixar de ser, a tão propalada “crise da arte”. Ambos os temas dão “pano paras as mangas”, como indica a expressão popular, e não é meu objetivo, neste rápido texto, discuti-los. Entretanto, permito-me fazer algumas breves reflexões sobre o morno, para não dizer ausente panorama crítico na mídia contemporânea. Para tanto, retomo algumas percepções gerais sobre o papel comumente atribuído à crítica.

Mônica Zielinsky nos lembra que, quando a crítica moderna surge, com Diderot, no século XVIII, os visitantes dos salões de arte e potenciais compradores das obras buscavam nela um amparo para as suas escolhas. A crítica de arte era, portanto, atividade de um especialista, que determinava a circulação pública das obras, estabelecendo as relações entre a produção artística e o espectador/colecionador (ZIELINSKY, 2006). Por outro lado, na tradição em que se fundamenta, o trabalho desse mesmo especialista funcionaria, como define Jacques Leenhardt, de modo semelhante a uma pedagogia da sensibilidade. Aprendemos a ler e a escrever, mas não a olhar. E o crítico de arte sabe, ou deveria saber, apreciar cores, formas e linhas. E ele também deveria encontrar nessas mesmas cores, formas e linhas um significado especial e saber comunicá-lo, por meio da linguagem verbal. Dessa forma, o efeito visual seria acessível a todos, por meio do texto crítico, uma espécie de escola do olhar (LEENHARDT, 2000). 1

N.E. Texto escrito originalmente para a ediçao #00 da PanoramaCritico, em dezembro de 2008. Sendo que na época, o site que foi ao ar ainda não possuía ISSN. Por isso o texto apresenta os editores ainda com alunos do Instituto de Artes da UFRGS.

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Esse papel de mediação, de ponte, manteve-se por muito tempo calcado na concepção generalista de uma capacidade desse especialista, digamos assim, de discernir, no universo das produções culturais – e, pontualmente, no das artes visuais –, as de grande qualidade. Mas, se os acertos da crítica acabam se diluindo no consenso comum, os erros são muitos, célebres e para sempre lembrados, vide o antológico episódio envolvendo a primeira exposição dos impressionistas, em 1874... A minha memória falha neste momento, mas inclusive alguém já escreveu que residiria aí o gérmen da paralisia da crítica na contemporaneidade: diante de uma avalanche de produções muitas vezes desprovidas de sentido, ancoradas na banalidade, e com receio não somente de errar, mas de passar à história como o crítico que não teve sensibilidade – olho – discernimento ou qualquer outra coisa que o valha, muitos teriam deixado de fazer textos mais analíticos, mais comentados, mais críticos, na sua essência.

Os “motivos” da neutralização da crítica, de um lado, e do raro espaço dedicado a ela nos meios de comunicação social, de outro, podem ser vários: desde as linhas editoriais adotadas pelas empresas de comunicação, passando pelo tamanho cada vez mais enxuto dos “cadernos de cultura”, bem como pelo despreparo dos jornalistas e desinteresse do público, entre muitos outros. Sendo, ou não, resultado dessa conjuntura, o quadro geral da crítica no Brasil todos conhecemos: no lugar da reflexão, o texto de serviço, indicando aberturas de exposições, horários de funcionamento, patrocinadores, quem fez o quê; no lugar da reflexão, a efemeridade da notícia; no lugar da reflexão, a coluna social, com direito a farto material fotográfico reproduzindo os sorrisos dos convivas durante o vernissage...

É evidente que há exceções a essa fórmula que parece ter assumido a condição de regra, mas o que temos vivenciado nos últimos anos é uma perversa transformação dos espaços jornalísticos tradicionalmente reservados aos assuntos “culturais e artísticos”. Tal território foi tomado pela volatilidade e pelo extraordinário, num fenômeno que ultrapassa o campo da comunicação,

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mas que, ao mesmo tempo, é potencializado nele. Ora, provavelmente nunca antes o homem viveu de modo tão espetaculoso e exibicionista. O estrondoso sucesso internacional dos reality shows e blogs, que midiatizam tudo, até mesmo os aspectos mais cotidianos e prosaicos da vida, reforça a percepção de que a sociedade contemporânea vive uma grande representação de si mesma. Nesse ambiente de aparências, de encenações e de fugacidades, a reflexão crítica, de qualquer ordem, é absolutamente necessária. Contudo, onde ela está? A rede que se estabelece em torno das artes visuais não ficou imune a esse câmbio de valores e de comportamentos. E as bienais e mega-exposições nos mostram, cada vez mais, como o campo artístico encontrou na estética videogame e na caprichada cenografia aliados imprescindíveis na sedução de novos e jovens públicos. Nisso, pelo menos em princípio, não residiria qualquer problema; a questão é que esses aspectos muitas vezes suplantam a própria produção artística, tornando-se “o” fato artístico e desviando a já frágil atenção do público. A obra, em muitas situações, é mera coadjuvante.

Processo semelhante tem ocorrido em relação ao papel do curador. Quantas vezes a curadoria não se confunde com as obras... Isso porque talvez a curadoria tenha assumido outro posto: de verdadeira criação. É como se as obras estivessem ali para justificar uma idéia, um conceito, ou mesmo um delírio do curador. Poderíamos listar diversas exposições realizadas nos últimos anos, no Brasil, conhecidas, comentadas e fartamente citadas não necessariamente por causa dos artistas e das obras que delas participam, mas devido à proposta, ou ao nome do curador. Curador que, diga-se de passagem, quase sempre emerge do universo da crítica (quando ele não é um artista que, curiosamente, também participa da exposição, e em destaque! Mas esse já é assunto para um outro texto...). Trata-se, de fato, de uma nova função, articulada à lógica institucional das artes visuais na contemporaneidade e que difere daquela do crítico de antigamente, respaldado no discurso, na mediação. Nesse quadro, o curador muitas vezes se lança, como aponta Fernando Cocchiarale, a produzir questões quase sempre extra-estéticas, temáticas, que norteiem as exposições, que lhes emprestem sentido, ainda que provisório

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(COCCHIARALE, 2006). E aí podem surgir tanto propostas interessantes, instigantes e pontuais, como constrangedoras falácias, verdadeiros “sambas do crioulo doido”, sem contar os atentados visuais e intelectuais.

Uma vez mais, esse livre trânsito de personagens e funções não traria grandes conseqüências se houvesse, efetivamente, crítica. Todavia, como os atores são reduzidos, há não somente uma sobreposição de atuações, como uma espécie de protecionismo entre os pares. O resultado é que não se diz, não se escreve e não se comenta nada, até para preservar o colega e, também, porque nunca se sabe que novo papel ele poderá assumir no campo! E os interesses pessoais, nesse sentido, podem falar mais alto. Esse aspecto nebuloso por trás da falta de crítica nos jornais e revistas indica que tal dificuldade não decorre, apenas, de uma falta de interesse do publico ou das empresas de comunicação. Pior: ela é endêmica.

Essa mesma linha de pensamento nos leva a refletir sobre o texto crítico produzido para livros ou catálogos de exposições. Aliás, seria lícito chamá-lo de crítico? A dúvida se justifica quando pensamos que, ao ser convidado e pago a escrever, o profissional provavelmente não fará um artigo ou ensaio de caráter realmente crítico, mas sim de apresentação, de contextualização e que debata determinados aspectos da obra do artista, os que ele julgar mais apropriados. Como, nos últimos tempos – inclusive devido aos investimentos em cultura, decorrentes das leis de incentivo fiscal –, tem havido uma expressiva produção editorial voltada a esse segmento, somos convidados a acreditar que a crítica de arte não desvaneceu e que, pelo contrário, está até mais fortalecida!!! O que não faz esse incrível mundo de aparências!!!

As híbridas e polêmicas relações entre curadoria, crítica, artistas, instituições, mercado e, sim, público, têm fomentado profícuos debates, sobretudo no meio acadêmico. Entre tantos, porque muitas coisas mudaram, a começar pelo próprio conceito de arte... Nesse cenário em constante ebulição e

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carente de espaços de discussão, é admirável que um grupo de estudantes2 tenha se organizado e desenvolvido, de modo corajoso e independente, este fórum público de diálogo em torno da arte contemporânea. Assuntos e temas para discutir, como sabemos, não faltam...

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A idéia partiu de Alexandre Nicolodi e Denis Nicola, do curso de Artes Visuais da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mobilizados, de um lado, pelas querelas e polêmicas próprias do campo e, de outro, pelo total desconhecimento do que acontece em outras instituições de ensino superior na área de artes, e mesmo em cidades vizinhas a Porto Alegre (RS), Alexandre e Denis resolveram criar um site, esta revista. A proposta surgiu em abril de 2008 e, com a parceria dos colegas Gabriel Gageiro, Letícia Lampert, e André Pares em pouco tempo PANORAMA CRÍTICO ganhou forma.

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Referências COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas.Rio de Janeiro: Funarte, 2006. LEENHARDT, Jacques. Crítica de arte e cultura no mundo contemporâneo. In: MARTINS, Maria Helene (Org.). Rumos da Crítica. São Paulo: Itaú Cultural; SENAC, 2000. ZIELINSKY, Mônica. A arte e sua mediação na cultura contemporânea. In: FERREIRA,

Glória

(Org.).

Crítica

de

Arte

no

Brasil:

Temáticas

Contemporâneas.Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

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Artigos

Dispositivos relacionais em processos coletivos e prática artística em comunidades: hortas comunitárias e canteiros como possibilidade. Janice Martins Sitya Appel1

Resumo: O processo artístico atende a uma série de indagações e propostas, como sua contribuição para o campo de abrangência das atuais poéticas contemporâneas, em relação aos deslocamentos e descontinuidades propostos em arte relacional. Atende às incursões de possibilidades transdisciplinares em metodologias da prática artística, como suas possibilidades de intervenção urbana nas relações de convívio como produção de novas relações e suas de formas estéticas ampliadas à realidade. A partir do momento em que “a prática do artista, seu comportamento enquanto produtor determina a relação que será estabelecida com sua obra: em outros termos, o que ele produz, em primeiro lugar, são relações entre as pessoas e o mundo por intermédio dos objetos estéticos” (BOURRIAUD, 2009: 59), o fazer de um projeto em arte para ser desenvolvido a partir de relações de convívio em um coletivo comunitário promoverá um encontro crítico entre arte e realidade. A crítica aqui se faz presente por ser o processo artístico coletivo uma forma de representação que vai renegociar as relações entre a arte e a vida. É através da participação do outro no coletivo comunitário, na instituição Arte, ou nos termos e contexto de uma produção artística como objeto, que as relações entre arte e vida vão mostrar-se como forças de ação do processo. Para entender melhor a premissa é necessário crer que “a arte relacional não é o revival de nenhum movimento, o retorno a nenhum estilo; ela nasce da 1

Bolsista CAPES/DS - Mestranda em Processo Artísticos – PPGAV/CEART/UDESC. Bacharel em Artes Plásticas – DAV/IA/UFRGS. Atuação como Coordenadora de Artes Plásticas no Fórum Social Mundial 2005(Porto Alegre,RS) e Consultora da UNESCO 2004 (Porto Alegre,RS). Desde 1994 atua como educadora social e oficineira de artes visuais em coletivos e comunidades.

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observação do presente e de uma reflexão sobre o destino da atividade artística. Seu postulado básico – a esfera das relações humanas como lugar na obra de arte – não tem precedentes na história da arte, mesmo que, a posteriori, apareça como evidente pano de fundo de qualquer prática estética.” (BOURRIAUD, 2009: 63). Ou seja, através de ações cotidianas, o artista promove o seu espaço de convivência social, assim como as propostas relacionais em sua forma complexa ocupam espaços convencionais da instituição Arte ou se aproximam de acontecimentos e situações inseridos vida cotidiana. As valorizações do encontro e do convívio atuam como dispositivos relacionais e como forma para entendimento de um projeto em arte contemporânea, assim como a explanação de alguns conceitos, são lançados pelos autores Nicolas Bourriaud, Reinaldo Laddaga, Suely Rolnik, Felix Guattari e Gilles Deleuze, sobre projetos coletivos em arte desenvolvidos por artistas e coletivos em comunidades específicas. Palavras-chave:

deslocamentos;

dispositivo

relacional;

cotidiano,

comunidade, arte coletiva

No uso de dispositivos relacionais para um trabalho em arte coletiva na comunidade, o grupo envolvido passa a atingir novas possibilidades de atuação no real – seja uma horta comunitária e canteiros, ou qualquer outra produção coletiva em arte relacional complexa- estes acabam por materializar novos espaços de vida que geram sua participação direta, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída. A investigação das possibilidades poéticas visuais e de seus processos, através da interferência no urbano coletivo, deslocamento de saberes e intervenção na comunidade, possibilitam novas trocas e experiências em arte. O processo artístico gerado a partir de um dispositivo relacional cria um corte momentâneo sobre o contexto imediato e formal esperado pela instituição

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Arte, ampliando a visão de contexto e fazendo com que a realidade possa ser vista e vivida de outras maneiras. Primeiramente, o fazer provoca uma descontinuidade na própria realidade da comunidade, um encontro com novas formas de representação que produzem realidade. Inseridos como agentes e produtores desta descontinuidade, o grupo envolvido tem que agenciar novos lugares de convivência. Desta forma, são deslocados de seu lugar de reconhecimento principal (o lugar de membros e moradores de uma comunidade, por exemplo) e estimulados a catalisar novos processos de subjetividade em seu cotidiano (o lugar de produtores de arte em processos coletivos). Os objetos e as instituições, o emprego do tempo e as obras são, ao mesmo tempo, resultados

das

relações

urbanas

pois

concretizam o trabalho social – e produtores de relações, pois organizam modos de socialidade e

regulam

os

encontros

humanos.

(BOURRIAUD, 2009: 66)

Movida pelo interesse em participar de encontros e de relações de convívio com a comunidade da Barra da Lagoa e Lagoa da Conceição (Florianópolis,SC) na retroalimentação da cultura local como na situação do processo e fazer coletivo referente à horta de temperos, ervas medicinais e de outras plantas - a horta comunitária e canteiros, surge como projeto de arte coletiva - processo coletivo ou colaborativo e de produção do real, simbólico e imaginário coletivo que reforça o reconhecimento da cura através das plantas e do cultivo da horta como cultura local. O convívio estabelecido pelo cotidiano das ações na horta comunitária e canteiros, promove um projeto de arte coletiva, formado através das relações de vínculo e de colaboração na comunidade. Neste sentido, uso exemplos práticos como as experiências do coletivo dinamarquês Superflex que desenvolveu projetos de arte coletiva chamados Supergas2 (1996-97), a partir da realidade de uma comunidade específica em

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SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.dk – “Supergas” (Camboja, 1996-97)

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Camboja (África) e na Tailândia (Ásia) e FreeBeer3. Sua preocupação com a preservação do meio ambiente na produção de biogás e biocombustível, levou ao projeto coletivo em arte, como uma forma de convívio e direcionamento às necessidades e recursos econômicos que acreditamos existir em economias de pequena escala. A cerveja FreeBeer foi criada pelo grupo como um modelo econômico para financiar a produção artística no âmbito da galeria. FREE BEER é uma cerveja, que é livre no sentido de liberdade, não no sentido de cerveja grátis. O projeto, originalmente concebido por Superflex e estudantes da Universidade de Copenhague IT, aplica-se ao software livre e métodos de fonte aberta para um produto tradicional do mundo real – neste caso, a bebida alcoólica

cerveja.

FREE BEER é baseada nas tradições clássicas da cerveja ale, mas com a adição de guaraná para um aumento de energia natural. A receita e os elementos de marca do FREE BEER são publicados sob uma Creative Commons (Attribution 2,5) de licença, o que significa que qualquer pessoa pode usar a receita para fabricar cerveja sua cerveja FREE própria ou criar um derivado da receita. Qualquer pessoa é livre para ganhar o dinheiro da FREE BEER, mas eles devem publicar a receita sob a mesma licença de crédito e de trabalho. Todos os elementos de design e branding estão disponíveis para fabricantes de cerveja e pode ser modificado para atender, desde que as alterações sejam publicadas sob a mesma licença. Todas as prerrogativas lançadas pela proposta do grupo Superflex com a FREEBEER, lançam este projeto a uma deriva sobre o reconhecimento e a possibilidade de uma prática em arte relacional. Outro exemplo é o do artista Rirkrit Tiravanija que fundou em 1998 junto a outros artistas, o projeto The Land4, que reúne ações colaborativas e coletivas para moradia e obtenção de energia natural para a comunidade. Neste projeto, Tiravanija foi o autor de pequenas moradas com estética sustentável já que as casas são pequenas estruturas sobre palafitas sobre plantações de arroz. Tiravanija realiza uma proposta em arte que se alia ao princípio holístico da permacultura para ações em comunidades. Suas 3 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.dk – “FreeBeer” (Camboja, 2006) 4 http://www.thelandfoundation.org/?About_the_land

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instalações muitas vezes tomam a forma de estágios ou quartos para compartilhar as refeições, cozinhar, ler ou tocar música, arquitetura ou estruturas de vida e socialização são um elemento fundamental em sua obra. Enfoques às questões de sustentabilidade dão vazão à discussão sobre espaços bioconstruídos e a estética da permacultura foi um dos pontos fortes de apresentação do Fórum Social Mundial 2005 (Porto Alegre/RS), onde espaços bioconstruídos foram definidos como estrutura tanto para os auditórios de conferência como para espaços expositivos ao ar livre, dispostos ao longo da Orla do Guaíba. Os espaços bioconstruídos contavam com cisternas para captação de água, fossas ecológicas e captação de energia solar em pequena escala através de estruturas feitas a partir de garrafas peti e canos hidráulicos reutilizáveis. Pensar espaços bioconstruídos e permacultura como forma e possibilidade estética em arte, energia e meio ambiente amplia nosso olhar para possibilidades de moradia e sobrevivência em escala humana, com sentido não comercial e que valoriza a autonomia sobre a existência de um sistema operativo de vida em harmonia com a natureza. A arte é uma possibilidade que dá forma a este sentido desde que operada através de uma proposta coletiva e colaborativa, intrínseca à vida e ao cotidiano, ampliando assim seus limites de atuação e de comprometimento com outras áreas do conhecimento humano, da expressão e criatividade.

A estética da

permacultura e a discussão decorrente de projetos em arte coletiva para espaços bioconstruídos ampliam nossa visão de trasndisciplinareidade entre diferentes áreas e retomam nosso compromisso com a arte e a vida para questões que apontam soluções para moradia e obtenção de energia. Neste aspecto, o coletivo brasileiro Bijari5, entre outros trabalhos em arte relacional, trabalha com a proposta de requalificar ambientalmente espaços urbanos, como em Natureza Urbana#3 – Carro Verde (2008) em que jardins são construídos em carros abandonados na cidade de São Paulo. A partir da década de 90, o entendimento que abrange o contexto da arte, aponta para um campo em constante expansão em diferentes grupos 5

COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org – “Carro Abandonado” (SP 2008) /sustentabilidade urbana

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artísticos, zona de limites não claros e ampliados (atravessamento ou ausência de limites) e que fazem da arte um campo em trânsito junto a diferentes campos de atuação da vida cotidiana. Este cotidiano é marcado pelo próprio cenário atual político, econômico e artístico, onde se mostra imprescindível o entendimento da transversalidade da arte. Não apenas por contextualizar o momento histórico vivido nos dias de hoje por grupos artísticos ou por integrantes de uma comunidade, mas também para compreensão da problemática urbana de uma cidade e suas intersemioses. No caso do projeto em hortas comunitárias e canteiros, a incursão se faz presente na cidade de Florianópolis, capital turística do estado de Santa Catarina e que preserva espaços comunitários de expressão culturais nativos e ligados à preservação da cultura local em interação e integração com espaços de produção em projetos coletivos em arte. Um projeto de arte coletiva, parte do espaço de convívio com a comunidade e da mobilização de diferentes representantes para sua realização. O espaço do convívio é alicerce para um projeto de arte coletiva que convive com a constante restauração do sistema – movimentos de resistência - e que geram novas possibilidades dentro da micropolítica[6] comunitária e nos sistemas econômicos locais, assim como com a preservação da cultura local e atuação em um campo não específico que faz gerar a arte Para Reinaldo Laddaga, “é a partir dos anos 90 que artistas, escritores e músicos começavam a desenhar e executar projetos que supunham uma mobilização de estratégias complexas. Estes projetos implicavam na implementação de formas de colaboração que permitiram a associação entre artistas e comunidades durante tempos prolongados (alguns meses no mínimo ou alguns anos em geral) atingindo grandes números (dezenas, centenas) de indivíduos de diferentes procedências, lugares, idades, classes, disciplinas.” (LADDAGA, 2006: 15). Pensar uma horta comunitária e canteiros como dispositivo dentro de uma realidade ou projeto artístico pode gerar certo desconforto inicial se não conseguirmos estabelecer uma relação imediata entre a ação e sua produção com projeto coletivo em arte. Neste sentido, o entendimento da horta comunitária e canteiros como projeto artístico deve ser pensado a partir da noção de uma arte relacional complexa, da valorização do

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encontro como gerador de convívio e produtor de novas subjetividades, deslocamentos e de possibilidades de um projeto em arte que possa ser coletivo e colaborativo. Suely Rolnik nos aponta a definição de dispositivo descrita por Deleuze como “uma meada, um conjunto multilinear, composto de linhas de diferentes naturezas[...]Destrinchar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é traçar um mapa, cartografar, agrimensar terras desconhecidas, e é o que Foucault chama de ‘trabalho de campo [...] uma produção de subjetividade num dispositivo: ela deve se fazer desde que o dispositivo o permita ou o torne possível. [...] não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que incide sobre grupos ou pessoas, e se subtrai das relações de forças estabelecidas como dos saberes constituídos: uma espécie de maisvalia.” (ROLNIK) Sendo assim, é possível compreender a horta comunitária como um dispositivo relacional no que diz respeito ao cultivo da arte como processo de investigação e que envolve a participação do outro convocando sua experiência de convívio como condição para a realização do projeto coletivo. À exemplo, relatado por um morador da Barra da Lagoa, “o produtor de uma horta escolhe as plantas a partir do desejo de cura do outro” (SIC). Da mesma forma, para Laddaga, ao falar de projetos colaborativos, afirma que “lo que se proponem los artistas que inician estos proyetos es, sobre todo, desarollar, calibrar, intensificar la coperación misma, no tanto con el objeto de materializar un objetivo particular com el de variar e intensificar la cooperacion social en un determinado entorno”.(LADDAGA, 2006: 9). A crítica se faz presente por ser o encontro, promotor das relações de convívio, uma forma de renegociação entre a relação entre a arte e vida. É através da participação do outro na instituição Arte, ou nos termos e contexto de um projeto artístico como objeto relacional, que as relações entre arte e vida são estabelecidas. Neste sentido, afirma Bourriaud que “uma obra pode funcionar como dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina de provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos.” (BOURRIAUD, 2009: 42). Ou seja, através de ações cotidianas, o artista promove o seu espaço de convivência social, assim como as propostas relacionais em sua

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forma complexa ocupando espaços convencionais da instituição Arte ou se aproximando de acontecimentos e situações inseridos vida cotidiana. Ao pensar a horta comunitária e canteiros como uma situação da vida cotidiana de uma comunidade e desta como projeto em arte é que a lógica do encontro é descrita por uma arte relacional complexa. A horta comunitária e canteiros geram o encontro, uma possibilidade de atuação no real em que são materializados novos espaços de vida e que geram a participação direta do outro, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída. No contexto comunitário o projeto de arte coletiva convive junto às relações de saber entre os usuários da horta: a troca de experiências é um espaço de troca de saberes sobre interesses comuns. A produção de um encontro tendo a horta comunitária e canteiros como dispositivo em um projeto de arte coletiva cria um corte momentâneo sobre o contexto imediato e formal esperado pela instituição Arte ampliando a visão de contexto e fazendo com que a realidade possa ser vista e vivida de outras maneiras. É no cruzamento da arte com o dia-a-dia e as questões pertinentes a este convívio que surge um projeto de horta comunitária e canteiros como projeto coletivo em arte.

Primeiramente, o encontro provoca uma

descontinuidade na própria realidade da instituição Arte, um encontro como nova forma de representação e que produz realidade. Inseridos como agentes e produtores desta descontinuidade, os envolvidos no encontro gerados pela horta comunitária e canteiros e seus usuários tem que agenciar novos lugares de convivência. Desta forma, os envolvidos são deslocados de seu lugar de reconhecimento principal e são estimulados a catalisar novos processos de subjetividade em seu cotidiano como espaço de convívio. A horta comunitária e canteiros como projeto artístico reúne pessoas e colaborações em torno de um sistema de produção em comum, não orientados pelo objetivo de produzir um “objeto artístico” como projeto a partir da horta, mas sim de produzir o deslocamento deste objetivo para a produção de descontinuidades e de subjetividades, através de um projeto coletivo e colaborativo para produção de

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“arte”. Para Bourriaud, é isso que podemos chamar de lei de deslocalização, quando “a arte exerce seu dever crítico diante da técnica somente quando desloca seus conteúdos{d}dessa maneira, a relação arte/técnica mostra-se especialmente favorável a esse realismo operatório que estrutura muitas práticas contemporâneas, e que pode ser definido como a oscilação da obra de arte em sua função tradicional de objeto a ser contemplado.” (BOURRIAUD, 2009: 94-95). As relações de convívio geradas pelo cotidiano, assim como na própria arte contemporânea como noção de ruptura e repetição, nos recolocam e nos deslocam constantemente de um espaço previamente estabelecido na relação de convívio, permitindo assim, através da incerteza e da tentativa a produção de novas subjetividades e de intersubjetividades. Ao colocarmo-nos diante de um sistema operacional promovido pelo processo do encontro e do convívio com o outro acabamos por fazer sentido a um circuito de idéias, muito mais do que afazeres ou tarefas propriamente ditas. O circuito promove a alteridade de cada parte embora permaneçam intercaladas umas às outras - cada parte não funciona sem a outra. Assim opera o senso da coletividade, em que a alteridade de cada um não faz com que cada parte possa trabalhar sozinha, mas sim em função do grupo, ou melhor, do outro. O processo do encontro inclui que cada um ocupe e desocupe um lugar no circuito e que funcionará como engrenagem do sistema como um todo. Um sistema oscilante e autônomo. Oscilante no sentido de que cada um pode substituir ao outro, assim como pode permanecer em determinado ponto do sistema e sem colocar em risco ou prejuízo a produção do encontro como objeto. As casas na comunidade da Lagoa da Conceição e Barra da Lagoa são marcadas pela disputa de espaços nativos contra a intensa ocupação turística. O espaço de saber das “tarrafas”, das “rendas de bilro”, “contação de histórias”, “benzedeiras” e dos “estaleiros” constituem movimento de resistência coletiva frente ao constante desmanche da cultura local. Quanto à alteridade, Suely Rolnik nos aponta, que “a política de relação com a alteridade encontra-se na própria origem da colaboração entre os artistas que se deu a partir do contágio em mão dupla{...}ambos querendo sair

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de

si

enquanto

territórios

geopolíticos,

existenciais,

subjetivos

e

profissionais”(ROLNIK, 2003: 07). Desta forma, a alteridade seria aquilo que promove um deslocamento do lugar de reconhecimento em que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, a existência do indivíduo só é permitida mediante um contato com o outro - que em uma visão expandida torna-se o outro. Do convívio como economia O encontro e as relações de convívio gerado a partir de um projeto de arte coletiva como da horta comunitária e canteiros, proporciona um espaço em que uma nova economia é gerada. O emprego do termo economia baseia-se naquilo que para Bourriaud é o que “caracteriza a obra de arte como produto do trabalho humano, seu processo de fabricação e produção, sua posição no jogo das trocas, o lugar - ou a função – que atribui ao espectador e, por fim (d) do objeto da arte, não de sua prática; da obra tal como é tomada pela economia geral, não de sua economia própria.” (BOURRIAUD, 2009: 58). Ou seja, no circuito compartilhado e colaborativo que a horta comunitária e canteiros instauram a partir das relações de convívio, novas economias são geradas: economia de trocas reais e simbólicas como troca de experiências, relatos ou a troca de saberes. Bourriaud define ainda, que a obra de arte representa um interstício social, termo usado por Karl Marx (1818-83) para designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia capitalista que não obedeciam à lei do lucro. O interstício seria ainda um espaço de relações humanas que sugere outras possibilidades de troca, sendo o convívio uma forma de economia. A produção de um projeto de arte coletiva promove encontros que geram como produto uma série de relatos de experiências que torna possível o deslocamento de um projeto em arte para a horta comunitária e canteiros como produto para o convívio e de novas subjetividades. O cultivo da horta comunitária e de canteiros pode culminar em novas propostas, fruto deste convívio, ou ainda da condição dos participantes como produtores inseridos em seu contexto; porém, sempre surgem adversidades quanto à finalidade dos encontros dentro de uma definição em arte ou em

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comunidade como realidades distintas. A forma do encontro como objeto fica refém da discussão quanto aos limites dos espaços de abrangência da instituição Arte ao questionarmos tais valores. Qual a condição do encontro, do convívio como objeto-arte e de indivíduo-artista junto às engrenagens da crítica do sistema de artes visuais?

Qual seria a condição adquirida à horta

comunitária e canteiros se o registro de seu processo da mesma fosse lançado em uma galeria ou espaço cultural, ocupando assim um espaço tradicional no sistema das artes visuais? A relação de convívio além de tornar possível a execução de um processo de produção do encontro, de um projeto coletivo em arte, possibilita a reflexão de novas possibilidades para este convívio assim como pensar soluções em arte e seus limites na esfera pública e privada enquanto instituição Arte. A este exemplo é possível lembrar grupos coletivos que atuam em projetos de arte colaborativa, como os coletivos Bijari6, Superflex7 ou o trabalho de Rirkrit Tiravanija8 em que o espaço de convívio gera projetos coletivos em arte junto á comunidades específicas ou grupo de pessoas. Muitos projetos institucionais desenvolvem propostas e eixos curatoriais específicos que valorizem projetos coletivos em arte que desenvolvam projetos coletivos destes artistas em comunidades. A este respeito, Laddaga comenta que “un número cresciente de artistas y escritores parecia comenzar a interesarse menos em construir obras que em participar em La formación de ecologias culturais.” (LADDAGA, 2006: 29). A definição de ecologia cultural remete do entendimento do conceito de biorregionalismo em que se observa um local específico em termos de seus sistemas naturais e sociais, cujas relações dinâmicas ajudam a criar um senso de lugar, enraizado na história natural e cultural. Deste conceito nasce o

6 COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org – “Sustain Yourself” (SP 2008) /sustentabilidade urbana 7 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.org – “Supergas” (Camboja, 1996-97) 8 Rirkrit Tiravanija (Buenos Aires/Tailândia) http://br.video.yahoo.com/watch/3654873/10062562 - A este exemplo é possível lembrar-se de Rirkrit Tiravanija, no Aperto 93 da Bienal de Veneza, onde o artista mantém um fogão aceso com uma panela contendo água em ebulição para o preparo de sopas chinesas desidratadas, que o visitante pode servir à vontade durante a exposição.

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território cultural, apresentado por onde Laddaga ao apresentar a definição de ecologia cultural - uma invenção de mecanismos que permitem articular processos de modificação de estados de coisas locais e de produção de ficções, fabulações e imagens, de maneira que ambos os aspectos se reforcem mutuamente. Podem ser aleatórios e multidirecionais, trabalham na construção do outro num espaço de convívio e de colaboração direta com diferentes campos de saber dentro destes espaços de diferença. A descontinuidade gerada pelos processos coletivos e em comunidades, como nos exemplos citados anteriormente, culminam em acelerar e re-significar o processo de convívio entre os membros das comunidades envolvidas a para uma prática coletiva. Como uma horta coletiva pode ser uma obra de arte? Nicolas Bourriaud instiga-nos a pensar no espaço fora da instituição Arte como forma ao falar da ordem comportamental da arte atual, remetendo-se a Félix Guattari ao questionar “como uma aula pode ser uma obra de arte?” (GUATTARI In: BOURRIAUD, 2009: 144). Pois, para Guattari, “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo” (GUATTARI In: BOURRIAUD, 2009: 145). Sendo assim, esta definição aplica-se às práticas dos artistas contemporâneos ao criar e colocar em cena dispositivos de existência que incluem métodos de trabalho e modos de ser ao invés de objetos concretos que até agora delimitavam o campo da arte. Desta forma, o espaço da horta é também um espaço de uso do subjetivo, já que faz uso de parte do cotidiano da produção do saber, assim como faz uso de parte do cotidiano daquilo que tange o universo íntimo das pessoas. Na combinação entre arte e vida podemos encontrar, no ambiente urbano, a possibilidade de uma arte que toma como direção a esfera das interações humanas em seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico e privado. A permanente troca de posicionamentos entre o binômio artista-comunidade culmina em intersubjetividades que se entrecruzam em movimento aleatório e contínuo dentro do espaço da horta. A arte contemporânea dentro deste espaço reflexivo passa a ser uma relação a ser

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experimentada, uma realidade a ser vivida. Para Bourriaud, “uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estarjuntos, o encontro entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido (d) e da arte como lugar de produção de uma socialidade específica.” (BOURRIAUD, 2006: 21-22). O espaço da horta passa a ser então, o simultâneo espaço da arte e do convívio como objeto. A produção de uma horta comunitária e de canteiros como espaço de produção em arte, reafirma a condição da experiência de vida e do espaço do convívio como condição presente para a produção de arte, assim como o potencial da arte para transformar o espaço social e as relações humanas. Bourriaud formulou a sua “estética relacional” a partir da convivência com um grupo de artistas, entre os quais Rirkrit Tiravanija, Philippe Parreno, Liam Gillick, Pierre Huyghe, Maurizio Cattelan, Vanessa Beecroft, Dominique González-Foster. Apesar de terem uma produção bastante diferente entre si, os artistas analisados por Bourriaud trabalham com freqüência de forma colaborativa e partilham uma preocupação com a interatividade e com as relações entre o artista, o espaço social e o espectador. Essa preocupação com o contexto e com a interatividade seria, portanto, a especificidade da produção contemporânea no início dos anos 90. Ao pensarmos na horta comunitária e canteiros como experiências de convívio no espaço da comunidade, acabamos por abrir outros canais de conexão com outras estruturas existentes em nosso perímetro e campo de atuação. Sem dúvida, o entendimento de uma estrutura rizomática é procedente em um espaço que novas vivências são desencadeadoras de novos e múltiplos olhares, incluindo o nosso próprio olhar sobre nós mesmos. No que concerne à forma e o olhar do outro, Bourriaud afirma que “a forma só assume sua consistência (e adquire uma existência real) quando coloca em jogo interações humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma negociação com o inteligível que nos coube. Através dela o artista começa um diálogo.” (BOURRIAUD, 2006: 29). O trabalho de inserção na comunidade tem como um dos referenciais teóricos, o esquema metodológico em arte proposto por Suely Rolnik em

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Alteridade a céu aberto: o laboratório poético político de Maurício Dias & Walter Riedweg. O processo metodológico apontado por Suely Rolnik refere-se ao trabalho da dupla de artistas, que desenvolvem seus trabalhos artísticos em comunidades específicas, marcadas pelas diferenças sociais surgidas a partir do sistema capitalista e que modificaram as estruturas sociais originais de uma comunidade. Suely analisa o trabalho em “arte pública” dos artistas, sendo esta definida por eles como um trabalho em arte com comunidades através, ou não, de instituições públicas e privadas interessadas em promover um trabalho de arte em comunidades específicas. As etapas metodológicas propostas por estes artistas em um trabalho junto às comunidades são: 1) ir ao encontro do universo onde pretendem se inserir e deixar-se impregnar pelo convívio; 2) selecionar os elementos que integrarão o dispositivo – pessoas, modos, lugares, bem como as dimensões a serem mobilizadas; 3) estratégias de interação com o grupo escolhido de modo a criar as condições de uma vivência compartilhada; 4) invenção de meios de comunicação circunscritos ao público da arte; 5) invenção de meios de comunicação para um público mais amplo e variado, em expansão e em muitas direções ao mesmo tempo. No sentido de trabalhos que apontem para o trabalho de certos artistas, Suely Rolnik parte do pressuposto de que dispositivos utilizados por artistas em comunidades “colocam o mundo em obra. Não qualquer mundo, nem qualquer obra. Os mundos nos quais operam situam-se às margens do universo supostamente garantido do capitalismo mundial integrado; são excrescências produzidas pela própria lógica do regime” (ROLNIK 2003: 1). Atuações de coletivos artísticos, assim como ações curatoriais em arte relacional têm tomado frente no sistema internacional de artes visuais e contemporâneas, provocando um deslizamento na compreensão dos paradigmas para compreensão da arte contemporânea. No uso de dispositivos relacionais para um trabalho em arte coletiva na comunidade, o grupo envolvido passa a atingir novas possibilidades de atuação no real – seja uma horta comunitária ou uma produção coletiva em arte - estes acabam por materializar novos espaços de vida que geram sua participação direta, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O

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resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída.

Referenciais Teóricos BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; tradução Denise Bottmann - São Paulo: Martins Fontes, 2009. BOURRIAUD, Nicolas. Pós Produção - Como a Arte Reprograma o Mundo Contemporâneo; tradução Denise Bottmann - São Paulo: Martins Fontes, 2009 GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografias do desejo – 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes,1986. LADDAGA, Reinaldo; Estética de la emergência – 1 ed.; Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006 ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto - O laboratório poético-político de Maurício Dias & Walter Riedweg In: Posiblemente hablemos de lo mismo, catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona: MacBa, Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2003.

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Artigos

Comunicações indiretas entre León Ferrari e Mira Schendel, sob um alfabeto enfurecido Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak1

O alfabeto enfurecido de Schendel2, apresentado na Fundação Iberê Camargo entre abril e julho de 20103, funciona como uma brincadeira. Neste espaço arquitetônico favorável9, explorando a grafia, a letra, suas semelhanças e nossa familiaridade com elas, Ferrari4 e Schendel nos lançam obras que questionam a linha entre o símbolo e o sentido. Durante sua carreira, Mira sempre recebeu críticas que acusavam sua obra de difícil compreensão para um público mais amplo. Pudera. Schendel sempre foi discreta, não gostava de falar de si mesma ou de seu trabalho. Isso tornava árdua a tarefa de compreender a obra da artista através de suas próprias palavras. No entanto, como quem confia segredos, Mira Schendel faz o

espectador

aproximar-se

fisicamente

de

seus

trabalhos,

notar

as

transparências e chegar perto de sua grafia. Em muitas de suas obras, as escritas transparentes, não detectáveis por fotografia, criam um elo íntimo entre o espectador e a artista, autora dessas

1

Bruno Dorneles da Silva é graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, onde participa do Grupo de Pesquisa em Estudos Sistêmicos e Historiografia da Arte sob a coordenação dos professores Bianca Knaak e Luís Edegar Costa. Desenvolveu esse texto em parceria com a professora Bianca Knaak (Doutora em História) a partir da disciplina Fundamentos da Arte. 2 Mira Schendel nasceu na Suíça em 1919, mudou-se para Porto Alegre em 1949, onde morou por 4 anos, antes de se mudar para São Paulo, onde residiu por 35 anos, até seu falecimento, em 1988. 3

O Alfabeto enfurecido, exposição sob curadoria do venezuelano Luis Pérez-Oramas, curador de Arte Latino Americana para o MoMA (Museu de Arte de Moderna de Nova York). Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo de 8 de abril a 11 de julho. 9

Antes de chegar à exposição, se chega à Fundação Iberê Camargo, primeira obra do arquiteto português Álvaro Siza no Brasil, projeto que lhe rendeu o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002. Em todos os sentidos esta construção nos causa admiração, revelada principalmente, no confronto com as experiências que cada um tem com a arquitetura concebida com o intuito de servir. 4

León Ferrari nasceu na Argentina em 1920. Exilou-se em São Paulo em 1975, fugindo da ditadura na Argentina, e só voltou a Buenos Aires em 1991, onde reside até hoje.

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cartas. Em presença do trabalho e sob transparências, Mira entrega partes de seus pensamentos (segredos?). Ela sabe que só aqueles que quase tocarem o papel de arroz, com os olhos, serão capazes de apreciar e entender não só o trabalho, mas também a sua versão em letra viva. Portanto, mais do que tímida ou arredia, na própria fatura de seus trabalhos a artista se mostra seletiva quanto à recepção de sua obra.

Mira Schendel – Uma brincadeira de se esconder

Já nas primeiras obras da exposição aprendemos como aceder ao processo de trabalho da artista, num percurso que sugere fazer, olhar e depois pensar. No texto-objeto que compõem seus trabalhos, vemos linhas que ora se caracterizam como símbolos distorcidos, ora são símbolos formados por linhas distorcidas. Sentam no papel, somem no papel, projetam o papel. Bi e tridimensionalmente, lógica e conseqüentemente. Para acentuar a necessidade de reciprocidade entre artista e espectador, Mira deixa em branco o título. Quiçá para não entregar-se como um texto codificado àqueles que olham uma obra atentamente só depois de entender seu nome. Em sua série “Droguinhas”(1964-66) Mira usa o finíssimo papel arroz de forma escultórica. Ao transformar sua função, negando-lhe a fragilidade (característica mais comum desse papel), dá vida ao suporte de outra maneira. Silenciadas no papel, projetadas noutro espaço, as palavras ali unidas se tornam frases. Frases que pendem do teto, que formam esferas e emaranhados. Vemos aqui uma oportunidade de evidenciar a problemática da comunicação atual: um projeto embaralhando palavras – que se constroem umas por cima das outras, que escondem o que foi dito antes –, deixando valer o que foi dito por último, negando a linearidade construtiva do passado, da palavra, do homem.

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Mira Schendel – S/ título, da série Droguinhas (1964 – 1966)

Num momento posterior, com sua série “Toquinhos”(1970), Mira demonstra o quanto “a linguagem é uma forma transparente que só se completa por meio de uma interação pública” para o que “estes signos indecifráveis aguardam um sentido ou voz que se aproprie deles”5. Suas placas de acrílico, que funcionam como janelas, de acordo com a artista, dão vida à letra, ao “signo indecifrável”.6 Sob diferentes visões, as letras, quadro a quadro coladas no fundo das placas de sustentação, “chamam” o espectador. Brincam com o olhar, jogam com itinerários dinâmicos, hora fixando-se no enquadramento áureo, hora estando quase fora do bastidor acrílico. Também em “Toquinhos”, nos deparamos com a reiterada necessidade de aproximação do olhar. E, novamente, se afirma, nestes, a premissa básica para o observador de todo o trabalho da artista: ver até sentir. Ali, os símbolos, que se desligam de um sentido convencionado (signo), por estarem livres, sem conexão com os demais ao redor, voltam ao devir expressivo da linha, à abertura do sentido que Schendel também explora na sua série de monotipias. Alguns signos maiores que outros, mais finos, mais ondulados... Na atenção do observador, todos perdem seu poder de dar sentido em favor de um valor mais dócil e potente, o de ganhar um sentido.

5

Texto explicativo retirado da exposição “León Ferrari / Mira Schendel – O Alfabeto Enfurecido”, ao lado da obra “s/ título” da série Toquinhos, de 1970, da artista Mira Schendel. 6 Idem.

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Mira Schendel – S/ titulo, da série Toquinhos (1970)

Ao final da exposição temos a nítida sensação de conhecer a artista profundamente.

Encaramos então não mais uma artista tímida de difícil

compreensão, mas ficamos diante uma grande artista que consegue, com maestria invejável, lançar mão do individualismo para “contar coisas” a quem estiver disposto a escutar/ver/sentir. Como uma brincadeira de esconder, que só acaba de verdade quando se acha o que se procura.

León Ferrari – a verdade sobre a linha.

Na mesma exposição, o alfabeto enfurecido de León Ferrari é impregnado de ímpeto, denúncia, braveza e arrebatamento. Sua obra é carregada de verdades inconvenientes. León é apresentado como um artista atuando por contornos marginais do sistema, com um trabalho que põe tudo sob suspeita. Ferrari causa contrastes que gritam, que quase explodem, e que o caracterizam como um artista não só de mão cheia, mas principalmente de boca cheia. Boca cheia de razões, olhos bem abertos, mão muito ativas. A cada momento seus trabalhos atordoam e questionam. Seja na forma, no conteúdo, no texto sugestivo dos títulos, no conjunto ou no contexto de sua realização. Em uma de suas obras de maior destaque, “Cuadro Escrito” (1964), o recurso caligráfico, a letra, as palavras, soam mais evidentes enquanto

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semelhanças que o aproximam do trabalho de Schendel. Neste quadro escrito, preocupado com o movimento mais do que com a forma, Ferrari escreve na tela o que a pintura representa. Com um gestual graciosamente arredondado, Ferrari nos faz lembrar a Pedra de Roseta7, deixando clara a intenção de usar o quadro como meio de comunicação não só com uma etnia, mas com outras tantas, e também de colocá-lo como peça curinga de suas próprias obras, manancial para decifrar outros enigmas.

León Ferrari - Cuadro escrito, 17 de dezembro, 1964

Ainda em “Cuadro escrito”, León coloca à luz um debate intermitente também para a arte contemporânea: o que define o figurativo? Quando lemos uma passagem com características literárias ou epistolares, nós acabamos imaginando o que o texto nos propõe, nós figuramos o que está sendo narrado. Assim, nesse trabalho em especial ( mas outros também), ao apresentar símbolos seqüenciais (que dependem do seu seguinte e do seu anterior para 7

Que tornou possível a tradução dos hieróglifos por conter, em outra parte, o mesmo texto escrito em grego clássico.

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configurar sentido), existe algum meio coerente/convincente para que não consideremos esta obra uma figuração, uma representação do que foi pensamento, imagem mental? Já na obra “Quisiera hacer una estatua” (1964), Ferrari propõe o meiodito, a mensagem que não se completa. O pensamento visual começa acima de onde podemos continuar, como uma imagem que se afirma, mas que se deixa ludibriar pelo que a segue. Em ambos os trabalhos (“Cuadro escrito” e “Quisiera hacer una estatua”) Ferrari emprega a caligrafia confusa, criando desenhos que se tornam textos. Mesmo nas suas modificações, com certas letras maiores que outras (e palavras que parecem sobrepor-se), essas obras são legíveis. São mensagens destinadas a quem quiser lê-las e se esforçar para isso, pois Ferrari impõe obstáculos para que apenas os interessados entendam. O mesmo jogo de esconde e aproxima que Mira faz, porém, com roteiros distintos. Desdobrando ainda mais sua linguagem, León constrói “Amad”(1996), onde introduz a escrita braile sobre fotografias. Ali a mensagem não pode ser lida com os olhos, por mais que se tente. A vitrine, que impossibilita o toque, anula a comunicação entre a obra e o espectador, deixando-o desconfortável e curioso diante de um escrito impossível de ler. Diferente oportunidade se tem com outras obras, quando o artista usa o mesmo recurso do braile sobre fotografia, porém sem vitrine, ou quando, noutro trabalho, entrega a fonte inspiradora ao leitor. Com isso, acaba transformando, de maneiras variáveis e em variados graus, a relação do espectador/observador com a obra. Nesse encaminhamento poético, Ferrari impõe ao público a passividade da observação sem registros, sem juízos. O artista cria um jogo onde ele é o mestre supremo, um emissor de memorandos públicos, porém de difícil ou impossível leitura.

As inconvenientes verdades de Ferrari.

O que povoa a cabeça de Ferrari? Seria sua memória ou sua consciência que o impelem a “dizer” algumas coisas, da forma que as diz? Em “Atado com alambre”(2006), León nos remete ao inferno católico e aos regimes

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políticos ditatoriais. Usa ossos possivelmente por sua associação com a morte elegíaca, aquela que já pode ter sido esquecida pelos mortais. Com ossos ele então nos lembra das mortes promovidas pela ditadura Argentina. Mortes que habitam a alma do artista. Que alimentam sua gana por verdades, por registros, por palavras justiceiras onde não cabe consolo. Ossos aglomerados, apertados, corpos descarnados. Ossadas que cobram, indagam sobre o valor humano, o silêncio e o lugar dos homens diante do governo ditador que ceifou vidas, torturou corpos e sonegou cadáveres. Os arames que costuram um osso ao outro podem remeter à culpa de quem os costurou/fraturou/escondeu, ou lembrar a impotência de alguém que viu um corpo e, condenado pelas circunstâncias, apenas cuidou para que seus ossos ficassem juntos, para que no futuro, quando o medo fosse passado, alguém os encontrasse para recontar essa história e outras verdades. Na mesma forma de representação auto-invocada, implicada, indignada, quando Ferrari cria suas “relecturas de la biblia” através de collages, faz críticas pesadas à igreja católica. Leon cria collages com figuras sacras, e as coloca em pose de adoração a armamentos, helicópteros de guerra e foguetes. Invoca assim uma adoração à conquista desenfreada e ao imperialismo, sempre apoiados pela igreja que, em momentos desumanos prefere manter-se calada, para não precisar ficar de algum lado da guerra (talvez para manifestar aí, sua fé na ordem divina). León ainda demonstra, em camadas coladas, a natureza sobre-humana dos conflitos e descobre neles seus santos e armas de destruição em massa.

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León Ferrari - Carta a un general 18 de junho, 1963

Passando da proclamação invocada às comunicações indiretas, Ferrari cria “L’Osservatore”, “Declaración de le Academia Pontificia” e “Ciertamente la vida vencerá”, outras collages onde pega manchetes de jornais e as ilustra com novas figuras, dando outro contexto à obra pronta. Com essas obras Ferrari deixa claro seu objetivo questionador e, ao mesmo tempo, infringe ao espectador uma paralisia momentânea. Em cada trabalho o artista nos questiona sobre o que sabemos a respeito, e quase nos obriga a escolher o que tem nele de verdade e de mentira. Ambivalente, irônico, sagaz, a mensagem se torna contrária à imagem, em uma produção onde então nos perdemos, sem saber em que, de fato, acreditar: na mensagem escrita ou na narrativa visual? Há um julgamento de valor entre o que se vê e o que se sabe ou se pode saber, pedindo uma tomada de posição no tempo presente.

Universos que conversam.

Tanto Schendel quanto Ferrari trabalham de forma curiosa com a letralinha. Muitas vezes, usam letras que tem movimentos de linha perto de linhas,

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e linhas que poderiam ser letras se não estivessem tão perto de outras letras mais evidentes. Esse jogo nos faz pensar “o que é feito de quem?”, pois já não entendemos mais se é a linha sinuosa que forma a letra, ou se a letra desfigurada é que forma a linha. Principalmente quando um exemplo está intimamente ligado ao outro. Mas o “alfabeto enfurecido” que reuniu os artistas é tanto metafórico quanto polissêmico. Em cada caso, o que entendemos por alfabeto é, em progressão, outra coisa. Outros signos que teimamos em assimilar como alfabeto. Enfurecem em sua natureza e devir, enquanto continuamos a ver apenas o que eles têm de evidente, sem nos atermos ao mais importante: saber com quais textos/linhas/termos estamos lidando em cada trajetória. No entanto, mesmo em seus momentos mais íntimos (e, portanto, distintos), esses dois artistas permitem uma ligação poética forte, sob o apelo da linguagem cognitiva. Ambos exploram as codificações do alfabeto de maneira nada simples. Enquanto Mira vê nas letras uma extensão da linha e a privilegiada conexão de sentido entre elas, León foca a ambigüidade da comunicação. Ou seja: até onde uma imagem/mensagem continua fazendo sentido da maneira que foi feita para fazê-lo e, quando, em que momento, isso se perde ou modifica? Ferrari pensa a síntese e o paradoxo do entendimento. Os dois utilizam os elementos da linguagem não apenas com o sentido de comunicar (ou comunicar-se), mas como um material físico, capaz de construir ou alterar formas. Geram linguagens artísticas como regime de imagens mundanas de comunicação e realidade estética. Através de línguas (e talvez assuntos) diferentes, enquanto Léon Ferrari, berra, anuncia, explode, Mira Schendel conversa, sussura, cutuca e cochicha. Dois artistas de personalidades e temperamentos diferentes, mas igualmente afirmativos em suas proposições artísticas.

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Artigos

Os espaços em trânsito da Arte: In-situ e site-specific, algumas questões para discussão Tiago Giora

Se a escultura moderna absorveu o seu pedestal/base para romper a sua conexão ou expressar sua indiferença ao local (site), tornando-se mais autônoma e auto-referencial, e, portanto transportável, sem lugar e nômade. Então trabalhos site-specific, quando emergiram na onda do minimalismo no final da década de 60 e inicio da década de 70, forçaram uma reversão dramática nesse paradigma moderno1.

Neste trecho do artigo “Um olhar após o outro: anotações sobre SiteSpecificity”, escrito para a Revista October em 1997, a arquiteta e crítica de arte Miwon Kwon parte analisando o desenvolvimento das propostas esculturais que começaram nos anos '60 a atuar fora dos parâmetros do Modernismo delineados por Clement Greemberg e Michael Fried. Suas teorias contribuíram para um entendimento da arte como desenvolvimento histórico da linguagem –sobretudo a pintura – apontando para a pureza dos meios e a desconexão

contemplativa

do

público

diante

de

um

objeto

artístico

eminentemente transcendental e isolado no espaço e no tempo. Kwon prossegue observando as mudanças fundamentais ocorridas na arte dos anos '60 e '70 e as reverberações críticas geradas por esses cambiamentos em um cenário que começava a aproximar a arte dos ambientes e ações da vida cotidiana. O desafio epistemológico de deslocar o significado de dentro do objeto artístico para as contingências do seu contexto. A reestruturação radical do sujeito do antigo modelo cartesiano para um modelo fenomenológico de experiência corporal vivenciada2. 1

KWON, Miwon. One place after another: site specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2002, p. 11. 2 IBID, p.12.

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O conceito de site-specific aliado à referência ao fenômeno físico da percepção espacial no pensamento de Merleau-Ponty viriam a criar uma noção de espaço, radicalmente diferente daquela forjada no período moderno. Este novo território fenomenológico englobava a paisagem, entendida como a presença concreta da arquitetura ou elementos naturais, e considerava o indivíduo um participante ativo da obra, conectando-se a partir da apreensão sensorial dos dados visuais e das sensações coletadas no lugar onde a proposta artística se inseria. Os tijolos dispostos sobre o piso em progressão aritmética, de Andre; os perfis industriais soldados e posicionados em serie, um depois do outro, de Judd; as tiras de feltro amontoadas casualmente no meio da sala, de Morris; lâmpadas fluorescentes, de Flavin... Além das proposições volumétricas instaladas na paisagem natural que seguiram na seqüência dos minimalistas. O que havia mudado e como deveríamos olhar para o mundo que se integrava e emprestava elementos para a obra de arte? Miwon Kwon descreve esta modalidade de espaço como a antítese do espaço virtual que o Modernismo havia criado para abrigar a obra de arte. Ela vincula a concretude do espaço minimalista ao caráter tangível e presente do ambiente habitado pelo espectador, que agora é intimado a atravessar as molduras e movimentar-se dentro dos limites arquitetônicos destas novas propostas. O espaço idealizado, puro e incontaminado dos modernismos dominantes foi radicalmente substituído pela materialidade da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano. (...) O trabalho site-specific em sua primeira formação focava no estabelecimento de uma relação inextricável, indivisível entre o trabalho e o site, e exigia a presença física do espectador para completar o trabalho3.

3

IBID, p. 11.

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Em Caminhos da escultura moderna, a crítica de arte Rosalind Krauss cita o trabalho de Bruce Nauman; artista que transita no campo da performance, instalação e vídeo ; como exemplo do novo paradigma que começava, desde meados dos anos '60, a modificar as características das práticas escultóricas desenvolvidas até o Modernismo. Segundo ela, sua produção, assim como a de Morris, Oldemburg e outros artistas ligados ao Minimalismo, às performances e à Pop art; traziam para o terreno da escultura um nível de movimento e interação participativa com o público que foi, na época, identificado pejorativamente como teatralidade4, e que afetaria a relação entre obra e observador tal como era entendida até então. A instalação de Bruce Nauman na Wilder Gallery (1970) exerce pressão sobre a idéia que o observador tem de si mesmo como "axiomaticamente coordenado" – como estável e imutável em si e para si mesmo5.

Em relação à obra Corridor (1969-70); de Nauman, Krauss analisa uma mudança no centro de percepção e movimento que se reposicionara no corpo do observador/ator em deslocamento ao longo do espaço proposto pelo trabalho. O circuito fechado de câmeras e monitores instalados dentro de um corredor estreito convidava o individuo a participar da proposta e inseria a percepção de seu próprio corpo como um dos temas centrais da discussão. A proposição artística, experienciada a partir de um ponto vista interno, móvel e particular de cada individuo, abre as portas para situações de trabalho mais abertas e inclusivas. O contexto que se agrega ao "espaço da obra" vem, desde Nauman e os minimalistas até os dias de hoje, ganhando em complexidade e incluindo universos que extrapolam o campo físico, chegando aos terrenos da política, da psique do individuo em sociedade.

4

"A presença da arte literalista, a qual Clement Greemberg foi o primeiro a analizar, é basicamente um efeito ou qualidade teatral – um tipo de presença de palco. É uma função não apenas de objetividade e, freqüentemente, até da agressividade dos trabalhos literalistas, mas da cumplicidade que o trabalho exige do observador". Michael Fried em Art and objecthood, 1967. Publicado em: The artist's body, themes and movements. London: Phaidon, 2000, p. 203. 5 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1998, p.288.

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Este movimento de saída das galerias,

sua

repercussão

nas

relações do público com a obra, assim como as diferenças essenciais entre o ambiente controlado das instituições e o caos vivo das cidades, são aspectos centrais dos escritos do artista e crítico

Francês,

expressos

em

Daniel seus

Buren,

Textos

e

entrevistas escolhidos, 1967 – 2000:

Bruce Nauman: Corridor, 1968-70

A atenção do pedestre comum em relação ao que o cerca na rua, é muito menos viva que aquela possivelmente esperada de um atento visitante comum no museu. O pedestre em geral não está na rua para contemplar, mas sim para se encaminhar o mais rapidamente possível de um ponto ao outro6.

Buren considera que os museus ainda hoje tenham o poder de definir como arte aquilo que o espectador encontra diante de seus olhos, enquadrado no espaço pelo pano de fundo neutralizante do cubo branco7. Segundo ele o mesmo não acontece na rua. O olhar ali é mais rapidamente desgastado pelo constante bombardeio visual ao qual o pedestre é submetido, sendo este 6

Daniel Buren, “Textos e entrevistas escolhidos, (1967-2000)”. P. 194 Conceito cunhado pro Brian O´Doherty em No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte. No livro O'Doherty argumenta que: “A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é ‘arte’. A obra isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores". (p.3). 7

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obrigado a fazer uma seleção dos elementos que irão lhe servir de referência ao longo do seu percurso: muitos objetos, sinais arquitetônicos, mobiliário vão se perder na edição da memória. O que fica? Como a arte pode revelar o anônimo transformando-o em singular? Tudo que se expõe ao ar livre depende desse ar, levando-se em conta que, no que concerne à cidade, trata-se de um ar extremamente poluído8.

Este retorno da arte ao contexto dos objetos cotidianos é visível no Minimalismo principalmente pela utilização de materiais industriais ou objetos encontrados no comércio, estranhos à tradição da arte produzida até aquela época. No entanto, esta identificação com uma vida que acontece fora do circuito da arte não vincula os trabalhos, necessariamente, aos espaços nos quais esses se instalam, estejam esses dentro ou fora das galerias. Nessas propostas o objeto de arte, frio e aparentemente vazio de carga expressiva, continua isolado entre as paredes, que entram na proposta como um pano de fundo ativo, mas sempre um pano de fundo. Diferentes reflexões sobre o espaço minimalista passam a considerar a obra dentro de um contexto físico complexo formado pelo corpo do observador e pelos objetos que o cercam, incluindo os materiais e as formas retiradas do próprio espaço. Toda a matéria presente no espaço faz parte de um conjunto interconectado de fatores que atuam no ponto de contato entre o observador e a experiência perceptiva diante da materialidade do mundo. Embora ampliado, o campo do Minimalismo não chegava a incluir fatores psicológicos, sóciopolíticos ou, de maneira geral, aspectos que fugissem do raio de ação da obra em sua dimensão física e presente. Tal constatação revelava um componente idealista no movimento. Talvez indesejado por estes artistas que haviam proposto inicialmente uma resposta a um tipo semelhante de fechamento conceitual promovido durante o Modernismo. A restrição da experiência perceptiva ao contexto físico em torno às obras se relacionava, em minha opinião, a certo arraigamento a um tipo de 8

Buren, D. Op. Cit. P. 192.

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compreensão que definia a arte como fenômeno puramente visual. Dentro deste universo dominado pelo olhar, os limites da obra se expandiram ao máximo, até onde alcançava a percepção. Procurando flexibilizar este ponto de rigidez, muitos artistas começaram a trabalhar incorporando elementos que propositalmente extravasavam o contexto espacial e assumiam uma potência mais crítica das instituições artísticas. Artistas como Michael Asher, Marcel Broothaers, Daniel Buren Hans Haacke e Robert Morris conceberam um lugar definido como uma estrutura cultural influenciada pelas instituições de arte e um público que passava a ser considerado como sujeito histórico. Na análise das correntes de pensamento artístico que envolvem, dão antecedentes e traçam possibilidades futuras para

ações

no campo da

escultura e das intervenções urbanas; volto a apoiar-me no pensamento de Miwon Kwon para adentrar nas influências pós-minimalistas. Essas novas vertentes enfocadas abandonam muito da identificação minimalista com o vocabulário arquitetônico de formas e procedimentos, para aproximar-se de uma compreensão mais crítica dos fatores políticos e institucionais envolvidos na produção das propostas: A transição do Minimalismo à Arte conceitual a partir dos processos de desmaterialização do espaço teve a arquitetura dos museus e galerias como ponto de partida para as primeiras formas de abordagem crítico-institucional da arte, que procuravam expor o aparato burocrático no qual o artista estava preso e seu impacto sobre o “valor” da arte. O espaço físico – literal – que já não continha todos os aspectos da experiência e da relação publico/obra, agora se esvaziara completamente, deixando de ser o elemento principal na concepção de um trabalho. Concomitantemente a esse movimento de desmaterialização, também uma desestetização do trabalho de arte começa a direcionar os artistas para propostas imateriais ou agressivamente anti-visuais. A escultura A liberdade agora vai simplesmente ser patrocinada – com a verba da caixinha, proposta pelo artista alemão Hans Haacke em 1990 para a

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Potsdamerplatz no centro de Berlin; faz um comentário ácido a respeito da força avassaladora com que o capital privado dominava o norte da Europa e da Alemanha em reconstrução após a queda do muro de Berlin. Haacke colocou um símbolo da Mercedes Benz no topo de uma das torres de observação que ainda restavam do sistema de vigilância de fronteira. Em um dos lados da torre ele fixou as palavras de Goethe "Kunst bleib Kunst" (arte permanece arte). No caso de Haacke, o ambiente no qual o trabalho se instalava, funcionava como um elemento motivador para a percepção e o conhecimento do artista, que construía questionamentos e transmitia-os ao público por meio de um elemento escultórico agregado a esses espaços. O trabalho criava um engajamento com a dimensão histórica, política, e econômica do contexto, que podia ser um espaço institucional da arte ou um ambiente urbano. A arquitetura das cidades, na visão de Haacke ou Buren, seria representativa de uma linguagem preparada e aplicada a partir de determinações históricas; e seria abordada pela arte com o mesmo tipo de conotação. O trabalho de arte representaria uma possibilidade de revelar ou discutir as instâncias do pensamento humano que interferem na realidade na qual as pessoas vivem. O espaço construído passa a ser analisado por seu conteúdo simbólico, muito mais do que por seus contornos físicos. Do anti-espaço arquitetônico até as novas possibilidades de diálogo com os diversos lugares da arte, abertas na contemporaneidade, Kwon explica esse retorno como uma conexão mais íntima com o cotidiano das cidades em confronto à auto-referência de algumas propostas de teor conceitual – a arte discutindo e criticando a si mesma. (...) se a crítica do confinamento cultural da arte via suas instituições foi a “grande questão”, um impulso dominante de práticas orientadas para o site hoje é a busca de um engajamento maior com o mundo externo e a vida cotidiana – uma crítica da cultura que inclui os espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte (em realidade borrando a divisão entre

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arte e não-arte), preocupada em integrar a arte mais diretamente no âmbito social9.

Estas diferenças conceituais assumem contornos mais nítidos quando comparamos dois trabalhos de Carl Andre e Gordon Matta-Clark. Nas obras: 37 Pieces of Work, de Andre (1969); e Office Baroque, de Matta-Clark (1977); os artistas atuam sobre o piso da edificação onde as obras se inserem. A proposta de Andre atrai o olhar do observador ao piso pelo fato de se colocar sobre ele. Ao mesmo tempo em que observa e avalia as características visuais, a disposição e o arranjo das lajotas, o visitante da galeria poderia investir-se de um nível de consciência maior do que o usual em relação ao ato de caminhar. Seus pés pisando um assoalho de madeira, evitando as lajotas metálicas... Qual seria a sensação de andar sobre elas? E que sensação tenho agora? Estabelece-se uma relação com o ambiente por meio da comparação entre esses dois elementos bem distinguíveis: obra e piso.

Carl Andre: 37 Pieces of Work, 1969

9

KWON, Miwon. Op. cit. p. 24.

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Gordon Matta-Clark: Office Baroque, Antuérpia, Bélgica, 1977

De outro modo, nos deparamos com uma intervenção de Matta-Clark, como Office Baroque, na qual o próprio piso é convertido em material de trabalho e foco da experiência perceptiva. O público não tem um elemento contrastante para guiar o olhar e o deslocamento. A arquitetura, de um coadjuvante

competente,

passa

a

ser

protagonista

da

visão

e

dos

deslocamentos. Sem separação entre obra e ambiente, a arte aqui é o próprio ambiente modificado pelo artista.

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Desta maneira, o mais recente movimento de ampliação do campo da arte, incorporando esse engajamento com a arquitetura e com a cultura favorece o trabalho nos locais “públicos” fora dos confins tradicionais da arte em termos físicos e intelectuais. Com esses novos contextos acrescentados à experiência física do observador, o termo site-specific seria oportunamente seguido pela noção de in-situ10,utilizada por Daniel Buren para descrever não apenas a posição e os materiais, mas também os fatores históricos, políticos e sociais presentes em uma determinada situação espaço-temporal na qual a obra se insere. Os lugares participam das obras como fonte geradora de formas e são o terreno final de construção crítica e debate. Pode-se, a partir de Daniel Buren, considerar que a primeira característica de uma obra in-situ consiste em opacificar, e assim tornar visível, a circunstância em que ela é vista e não apenas seu lugar. (...) a noção de site-specificity caracteriza de maneira muito imperfeita as modalidades de referência, pois na maioria das vezes ela mantém a idéia de que a obra pertence ao lugar e não o contrario11.

A partir das considerações sobre o "espaço minimalista", tão bem determinado em seus limites concretos, suas origens e reverberações teóricas; chego a questionar se seria possível estabelecer parâmetros definidos para as fronteiras conceituais de um novo "espaço contemporâneo". Este território que foi prolongado nas brechas do discurso fenomenológico e que abrange um número de variáveis capazes de reduzir a distância entre o pensamento artístico e a vida, independente das referências à linguagem ou aos conceitos da arte. Ocorre perguntar: de que maneira essa interação tão próxima entre a 10

"A escolha por trabalhar In-situ significa realizar uma obra em um lugar e de modo específico para aquele lugar. O primeiro passo – o mais difícil – é misturar-se com as características do local, levando em conta sua historia e procurando colher a natureza, o dialogo com a arquitetura e até com as pessoas que vivem ali. É indispensável tentar imaginar os modos nos quais o trabalho poderia interagir ou ser fruído, partindo exatamente do ponto onde é colocado. Uma obra perturba o ambiente no qual é inserida: além das "dinâmicas de reação" que ela poderia desencadear, contam as "dinâmicas de relação" e as "mutações na percepção". Em maior razão em um lugar familiar". FONTANA Sara; GIUSTACCHINI Enrico. Buren e l’utensile visivo. Revista virtual Oggi 7, 10 de agosto de 2008. Acessado em: http://www.oggi7.info/2008/08/21/1235-buren-e-l-utensile-visivo. Trecho traduzido por Tiago Giora. 11 POINSOT, Jean Marc. “L’in-situ et la circonstance de sa mise en vu [au] musée”. Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne Centre Georges pompidou, n.28, 1989. Apud JUNQUEIRA, Fernanda. In: Revista Gávea n.14. Rio de Janeiro: PUC. Setembro de 1996, p.571.

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arte e o cotidiano contribui para a formação de um espaço comum? E quais são as características peculiares deste espaço? Em textual,

sua

Daniel

produção Buren

seqüência às considerações sobre a arte na cidade e expõe suas idéias a respeito do papel dos museus e galerias, sobre o lugar da arte

na

sociedade e

as

relações entre a intervenção e o contexto humano e espacial. Estes textos foram sendo

produzidos

paralelamente a uma serie de intervenções urbanas nas quais o artista investiga o assunto

à

luz

de

sua

definição de in-situ e a partir de suas próprias propostas assim como das obras de

Richard Serra: Tilted Arc, Federal Plaza, NY, 1981

outros artistas. A instalação Tilted Arc (1981) de Richard Serra12; constitui uma situação exemplar e nos permite discutir essas questões sob os pontos de vista de mais de um dos autores trabalhados nesta pesquisa. Tilted arc foi concebido especificamente para o local em questão, seguindo uma rotina de projeto que é comum para os trabalhos deste artista e

12

Richard Serra, escultor, desenhista e vídeo –maker americano. Nascido em São Francisco em 1939, estudou nas universidades da Califórnia e de Yale. Estabeleceu-se em Nova York onde conheceu Eva Hesse, Steve Reich, Judd, Nauman e outros. Trabalho inicialmente com borracha, incluindo peças penduradas ou emaranhados; a partir de 1969 passou a interessar-se primordialmente em cortar, apoiar ou empilhar placas de aço, madeira rústica, etc... Para criar estruturas, algumas muito grandes, suportadas apenas por seu próprio peso. Desde 1970-1, tem produzido varias peças em larga escala e peças "ambientais", assim como desenhos monumentais em carvão ou bastão de tinta. Fonte: http://www.tate.org.uk/servlet/ArtistWorks.

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que envolve medições, transporte de material e um complicado aparato técnico posto em prática em nome de um resultado formal esperado. Nem mesmo o grande impacto visual causado pela obra instalada na praça chega a ser uma novidade, ao interno de uma produção que inclui muitas esculturas monumentais em espaços públicos e privados. "O que é novo, em compensação, é a recusa irrevogável de Serra em ceder aos pedidos de transferência da obra, fato que em muitos casos similares jamais pareceu lhe causar problemas muito sérios, nem uma posição intransigente e irreversível" (Buren, 2001: 171). Essa atitude prova que, pelo menos neste caso, ele não esgotou até o fim as exigências que uma obra in-situ requer de seus executores, uma vez que, tanto quanto o autor da encomenda, aparentemente não estudara os usos e costumes do lugar em questão. Sem essa negligencia, teria notado que sua obra obrigaria os habituais freqüentadores do lugar a fazer um desvio, e que esse fato seria matéria de discussão13.

Na visão de Buren, um campo de ação tão rico em referências como uma praça comercial em meio a um grande centro urbano não poderia ser reduzido a uma situação espacial, desconsiderando os percursos e os usos do espaço. Sua posição sugere uma compreensão mais ampla da problemática envolvida pelo trabalho do artista. E suas obras se valem mais de imagens e códigos visuais para questionar justamente o funcionamento dessa interação entre arte e sociedade, numa dinâmica que se conecta mais fortemente à cultura do que à percepção, tratando antes de questionamentos do que de sensações. São diferenças fundamentais que refletem caminhos diversos tomados desde a formação desses artistas e a comparação de suas obras ou de seu entendimento acerca do espaço, só poderia mesmo ser feita segundo um único elemento comum: a cidade. A identificação da obra de Serra com as estratégias Minimalistas e com a fenomenologia da percepção possivelmente nunca seria confrontada com

13

Daniel Buren, ""Textos e entrevistas escolhidos", (1967-2000), p.170.

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noções voltadas à racionalidade e à história. Não fosse talvez o fato de que ela ter sido instalada diretamente em uma passagem de pedestres e relacionandose com o espaço urbano. Esse terreno sem molduras, livre da mediação institucional da arte promovida pelos museus, galerias e afins; tem sido um dos ambientes preferenciais das correntes que visam tecer relações mais íntimas com a vida cotidiana. É o território por excelência da contaminação dos meios e, assim, torna-se difícil para muitos artistas e críticos tais como Buren, devolver ao objeto artístico, a autonomia temporal e funcional já rejeitada pelas propostas contextuais. Quando se instala no espaço público um obstáculo de aço que obrigatoriamente precisa ser contornado, corre-se o risco de levantar um obstáculo – este sim, público – muito mais difícil, senão impossível de contornar. Se, em contrapartida, Richard Serra tivesse realmente observado esse fenômeno e, mesmo com conhecimento de causa, decidido ignorá-lo, poderíamos dizer que essa peça, por mais inteligente que fosse, constituía também pura provocação, e toda provocação tem resposta14.

Da perspectiva de Serra a questão parece ser enfrentada de um ponto de vista bem mais formalista: os espaços são vistos como tabuleiros onde o artista atua livremente segundo sua vontade criativa. O peso do aço, o modo de sustentação das placas, o recorte no espaço e a presença maciça da gigante placa curvada são elementos importantes em muitos dos seus trabalhos urbanos e atuam em conjunto para construir uma visualidade muito potente que interage na paisagem de forma impactante. A própria escala da obra de Serra já sugere que a convivência com o público seria dificilmente neutra e pacífica. Parece realmente claro que o observador para ele é considerado enquanto um corpo que se move no espaço, matéria que interage e se distorce enquanto percorre a obra com olhos e pernas. Assim enquanto a crítica de Buren parece justificar-se de acordo com os parâmetros hiper-contextuais da arte in-situ, o trabalho de Serra, vale-se da monumentalidade e da modelagem do espaço de trânsito para manter uma relação muito forte com o individuo. Em contato como obstáculo, ele é levado e reposicionar-se no momento espaço-temporal presente e desenvolve a consciência de sua existência dentro do universo imediato. “Quero ver como as

14

IBID, p. 171.

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pessoas se estruturam em relação ao espaço enquanto elas caminham. Elas se tornam o sujeito de sua própria experiência" (Serra, 2008. Declaração colhida em entrevista do artista no circuito "Fronteiras do Pensamento", Porto Alegre, Brasil). Considero que as questões aqui levantadas podem ir além da comparação entre diferentes maneiras de trabalhar no espaço, saindo dos museus e galeria e chegando às áreas públicas. Elas procuram delinear as bases para a configuração de um olhar mais atento que aponta a arte em direção à arquitetura e os objetos de uso cotidiano. Neste direcionamento que tende a abarcar as formas, a história e os usos do espaço; as propostas urbanas se constituem como uma possibilidade de atuação em meio ao ambiente por excelência da vida nas sociedades contemporâneas organizadas e suas reverberações podem também penetrar em um universo mais amplo de análise. A desaceleração do ritmo de percepção, numa proposta artística que está intimamente ligada com a vida. A experimentação da concretude de um mundo que tende cada vez mais ao virtual: que tipo de impacto o espaço físico pode causar nas pessoas? E o que deve aspirar o artista que atua neste campo em contínuo processo de ampliação? Alterar o desenho das estruturas tangíveis da cidade como caminho para construir uma arquitetura menos funcional que se inclina para o campo da arte... Ou ainda trazer da arte uma visão atenta e crítica que coloca em questão os espaços definidos pela ação do artista e se estende até os lugares percorridos e habitados pelos transeuntes no curso normal de suas vidas?

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Imagens: Imagem 01 Bruce Nauman: Corridor, 1968-70. Corredor com circuito interno de TV. 518cm x 1219cm x 91,44cm. Coleção Dr. Giuseppe Ponza. (Foto Rudolph Burckhardt). Fonte: KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 287.

Imagem 2 Carl Andre: 37 Pieces of Work, 1969.Alumínio, cobre, aço, chumbo, magnésio e zinco. Dimensões totais 10,97m x 10,97m: 1296 unidades, 216 de cada metal, cada unidade 30,5cm x 30,5cm x 1,9cm. Coleção Dwan Gallery, Nova York. Como instalada para a exposição 'Carl Andre' no piso de rotunda do Museu Salomon R. Guggenheim, Nova York. (Foto: Robert E. Mates e Paul Katz). Fonte: ARCHER, Michael. Art since 1960. London: Thames & Hudson, 2002, p. 57.

Imagem 3 Gordon Matta-Clark: Office Baroque, Antuérpia, Bélgica, 1977. Intervenção em pisos e paredes de um edifício. Espolio de Gordon Matta-Clark.(Foto: Gordon Matta-Clark). Fonte: GORDON MATTA-CLARK. Londres: Phaidon, 2003, p.115.

Imagem 4 Richard Serra: Tilted Arc, Federal Plaza, Nova York 1981. Aço Cor-tem 3,66m x 36,60m x 6.25cm. Coleção The Place Gallery, Nova York. Fonte: HUGHES, Robert. The shock of the new. Londres: Thames & Hudson, 1991, p. 370.

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REFERÊNCIAS:

Archer, Michael. Art since 1960. London: Thames & Hudson, 2002. Ardene, Paul. Un art contextuel. Paris: Flammarion, 2004. Batchelor, David. Minimalismo. São Paulo: Cossac&Naify, 1999. Buren, Daniel. Textos e entrevistas escolhidos [1967-2000]. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001. Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Ferreira, Glória; COTRIN, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006. Hughes, Robert. The shock of the new. Londres: Thames & Hudson, 1991. Klabin, Mangia (Org.). Richard Serra. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997. Krauss, Rosalind. A escultura no campo ampliado. The anti-aesthetic: essays on postmodern culture. Washington, D.C.: 1984. Krauss, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Kwon, Miwon. One place after another: site specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2002. Marc, Auge. Non-places: introduction to an athropology of supermodernity. Londres: Verso, 2006. Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. O’Doherty, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Revista FACE: espaço, lugar e local. Disponível em: <http://www.pucsp.br/pos/cos/face/espaco.htm>. Acesso em: 8 mar. 2009. Warr, Tracey; JONES, Amelia (Org.). The artist's body, themes and movements. London: Phaidon, 2000.

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Ensaios

Crítica de Arte: Esfacelamento ou mudança de atitude frente aos processos artísticos contemporâneos? Karine Gomes Perez1 Nos escritos sobre crítica de arte contemporânea, deparamo-nos, freqüentemente,

com

afirmações

acerca

de

sua

crise.

Fala-se

do

emudecimento e da impotência da crítica frente às produções contemporâneas. Tais afirmações não estariam sendo veiculadas em razão de sua menor ocorrência na imprensa de grande circulação, como nos jornais, os quais lhe reservam espaço reduzido para um sucinto comentário a propósito dos acontecimentos do cenário artístico? Além disso, esse emudecimento da crítica, principalmente no que se refere à aliança entre arte e tecnologia, não estaria acontecendo em virtude de essas produções não se tratarem necessariamente de objetos acabados? Como a importância de grande parte das produções contemporâneas não está centrada no resultado formal da obra acabada, Ane Cauquelin (2005b) verifica que parte da crítica, ao abordar tais produções, tende a discorrer em torno do contexto das obras, da biografia do artista e das relações destas com determinados movimentos, não da obra em si. Se considerarmos que estamos diante de um esfacelamento da crítica, devemos refletir acerca de quais parâmetros estamos nos baseando para pensá-la. Estaríamos apegando-nos num retorno à crítica de arte surgida com Diderot, embasada num julgamento de gosto, evocado por Kant, com comentários endereçados ao público? Em caso positivo, estes seriam aplicáveis à pluralidade da arte contemporânea?

1

Artista e Mestre em Artes Visuais, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (bolsista CAPES 2008-2010). Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica pela UFSM. Membro do Grupo de Pesquisa Arte e tecnologia/CNPQ. Integra o LABART e a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa.

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De acordo com Cauquelin (2005a), não podemos analisar as manifestações artísticas atuais sob as seguintes concepções modernas: continuidade marcada pela inovação; progressão histórica e tecnológica; arte em ruptura com suas formas instituídas; compreensão de que o valor de uma obra esteja contido nela própria; autonomia da arte, arte desinteressada e idealista; comunicabilidade universal das obras, baseada na intuição sensível (juízo de gosto); ideia do “sentido”, através da qual o artista expõe a verdadeira natureza das coisas. Igualmente, não devemos nos deter, necessariamente, nos valores modernos de originalidade, unicidade e autenticidade para avaliálas. Talvez, seja em razão da decadência de critérios pré-estabelecidos para avaliação da arte que a crítica pareça esfacelada. Nesse sentido, o que pode estar acontecendo é uma mudança de atitude por parte da crítica, provocada pelas transformações ocorridas na arte, pois, conforme Arthur Danto (2006), as produções artísticas são pluralistas e, por essa razão, exigem uma crítica de arte não excludente nem homogeneizadora. Isso vai ao encontro da desconfiança em relação aos discursos totalizantes e homogêneos, presente em nosso tempo. Assim, Mônica Zielinsky (2003) afirma que as obras exigem uma visão da alteridade, da contextualização e do relativismo. Por isso, numerosos autores propõem a ideia de debate crítico, que significa dar lugar a uma pluralidade de pontos de vista, sendo ele fonte de divergências, cujo objetivo consiste na aprendizagem de críticos junto a outros críticos. O crescente enfraquecimento das fronteiras que separam as atividades exercidas pelos diversos agentes do campo artístico também pode ser desencadeador de mudança de atitude por parte da crítica. O artista, por exemplo, já não assume apenas o papel de produtor de obras de arte, adotando múltiplas funções no fomento de atividades de arte contemporânea, como: crítico, membro de júri, curador, etc. Esses fatores levam o artista a ingressar no terreno da crítica, por meio do uso da palavra, o que, de acordo com Glória Ferreira e Cecília Cotrim (2006), deve-se à crescente intelectualização desse profissional, com tendência à formação universitária, e à sua participação nas definições e maneiras de circulação da arte.

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No período da arte moderna, o artista produzia escritos, porém, eram diferentes dos atuais, já que se tratavam de manifestos e textos teóricos, anunciadores dos destinos da arte. Esses textos buscavam atingir o público em geral, apresentando as justificativas e posicionamentos dos artistas com relação à arte. Os textos contemporâneos, por sua vez, não visam a estabelecer os princípios de um futuro utópico, como os manifestos modernos; focalizam os problemas correntes ao próprio processo artístico, sendo compostos em sincronia com a experiência artística. Desse modo, os escritos de artista diferem dos demais por sua flexibilidade estrutural, metodológica e teórica. Essa tomada da palavra pelo artista leva-o a responsabilizar-se pela interpretação de seu trabalho, incorporando a crítica e a história da arte como matérias do processo operatório da obra. Isso pode transmitir a falsa ilusão de que a atividade do crítico não seja importante, pois o próprio artista está autorizado a falar de sua obra. Entretanto, não é uma verdade, já que são modos diversos de abordagem crítica: uma fala de dentro do processo artístico e outra, de fora. O crítico não precisa abordar as mesmas questões que o artista, usando conceitos não pensados no momento da criação. Deve analisar aspectos formais, técnicos, temáticos, estilísticos da obra e suas relações com o contexto histórico e sociocultural. O enfraquecimento das fronteiras que separam as atividades exercidas pelos diversos agentes do campo artístico não ocorre somente no emprego da crítica pelo artista. Conforme Zielinsky (2003), a crítica de arte recai em outras atividades e procedimentos confundidos com ela, como no trabalho dos curadores, nas notícias da mídia, em atividades didáticas ou na mediação informativa sobre a arte. Por outro lado, o crítico concebe sua atividade como artística, criativa, em particular a curadoria. A subjetividade autoral do curador tem sido exercida como a do artista, na esfera da visibilidade; desse modo, o formato da exposição passa a instituir-se como obra autônoma. Glória

Ferreira

(2006)

observa

que

o

trabalho

curatorial

tem

transformado o estatuto da crítica de arte, entre o conhecer e o julgar. Em sua concepção, esse trabalho combina, em um frágil campo de associações, as

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obras e o discurso, operando como um mediador de intenções em prol do contexto da apresentação, ao invés do objeto. Para Fernando Cocchiarale (2006), a mediação crítica do curador respalda-se no discurso, na esfera da visualidade, produzindo questões extraestéticas, temáticas, que emprestem sentido à dispersão aparente em que nos encontramos. Esse profissional deve escolher, selecionar, sustentar as múltiplas produções artísticas a partir de vias que lhe parecem fecundas. Ao invés de discernir, distinguir e julgar, ele passa a atuar pelos caminhos da comunicação, da pedagogia e do comentário. Uma alternativa para a crítica talvez esteja nas proposições de Ursula Rosa da Silva, as quais sustentam que ela deve dar suporte à apreciação estética, ser instigante, provocativa e, sob certos aspectos, didática, no sentido de aproximar o público da arte. Para a autora, a crítica não deve dar significados prontos ao espectador, pois é um espaço de ressignificação constante. Portanto, cabe ao curador de exposições a construção de um espaço de experiência, acompanhado de texto ensaístico, podendo ser considerado, junto à própria exposição em si, um dos lugares do discurso crítico, da produção de sentido e da vivência de experiências estéticas. Outra possibilidade pode estar no pensamento do autor alemão Carl Einstein, analisado por Didi-Huberman (2003), no livro Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios, em que propõe uma leitura genealógica da obra de arte (condições de geração das obras) sob o ritmo de suas destruições e sobrevivências, de seus anacronismos e regressões. Essa leitura genealógica da obra de arte vai ao encontro do pensamento de Icleia Cattani, a qual destaca a importância, na análise das poiéticas, dos processos de instauração das obras. Essa questão é fundamental quando se trata de obras que parecem similares, pois, ao pensarmos no processo de cada artista, percebemos suas diferenças,

importantes

para

a

análise

das

obras

contemporâneas.

Principalmente, para aquelas feitas às margens do sistema dominante das artes, tendo em vista que, freqüentemente, são pensadas em termos de influências de outras obras, as quais teriam servido de “modelo”. Assim, é fundamental ao crítico centrar atenção nos processos e tomar cada obra em seus próprios termos, porque, como não temos critérios de análise pré-

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estabelecidos para avaliar a arte contemporânea, eles são elaborados caso a caso. A crítica de arte, encarada como atividade judicativa, apoiada em um consenso universal, apontado por Kant, perde essa função frente à diversidade dos

processos

artísticos

contemporâneos

e

da

mistura

de

papéis

desempenhados pelos diversos atores da cena artística. Em sua atuação, a crítica incorpora o debate e a análise dos processos dos artistas. Dessa forma, ela não está banida do campo da arte, mas confunde-se com outras atividades, passando a ser da alçada de variados agentes, como o curador, que deve incorporá-lo ao seu discurso. Ela também está presente nos escritos de artista e no interior de variadas obras, constituídas de conteúdo crítico, questionando a própria noção de arte.

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Referências CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea, uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005a. ______ . Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: Odysseus/Edusp, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein. In: ZIELINSKY, Mônica (org.) Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: UFRGS. 2003. FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). ______ e COTRIM, Cecília. (orgs.) Escritos de artistas 1960/1970. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. SILVA, Ursula Rosa da. Crítica, arte e estética: espaços para ressignificar. In: BERTOLI, Mariza; Stigger, Verônica (orgs.) Arte, Crítica e Mundialização. São Paulo: ABCA, 2008. (Col. Crítica de Arte). ZIELINSKY, Mônica (org.) Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: UFRGS, 2003.

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Ensaios

Arte e sistema: onde está a arte? Paula Frassinetti

“Na era moderna, uma das mais ativas metáforas para o projeto espiritual é a arte” (Susan Sontag)

A essência filosófica da modernidade é eurocêntrica, o que veio após a revolução moderna se assenta na razão iluminista. Vive-se a intensificação das mudanças ocorridas por meio das revoluções Francesa e Industrial e o Iluminismo. Surge então a Racionalidade pautada nos interesses burgueses e associada à noção de domínio do saber, uma especialização científica característica do ocidente. Afirmar isto não significa dizer que a racionalidade seja algo ausente em outras culturas, mas diferente da singularidade capitalista eurocêntrica, na qual a razão é entendida como bem cultural. No universo artístico não é diferente, pois a arte é integrante da cultura, não está acima da sociedade. No decorrer histórico das mudanças artísticas é possível observar uma racionalização cada vez maior, vide o surgimento da arte conceitual. Houve um gradual abandono da realização artística em si, em nome das discussões teóricas. O efeito de encantamento estético deixa de ser o elemento principal na obra de arte. A arte conceitual aparece como uma revisão da noção de obra de arte arraigada no ocidente. Deixa de ser primordialmente visual e passa a ser considerada como idéia e pensamento. Muitos trabalhos que se expressam através da fotografia, filmes ou vídeo como registro de ações e exposição dos processos, em oposição à noção tradicional de objeto e suporte de arte são geralmente designados como arte conceitual. Além da crítica ao formalismo, alguns artistas conceituais criticam as instituições, o sistema de seleção e legitimação de obras e o mercado de arte.

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George Maciunas, um dos articuladores Fluxus, redige em 1963 um manifesto que indicam os eixos norteadores deste movimento, que diz: “[...] Purgar o mundo da doença burguesa, ‘intelectual’, cultura profissional e comercializada. Purgar o mundo da arte morta, imitação, arte artificial, arte abstrata, arte ilusionista, arte matemática, - purgar o mundo do ‘europanismo’! [...] Promover uma enchente e uma maré revolucionária na arte, promover arte viva, anti-arte, promover realidade não artística a ser entendida por todos, não somente críticos, diletantes e profissionais.”1 Por meio de livros, periódicos e catálogos se tem hoje contato com instruções Fluxus e é possível (re)fazê-las. Paradoxalmente, conhecem-se materialmente alguns dos cartões originais por pertencerem a museus e acervos. Quando exibidos em exposições nem sempre se pode lê-los completamente,

uma

vez

que

os

enunciados

das

partituras

estão

freqüentemente cobertos quando os cartões são expostos sobrepostos, protegidos por vitrines e legitimados por etiquetas de identificação. Ao migrarem para coleções e instituições, serem consolidados como Arte e historiados pertencendo ao passado, Fluxus (por seus objetos residuais ou os cartões-partituras e respectivas caixas e publicações) seguiu àquilo que negava em seu princípio tendo seu movimento e premissas congelados. Em seu momento histórico, o movimento Fluxus foi revolucionário e contestador do sistema, mas logo foi legitimado por este. Marcel Duchamp, ícone da arte contemporânea que intencionou destruir o mito do fazer artístico, tornou-se ele próprio um mito. O sistema capitalista absorve as próprias contradições para agregar valor de mercado. O “novo” e “revolucionário” têm um espaço de vida curto, pois logo será integrado ao sistema e se transforma em tradição. Logo, vive-se à espera da próxima revolução. A contemporaneidade é marcada pelo desencantamento do mundo, criação de novos mitos e desagregação de antigos valores, pois o modo de produção capitalista não tem identificação com o passado, há a constante ressignificação dos símbolos tradicionais para que 1

In: Manifesto Fluxus. Primeira distribuição durante apresentação de dois dias na Düsseldorf Kunstakademie chamada Festum Fluxorum Fluxus, Düsseldorf, 2 e 3 fev. 1963

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sejam transformados em bens mercantis. A busca permanente por identidades singulares é reflexo da limitação das metanarrativas, que devem ser redefinidas, pois há uma necessidade de autocrítica para que se possa entender as micro-manifestações sociais. A hegemonia dissolve o indivíduo e prioriza a massa já consolidada. A busca pelas singularidades sociais em micro-realidades aponta para o desejo de integrar ao repertório hegemônico novos signos de consumo. É desse processo que surge a figura do artista como um pesquisador, trazendo à tona leituras e aspectos do social não evidentes para o senso comum. A fotografia e videoarte são suportes testemunhas da busca contemporânea pelo exotismo estético, o recente direcionamento do olhar, em registros e intervenções, para a América do Sul e culturas distantes do centro hegemônico de produção artística. O que aconteceria se a América Latina se unisse e, convertida em potência planetária, impusesse sua cultura e sua perspectiva ao resto do mundo? A pergunta move a Trilogía Iberoamericana, saga épica futurista pop criada pelo artista uruguaio Martín Sastre, entre 2001 e 2005. Irônica, a Trilogía conta como, num futuro não muito distante, o império de Hollywood está morto e o continente americano, unificado no império Bolívia 3, reinvidica o controle da ficção mundial. Martín faz alusão a ícones ocidentais de todas as estaturas – de Matthew Barney a Tom Cruise, de Nancy Reagan a Hello Kitty, de Britney Spears aos Pokémons –, os três episódios são conduzidos pela figura-chave do próprio Sastre, no papel do artista periférico que procura, encontra e desafia seu lugar no circuito internacional da arte. No primeiro vídeo da trilogia, Videoart – A Lenda Iberoamericana (13’, 2002) inicia-se a saga pelo controle da ficção no mundo. Cruzando referências pessoais, com ícones da cultura pop internacional, estereótipos latinos, gêneros de narrativas do audiovisual e acontecimentos políticos, Sastre problematiza uma época em que ficção e realidade já não trazem distinções. Existe uma forma de pensar a arte como “desafiante da sociedade”, mas o

espaço

social

não

sofre

impactos

de

pequenos

desafios.

O

ativismo/artivismo ‘’desafiador’’ da sociedade é vago e está ligado a contestar o conceito de arte diante das pessoas que participam do cotidiano do sistema

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artístico contemporâneo, ou seja, arte para artista ver. A fruição da obra de arte contemporânea pede uma precedente contextualização, pois hoje não há uma leitura imediata do produto artístico, visto que o próprio processo de produção faz parte da obra. O Neoísmo, vanguarda que emergiu da Rede da Mail Art no final dos anos de 1970, tem Stewart Home como seu principal idealizador. Entusiasta do plágio positivo, o autor sustenta que a grande vantagem do plágio como método literário é que este descarta a necessidade do talento e assim abre as portas da expressão artística não apenas para aqueles que passaram por uma academia de belas artes, mas a qualquer indivíduo que tenha algo a dizer. No livro “Manifestos Neoístas / Greve da Arte”, o próprio autor estimula iniciantes no movimento a plagiarem seus textos. “Atacamos o culto ao indivíduo, os ‘eu-mesmistas’, as tentativas de se apropriar de nomes e palavras para um uso exclusivo. Rejeitamos a noção de copyright. Pegue o que puder usar. Afirmamos que o plágio é o verdadeiro método artístico moderno. O plágio é o crime artístico contra a propriedade. É roubo, e na sociedade ocidental o roubo é um ato político”. (HOME, Stewart. Manifestos Neoístas / Greve da Arte). O Neoísmo é uma filosofia prática que faz, tanto na forma quanto no conteúdo, uma crítica estrutural à individualidade, às artes elitistas e acadêmicas e ao capitalismo. O movimento se ambienta na divagação filosófica e nos corações mais românticos em relação ao ser em sociedade, mas enquanto não for legitimado como produto pelo sistema, não surte efeito de mudança real (em massa) e proliferação da própria existência. A arte como “sublimação do ser” talvez seja possível hoje somente no contexto microestrutural, na tentativa de desconstruir padrões estereotipados do próprio fazer artístico e do “exotismo estético” tão cultuado atualmente. A arte tem o poder de fetichizar objetos e contextos culturais, pois colocando em evidência as manifestações sociais, o detalhe despercebido pela massa no cotidiano, o artista pode supervalorizar elementos antes invisíveis. É nessa linha tênue que se esconde a arte? Arte e encantamento, juntos até que o mercado hegemônico vos separe.

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Bibliografia HOME, Stewart. Greve da Arte / Manifestos Neoístas. São Paulo: Conrad, 1993. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2006. FREIRE, Cristina. Afasias na crítica de arte contemporânea. Os lugares da crítica de arte. São Paulo:ABCA/ Imprensa Oficial do Estado, 2005. p.63 a 75.______. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999. ZANINI, Walter. Catálogo da 17ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983. JAMESON, Frederic, Pós-Modernismo. São Paulo: Ática, 1997. HABERMAS, Jürgen, A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. _________________. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.

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Olhares múltiplos: conferências marcam início das atividades do recém-inaugurado curso de História da Arte Rosane Vargas

Nos dias 30 e 31 de março, o Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) promoveu os eventos inaugurais do Bacharelado em História da Arte. Os conferencistas, professores doutores Armindo Trevisan e Tadeu Chiarelli, escolheram abordagens diferentes entre si, mas ambas instigantes, sobre como, a partir da história da arte, de seus produtores, contempladores e consumidores, podem ser traçados caminhos para que se conheça mais daquilo que comumente se chama “essência humana” e investigar relações que constituem ou podem vir a constituir uma identidade nacional. “Arte é uma forma privilegiada de amar algo ou alguém”1 (Armindo Trevisan)

Uma abordagem subliminal da história da arte (reflexões de um exprofessor) foi o tema da conferência do professor aposentado Armindo Trevisan, no dia 30. Doutor em Filosofia, poeta e historiador da arte, ele lecionou História da Arte e Estética na Ufrgs e foi docente no Programa de PósGraduação em Artes Visuais da universidade2. Contrariando o conhecido currículo, Trevisan começou a conferência dizendo que nunca se considerou um historiador da arte, mas um estudioso do fenômeno artístico. Para ele, somente pode ser chamado de historiador quem se dedica à investigação das fontes primárias, a análises técnicas e outras questões para as quais afirmou não ter paciência ou formação. 1

Frase proferida durante a conferência inaugural do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 30 de março de 2010. 2 Armindo Trevisan é autor de vários livros sobre arte, como Escultores contemporâneos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ufrgs, 1983; Como apreciar a arte. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990; e O rosto de Cristo. Porto Alegre: AGE, 2003.

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Nas artes visuais, a palavra ficção adquire plausibilidade, afirmou o conferencista. Isso porque a arte é resultado da imaginação somada ao produto da mão do homem. O contemplador da obra de arte tem consciência de estar vendo uma ilusão com sentido; nas palavras de Trevisan, uma “alucinação domesticada”. A arte revela uma porção de coisas, disse o professor, mas só a revela aos mais atentos. A partir dessas afirmações, podese apreender que, para Trevisan, existe uma espécie de acordo ou convenção entre espectador e artista no processo de produção e consumo da arte. Podese perceber também um convite e uma provocação para que se tente ir além de um simples olhar. Seria também uma sugestão/afirmação de que o espectador não tem um papel passivo nessa relação? Afinal, por que o homem faz arte, mesmo nas condições mais precárias, se poderia produzir somente coisas práticas, utilitárias? Trevisan convidou os presentes a imaginarem as condições em que foram produzidas as pinturas na Pré-História. E repetiu as indagações do etnólogo e arqueólogo André Leroi-Gourhan: o que revelariam, se existissem, os fósseis verbais? O que nos contariam das motivações desses precursores da produção simbólica? Falando sobre a “magia” dos animais pintados nas cavernas, Trevisan disse acreditar que, mais que uma possibilidade de poder sobre os animais, os caçadores pretendiam o poder da antecipação, da imaginação do futuro. O homem também produz arte, disse Trevisan, citando a Bíblia, porque não é bom que o fique só. E concluiu, poeticamente, “Eva poderia ter se chamado arte”. O ser humano produz arte, afirmou o professor, porque deseja transcender sua essencial solidão, porque precisa comunicar, revelar o que existe em sua intangível psique. Fazendo uma comparação entre amor e arte, o conferencista disse que ambos buscam converter a solidão em comunhão. O espectador de uma obra de arte e o leitor de uma obra literária, na concepção de Trevisan, podem ser considerados amantes de quem as produziu. O professor disse que sempre acreditou na dimensão subliminal da arte, que seria um “magnífico abraço no semelhante”. Em vários momentos, ele falou dessa relação entre artista e espectador, quase como uma troca amorosa. É possível perceber, também pelo uso de metáforas comparando a arte à mulher amada, que, para Trevisan,

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a arte tem muito de carnal, físico. Por esse motivo, ele disse que considera um dos males da arte contemporânea o fato de o artista deixar de usar as mãos em seu fazer. Afinal, para o professor, não existe corpo sem visibilidade. “O

papel

do

historiador

da

arte

tem

que

ser

crítico,

problematizador das verdades instituídas”3 (Tadeu Chiarelli)

A repetição diferente: arte no Brasil nos séculos XX e XIX foi o tema da conferência proferida pelo professor Tadeu Chiarelli4, dia 31. Docente da Universidade de São Paulo, curador e crítico de arte, ele apresentou o que chamou de tentativa de pensar as relações possíveis do modernismo brasileiro com a produção artística do país no século XIX. Chiarelli disse que não traria um assunto definido, mas algo em formulação, que ainda se amadurece e que pode levantar a possibilidade de uma revisão da história da arte brasileira. Em sua pesquisa, o professor busca estabelecer relações entre dois diferentes tipos de obras produzidas entre a primeira metade do século XX e a segunda metade do século XIX no Brasil. No primeiro grupo, ele analisou quatro pinturas realizadas, respectivamente, por Lasar Segall, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Cândido Portinari. O segundo grupo é formado por retratos de Dom Pedro II. A esses dois grupos foram contrapostas algumas pinturas de Almeida Júnior, com a intenção de tornar mais complexos os problemas levantados. Na obra Bananal, de Lasar Segall, 1927, a composição é mais convencional, descritiva. Um homem negro, figura angulosa, que lembra uma máscara africana (Chiarelli supõe que possa haver uma referência ao cubismo e à ancestralidade do retratado) está no centro, tendo ao fundo a densidade das folhas de bananeira. Nesse quadro, o cubismo é usado apenas como arranjo ornamental. Chiarelli chama a atenção para uma tentativa do pintor de neutralizar a diferença de tratamento dada ao fundo e à figura do homem. Para

3

Frase proferida durante a conferência inaugural do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 30 de março de 2010. 4 Tadeu Chiarelli tem vários livros publicados, entre os quais se destacam Um jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 2004; e Pintura não é só beleza – A crítica da arte de Mario de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.

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Chiarelli, pode ter havido uma intenção de reforçar a relação entre o homem e o bananal, este resultado do trabalho daquele. Talvez, afirmou o conferencista, o olhar ainda não aclimatado de Segall ao Brasil tenha reproduzido uma cena de estranhamento em que a luminosidade do sol, a exuberância da natureza e a negritude do trabalhador façam parte de um emblema do Brasil. Em Tropical, de Anita Malfatti, 1917, a figura feminina mostra um balaio cheio de frutas, no que Chiarelli interpreta como uma alegoria à fertilidade dos trópicos. Para ele, a artista oscila entre responder à demanda naturalista latente e fazer uma obra de cunho moderno, de vanguarda. Mesmo tentando estabelecer mudanças do ponto de vista formal, Anita lança mão da tradição iconográfica, dos manuais de iconologia, e usa a deusa Ceres e figuras alegóricas ligadas ao conceito de abundância. O balaio de frutas, disse o professor, pode facilmente ser interpretado como a tradicional cornucópia. O mesmo tom alegórico evocando o caráter pródigo da terra é visto em Vendedor de frutas, de Tarsila do Amaral, 1925, no qual um homem negro/mestiço está em um barco com um cesto com frutas variadas. Para Chiarelli, embora o personagem seja masculino, revive tanto o mito de Ceres quanto Vênus saindo das águas, de Boticelli. É o Brasil paradisíaco, onde os frutos da terra são colhidos sem aparente trabalho. As características do homem mestiço são realçadas pelos olhos azuis e pela boca de lábios caricatos. Lavrador de café, de Cândido Portinari, 1934, mostra um homem altivo. A desproporção de pés e mãos reforça a ideia de ligação com o trabalho e a terra. Tanto nesse quadro quanto em Bananal, a natureza é um lugar de trabalho. O fruto da terra é resultado do trabalho do homem, ao contrário de Malfatti e Tarsila, que mostram a natureza pródiga como uma dádiva a ser recolhida sem esforço. Neste ponto, Chiarelli fez uma ligação entre Portinari e Almeida Júnior e seu O derrubador brasileiro, 1875. A interpretação, que o conferencista reconheceu não ser original, é que o derrubador de café tivesse levantado para se tornar o homem que olha a terra brasileira, cuja imensidão é reforçada com o recurso do fundo renascentista. As pinturas do caipira, feitas por Almeida Júnior, na opinião de Chiarelli, são estético-documentais do paulista, que deixa de ser um miserável

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e domestica a natureza. São, de acordo com o professor, as primeiras pinturas a ressaltar o homem local em seu ambiente. Como não há uma historiografia da arte mais aprofundada no Brasil, Chiarelli valeu-se da obra de Antônio Cândido Formação da literatura brasileira. Cândido observou que o romantismo brasileiro tinha se originado de uma convergência de fatores locais e sugestões externas e se tornou algo, ao mesmo tempo, nacional e universal. Para Chiarelli, pode-se usar essa assertiva para falar do modernismo. As diferenças estéticas de cada período são contrabalançadas pela sua unidade do ponto de vista histórico, disse Chiarelli, citando Antonio Candido. Com base nisso, afirmou que, apesar das diferenças visíveis entre parte da pintura modernista do século XX e as pinturas de Pedro II no século XIX, é possível ver relações entre elas, como a demanda pela constituição de uma arte nacional. Chiarelli não pensa no modernismo como uma ruptura, mas como um elo de uma corrente maior. A reprodução de imagens litográficas foi, na opinião de Chiarelli, um dos grandes legados da família real. E aqui chegamos aos retratos de Dom Pedro II. O imperador foi modelo de várias fotos e experimentos e fotografia. Sua imagem era registrada em fotografia e distribuída litograficamente. O primeiro retrato, de Debret, já mostrava diferenças entre os retratos do imperador do Brasil e os das cortes europeias: havia muitos elementos da paisagem local. Em diversos retratos, o imperador aparecia em meio a folhagens, um símbolo do país. Chiarelli apontou a tensão constante entre a vegetação e o imperador, entre a natureza e a cultura. Pedro é a civilização; a natureza tropical e luxuriante, a barbárie. Uma síntese do Brasil da época? Nas obras dissecadas pelo professor durante a conferência, ele destacou as diferentes maneiras de interpretar o Brasil e seus problemas e emblemas. Isso mostra, na opinião dele, que a arte produzida no período compreendido entre 1850 e 1950 carece de estudos mais aprofundados. A abordagem multidisciplinar das obras de arte mostrada por Chiarelli abre caminhos interessantes e possibilidades para os atuais e futuros historiadores da arte.

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Ensaios / Dossiê

Introduzir o que é em si André Dornelles Pares

A Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, é o que ela é. O princípio de não-contradição de Aristóteles diz que algo não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, sob o mesmo aspecto. Logo, tudo o que já ouvistes sobre oficinas de artes com doentes mentais, tudo o que já vistes na televisão sobre trabalhos voluntários com psicóticos, tudo o que imaginas que possa ser um programa de resocialização de pessoas loucas através de atividades expressivas não é a Oficina de Criatividade do Hospital São Pedro. Ela é o que é em si. É tanto ela mesma que é praticamente impossível descrevê-la, explicá-la e/ou narrá-la. Esta dificuldade está perfeitamente notada na leitura dos textos que compõem o dossiê que o Panorama Crítico traz nesta edição. Dos textos para explicar, descrever – expor seus estudos sobre o trabalho na Oficina, surge de imediato a percepção de que o esforço da explicação torna-se involuntariamente uma narrativa de envolvimento. Alguns escritos levam páginas para chegar ao assunto ‘real’ (que seria a obra de determinado interno-artista, por exemplo). Parágrafos e parágrafos que são a tentativa de aproximação daquilo que os autores dos textos vivenciaram. Até chegar ao objeto-objetivo do texto, estes parágrafos são camadas de sensações, buscando uma entrada: uma compreensão para aquilo que tentam apresentar ou explicar. Para a ‘objetividade’ jornalística, o nariz-de-cera; para o trabalho

afetivo-social

do

processo

artístico

com

doentes

mentais,

necessidade. O em si da Oficina de Criatividade é composto dessa massa torcida, meio escura. * * *

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E também desta, plana e clara: “Na oficina (de criatividade do hospital São Pedro), o indivíduo (paciente) tem liberdade para se exprimir; é ele quem escolhe o material com o qual vai trabalhar e o que quer expressar. Através de desenhos, pinturas, modelagem, escritos e bordados, o sujeito catalisa o que através da linguagem verbal muitas vezes lhe seria tão penoso” (NEUBARTH, 2005)15. O Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado na Avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre, foi fundado em 1884. O que se chama hoje de Oficina de Criatividade, criado em 1990. Bárbara Neubarth, autora da frase acima, e uma das fundadoras da oficina, diz que outros espaços para atividade expressiva, antes de 1990, já haviam sido criados no hospital. Um destes, sendo coordenado pelo escritor Dionélio Machado, na década de 1960, do qual, assim como outros, não resta qualquer registro. Ou seja, uma memória social perdida. Ao contrário, a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro passou a guardar os trabalhos de seus internos. Serviço que, serviu para, entre outras coisas,Tânia Mara Fonseca, coordenadora da equipe que passou a pesquisar e organizar o acervo da Oficina de Criatividade, perguntar: “Qual valor para a vida poderia se desprender daquele aparente lixo (todo o material artístico produzido pelos pacientes desde 1990), acumulado por 19 anos num sótão cujas portas rangem e o vento nos corta quando passa pelas janelas sem vidros?” (veja o texto no dossiê). Tânia, calculadamente, faz parecer lixo aquilo que antes era pura falta: a memória. Mas a aparência, segundo Kant, filósofo alemão, jamais é a coisa em si. Se nem a presença de Dionélio Machado impusera a necessidade de arquivo que, exageradamente ou não, é o registro das manifestações de uma sociedade – as obras plásticas dos psicóticos dessa sociedade! –, o que fazer, agora, com a montanha de papéis em que se transformou a vontade de dar valor a esta memória?

* * * 15

Ver o texto de Bárbara Neubarth em http://www.eusouvoce.com.br/pag_oficinahistoria.htm

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O em si da Oficina, além dessa vontade, se compõe ainda destes dois paradoxos acima vistos. O primeiro, o de ser ela, Oficina, uma massa que tem a sua parte densa na tentativa de explicar-narrar seus processos subjetivos, e a sua parte aberta na liberdade dos internos em seu trabalho criativo. O segundo (paradoxo da Oficina), o de dar valor inestimável ao ‘lixo’ – coisa de louco, numa sociedade que, quando muito, só valoriza o lixo se ele vira capital financeiro. Mas então: o que fazer com esta montoeira de “lixo” em que se tornou todos os trabalhos artísticos dos internos que foram sendo guardados, empilhados, empacotados? Talvez, ao se dispor a organizá-los, uma das coisas que se possa fazer é se ficar sabendo, por exemplo, que Natália, aos treze anos, fugiu de casa, no interior do estado do Rio Grande do Sul, e, 400 quilômetros depois, veio parar num hospício, na capital, que na época, o ano de 1956, abrigava com sua lotação máxima: cinco mil internos. E saber mais: que depois de tentativas de saídas e voltas necessárias ao hospital como único lugar de abrigo, Natália encontre hoje a serenidade possível numa cor de abóbora, que invariavelmente invade seus bordados (detalhe acima) e desenhos. Cor que se torna um pouco mais emocionantes quando se pode observar sua ‘obra’ bem cuidada e valorizada, misturada com a sua biografia, arquivada no hospital2. O em si da Oficina, neste momento, se abre, se oferece, e se encontra com um em si mais extenso; o social. Isto é: Natália é a interna doente mental 1

Recorte de bordado de Natália Leite, interna-artista da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Ver trabalho na íntegra na Exposição “Eu Sou Você”, no próprio hospital, ou em http://www.eusouvoce.com.br/natalia_18.htm 2 Veja mais detalhes em http://www.eusouvoce.com.br/pag_artistas.htm

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Natália Leite, que no belo trabalho do ex-estagiário Fábio dal Molin (veja o texto no dossiê), tem sua vida explicada-narrada-sentida. Com sua memória de vida e sua obra guardada e exposta, Natália é um pouco mais: parte da identificação da mulher que viveu na segunda metade do século XX no sul do Brasil, e que teve determinados percalços, encaminhamentos e possíveis soluções na sua existência, nesta faixa temporal da existência humana, nesta faixa territorial do planeta. Ou seja; uma memória social achada.

* * *

Da liberdade de criação artística oferecida aos internos que se transformam em artistas, surge na prática aquilo que poderia ficar só na palavra: a resocialização de quem ‘não serve(ia)’ a sua sociedade. Da vontade de se dispor a organizar-arquivar o material produzido por estes loucos transformados em artistas, surge a transformação da memória individual em história social. No dia em que a equipe do Panorama Crítico andou pelos pavilhões cheiamente vazios (pois o própria lugar, devido a sua história, constitui-se num paradoxo) do semi-abandonado Hospital Psiquiátrico São Pedro, era Natália, ciosa e concentrada, a única a estar iluminada pela amarela luz do sol que entra na espaçosa colorida sala da Oficina. Na sua frente, um desenho começado em cor de abóbora. Por trás de Natália, e por causa dela e de Luiz Guides, Frontino e Cenilda (os outros artista catalogados; leia sobre eles no dossiê), estão “mais do que biografias e rumos de vidas extraviadas da retidão da normalidade”, como diz Tânia (leia o texto no dossiê), “mas a sua capacidade de expressão, sua resistência em se manterem dizendo algo quando todo o seu entorno lhes impôs esquecimento e letargia”.

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Sãos, como somos, talvez o que todos nós também desejemos quando nosso entorno de sociedade do consumo e por isso da efemeridade nos oprime; oportunidade, e coragem, de dizer o que queremos. O que a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro é em si aponta para essa possibilidade. Se este é teu caso, bem-vindo ao dossiê que o Panorama apresenta.

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Ensaios / Dossiê

Vidas do fora e a escrileitura de um mundo incontável1 Tania Mara Galli Fonseca Para Bárbara, fundadora - aos meus olhos -, de uma ilha deserta e que sabe, como Arthur Bispo do Rosário que: “Os doentes mentais são como beija-flores. Nunca pousam. Ficam a dois metros do chão”. As torneiras de sua casa sofrem avarias. Umas vazam outras emperram. Você chama o hidráulico para o conserto. Verifica-se, na inspeção, controles impotentes, canos entupidos pela ferrugem que, insidiosa, vedou as aberturas e entranhou-se, ali, como obstáculo à passagem do fluído. Apenas pequenos veios abertos restaram na tubulação. Despencam-se e substituem-se canos, torneiras e registros para que tudo retorne à ordem. Você, então, pode pensar: que tempo invisível é este que transmuta em entupimento aquilo que foi feito para escorrer e lavar? Que faces pode adquirir a matéria ferro quando em longo encontro com a água? Que pode a água diante do ferro?

I Em nosso pensamento, há ainda um outro lugar, em que ferro e água celebram estranhas núpcias. Trata-se de um lugar que, mesmo de olhos fechados, temos vivo em nossa mente. Nele, paisagens se compõem, em dias secos ou molhados. Sob a luz da lua ou do sol. Dias e noites em ciclos fechados enfileiram-se em relógios sem ponteiros. No alto dos edifícios, podem-se ver papagaios empoleirados. Querem ganhar horizonte pelas cumeeiras. No ar, mansas vacas coloridas flutuam junto a galinhas perdidas de seus grãos. Evaporaram-se os gramados, A terra e as cercas se esconderam, imaterializaram-se em poeiras finas e imperceptíveis. Restou apenas seu cheiro. Os odores funcionam como pistas sensíveis de secretas secreções que 1

Texto originalmente publicado no livro Vidas do Fora – Habitantes do silêncio, organizado por Tania Mara Galli Fonseca e Luciano Bedin; Editora da UFRGS, 2010.

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não se deixam ver. Não se escuta riachos sussurrantes e tampouco se vê montanhas verdes. No plano, paira o silêncio e uma incessante bruma envolve telhados que se sobrepõem a outros telhados. Divisamos a paisagem como em um duplo embaralhado. Estranhos elementos misturam-se ao prédio imponente e de estilo e compõem, assim, uma bizarra arquitetura. Tem-se a impressão de que as névoas de um interminável inverno encontraram finalmente um lugar para sua existência insistente. Situamo-nos em um país profundo, feito de gestos que se proliferam em câmara lenta, cada qual inapagável e que se revelam como tentativas de uma construção titubeante após a catástrofe. Também nós precisamos ultrapassar os limiares da percepção ordinária para reconhecer que, nesse lugar, é preciso sustentar um eterno estado convalescente que encena dramas de um combate para constituir uma morada no mundo. Nesse país, reina um tempo em que épocas demoram a chegar e saem sempre um pouco mais tarde. A obra do tempo, que se materializa em corpos - cinzas e lentos -, desloca-se nas flutuações de sua forçada letargia. Alimenta-se da erosão, mas, como viremos a saber, resiste frente ao que lhe é adverso, entrega-se a serviço de um si que não cabe em explicações e que se coloca em busca de um eterno retorno ao sentido. Neste secular ‘lugar ideal’ de repouso – e de desterro-, os habitantes do ‘palácio’ da loucura andam a dois metros de um chão inexistente. Habitam uma zona do ‘entre’, perguntando-se, a cada instante, como Alice de Caroll: em que sentido? em que sentido? Adormecidos de sua insônia, esquecidos de sua história, alguns desses seres flutuadores exercem, contudo, uma função autoral: transformam a infâmia que se abateu sobre sua existência em outros possíveis. Quando andamos nos pátios e edifícios do palácio da loucura, construídos pela reta razão, podemos identificar faixas paralelas do tempo no tempo de dois trilhos. Como formula Bruno Shulz (1994) aqueles acontecimentos que não podem ser enfileirados num tempo ordenado, dispostos em seqüência como numa fila e que chegaram tarde demais, quando o tempo já tinha sido distribuído, dividido, desmontado e que, agora, ficaram no ar. Quando nos equilibramos sobre os trilhos do tempo ordenado por gonzos, podemos visitar locais onde se erguem grandes vitrines que guardam

descomunais livros de registro. Nosso olhar

torna-se escuta quando os folheamos e, neles, ainda podemos ouvir o ranger

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de antigas canetas à tinta molhada riscando o branco papel sob a mão de alguns funcionários. Naquela escrita, vidas foram traçadas e decididas, foram colocadas em jogo e sucumbiram na infâmia de sua inexpressão. Impiedoso, o arquivo de registros oficiais, escrito por anônimos, parece subtraí-las para sempre de uma possível apresentação. Desterradas pelos raios das palavras, vidas devem permanecer silenciadas já que todos os esforços de cura de sua insanidade foram fracassados. Vidas insanas e incuráveis, cuja presença singular nos aparece exatamente através daquilo que as cala e as distorce num esgar. Então, compreendemos o que pode o poder e que sua ação não se reduz a reprimir. Admitimos que vidas reais foram postas em jogo e ocupam, nesse arquivo infame, um lugar possível. Com certeza, para a maioria dos sujeitos internados, esses lacônicos registros, enquanto marcavam os sujeitos com o selo da infâmia, também traziam a certeza de terem se constituído no único rastro de sua existência. Guardam curiosas histórias, testemunham secretas práticas, denunciam costumes sociais que poderiam ainda ser nossos: nesses álbuns de selos,

diagnósticos e

prognósticos descrevem a difícil

reconciliação do homem com o homem, do homem com os seus instintos, das instituições que foram sacralizadas para expulsar a alteridade indigna de existir e de conviver. A coleção de álbuns, instalada nas vitrines do memorial da loucura, nos aparece como um livro da contabilidade do juízo. Nada passou despercebido aos seus escrivães que, furiosamente, investiram sua antiga caneta sobre o branco papel que ficará para a história. Não sabiam eles, naqueles momentos de redação, que sua escrita iria explodir em estilhaços. Seguiriam direções múltiplas, tantas quantas viessem a ser seus possíveis leitores. Relançar-se-iam sobre toda a humanidade para confrontá-la com suas injustas verdades moralizantes. Tornar-se-iam um inapagável relato dos enlaces entre ciência e moral e dar-se-iam a ver, enfim, como mil espelhos colocados nos crachás e lapelas de cada um dos funcionários do Estado. Assim, ao examinar a colossal coleção de álbuns de selos infames, algo diferente acontece em nós. Orientamo-nos em direção ao que nos leva Bruno Schulz (1994, 11), no seu conto ‘Primavera’: em todos os horizontes, em todas as esquinas, crescia, emergia este perfil onipresente e inevitável, fechando o

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mundo a chave como uma prisão. E, quando cheios de uma resignação amarga, já perdêramos a esperança, quando já nos conformáramos com a uniformidade do mundo, com aquela imutabilidade cujo fiador era Francisco José I – abriste inesperadamente diante de mim, como uma coisa sem importância, este álbum de selos, oh, Deus, permitindo-me ver de passagem este livro descascando-se com brilho, este álbum despindo-se, página após página, cada vez mais luminoso e mais apavorante ... Quem poderia me levar a mal por eu ficar deslumbrado naquela hora, exânime de tanta comoção, por derramar lágrimas dos olhos que transbordavam de luz. Que relativismo deslumbrante, que feito copernicano, que fluidez de todas as categorias e todos os conceitos. Quantas formas de existência nos deste, oh, Deus, quão incontável é o teu mundo! É mais do que pude imaginar nos meus sonhos mais ousados. Então era verdade esta antecipação prematura de minha alma, que, contrariando as evidências, insistia ser incontável o mundo! Gostaríamos, pois, de asseverar e repetir com Schultz, nosso desejo de primavera. Gostaríamos de ir em busca do perdido mundo incontável. Ir além e também aquém das contabilidades fiscalizantes. Adoraríamos nos ultrapassar, para vir a nos encontrar fora dos trilhos da história, deixar-nos levar apenas a um dos braços laterais da história enfileirada. Tomaremos, pois, um desvio cego e decidiremos andar fora dos trilhos daquele tempo parado e mumificado da vitrine museológica, de onde ainda podemos ouvir e ver disparos e relâmpagos. Nosso caminho nos conduzirá a um lugar antagônico ao dos postos onde se deve pagar impostos e tarifas alfandegárias para a sustentação da existência. Procuraremos um entreposto, vizinhante das edificações retas e até mesmo situado em sua quadrada arquitetura. Algo como uma ilha deserta, na qual desnudos habitantes tomam sol durante horas. Sonharemos com este enclave de ar na cidade murada. Saberemos que sua ocupação é só em aparência, e que essa ilha deserta que buscamos, retomará e prolongará seu impulso apesar das codificações que a querem anexar ao continente. Estaremos

sempre

nesse

esforço

contra

a

dominação

das

marés.

Procuraremos produzir, ao menos, um mínimo território, no qual se secam as palavras e as injúrias, para conceder um solo aos habitantes errantes. Eles já enxergaram as marés, foram suas vítimas e afogados e agora, tentaremos

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ressuscitá-los, mesmos que já tenham sido levados. De seu além, nada poderão dizer ou usufruir, mas nós, através da sua tragédia, iremos em busca de outro mundo do mundo, sonharemos, enfim,

com uma ilha deserta da

história do homem. Ela própria seria tão-somente o sonho do homem e o homem a sua pura consciência (Deleuze, 2006). Nela, a geografia se coligaria ao imaginário e não se trataria de virmos a encontrá-la fisicamente. Seria um território existencial, somente existente como pensamento: presença-ausência de seres amnésicos que ali se situam além de sua precedência carnal e histórica - seres que portam estandartes faiscantes enquanto criam e resistem e que continuam a existir como despossuídos e sem qualidades, não nutrindo, jamais, a gana da posse e do domínio. Pensaremos que tal lugar da imaginação deveria, entretanto, continuar para sempre inabitado. Não poderá jamais ser tomado pelo homem e por suas verdades ilusórias. Deve funcionar como respiradouro, como um não- lugar, lugar de todos e de ninguém, lugar coletivo, sede de possíveis utopias. Nele se cruzariam versões de toda a espécie, haveria sempre um vazio e um silêncio para recebê-las e fazê-las circular, lugar sem ocupantes, ocupantes sem lugar. Circundado que se encontraria pelo mar de verdades e julgamentos proferidos pela razão científica e governamental, este lugar - que iremos encontrar a seguir - mostrar-se-ia como um ovo daquele próprio mar que o produziu. Tudo aconteceria como se , num passe de inversão, tal ilha deserta tivesse tornado deserto o próprio mar que a circunda, abrindo nele infinitos veios de navegação que, já não caberiam no olhar inspetor e unidirecionado da retidão.Talvez, daqui, se tornasse possível colocar fora do jogo vidas minúsculas até então, exclusivamente, marcadas por palavras que as subordinaram a fins práticos e corriqueiros, com função meramente designativa. E, a seguir, talvez, então, nos seria possível a experiência de apresentar o mundo ao invés de representá-lo, fundar, como afirma Blanchot (1984), “o outro dos mundos”, que não se refere a um mundo inexistente, mas sim aquele que é evocado em seu esplendor e realidade plena e que, por ter se tornado possível avisaria à linguagem da sua insuficiência frente à vida. Far-nos-ia também sair da dialética, repensar as noções de sujeito e de história, verdade e origem. Significaria uma fuga do aprisionamento posto pelos conceitos e o abandono das certezas de nossa cultura e dos

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princípios que regem nossa história.

Tratar-se-ia de um esforço para

realização de uma irrealizada história, a qual só se efetuaria pela negação de todas as suas realidades particulares, por sua negação e, ao mesmo tempo, pela afirmação da mesma negação. Essa afirmação pela ausência nos levaria a um fora da linguagem corrente, constituiria a condição de uma obra feita pelo “desobramento” das palavras , sendo, enfim, o que nos permitiria chamá-la de “experiência do Fora” que encenaria todos aqueles atos de escrileitura que viríamos a empreender em nossa saga pelos caminhos do arquivo de vidas e obras com o qual estamos implicados. No arquivo, deveremos anular o tempo, neutralizá-lo, dissolver-lhe a história, desbaratar-lhe as verdades, abolir-lhe os sujeitos, fazer soçobrar sua ordem para jogar um pouco de estranhamento e de insólito no mundo enfileirado. Esse, contudo, não desapareceria, Desdobrar-se-ia no outro dos mundos, exteriorizado de suas profundezas, colocado em relação com o Fora, possuindo outra versão, constituída de devires, espaço do deserto, do exílio e da errância.Uma outra imagem de mundo ser-nos ia possível e ela seria produzida por nossa capacidade de tornar as coisas inapreensíveis, inatuais, impassíveis, ou seja, diferidas pela potência de nosso pensamento que torna presente aquilo que se produz em sua ausência. Desde esse modo de pensar, seria, então, possível retomar os álbuns de selos contidos nas vitrines dos portfólios da loucura. Eles seriam lidos de cabeça para baixo, e também em diagonal e nas entrelinhas, em partes e fragmentos, enfim, de modos e posições que poderiam suspender o presente e restituir ao passado aquilo que ainda nele permanece como grito abafado. No não-lugar, sem nomes ou distinções, na imaginada ilha-imaginária repleta de virtuais, desejaríamos ser capazes de nos fazer praticantes de revirações do passado em futuro e de escrever a história a contrapelo. Tratar-se-ia, então, de fazer nascer uma segunda origem, um recomeço? Tratar-se-ia de vir a encontrar uma outra coleção de álbuns que, paralela àquela envidraçada, renega a catástrofe registrada empertigadamente nos registros da história da loucura? De dar, enfim, uma segunda chance para a apreciação da vida? Em sua afirmação de que: “Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se

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repita uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis”, Deleuze (2006, 22) nos auxilia a deter nossa arca do dilúvio. Assim, na seqüencia de nossa navegação, vamos fazê-la pousar na única porção que acreditamos não se encontrar totalmente submersa no país profundo em que estamos circulando. Na ilha-deserta do Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, cuja superfície nos é também confiada, pareceu-nos ser esse lugar onde tudo pode recomeçar num mundo que tarda a recomeçar. Recuemos, pois, no tempo, em direção ao imemorial. Não nos iludamos, entretanto. Este espaço-tempo que existe perto de nós, é vizinho das outroras encasteladas. Foi dotado de diversos dedos a mais e que, ágeis, agora nos apontam para o insuspeito, ou seja, para aquilo que ainda não tínhamos olhado e que está recomeçando. Devemos problematizá-lo, pois.

II - O mal de arquivo Desconfiamos que, com nosso desvio, talvez, quiséssemos mesmo estar em companhia de ladrões para vir a sondar o acúmulo de seus tesouros roubados, para vir, enfim, encontrar um depósito irregular do ilegítimo. Como na caverna de Ali “Bárbara” e os quatrocentos ladrões -, vermos ainda fazer brilhar o esplendor de vidas condenadas e fora da língua maior. Colocar-nosíamos, pela nova geografia desviante, em busca do homem perdido, a nos abraçar com aquele monte de desenhos e pinturas suportados por mais de cem mil velhos papéis reutilizados. Qual valor para a vida poderia se desprender daquele aparente lixo, acumulado por 19 anos num sótão cujas portas rangem e o vento nos corta quando passa pelas janelas sem vidros? Poder-se-ia tomá-lo como uma coleção de pistas, de rastros, enfim, vestígios das inúmeras setas disparadas por ladrões desnorteados que, de sua desrazão, dia após dia, roubaram um pouco de ar para viver de outro modo na cidade murada. Poder-se-ia observálo como designações da forma vazia de onde provieram como exercícios do ser que, longe da interioridade pessoal, emergiram na superfície. E, ainda, como transgressões que abalam as verdades instituídas e nas quais desaparecem as dicotomias e contradições entre interior e exterior, realidade e imaginário.

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Tais vidas, no labor diário de seu atletismo, contaram, é certo, com a ajuda de outros que, ajuizados, abriram-lhes as portas de seus braços e ouvidos, deram-lhes nome próprio e mantiveram os olhos faiscantes enquanto acompanhavam aquelas mãos inábeis e enrijecidas a traçar, com tintas , canetinhas e lápis coloridos, uma outra escrita de si. Na caverna de Ali “Bárbara”, tornou-se possível, àquelas vidas do Fora apresentarem-se e dizerem de si, mesmo que através do enlouquecimento dos signos. Ali, formara-se uma pequena multidão de técnicos, profissionais e estudantes que, movente em sua composição, iam e vinham e viram, assim, os anos correrem céleres através de cada manhã. Foram tantas as produções brotadas daqueles instantes, que os anjos ajuizados que acompanhavam sua feitura resolveram fundar um domicílio, um espaço de depósito, no qual se podia ver nascer um arquivo informe. Nesse, transmutava-se o privado em público e tornava-se possível reunir os signos enlouquecidos em um único lugar. Das precárias instalações, arranjadas em uma espécie de sótão que outrora havia servido de enfermaria e local de cirurgias, aproveitaram-se longas mesas grosseiras e velhas macas. Estantes desengonçadas serviram também de apoio aos magotes de papéis que continham os estranhos desenhos e pinturas. Não havendo mais móveis suficientes, os papéis passaram a ser acumulados no próprio piso e o seu volume, sempre aumentando, indicava que algo continuava a latejar nas vidas de seus autores. Como as múltiplas cópias que o gravurista imprime de sua matriz, repetiam-se as cenas, suas representações e motivos que, após feitas, eram enroladas em séries de tiragem diária. Assim, enrolados para dentro de si mesmos, com as costas voltadas para fora, os papéis desse arquivo informe ficaram por muito tempo. Como folhas soltas de um grande livro despedaçado, misturava nomes e datas e sua vista era embrulhada e confusa. Desanimava aquele que dele quisesse se aproximar, uma vez que, tendo tudo, mas em grande desordem, mais escondia do que visibilizava. Avizinhava-se a necessidade de um novo trabalho dos ajuizados. Alguns foram chamados e outros se autoconvocaram para o enfrentamento com aquele caos de papel. Deu-se início à classificação por nomes e datas e as obras começaram a ser distribuídas, divididas e empacotadas por autor e data e recebiam, no invólucro pardo, uma inscrição

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frontal que as identificava. O arquivo tomava forma e passava a ocupar os trilhos do tempo cronológico. Foram necessários anos até que o espaço ficasse tomado pelas grandes pilhas de papel pardo. Muitos catalogadores vieram, ficaram um pouco e desistiram quando sentiram os ardores da tarefa. Outros ficam até agora e se entranham nas paredes. Constituem, então, outras segmentações, formulam novas classificações, remanejam as pilhas de suas antigas posições, compõem uma paisagem de aléias por onde circulam seguros, sendo capazes de apontar, dentre as enfileiradas pilhas quietas e mudas, onde se encontram as obras deste ou daquele que se lhes pergunte. Erigem uma arquitetura contra o esquecimento e dizem-nos, exultantes, terem conquistado a atualização do arquivo, ou seja, atingiram o tento de só empacotarem e classificarem os atuais trabalhos que ainda são produzidos; mas, também nos contam, surpresos, que volta e meia, ainda surgem, não se sabe de quais esconderijos, outros maços de papéis enrolados ou em pastas, com marcações de datas antigas e nomes de autores mortos, que estiveram extraviados não se sabe bem por quê. É através da observação dessa interminável lida arquivística que vamos encontrar, no próprio arquivo, motivos para novas problematizações. Partimos do ponto que o espaço do arquivo não é apenas um lugar de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado. Nele entranha-se aquilo que Derrida chama “mal de arquivo” e que o faz trabalhar contra si próprio. Convocação silenciosa, este mal - de origem pulsional anárquica – “destrói seu próprio o arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a motivação mesma de seu movimento característico”. (Derrida, 2001,21). Tal pulsão de morte e destruição não deixa monumentos e documentos como um legado que lhe seja próprio. Não possibilitará ao arquivo ser a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Hipomnésico, este arquivo trabalha contra si mesmo, sendo, paradoxalmente, conservador e instituidor, tradicional e revolucionário.

Criado como um suporte exterior à

memória interior e espontânea, o arquivo torna possível instituir como acontecimento aquilo que é arquivável, Ele nos mostra que não haveria desejo de arquivo não fossem a finitude e o esquecimento daquilo que se quer arquivar, não fosse, enfim, a ameaça de sua destruição. “Ora, esta ameaça é

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in-finita: ela varre a lógica da finitude e os simples limites factuais, a estética transcendental, ou seja, as condições espaço-temporais da conservação” (Derrida, 2001,32). O mal de arquivo implica, pois, no in-finito, em tudo o que está por vir, na sua abertura para o futuro sem a qual não haveria, para o arquivo, nenhum desejo ou possibilidade. Mais do que uma coisa relativa ao passado, “o arquivo deveria pôr em questão a chegada do futuro”, continua a nos dizer Derrida (Derrida, 2001,48). Trata-se de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para o amanhã. Fazendo-se Um, o arquivo compõe-se de uma estrutura espectral: nem presente nem ausente em carne-e-osso, nem visível nem invisível; torna-se uma casa assombrada na qual sempre há lugar para a verdade do delírio e da loucura trancafiada sob sete chaves. Verdade que, mesmo recalcada, retorna como verdade espectral, fantasmática e irredutível à explicação. Para acessar seu feitio espectral temos de falar uma língua própria, pois não se fala com fantasmas em qualquer língua. O rastro do fantasma está ali, mas tudo o que ele faz para nós é abrir portas atrás de portas, desconstruindo sua aparência de substituto deformado daquela primeira/última verdade que ainda respira no coração de seu delírio. Nesse momento, os decifradores do arquivo já devem ter compreendido a importância em conciliar certo espiritismo com a razão. Já se defrontam com as reservas e esquivas trazidas pelo problema da tradução; já sentem que os documentos, desde sua singularidade insubstituível, se ofertam e se furtam, abrem-se e subtraem-se às leituras fáceis e interpretativas. Os leitores do arquivo sofrem do “mal de arquivo”.Vivem agoniados com aquilo que os atrai mas que não podem dominar. Seu mal, contudo, pode significar outra coisa do que sofrer de um mal, no sentido comum. Nas palavras de Derrida (2001,118): É arder de paixão. E não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão à repetição, nenhum ‘mal-de’, nenhuma

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febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está já com mal de arquivo. Não estariam tais leitores - acometidos pelo “mal de arquivo” -, também a experienciar o Fora, buscando sem cessar a presença de algo que insiste em se ausentar? Não seriam os atuais decifradores das vidas e obras contidas no arquivo aqueles que teimam em desdobrar o mundo no outro dos mundos? Anunciadores das auroras ainda não vindas nos pátios do palácio da loucura? Pensamos neles como Ricardo Piglia (2006) pensou o seu “último leitor”, ou seja, aquele leitor essencial que empenha sua alma na tarefa de decifrar as páginas desfolhadas do colossal livro da desrazão. Pretendemos, nesta sequência, imaginar sua labuta de decifração. Em dias quentes ou mesmo naqueles gélidos e de vento forte, escutam desprender-se das pilhas empacotadas, um constante murmúrio, um interminável rumor que pressente estar abafado por diversas portas que se fecham/abrem, umas atrás das outras. Como se uma inquietude - rebelde e esconjurada -, ao sentir a possibilidade de vir a ser liberta, venha pedir-lhes passagem, utilizando seus corpos sensíveis para sair de sua quase-causa profunda, transformando-se, então, em efeito de superfície e enunciação que pode ser falada. E, quando finalmente se acostumam ao incessante rumor desprendido e passam a desembaraçar as folhas daqueles pacotes murmurantes, quando as estendem em mesas para folheá-las, apreciá-las e, sobretudo, para interrogar suas inscrições, podem, então, escutar gritos, como se, com o calor de sua proximidade, um elemento inarquivável e anárquico pulasse dali, para agarrarse a uma possível, ainda que frágil existência. Um elemento pulador é atraído por aquele que observa e, em sua natureza de quase-causa, não pode tudo sozinho. Necessita afetar outra natureza que, mesmo lhe sendo heterogênea, carrega algo que lhes é comum. Necessita de uma relação de intimidade para que possa agir como de assalto, na imediatez de um contágio, de uma intrusão, que inverte um em outro e que suspende o presente ao evocar a presença mesma daquela ausência que quer repetir-se e eternamente recomeçar. Os leitores são tomados de arrepios quando isso lhes acontece. Confrontam-se com uma repetição sempre diferencial que funda um tempo não mais cronológico e no qual as coisas não conhecem mais começo nem fim,

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nem chegam a acontecer de fato e, justamente por isso, estão sempre recomeçando. Parecem ter nas mãos, aquilo que Maurice Blanchot aponta em seu “O livro por vir”: um porvir, um “ainda não” que marca a impossibilidade da linguagem em deixar-nos cadastrar o mundo através de palavras. É Blanchot (1984,88) que nos diz: O deserto ainda não é o tempo nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento. Aí, apenas se pode errar, tempo sem passado, sem presente. Terra nua onde o homem nunca está presente, mas sempre fora. O deserto é esse fora onde não se pode permanecer, pois estar aí é sempre já estar fora. Assim, nesses termos, ao mesmo tempo em que podemos pensar o arquivo como um espaço literário, uma vez que ele contém “a perseverança das coisas depois que o mundo desapareceu, a teimosia que resta quando tudo desaparece e o estupor do que aparece quando não há nada” (Blanchot, 1997, 317), também podemos pensar seus “últimos leitores” como errantes e exilados “que se deixam levar pelo imprevisível de um espaço sem lugar, pelo inesperado de uma palavra que não começou, de um livro que está ainda e sempre por vir” (Salem Levy, 2003,34) O arquivo como o lugar de exílio, nãolugar, deserto - do mundo e do sujeito -, lugar em que o eu transforma-se em ele, lugar do impessoal, do outro - este desconhecido e errante que libertou sua interioridade, que se fez superfície e tornou-se a própria ausência e que, por sua voz, possibilita um discurso sem autor, discurso de todos e de ninguém. Escrever, pois, desde esse lugar, supõe que os leitores tenham se deixado levar para além de si mesmos, para um fora-de-si e que tenham feito de sua leitura uma escrita não sobre o mundo, mas com o mundo e que, em sua enunciação não houvesse busca de sentido para uma unificação pessoal ou para a cura de suas neuroses. Nada teria a ver com suas lembranças, e tudo emanaria de visões, audições, devires e potências que circulam no Fora. Morre o autor, no sentido de um eu pessoal, nasce um anonimato informe e obstinado que tira o poder de dizer “Eu”, um plural da própria palavra e que, como diz

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Foucault (2001, 52), abre caminho para a linguagem como escoamento do Fora: Escrever, hoje, está infinitamente próximo de sua origem. Isso é, desse murmúrio inquietante que no fundo da linguagem anuncia, logo que se abre um pouco o ouvido, aquilo contra o qual se resguarda e ao mesmo tempo a quem nos endereçamos.

III - A escrileitura de um mundo incontável Nesse ponto, somos levados a retomar aquela nossa decisão inicial de seguir pelo desvio da história. Também nos vem à mente a imagem daquele outro arquivo de registros de internamento, colocado, intocável, em vitrines para a posteridade. Parece-nos que, vizinhos, os arquivos travam um combate que não se situa, contudo, em uma natureza que lhes é própria. Ambos são espectrais e nada, em nenhum deles, impediria a tarefa “do último leitor”, tal como acima foi referida. Ambos carregam a condição de potências imanentes que estão sob a condição de um tempo intempestivo e não-reconciliado com a história. Essa constatação nos faz pensar que tudo o que pode diferenciar os arquivos, é dito a partir do modo de lê-los e de enunciá-los, sendo, portanto, eles próprios, destituídos de sentido ético e estético. Contudo, acreditamos que desse outro modo de escrileitura, do qual se produz uma ontologia, também se desprende uma ética e uma estética que suportam uma nova maneira de relação com o real, restabelecem o vínculo do homem com o outro homem. Modo de ler, modo de escrever e de enunciar como experiência do Fora, como despersonalização do sujeito que, em seus atos de criação e resistência, age contra a história, contra os saberes e os poderes que a sustentam como infâmia e injúria, como o intolerável. Assim, passam-se os dias. De catalogação e leituras. Pelas mãos dos “últimos leitores”, desfiam-se cada uma das 100.000 páginas espalhadas do possível álbum que está por vir, mas tarda a chegar. Reunido e unificado, o arquivo do desvio transforma-se em labirinto e seus leitores aprendem a ler por linhas tortas e nas lacunas. Não se mostram preocupados em selar ou

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carimbar com rótulos aquela escritura. Tampouco buscam encaixá-la na gramática do conhecimento arbitrado. Assumem sua ignorância diante do que vêem nascer, agem como os famintos e sedentos que, quando têm em mãos uma fruta que não acabou de amadurecer, a afagam e aquecem - e mesmo a apertam suavemente entre os dedos -, para fazer movimentar seus sumos e trazê-los à superfície. Não se trata, então, de ir à profundidade. Todo o artifício consiste em produzir superfície, um plano comum que sustente as vidas errantes de todos. Sabem que, por sua obra de escrileitores, algo difere nesse arquivo diferentemente do que acontece no arquivo oficial, situado nos trilhos da história. Encontram, nele, múltiplas traduções para as vidas silenciadas. Sentem como elas lhes escapam e como insistem em sua expressão, que se traduz em linguagens que muito diferem daquela depositada nos registros manicomiais. Fundam um plano de vozes e rumores, frente ao qual de início se perguntam se estão descendo a uma maior profundidade ou se estão flutuando naquelas inscrições produzidas por um modo que não procura sentido, mas que se deixa levar pelos signos que insistem em brotar e se repetir. Encontram-se com tais vidas e suas obras no Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro e, nessa ilha-deserta, como náufragos, os pesquisadores-leitores-decifradores-ressuscitadores

navegam

na

massa

daqueles dos papéis-vidas. Parece-lhes estarem em um mar que, na horizontal, abre múltiplas entradas. Sabem que estão a serviço de um resgate para que as águas das marés do esquecimento não destruam aquele legado. Dentre desenhos, pinturas e bordados situam-se, em um primeiro lance, pelo que os atrai sua visão. Estabelecem, assim, um encontro cujas razões lhes são desconhecidas. São, então, tomados por cores, por séries fantásticas, por escrituras que nunca imaginaram restar ali, como gritos do interminável delírio ao qual ainda resta uma lucidez. Tudo se lhes torna surpreendente, pois, ali, naquele fim de mundo, seria o último lugar onde poderiam supor encontrar alguma beleza e, ainda, algumas vozes emitidas de corpos que não mais existem.

Sabem que, como editores de um livro sempre inacabado, estão

confrontados com uma espécie de diários da loucura - diários daqueles momentos em que a loucura pôde falar, pôde dizer, colhendo, então o direito

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de ser escutada. Tal como arqueiros, os artistas-autores-loucos lançaram suas flechas para todos os possíveis passantes. Escreveram a longa carta de seus instantes, destinaram-na a quem se deixasse afetar por suas fincadas. O Acervo de Obras torna-se, então, o sótão silencioso de murmúrios dos instantes que essas vidas tiveram oportunidade de expressão. Com seu espaço quase todo ocupado, as inúmeras pilhas de papéis tornam-se também (p) ilhas que, como bancos de corais em meio ao mar, permitem um sossego, quem sabe para deter a velocidade das correntezas da desrazão. E, ainda, se as obras empacotadas viessem a ser estendidas, formariam um imenso tapete enfeitado a encobrir de ponta a ponta, na horizontal e na vertical, o espaço arruinado que se tornaria, assim, uma espécie de templo da memória feito da mistura de cores, nomes e datas, sem homens e sem deuses, apenas inscrições acumuladas e guardadoras de segredos inconfessáveis. Os leitores, diante dessa imagem, podem então também se perguntar: em que sentido? em que sentido? sentem que não há como não se deixarem arrastar pelas subterrâneas correntes de silêncio daquele plano sem precipitações abruptas. Ali, um tesouro conspira em direção ao sussuro e ao ainda apor vir. Nessa coleção de indícios, têm de afinarem o ouvido e conversar em voz baixa sob pena de prejudicarem as ressurreições. Sabem que se encontram em um nãolugar que, entretanto, se tornou um lugar para aqueles que não tiveram sequer um digno lugar na existência e que, como natimortos, jazem inertes à espera que sejam tocados para receberem o lugar do sentido. Os milhares de papéis desenhados e pintados podem ser assemelhados a membranas sensíveis nas quais foram inscritos a desmesura e o non-sense. Os leitores supreendem-se quando os sentem ainda quentes após tantos anos de terem sido feitos, quando percebem quanto eles ainda reverberam e ressoam a ponto de se inverterem as posições: aquilo de aparência antiga, velha e decaída, feito por já mortos, parece investir-se de uma saúde que salta e age como a melhor das medicinas e das psicologias. Ali, pula um elemento paradoxal que não encontra posição fixa, que evapora as significações, os nomes próprios e as tipificações, que apaga os corpos que produziram e daqueles que, agora, os lêem. Os encontros íntimos com vidas ausentes, com seres cujas costas encontram-se sempre voltadas, com vidas que, tendo sido jogadas, nunca foram possuídas,

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representadas e ditas, fundam agora, por sua estilística, a possibilidade de uma reviravolta da história. Mesmo que por instantes, naqueles papéis pintados, brilha uma luz ofuscante. Neles, fixou-se um gesto que ultrapassa a bizarra dinâmica de seus autores e se torna indiferente vir a saber quem falou e quem disse. Considera-se mesmo ser preciso alcançar um certo apagamento do indivíduo de carne e osso, para ficar com seu sopro. Então, os leitores também compreendem que o depósito de obras é, enfim, um depósito de vestígios e que a operação enunciativa de traduzi-los somente será possível quando ocuparem o lugar de um morto, quando afirmarem sua própria ausência diante daquilo que se ausenta, mas que pode devir presença. Entendem que se encontram em um mundo diferente que os força a pensar de outra maneira e pode, então, escutar Cecília Meireles (1976, 173) a lhes dizer o poema: Escreverás meu nome com todas as letras, Com todas as datas, - e não serei eu. Repetirás o que me ouviste, O que leste de mim, e mostrarás o meu retrato, - e nada disso serei eu. Dirás coisas imaginárias, Invenções sutis, engenhosas, - e continuarei ausente. Somos uma difícil unidade, De muitos instantes mínimos, -isso seria eu.

IV - Um manifesto, ou ao menos o tom de um, antes de concluir Alçar à última potência cada recomeço das vidas infames. Derramar o azeite quente que verte de suas obras expressivas sobre o gelo dos saberes que as condenou. Pensar em salvá-las e ao mesmo tempo recuar, pois chegamos tarde demais e já não mais podemos fazê-lo. Vidas perdidas, mas que não seja em vão. Teriam chances de alguma revanche? Teriam consciência do poder que as produziu? Teriam possibilidade de se saberem

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testemunhas de uma longa história, da qual transformaram-se em planos de inscrição do biopoder que as dominou? Seus corpos carregam as marcas de um estado de exceção, onde os direitos lhes foram negados e, acreditamos que, uma das razões para impulsioná-los à sobrevivência, foi a de converterem-se em testemunho. Como sobreviventes de uma guerra, posicionam-se como transgressores de uma ordem contínua e estabelecida. Buscam mostrar que o mundo é incontável, apesar das forças que querem unificá-lo e fechá-lo. Em suas vozes, ecoam os murmúrios de uma conversa infinita, abundante, múltipla, inesgotável, que nos contam de um mundo tomado por todos os lados e do qual não tiveram como sair. Em seu mundo de papel, desenham paisagens em que tudo se desprega do solo. Fazem voar casas, árvores, animais e a própria gente. Trazem para a cidade os campos, as lavouras e os pomares de sua infância interiorana. Abstraem-nos em impressionantes traços, deixando a ver somente fugidios rastros que se assemelham aos de grandes pintores. Embaralham formas, desfazem-nas e as parcializam. Produzem veladuras naquilo que já foi; instauram silêncios brancos e pausas sobre o sangue já derramado; explodem em letras e números sem gramática e matemática; plantam, em velhos papéis, imensas árvores de todos os matizes, querem uma coleção delas ao modo de um pomar extravagante e fecundo. Formatam buquês de uma estranha flora; fazem nascer gentes de todas as cores, com muitos dedos nos pés e nas mãos, grandes olhos observadores e bocas carnudas. Amarram-nas em sofás e cadeiras, ornam-lhes com condecorações enquanto descalçam-lhes os pés e deixam à vista, sob a roupagem, um corpo desnudo. Tudo o que oferecem força ao embaralhamento da visão e apresenta-se como expressão do momento em que a vida se traduz na arte e arte se produz da vida. Nós os denominamos de artistas da margem e, quando neles falamos referimo-nos, então, não a sujeitos que se situam nas extremidades, delimitando um dentro e um fora da cultura. Referimo-nos à margem que marca um intermezzo, a algo que se desloca entre lógicas duras, sem pertencer a qualquer uma. Trata-se, a nosso ver, de um lugar que é, a um só tempo, absolutamente interior e exterior à máquina sócio-cultural e que é forjado no próprio contexto no qual habitam os sujeitos que, então, delas escavam novas

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possibilidades de linguagem. Desde esta perspectiva, de nosso ponto de vista, torna-se artista aquele que trabalha na direção de um “pode ser”, na atualização das virtualidades imanentes ao seu próprio território existencial, o qual se transmuta por seu ato criador e por suas possíveis proliferações. Consideramos que essa produção artística - criada no próprio seio daquilo que a pode aprisionar -, é dotada de um caráter de resistência ativa que a torna peculiar, ética e politicamente significativa. Trata-se de uma produção relevante, tanto por sua extensão quanto por seus significados, podendo ser tomada como um breve clarão que testemunha a existência de homens e mulheres, os quais , apesar da impotência de suas existências, resistem em sua vontade de expressão e de relação viva com a realidade. Trata-se, enfim, de uma manifestação coletiva, que nos leva a perguntar sobre a força que ainda reside na impotência, e sobre como esses corpos , assujeitados a tantos desígnios de um poder que os quis normalizar e negar, ainda dizem não ao seu silenciamento e apagamento sócio-afetivo e cultural. Como já foi dito, suas obras constituem o Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro que consideramos um arquivo da memória social; o qual, ao ultrapassar o sentido de indícios registrados de biografias individuais, torna-se documentação que nos remete à necessidade de fazer a história do nosso presente, retomando os liames rompidos dos diálogos entre loucura e razão, cultura, ciência e vida. Mais do que as biografias e rumos de vidas individuais extraviadas da retidão da normalidade, o que nos surpreende e interessa é a sua capacidade de expressão, sua resistência em se manterem dizendo algo quando todo o seu entorno lhes impôs esquecimento e letargia. Não nos interessa tomar as obras de arte para desentranhar-lhes possíveis interpretações inconscientes que viriam a auxiliar em processos terapêuticos. Nosso enfoque, neste momento, recai na obra como incessante manifestação vital dos rumores de forças que habitam ou habitaram os corpos de seus autores. Encorajamo-nos a encontrar, em tais obras, coleções de traços, gestos e cores, um lugar valorizado e visível na cultura e no mundo das artes, da filosofia e das ciências. Aqui, não importa classificar e denominar segundo critérios marcados pelas dicotomias e separações entre o que pode ser considerado como parte da cultura ou dela

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excluído. Nosso olhar recai para um longo horizonte e não encontra demarcação de beiras: como se as obras e seus artistas vivessem em meio a um grande rio que, de tão largo, não dá a ver suas beiradas. Artistas da margem e do meio, que não atracam nem se enrijecem nos lugares da moda cultural, uma vez que o seu ditame de produção não corresponde a nenhum outro impera o do seu próprio desejo, sem finalidade mercadológica ou escolástica. Obras e vidas dos afectos e das singularidades, ditadas pela força de expressão de seus corpos. Neste lugar da loucura institucionalizada, somos tomados pela vertigem. O reto olhar de nossa razão revira-se. Vemo-nos mergulhados em um acontecimento no qual os fatos já não são mais ordenados em sua seqüência lógica. Eles saem dos trilhos da continuidade e da sucessão e fazem-nos pensar que o tempo cronos que conhecemos é estreito demais para abrigar os sentidos que são ali produzidos. Neste país, torna-se escancarado aquilo que, na verdade, se faz presente em qualquer outro mundo: um elemento extranumerário existente nunca encontra seu definitivo lugar; torna-se o assaltante rebelde que rouba e transgride o curso esperado e previsível das séries em que os fatos se enfileiram. Nesta cidade dos loucos, instaura-se uma luta constante contra aquilo que não pode ser enfileirado nas séries dos significados familiares. Ocupando as pontas de uma linha sem fim, contrabalançam-se razão e desrazão, saúde e loucura, agentes do poder e sujeitos ao poder, os quais, apesar da forçada contraposição, se descobrem, ao final, ocupantes do mesmo plano. Ferro e água numa composição que pode gerar múltiplos efeitos. Neste país da clausura do Fora, a energia circulante seria traduzida como de alta tensão, caso não tivessem sido engolidas e enclausuradas as forças do Fora. Mesmo tendo tido seus corpos travados e assemelhados a grandes frascos de remédios, alguns desses sujeitos enclausurados pelo regime da longa internação, denotam uma estranha força, uma certa teimosia em viver, parecem mesmo retirar alguma alegria de certos momentos de sua existência. Celebram, sem consciência alguma, a passagem das águas e sua potência para transformar o duro em mole, o ferro em ferrugem, o sólido em poeira. Sentam-se nos bancos de coral e desaceleram o corpo para dar vazão ao seu delírio. Parecem poder ter tido acesso ao que

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Nietzsche chama esquecimento. E isso nos toma de contentamento. Estaria aí mais uma razão para se insistir ser o mundo incontável? Agora que estamos conectados a esse país e à sua (p)ilha deserta, podemos sentir a existência de dois mundos em tensão, como faces de uma mesma moeda. Razão ou desrazão, poder ou impoder, dentro ou fora emergem como tendência de um perverso ritmo binário cuja aberrante monotonia e falta de invenção coloca-se a serviço de aberrações por ele mesmo produzidas. Gostaríamos de nos dedicar a estabelecer a conjunção e+e+e entre os termos

para que se nos torne difícil e mesmo impossível

problematizar onde efetivamente se localizam cada um destes termos que compõem esse estado de coisas em suspensão. Seria certo supor, até mesmo, que tal atribuição individualizada e hierarquizada de predicados, corresponderia a uma tentativa inútil e a um falso caminho para o pensamento. Tudo o que podemos, nesse momento saber, é que sendo indissociáveis, cada termo gera o outro e que não há uma essência natural que lhes garanta independência. Os termos em relação retroalimentam-se, havendo entre eles uma espécie de casa vazia, um intervalo branco, ainda não marcado mas marcável, do qual poderão emergir outros possíveis sentidos e devires. Não há mais aqui uma natureza senão aquela que já se entranhou com a cultura e com os artifícios. E, ainda uma vez mais, dizemos que se torna embaraçador quando podemos reconhecer que o que está, supostamente, situado no lado de uma interioridade condenada e tida como impotente, ainda resista e queira fazer uma obra de sua vida. Nestes momentos de afecção, sabemos que estamos certos em buscar situar nosso pensamento naquele desvio cego, pois, está sendo dali que temos podido mais do que reclamar e denunciar. Aqui estamos juntos e buscamos a intimidade com os segredos da desmedida, de cuja explosão vemos apenas efeitos de devastação. Se adentramos a paisagem, recolhendo as cortinas de nosso olhar marcado, podemos nos sentir em meio a cenas de um thriller, nas quais cadáveres ressurgem de tumbas imemoriais para forjarem núpcias entre vida e morte. Há algo neste horror, contudo, que nos fascina e passeamos nossa sensibilidade sempre num “entre”, nos contagiamos com esses corpos informes e, quando os visitamos em suas moradas, vemos que ainda aquecem as esquálidas camas enfileiradas em

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quartos coletivos. Quando recém despertados, esses corpos, sem consciência e sem memória, servem-se de café e pão, colocados em longas mesas providas de bules de alumínio. Em bandejas, comprimidos azuis são distribuídos, como hóstias, em sua boca. Estes garantirão que se mantenham plácidos, libertos das convulsões possíveis de seus delírios. Cigarros feitos de papel-jornal e fumo barato passam a ocupar seus dedos. Uma televisão encena programações histéricas e promoções baratas. Teria quem lhe prestasse atenção? Que vidas habitam essas casas, dormem em suas camas, alimentam-se em longas mesas de todos e de ninguém? A quem pertencem esses corpos, encurvados e com pés desnudos, cuja visão nos aproxima de anjos caídos? Quem são esses seres que, sobreviventes de uma catástrofe, erigem seu testemunho de um modo estético, fazem falar mais além das palavras e das imagens, convertem suas dores em possibilidade de arte? Anjos caídos que “conservam seu pathos, uma dignidade e um singular glamour” (Bloom, 2008, 22), diferenciam-se da figura do demônio e fundam-se exatamente na invenção do humano, para nos remeter a algo que perdemos e que temos o potencial de nos tornar de novo. Desta perspectiva, todos nós somos, pois, anjos caídos, desterrados que fomos do paraíso e da imortalidade e portadores dessa falha que é ao mesmo tempo nossa condição de grandeza e miséria.

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Referências Bibliográficas Blanchot, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’Água,1984. _______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Bloom, Harold. Anjos caídos. Rio de janeiro: Objetiva, 2008. Deleuze, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006. Derrida, Jacques. Mal de Arquivo. Uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. Foucault, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Levy, Tatiana Salem. A experiência do Fora. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2003. Meireles, Cecília. Poesias Completas. V.7 I/Poemas II. Ed. Civilização Brasileira, 1976. Piglia, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006. Shulz, Bruno. Sanatório. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

Sobre a autora Tania Mara Galli Fonseca é psicóloga, professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, professora dos programas de pós-graduação em Psicologia

Social

e

Institucional

e

de

Informática

Educativa/UFRGS,

coordenadora da equipe de pesquisa e extensão/UFRGS do Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, coordenadora do grupo de pesquisas e do diretório CNPQ

Corpo, Arte e

Clínica (www.ufrgs.br/corpoarteclinica). E-mail: tfonseca@via-rs.net

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Ensaios / Dossiê

Ao som de uma cançãozinha Luiz sai de sua casa Andresa Ribeiro Thomazoni1

Resumo: Buscamos neste artigo percorrer algumas linhas de nossa pesquisa cartográfica sobre vida e obra de Luiz Guides, sobre o rumor expressivo de uma vida. Entendemos a Oficina de Criatividade, como um dispositivo maquínico, que possibilitou a sustentação para a poiesis de si e de mundos; assim sua pintura, tornou-se capaz de ultrapassar o caos-catástrofe e eclodir em planos expressivos que germinam, o diagrama nasce apontando-nos os agenciamentos que ali operam. Compreendemos então, a pintura como um território existencial possível em meio à adversidade do Hospital Psiquiátrico, vida e obra em imagem-tempo, que nos lançam a vertigem de um intempestivo, que nos visibiliza a resistência e criação. Palavras-chave: cartografia, diagrama, vida-obra

Ao som de uma cançãozinha Luiz Guides sai de sua casa, em direção ao mundo, num encontro com as forças do futuro, forças cósmicas, onde se improvisa, onde confunde-se com o próprio mundo. Assim a pintura torna-se agenciamento, percorre a folha pendurada no cavalete, mergulha nas tintas oferecidas, sussurra aos pincéis à disposição, dança com as cores que se aderem a superfície, instaura a criação de um outro tempo. Num lugar cinza que se constitui o Hospital Psiquiátrico, Luiz se torna o cinza que salta por cima de si mesmo, cinza colorante, no paradoxo da 1

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional UFRGS. Integrante do grupo de pesquisa Corpo, Arte e Clínica.

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clausura, seu corpo agencia-se com a Oficina de forma a criar, instaurando um outro território existencial em meio à loucura. O diagrama pictórico mistura-se ao diagrama que nos diz sobre um agenciamento. Nosso olhar-cartográfico é, então, capturado por camadas em que esses diagramas reverberam. Num primeiro plano, a pesquisa torna-se diagrama, nosso olhar-vibrátil agencia-se com a vida e obra de Luiz; num segundo plano, a Oficina instaura um diagrama, como um meio associado que sustenta a criação agencia-se com os corpos do Hospital; num terceiro plano, Luiz constrói seu diagrama pictórico, a possibilidade da pintura agencia-se com as forças que o atravessam, resultando na criação, na instauração de sua arte. Nossa escrita cartográfica, então, nos impele em direção à captura de um campo de intensidades, onde também traçamos-desenhamos um diagrama, que fale sobre nosso processo, nosso encontro, nosso próprio devir. A pintura diagramática de Luiz agencia elementos dispersos, de um extremo a outro faz pontes, como uma imagem-tempo, a massa plástica é dobrada,

redobrada, estirada.

Instaura proposições

não-lineares,

não-

dialéticas, não-conclusivas. A função diagramática possibilita um arranjo de relações, passagens, encadeamento de séries, desterritorialização, experiência disjuntiva, de metamorfoses recíprocas entre as matérias, possibilitando produção de devir. A pintura compreende em si mesma um abismo, passa por um abismo, instaura um abismo. Mas algo deve sair desse abismo para que o diagrama possa nascer desse caos-germén. Assim, a modulação das tintas sobre o papel, a sobreposição de traços, a vibração do gesto é capaz de produzir uma trama visual, uma geometria do sensível. Luiz ultrapassa sua catástrofe, atravessa o deserto caótico da loucura e instaura a criação de um novo mundo pela pintura.

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Figura 1: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, 03/08/1994, nº cat. 001158. Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 2: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, 03/08/1994, nº cat. 001159. Acervo: Oficina de Criatividade

De um ponto cinza banal, de linhas verticais e horizontais cujo cruzamento denunciavam uma espécie de grade, de círculos convulsionantes, de espirais ascendentes e descendentes, de números saltitantes, de todos esses elementos o corpo opera um outro movimento, instaura um outro ritmo, seu estilo. Assim nasce o diagrama, um ultrapassamento dos blocos de linhas e cores em direção aos traços e manchas. Uma entrega do corpo para a vibração

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que o atravessa, uma liberação da mão em relação ao olho, a liberdade para se borrar, para se varrer, para esfregar a tela, ultrapassando regiões e zonas.

Figura 3: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, 06/12/1994, nº cat. 001177. Acervo: Oficina de Criatividade

A mão conduzirá essa germinação, somente uma mão desencadeada é capaz de traçar o diagrama, rompendo com a subordinação à coordenadas visuais. Trata-se então, de um caos-germen manual. A mudança de medida do gesto, que ora é milimétrico, ora é cósmico, amarrotamento da tela em outras dimensões, estiramento em outros sentidos.

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São traços assignificantes que vibram, traços de sensação. Marcas manuais quase cegas a serviço se outras forças.

Figura 4: Luiz Guides. Guache s/ papel, 48x33cm, 08/11/1993, nº cat. 001338. Acervo: Oficina de Criatividade

Deleuze (2007), define o diagrama como o conjunto operatório dos traços e manchas, das linhas e zonas. Assim, o diagrama se transforma em um gérmen de ordem e ritmo abrindo a pintura a domínios sensíveis. Cores pictóricas e linhas pictóricas, a dupla gama pictórica de cor e luz. O ponto cinza que salta por cima de si mesmo, o cinza matriz da cor. O traço com sua liberação, uma linha que não possui direção constante e que pode mudar a cada ponto.

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Figura 5: Luiz Guides. Guache s/ papel, 48x33cm, 08/11/1993, nº cat. 001339. Acervo: Oficina de Criatividade

A pintura, assim, não busca nenhuma figuração, ao contrário atua na direção de um desmanchamento de semelhanças, para que a presença surja. Não se pinta na direção de um dado, ou um feito, mas de algo que espera a ser produzido, de um devir. Cada pintura torna-se, então, um fragmento de seu território existencial, cujo fascínio e encanto nos captura, pois também queremos habitar esse pedaço de terra. Não há totalidade possível na pintura, quando o artista quer pintar o que não tem fim, a sua própria vida. A pintura-traço de Luiz, cujo gesto motor-sensível materializa o tempo e o silêncio que o rodeiam, pintura agenciamento que reúne fragmentos de vida em suspensão, que lhes dá uma terra fértil em meio à infertilidade do hospício.

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Figura 6: Luiz Guides. Guache s/ papel, 62x30cm, 05/11/1995, nº cat. 001457. Acervo: Oficina de Criatividade

A expressividade mais forte de Luiz, instaura-se sobre a tinta guache. Nela seu corpo se entrega a uma modulação da cor encantadora. Extrai de uma matéria simples e barata como o guache, toda luz que ela encerra, por intermédio da cor e pela cor. Mais que modelar, mais que moldar, Luiz experiência a modulação da cor.

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Figura 7: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, s/d, nº cat. 001394. Acervo: Oficina de Criatividade

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Figura 8: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, s/d, nº cat. 001395. Acervo: Oficina de Criatividade

Com o surgimento do diagrama, sua pintura, então, continua a avançar, sobre a folha em seu verso. Duplo movimento cuja imagem embaralha os olhos que pousam sobre a superfície. Justaposição de manchas coloridas, de

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relevos, de planos, assim a cor é arrastada a pontos que culminam e a séries que descendem. Liberação da cor, de seus próprios aprisionamentos, ultrapassamento em direção à potência da matéria expressiva, do guache sobre papel, do corpo na clausura.

Figura 9: Luiz Guides. Guache s/ papel, 62x30cm, 16/01/1995, nº cat. 001465. Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 10: Luiz Guides. Guache s/ papel, 47x32cm, 04/05/1995, nº cat. 001525. Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 11: Luiz Guides. Guache s/ papel, 62x30cm, 19/05/1995, nº cat. 001530. Acervo: Oficina de Criatividade

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Figura 13: detalhe em zoom de 94% da figura 12

Figura 12: Luiz Guides. Guache s/ papel, 65x47cm, s/d, nº cat. 001540. Acervo: Oficina de Criatividade

Nesse detalhe podemos ver a precisão de Luiz em pintar todos elementos que compõem a imagem. Há linhas de cor vermelha e cor azul para traçar os círculos, as retas, e os pontos. Por mais que a tinta escura esconda o trabalho de composição que está por trás, em outras partes da tela podemos visualizar o detalhismo de seus gestos, a sutileza dos traços, tal qual um mosaico.

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Figura 14: Luiz Guides. Guache s/ papel, 47x66cm, 20/03/1997. Acervo: Oficina de Criatividade

Luiz revela-se como um arquiteto das cores, extraindo delas um ritmo colorante. A partir dos regimes das cores existentes, divididas em luminosidade (claro/escuro) e pureza (saturado/ diluído), podemos pensar que jogo Luiz instaura em suas pinturas. Uma pintura que busca a luz, a cor clara para seus jogos de transparências e veladuras e que, ao mesmo tempo. se gera de uma fusão com outras cores. Movimentos de clarear e mesclar, muito mais que um escurecer e purificar. Assim podemos pensar o teatro de sua vida e obra no São Pedro, o quanto a potência de vida que ele carrega em seu corpo é velada para certos

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olhos pautados num discurso da razão, o quanto seu corpo frágil e silencioso mesclou-se à paisagem que o circunda, à clausura que lhe foi imposta. Luiz é capaz de criar uma música inaudita para nossos olhos, música colorida pela vertigem de tons claros e mesclados.

Figura 16: Luiz Guides. Guache s/ papel, 52x63cm, 09/05/00. Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 15: Luiz Guides. Guache s/ papel, 45x60cm, s/d. Acervo: Oficina de Criatividade

Referências Bibliográficas DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 183p.

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Ensaios / Dossiê

Vidas do fora e a es Natália e o universo em uma casca corde-abóbora Fábio Dal Molin

Este texto é dedicado aos intrépidos leitores desta revista que experimentarão, pela primeira vez, a aventura de transpor as águas do tempo e espaço entre a arte e a loucura no imenso e caudaloso rio do Hospício São Pedro, tendo como generosos barqueiros os quatro artistas e suas Vidas do Fora. Conta o grande físico John Osterman, o Dr. Manhattan, que seu pai era um relojoeiro que largou a profissão quando Einstein formulou a teoria da relatividade. Pois os acontecimentos de junho de 2010 nos convidarão a todos a sair fora de nossas vidas e habitarmos os espaços intersticiais do tempo, da arte e da insanidade. Diz Paul Veyne que a história é contada pelo reverso de suas lacunas, e a física quântica alerta que, entre os elétrons de um átomo há espaços infinitamente vazios. Quando escrevemos, falamos ou contamos, aquilo que é dito repousa em camadas e camadas de indizível. O que será contado aqui de Natália, por mais registros e informações

que se disponha, será

sempre

incompleto. Esta é a necessidade do corpo1 que escreve. Nesta história que será contada, incorpórea e vazia da loucura, o quadro-negro é o colossal Hospital Psiquiátrico São Pedro, os instrumentos são alguns fragmentos da vida e da obra de uma das artistas mais antigas e marcantes: Natália. A fluidez será nosso estilo, como a tinta que, misturada na palheta, escorre pelo movimento do pincel, como uma flor, um arbusto, um papagaio.

Escrever sobre Natália é... 1

Diz o quarto postulado da ética, que trata da natureza e da origem da mente: “O corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais ele é continuamente regenerado” (SPINOZA, 2007, p. 105). A esta relação entre os corpos, Spinoza chama de afecção.

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Natália Leite, habitando o planeta terra, girando em torno do sol em um sistema solar que gira ao redor da galáxia que se afasta cada vez mais do centro do universo, há vinte anos, ao misturar elementos quimicos faz com que estes produzam cores vivas e intensas, dando formas a seres fantásticos, animais, árvores, pessoas e casas... A luz do sol é branca, e, ao passar por um prisma, se difunde e é decomposta nas múltiplas cores que compõe o espectro luminoso. A essência de cada cor é definida por seus atributos, ou freqüências luminosas. Se estudarmos um pouco de mitologia comparada, especialmente a monstruosa obra do Antropólogo Joseph Campbell “O poder do Mito”, saberemos que, na maioria dos mitos (inclusive nos que originam o Deus cristão) a divindade é representada pelo Sol. Não seria difícil entender o pensamento dos antigos, afinal, quando o sol está presente, o mundo (que era praticamente tudo o que se conhecia, ou seja, o Universo) aparece em todos os seus atributos e essências, e à noite, tudo desaparece e fica obscuro. Desta forma, através das lentes do intelecto, da atmosfera terrestre temos acesso aos distintos atributos da luz divina. Tudo começou com o sol. Talvez o cineasta soviético Andrei Tarkovski tenha colocado estas idéias em sua película mais famosa “Solaris”, na qual os cientistas da terra criam, em algum canto isolado do nosso sistema solar, uma massa rósea semelhante ao sol, capaz de converter energia em matéria . No filme, os astronautas que trabalham no projeto descobrem que a influência do que Tarkovski chama de campo solarístico utiliza das suas memórias (intelecto) afetadas pelos anos de isolamento no vácuo como molde.

O encontro do intelecto com a imanência produz a

matéria.Natália, ao pintar e bordar, faz

da luz

o seu pensamento, suas

memórias, seus fluxos. Em uma camiseta com uma estampa de uma de suas obras Natalícia serigrafada, na radiante cor de abóbora, há uma árvore frondosa com a forma da cauda de um pavão. A figura perturbadora surpreende e invade os sentidos pela intensidade da cor e pela exuberância da forma. Cor de abóbora. Para determinadas mentes pouco afetadas pela potência das cores, a abóbora tem a mesma cor da laranja, e todos os marrons são iguais. Não para ela. Natália pensa, e

Natalia é um intelecto que diferencia as qualidades dos corpos,

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expressa os infinitos atributos dos que perturbam outros corpos, exprimindo a substância divina em cores que ela mesma cria. Natália também viaja na substância do tecido e, da mesma forma que uma nave espacial viaja de uma estrela a outra da constelação da Ursa maior, com

linha e agulha une e sobrepõe imagens de uma perdida e bucólica

paisagem interiorana: a imagem de um porco, uma flor, um sol, uma chaleira, uma casa, uma pequena igreja ou uma lua. Sua agulha dá potência de movimento a uma linha que produz a forma. A arte de Natália bifurca a loucura à maneira de como Foucault reinventou sua História de prisões, tortura e saberes: na forma de espirais caóticas, acontecimentos e retratos, que produzem um plano onde se inscrevem palavras de ordem, discursos, diagramas de uma dança sem fim, embaralhada e fascinante. Como se, ao produzir, todo um mundo de memórias lhe viesse à mente, preenchendo o espaço com uma superfície povoada e colorida e tudo viesse, entre a agulha, a linha, o buraco e o tecido, o pincel e a folha de papel, misturando as palavras como pingos de tinta.

Há quinze anos, um estagiário de psicologia entrou pela primeira vez no São Pedro, na Oficina de Criatividade. Em uma das paredes, estava pendurado um pano de algodão bege e dali pululavam pequenos javalis em fila indiana bordados com linha cor-de-laranja. Aliás, cor de abóbora, como sua criadora mesma diz. Ela entra em cena: uma capa de chuva acaba de chegar em passinhos curtos, e do cinza molhado brota um cabelo negro cortado com franjinha, olhos negros levemente estrábicos, exageradamente pintados, como o resto do rosto, que combina com o vestido florido. No pescoço há um colar, que adorna uma espécie de abscesso semelhante ao que aprendemos, no colégio, como sintoma de bócio endêmico. Natália.

Tanto tempo... E o que é o tempo no Hospital Psiquiátrico São Pedro? Quando dizemos que o HPSP foi fundado em 1874 e que em 1974 ele completou 100 anos, ou que uma mulher chamada Natália Leite vive ali desde 1956, o que realmente

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queremos dizer, ou melhor, de que ciclos estamos falando, quando eles são inaugurados ou quando eles terminam? Natália ainda vive no HPSP. Seus pequenos olhos negros se acostumaram com muros, tijolos, paredes, rebocos velhos e embolorados, goteiras, torneiras pingando.... Mas estas coisas todas estão jogadas nos cantos do hospital ou são destruídas pela ação entrópica do tempo. Entulhos e quinquilharias, que observamos em portas entreabertas, continuam na duradoura e sólida existência das coisas mortas, porém em tranquila imobilidade. Natália continua viva, testemunhando a multiplicidade dos modos de tratar a loucura, e ciclos de loucura, história, política, lei, ciência. Natália cumpre o seu ciclo vital com uma sua colorida existência. Está internada há 54 anos, entre tristezas, paixões, encontros e alegrias e sabe-se lá o quê na infinitude inimaginável da vida cotidiana. Por vinte anos, no âmbito da Oficina de Criatividade, Natália cumpre seu ciclo vital pinta e borda a cada dia. Sua produção já alcança cerca de quatro mil obras. Torna-se, ao nosso olhar, portadora de uma vida que se sobrepõe à decomposição. Diante dela, a linha de morte parece cair e, como para deixar passar outras linhas compostas por terra diante da linha de fuga. Como uma divindade hindu, produz

a dança da vida; do intelecto de Natália brota a

matéria do Universo. Ela é vida que se autoproduz e expande. gera mais vida. Dizem os prontuários que sua entrada no hospital foi em 1956, aos 13 anos, vinda de Santo Ângelo, cidade distante a quase 400 km de Porto Alegre, nas antigas Missões. Teria vindo de uma família em conflito.

Natália fora internada em uma época em que o São Pedro atingira sua máxima lotação, abrigando cerca de cinco mil internos. Eu soube de lendas de estrangeiros clandestinos em navios que, por não se entender o que falavam, eram internados no hospital, assim como toda sorte de enjeitados e rejeitados. Natália, conforme alguns relatos, sofrera violência doméstica por parte do pai e teria resistido em voltar para sua terra natal. Após tentativas de trabalhar como doméstica, Natália retorna para sua cidade, onde sua situação familiar torna a piorar, até que em 1959 volta ao hospital São Pedro para ficar. Pelos minguados registros, teve algumas complicações relativas ao uso de

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medicação e chegou a apresentar alucinações visuais, teve que fazer uma cirurgia no joelho. Pelo que tudo indica, perdeu o contato com a família. A casa dos loucos é, por necessidade, a moradia de Natália2. O grande Hospício, uma vez mais em sua história, serviu de porto seguro, local de moradia, comida, linha de fuga.

2010 O estagiário, já evelhecido, visita novamente o hospício. Agora o espaço é maior - onde anteriormente eram enfermarias e salas de cirurgias abandonadas. Em sua época de estagiário, servia como esconderijos e mocós. A própria reunião da qual participa faz parte de um novo espaço instituído, a da catalogação das obras e criação de um museu. É tomado de uma alegria canceriana saudosista ao vislumbrar logo abaixo de uma escada o retrato do Sorriso. Natália estaria doente; a causa da doença seria o fato de ela ter trocado de medicação com outra moradora, por esta ser de cor laranja... Não contém o riso, pois ele vem da explosão elétrica de suas memórias.. isso é típico da Natália, a primazia da estética. Lembra muito bem dela escolhendo as cores das linhas e das tintas, com extremo rigor e apuro...

Apêndice e o texto desaparece Estamos novamente no ano de 2010, e trezentos e poucos pessoas habitam o HPSP. É quarta-feira, nove da manhã. Sentada o seu canto, operando o incansável pincel como faz há vinte anos, está Natália, com cabelo curto, mais gordinha e sem o caroço na garganta. É na minha garganta que sinto o nó, que parece amarrar as pregas do tempo. Como Calvino amarra as suas Cidades Invisíveis, no diálogo entre Kublai Khan e Marco Pólo: Agora, desse passado real ou hipotético, ele será excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez posse possível futuro e que agora é presente de outra pessoa. Os 2

“O asilo construído pelo escrúpulo de Pinel não serviu para nada e não protegeu o mundo contemporâneo contra a grande maré da loucura. Ou melhor, serviu, serviu muito bem. Se libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco um homem e sua verdade. Com isso, o homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro, mas esse ser verdadeiro lhe é dado na forma de alienação” (Foucault, 2008)

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futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos. -Você viaja para reviver seu passado?-era a esta altura a pergunta do Khan, que também poderia ser reformulada da seguinte maneira - você viaja para reencontrar seu futuro? E a resposta de Marco: -Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá”. (Calvino, 1994, p.19)

Hoje, Natália tem 67 anos. No seu prontuário consta que, lá pelos anos 90, desistiu de pedir pela família ou mesmo a esqueceu. O Hospital tornou-se sua casa e tudo o que tem. Agora, imaginem aquela menina de 13 anos, provavelmente com pouca ou nenhuma instrução formal, exposta a espancamentos, brigas e bebedeiras, obrigada a viajar por uma longa e tortuosa estrada até uma cidade absolutamente desconhecida; conduzida pela polícia, que era quem fazia as remoções naqueles dias. Chegando no grande hospício lotado, haveria que passar por uma longa fila de espera, e por uma triagem que provavelmente não era muito meticulosa. E lá estava alguém de jaleco branco, lhe fazendo perguntas que talvez ela não entendesse, por estar nervosa, assustada, angustiada; ou mesmo aliviada e esperançosa E agora? Como ela se reterritorializou em sua arte e chegou aqui, no fim do texto? Diagnóstico, internação e medicação, cura. Quem a teria contratado como doméstica? E por que teria sido demitida? O que suas fugazes patroas teriam imaginado daquela louca que saiu do hospício? Conseguiria ela limpar uma casa impregnada de medicamentos, saudades, tristeza e abandono? Como Natália voltou para Santo Ângelo, quem a buscou? Como e onde estava sua família, seu pai, que agora não recebiam mais a filha Natália, e sim, a louca que fugiu de casa e foi parar no hospício. Natália se desterritorializou enquanto filha problemática e se reterritorializou na figura de louca. Quem é Natália?

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Os antigos pacientes estão adoecendo, definhando e morrendo. E o estagiário Fábio desapareceu, assim como todas as pessoas que estavam vivas há 300 anos morreram e as que vivem hoje estarão mortas daqui a 200 anos. Os budistas chamam isso de temporalidade. Neste momento, enquanto não morremos, nas mãos tenazes e empoeiradas de pesquisadores cartógrafos, alguns escrevem também nesta revista, o museu que está nascendo guarda o paradoxo de, ao invés de trazer o passado, o reencontra e reterritorializa.

Natália vislumbra uma vez mais casas, papagaios, árvores,

florestas e igrejas.

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Referências Bibliográficas Bauman, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999 Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1994 Foucault, Michel. A história da Loucura na idade clássica. São Paulo, Perspectiva, 2008. Foucault, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense universitária, 2008 Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. O que é a filosofia. Rio de janeiro, Ed 34, 1992. Godoy, Jacintho. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1955. Mariotti, Humberto. O conhecimento do conhecimento: a filosofia de Baruch de Espinosa e o pensamento complexo. Disponível em www.geocities.com/pluriversu. Spinoza, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.

Sobre o autor Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Sociologia e pósdoutorado em Educação (UFRGS). Integrante do grupo Corpo, Arte, Clínica.

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Ensaios / Dossiê

uma Vida em Acervo: experiência e escrita Leonardo Martins Costa Garavelo

.Breve escrita no suspiro do vento Sou livre para o silêncio das formas e das cores.1

Estranho minha mão frente à folha branca como o aperto no peito do viajante no instante da partida. Toco a folha e fecho os olhos ouvindo o som de chuva nas telhas cerâmicas de estilo francês – na escuridão brilhante de minhas pálpebras, pontos de luz, vultos e memórias de mundo vão se agrupando transformando-se numa atmosfera marcada pela coexistência de tempos e instantes. Um estado de sobreposição de fluxos onde cada molécula de ar gera uma cor diferente produzindo uma espécie de realidade etérea. Sem compreender ainda, me vejo parado frente à uma estação de trem abandonada, estou na margem dos trilhos e atrás de mim um prédio em ruínas. Transfigura-se a imagem e agora estou dentro de um olhar para o horizonte. Vê-se um lago cinza metálico espelhando um céu igualmente cinza que prenuncia tempestade. Algum trem passará? Existem embarcações por estas bandas? Ainda sem nada entender vejo meu corpo se dissolver num emaranhado de cor e luz – Abro os olhos e me atiro à escrita porvir num salto. Caio estatelado, morto, perdido. Lentamente um pequeno bando vem chegando e me recolhe. Sou colocado num barco por um povo estranho: um me diz com sua voz rouca que chegara de uma longa hibernação com cheiro de pedra e seus olhos são da cor da terra. Outro só se faz sentir quando coloco o ouvido na superfície da madeira, sua voz é mínima e sua boca é muito pequena, além do mais está ocupada moendo a madeira lentamente. Com o ouvido colado no toco antigo que dá forma ao barco, ouço o som de um corpo 1

Manoel de Barros. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record: RJ, 2001. p.55.

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se arrastando entre madeiras. É preciso orelhas pequenas e olhos atentos aos tênues detalhes. No leme, um homem vestindo uma camiseta azul surrada expressa no rosto a marca do sol e do vento, tem os cabelos desgrenhados. Minha respiração conduz estes encontros e suspiramos esta escrita no sentido do vento...

..Traçar um plano Atento a não deixar o possível leitor confuso e desavisado, traçarei abaixo algumas linhas visíveis que atravessam o texto, bem como, abordarei levemente um pouco de seu contexto. O breve escrito que se inicia deseja conduzir o leitor por um ensaio experimental que flerta com uma escrita na espreita daquilo que não se vê. Uma viagem sem lógica, verdade, moral ou juízo. Trata-se nada mais nada menos de uma mísera produção textual como afirmação de uma vontade. Um exercício entre os descaminhos da escrita tendo como horizonte um desejo que sopra no sentido da produção de uma narrativa que envolva a experiência tal como foi vivida e a experiência de escrevê-la, compondo um texto como passagem, uma paisagem ao vento. Efetuando uma operação sensível do pensamento a narrativa torna-se a própria experiência. Escrever tateando, suspendendo a avidez. Experimentar ir perambulando, de posse de um instinto réptil que vá sulcando o pensamento, enfeitiçando-o com seu modo coleante de existir2. O pobre narrador reconhece seus limites, sabe que a experiência da escrita não é fácil, tem algo de ilusório e impossível. Sempre que se vai tocar o instante este já não é mais. O narrador conjuga os verbos em primeira pessoa, porém, de forma alguma está se referindo a um ‘eu’ pessoal e individual. O narrador é múltiplo, composição de vozes, vidas, e ações coletivas. Ao narrar, rouba frases alheias, cochichos escutados ao pé do ouvido, conversas e leituras. Narrador-ladrão, narradorleitor, narrador-viajante, narrador-multidão. O que o faz escrever é um profundo desejo de escrita, uma vontade deliberada de se confrontar com o novo e o inesperado. O desejo de escrever é o prazer, o sentimento de alegria, júbilo, de satisfação que me dá a leitura de certos textos, escritos por outros (...) para 2

Rosane Preciosa. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. p.25.

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passar do prazer de ler ao desejo de escrever, é necessário a intervenção de um diferencial de intensidades (...) a alegria produtora de escrita é uma jubilação, um êxtase, uma mutação, um abalo, uma conversão 3. Como um meio de manter a atenção nos trilhos de um pensamento possível, traço quatro movimentos no texto: breve escrita no suspiro do vento – refere-se ao plano do insano na escrita, algo como um transe que produz, de maneira metafórica, os elementos e sentidos do texto; devirar ossos – problematiza a escrita de uma vida, enfocando sua concepção ética-estéticapolítica; impregnações em tempo e espaço – distende a escrita ao tempo/espaço do Acervo, da Oficina e do hospício; e por fim, incidentes onde a experiência é levar a escrita ao limiar do instante. Cada ponto está costurado por uma linha tênue que tem em comum a pesquisa no Acervo da Oficina de Criatividade no Hospital Psiquiátrico São Pedro4. (Quando escrevo este nome, percebo que um bloco pesado cai no corpo do texto, um peso histórico e surpreendentemente atual.) Cada sopro da experiência aqui narrada tem como dispositivo alguma impressão, vivência, devaneio, pensamento, afecto ou combate ocorrido entre as fronteiras sutis do hospital psiquiátrico. Entende-se por combate uma poderosa vitalidade não-orgânica que completa a força com a força e enriquece aquilo que se apossa (...) somando-se a ela num devir.5 A pele tece os sentidos entre corpo e mundo. Batucadas no peito vibram vontades de viajar. A viagem aqui é uma imersão numa breve experiência com a escrita e leitura. No começo, bem antes de todo gesto, de toda iniciativa e de toda vontade deliberada de viajar, o corpo trabalha, à maneira dos metais, sob a ação do sol6. Os olhos atentos ao detalhe, ao mísero, à poeira. As mãos recolhem fragmentos, trapos que resistem alojados nos cantos. O fragmento recolhe com simpatia nossas ninharias, falhas, contradições, disparates. Enfim, tudo que de residual a vida emana.7 Na composição de fragmentos ganhamos 3

Roland Barthes. A Preparação do Romance II: a obra como vontade. Martins Fontes: SP, 2005. p.11. 4 Integra o projeto A Potência Clínica das Memórias da Loucura com orientação da Profa. Dra. Tania Mara Galli Fonseca, 2009. PPGPSI – UFRGS. 5 Gilles Deleuze. Para acabar com o juízo de Deus. Em: Crítica e Clínica. Editora 34: SP, 1997. p.150. 6 Michel Onfray. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. p.11. 7 Rosane Preciosa. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. p.24.

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fôlego para expressar ressonâncias que tocam a borda do que devém no instante. Uma narrativa que suspira nos entretempos de uma vida, nas curvas de um caminho estrangeiro cujos percursos inesperados provocam uma viagem louca. Diz Onfray que somente a escrita circunscreve os cinco sentidos, e mais. O trajeto conduz das coisas às palavras, da vida ao texto, da viagem ao verbo, de si a si8. Como narrar uma experiência bem como ela acontece? Como folhas que caem, as palavras vão compondo o texto. Com o ajustamento do passo no ritmo dos encontros, do acaso emerge um espaço, um plano de composição possível onde podemos tecer um corpo: uma escrita entre incidências de Vida e Morte.

...Devirar Ossos A Morte é a única conselheira sábia que possuímos. 9

Experimente tocar suas mãos na terra. A palma da mão transmite a respiração do planeta até as zonas infinitesimais das células. Acessa, assim, memórias ancestrais que se misturam às camadas de pedra líquida, rochas, minerais do interior do globo terrestre. Palma da mão entre poros de terra e húmus: cheiro de fertilidade. O que há de mais fértil do que a Terra, o grande ventre da Vida. Com as mãos na terra, dedico esta escrita à uma pequena ação micropolítica: escrever no encontro com uma vida infame, vidas ínfimas que se tornaram cinzas nas poucas frases que as abateram10. Algo como dar voz a uma voz apagada, irmã da miséria e do pó. Com isso, investigar a insanidade para compreender a sanidade, para compreender as relações de 8

Michel Onfray. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. p.100. Carlos Castañeda. Viagem a Ixtlan. Record: RJ. 1997. p. 53. 10 Michel Foucault. A vida dos homens infames. Em: Ditos e Escritos IV. Ed. Forense Universitária: RJ, 2001 p.204. 9

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poder, talvez devêssemos investigar as formas de resistência e as tentativas de dissociar as relações.11 Investigar os registros deixados por uma vida, suspeitar seus possíveis e compor uma escrita que afete o leitor ao ponto de fazê-lo pensar sobre a condição que o louco vive. Revirar ossos, no sentido de mexer nas entranhas dessas histórias praticamente esquecidas e jogá-las no plano dos sentidos do leitor. O osso seria a matéria que resiste à decomposição, que carrega de volta para o interior da terra infinitas memórias impessoais somadas a um pequeno punhado de novas experiências vividas por aquela vida contida no osso que um dia habitou uma carne e seus sentidos.

Poderia o texto ser

a terra nas mãos do leitor? O que pode o narrador ao revirar os ossos? Quem ele pensa que é? O que devém dessa experiência? Percorrer os rastros deixados por uma vida não é uma experiência fácil e simples, mais complicado fica quando os caminhos percorridos pelo pesquisador conduzem à indizível presença da morte. Respiro fundo, inalando o divino que está entre a vida e a morte, bem ali onde vida e morte estão juntas, se entrelaçando como num acasalamento de serpentes. A serpente que não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se impede que mudem de opinião; eles deixam de ser espírito12. Respirando fundo, inalo desconhecidas vidas que impregnadas nas paredes através dos tempos ecoam murmúrios, ecos restos de expressão, coagulações de mundos, cismas, dores e histórias. Medito mansamente desde um corpo intuitivo, ouvindo pequenos rumores e rasas notícias que praticamente não foram ditas. Revirar os ossos nas terras desconhecidas de uma vida marcada com a insígnia da loucura com a intenção de ouvir o que não foi dito ou repetir o mesmo mantra sempre pronunciado, porém compô-lo diferente. Atentar às pistas, acolher os rastros e vestígios. Encorajar a dúvida e incerteza. Em quais territórios estão enterrados estes ossos? Que espécie de cemitério se construiu para a loucura ao longo dos séculos? (Devo esclarecer: primeiro – escrevo no sentido da vida e para a vida; segundo - não há transcendência; terceiro – isto não é uma psicografia; quarto 11

Michel Foucault. O Sujeito e o Poder. Em: Hubert Dreyfus, Paul Rabinow. Michel Foucault: uma trajetória para além do estruturalismo e da hermenêutica. Forense Universitária: RJ, 1995. p. 234. 12 Friedrich Nietzsche. Aurora. Companhia das Letras: SP, 2004. p. 283.

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– o acervo não é túmulo, nem cemitério, há sim, intensidades da morte imanentes a vida; quinto - ...). Um pequeno poema em prosa de Charles Baudelaire intitulado O Tiro e o Cemitério13, conta história de um homem que atraído por um singular letreiro: ‘à vista do cemitério bar’, deixa-se levar pela fantasia, após tomar uma cerveja e fumar um charuto, e entra no cemitério onde um imenso rumor de vida enchia o ar – a vida dos infinitamente pequenos – era cortado por intervalos de tiros de um estande vizinho. O homem, que desfrutava um belo sol e um verde jardim numa atmosfera de ardentes perfume de morte, ouviu um cochichar sob a sepultura que estava sentado: ‘malditos sejam seu alvos e suas carabinas, turbulentos seres vivos, que se preocupam tão pouco com os defuntos e seu divino repouso. Malditas sejam suas ambições, malditos seus cálculos, mortais impacientes que vem estudar a arte de matar perto do santuário da Morte! Se vocês soubessem quanto tudo é nada exceto a Morte, vocês não cansariam tanto, laboriosos viventes (...). Tal poema, compõe com o parágrafo acima, a medida que nos leva a pensar sobre o quanto fazer viver uma vida através de escritos e pesquisas pode ser um barulho ruim para quem já faleceu, ou se encontra falecido, embora vivo. Digo isso, pois me questiono sobre os limites entre falar uma vida e estabelecer discursos de verdade sobre ela. Escrever sussurrando possíveis e não gritando verdades. Aqui, temos uma linha importante neste pensamento: o que se escreve é apenas uma versão sobre determinada vida, apenas um jeito de contar e compor os fatos inventivos e reais. Pode-se dizer que praticamente não importa distinguir o real e o ficcional, assim como não se procura polarizar o que é vida e o que é morte. Diferente de desejar compor uma biografia, cujos padrões de verdade, cronologia e história são fixos, a vertente intensiva de uma escrita com uma vida conflui para o conceito de biografema14 de Roland Barthes, cujo campo de possibilidades narrativas provoca justamente a escrita de uma vida a partir de suas imprecisões, seus fragmentos, seus detalhes aparentemente insignificantes, suas intensidades e afectos. Como narrar expressões de morte sempre

13

Charles Baudelaire. Pequenos Poemas em Prosa. Record: RJ, 2006. p. 249. Roland Barthes. O Rumor da Língua. Martins Fontes: SP, 2004; Roland Barthes por Roland Barthes. Cultirx: SP, 1977; Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes: SP, 2005. 14

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afirmando a vida? O que pode a escrita de uma vida? O biografema torna-se um importante dispositivo nesse exercício da vontade, de escrita e pensamento. Pensar como descobrir, inventar e compor novas possibilidades de vida. Um pensamento que vá até o limite daquilo que à vida pode. Ao invés de um conhecimento que se opõe a vida, um pensamento que afirmaria a vida. A vida seria a força ativa do pensamento e o pensamento o poder afirmativo da vida15. Antonin Artaud, Friedrich Nietzsche, Charles Baudelaire, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Maurice Blanchot e Roland Barthes são alguns escritores e pensadores que povoam esta intenção de compor escritos de uma Vida. A presença dos autores citados acima, assim como outros bandos de parceiros de pesquisa, amigos e professores, criam, aquilo que podemos chamar de uma inventada amizade estelar16. Uma companhia que ondula feito maré, possibilitando o estranhamento entre amigos, que permite viagens solitárias e ao mesmo tempo, afirma uma amizade por sua potência afectiva, pelas forças que se tensionam com a presença do outro, pela intensidade produtiva desses estranhamentos. Os afectos efetuam a potência da expressão, a potência é o que está efetuado e são os afectos que a efetuam. Os afectos podem ser sentimentos, pensamentos ou percepções, também os conceitos podem efetuar a potencia de um modo de ser na escrita17. Do encontro com uma vida e seus modos de dizê-la, cria-se uma atmosfera semelhante a uma navegação em águas de nevoeiro. Vidas que se deixam expressar, mortes que se fazem expressar criam uma neblina espessa, uma névoa baixa que seguidamente faz o navegador se perder. Talvez, se perder não seja assim tão ruim como se diz. O sábio compositor carioca Paulinho da Viola já nos ensinava: faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar18.

15

Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia. Rés: Portugal. S/d. p.152. Friedrich, Nietzsche. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.189. 17 Gilles Deleuze. La distinción ética de los existentes: potencia e afecto. En Medio de Spinoza. Cactus: Buenos Aires, 2008. p. 94-95. 18 Paulinho da Viola. Argumento. Em: Nova História da Música Popular Brasileira, 1976. 16

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Encontros com uma vida: traço, cor e música na obra de Frontino Vieira

Um canto de vida e morte, cantado

por

potências

imaginárias,

indicando a direção de um lugar que, uma

vez

atingido,

poderá

desaparecer. Lugar sempre por vir no espaço infinito de uma navegação ao acaso.19

22/04/2009 A tela branca no meio da sala impõe um poder estranho ao corpo. Reluz uma soberana brancura fria que contrasta com a enorme variedade de tons desgastados nas paredes, chão, portas e janelas. O retângulo branco sobre o cavalete solitário convoca o corpo ao traço e à cor, enquanto um rumor de ruína produz uma mansa textura entre ele, a tela e a sala. O afecto, que parece ter o dom de absorver o instante, toca uma espécie de silêncio povoado que aumenta na justa medida em que o corpo encontra o espaço e se deixa absorver por ele. Sem se dar conta, o corpo traz um bando consigo e esta pequena multidão invisível entrelaça-se com o silêncio povoado pintando uma conversa doida, sem início, destino, meta ou moral. Embriagados de desconhecido, uma música atravessa o ar girando o caleidoscópico movimento dos encontros. Agora, além de uma tela branca e fria, de um corpo em pleno tornar-se e de um espaço cujo rumor de suas ruínas contorna os espíritos, há uma música tecendo núpcias entre as sombras e as cores, entre os silêncios e rumores. A conversa imaginária dissolve-se se tornando uma dança. Até então o corpo mal respirava absorvido pelo instante, porém,

19

Maria Flávia Drummond Dantas. O Canto das Sereias. Em : Maurice Blanchot. Lúcia Castello Branco; Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antônio Silva (Orgs). Annablume: SP, 2004. p.25.

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com a entrada da música vinda sabe-se lá donde, o corpo volta a respirar compassado e no segundo longo suspiro percebe que se encontra justamente em frente à tela crua. O poder de estranhamento repete-se diferente, não passa pelo corpo a atração quase magnética que a tela gerava quando da entrada na sala. Outras forças entram em jogo. Para espanto do corpo além da tela limpa há, no espaço, outra pintura rica em cores e traços. O corpo ouve a dança pintada na tela colorida, ela é puro movimento, ela é. A luz do raio de sol que corta a sala é entrepassada pelo movimento de outras sombras e uma voz baixa, grossa e pigarreante vinda de um senhor bem magro e de cabelos brancos diz: - a música cor traça. Impregnados de sutilezas nossa conversa é puro Sim. A música que toca o ar entrelaçando-se com os espíritos é verde. Toda cor que tinge o espaço é viva e baila com a morte que insiste em presentificar-se. Estranho movimento que torna nossa voz xucra e inconstante. Notas de um primeiro encontro pulsadas pelo ruído de uma agulha tocando o disco. Como se pudéssemos ouvir o som dos pincéis que de longe nos observa, a solidão dissolve-se no ritmo da cor no entre tempo de vozes vermelhas. Infinitos corpos que miram o agora à espreita de um nome ou rosto que não chega. Por que cismamos em apresentações? Que cisma por um rosto é essa que nos aflige? Se tivéssemos uma dose de cachaça brindaríamos e permaneceríamos em silêncio. Mas aqui não podemos beber, então silenciamos na embriaguez da cor, do traço, da palavra e do encontro. Estonteados não percebemos a chegada do azul nem do amarelo. Talvez se o víssemos não brindaríamos o acaso. Um ruído infinito rompe qualquer plano, a agulha tocando o fim do LP rasga os tempos. Por que o sol baixou tão rápido? Para onde foram as sombras que aqui bailavam?

27/05/2010 Percorrer os traços da obra de Frontino tem sido uma experiência intensa e desafiadora. Li há pouco, os registros falando sobre ele nos diário da oficina de criatividade, onde encontrei datas e depoimentos sobre seu cotidiano. Também reli textos que abordam sopros de sua vida e obra como

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por exemplo, o belo texto de Vera Lúcia Inácio20 onde descobri que Frontino nasceu, assim como eu, numa cidade à margem de um rio, o Jacuí; ou os escritos de Paola Zordan21 onde encontrei uma afirmação e inspiração para um modo de escrita; e ainda, as palavras de Bárbara Neubarth22 faces do cotidiano de Frontino. Também revi suas pinturas, desenhos e escrita. Enfim, tenho mergulhado em rios de cores e dançado num baile traços.

11/02/1914 Como se vivia na cidade de São Jerônimo em 1914, ano de seu nascimento? O que faz Frontino ser internado no hospício em 1938? Como passam os 55 anos de internação?

s/t, 15/10/1991

s/t, 05/11/1990

s/t, 03/01/1992 Frontino Vieira dos Santos

A obra em Acervo de Frontino Vieira dos Santos, conta com 784 pinturas e desenhos já catalogados. Tais obras foram produzidas entre agosto de 1990 e agosto de 1993, data de seu falecimento.

20

Vera Lúcia Inácio de Sousa. Vida Incidental. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010. 21 Paola Zordan. Notas sobre uma vida frontal. Catálogo da exposição “Eu sou Você”. No prelo. 22 Bárbara Neubarth. Entre vassouras e pincéis. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010.

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s/t, 01/11/1990

s/t, 07/11/1990

s/t, 08/11/1990 Frontino Vieira dos Santos

....Impregnações em tempo e espaço Exatamente, e, de fato,não se entra jamais pela mesma porta.23

Pavilhão 4

Suspirei profundamente antes de girar o trinco da porta que me levaria ao espaço esquecido da loucura. Munido de uma intuição ousada e um intenso sentido de transvaloração, encaro minha insanidade como quem monta num cavalo xucro ou encara um tigre siberiano. Naquele instante, o suspiro era a chave quase silenciosa para entrar no corredor flutuante da existência, onde 23

Paul Valéry. Eupalinos ou O Arquiteto. Editora 34: RJ, 1996. p.77

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corpo e espírito, morte e vida se entrelaçam incessantemente. Corpo-espírito. Morte-vida. Sem separação. O suspiro gerou uma breve suspensão no tempo marcando um entre-tempo característico do acontecimento: pausa de dois compassos que antecedeu a entrada no universo das ruínas intensivas, antigo templo onde confinava-se loucos. O silêncio oceânico do prédio histórico foi rasgado pelo barulho agudo da porta. Logo no primeiro saguão meu corpo foi inundado por um cheiro de morte viva, e, balançando como uma maré de lua nova, minha respiração tornou-se lenta e profunda. Diferente da visão comum de morte, sempre associada a algo sombrio, fúnebre, macabro e assustador, o odor que arrepiava meu pêlo e me fazia pensar sussurrado tinha uma vibração próxima da luz e da cor. As ruínas recebiam os raios de sol como que livrando a morte de um peso que não necessariamente ela carrega. Depois, quando consegui formular pensamentos, entendi que o peso e o horror que se atribui à morte são mais uma faceta humana do que algo transcendente. Tem mais cara de caveira com uma foice e manto preto o ser humano que resolve tirar de circulação o indivíduo dito louco colocando-o numa sala fechada do que uma idéia de morte propriamente dita. Sempre atento a ativar a vida onde quer que ela esteja, ingressei nas ruínas de uma memória que se quer esquecer. Tolice, pois não há como esquecer a loucura que está sempre em nós, em cada um, múltipla e singular. Pois foi na tentativa de se fazer esquecer a loucura que se fundaram os hospícios e hospitais psiquiátricos. Posso então, começar a colher no ar algumas pistas daquele cheiro de morte viva que ocupava o espaço. Quando se tenta conter a vastidão infinita do corpo-espírito sob a imposição da clausura o que fica nas paredes é a marca do sofrimento. A vastidão do espírito, quando enclausurada, provoca no corpo a marca da dor. No intuito de manter-se livre, o corpo-espírito não cessa de investir contra as paredes que o enclausura, movimento que marca também no espaço as notas do sofrimento. O que sentia era a reverberação de anos e anos de dor que ficaram incrustados nas paredes, solo e teto. Não há tinta que apague, não há reforma que transforme. Suspirei outra vez tentando encontrar um mínimo de superfície neste rio de intensidades loucas e respirar alguma condição ou palavra que permita criar algum território possível para expressar algum pensamento. Nunca é tranqüilo

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falar da nossa loucura. Do desespero de desejar matar a sede com água sendo que no único bebedor possível só há pó e teia de aranha. Uma escada que leva a lugar nenhum e uma porta que liga dois vazios. Imagine um corpo que rasteja, arrasta, berra. Some a isso um organismo encharcado de químicos variados que não trazem viagem, só torpor e apatia culminando num total impedimento da expressão e voz. O que você sente?

Textura e Vazio

O exercício de composição destes escritos faz habitar algo que podemos chamar de vazio povoado de invisibilidades. Pouco ou quase nada consigo expressar deste tempo dissolvido no ar. O que se expressa são faíscas resultantes de encontros de corpo, espaço e tempo. Tento apalpar uma imprecisão, isso é um risco tremendo. O que se faz expressar é uma sensação de vazio repleto, algo que anuncia um sopro antes do é. Como escrever uma experiência que ainda não é?

Um corpo que se torna no encontro com

qualquer possível, um espectro andante, um modo de ser que de tão lento torna-se quase imóvel como uma mesa de madeira encostada num canto de uma sala vazia.. Na margem entre um vazio transbordante e um estado de coisa, coexistem diferentes tempos e velocidades. O decanto do tempo incidindo sobre o espaço gera uma textura seca e craquelante, espécie de resíduo que produz uma forma para a pele... Gilles Deleuze, ao comentar o livro sobre o poeta Raymond Roussel, de Michel Foucault, nos faz pensar sobre o vazio que se abre no interior de uma

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palavra e que a repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de seus sentidos. Podemos pensar que entre cada palavra permanece um vazio? É isso que chamamos de entrelinhas da escrita? Um modo de pesquisar e escrever entre os planos da loucura, talvez seja isso: percorrer as entrelinhas do tempo e do espaço. Repetir as palavras, repetir os trajetos, provocar diferenças, permitir um vazio entre as palavras. O enlace da diferença com a repetição contém também a vida, a morte e a loucura. Pois parece que o vazio interior às coisas e às palavras é um signo de morte e aquilo que preenche é presença

da

loucura.24

Uma

experiência

de

escrita

implicada

com

espaço/tempo do São Pedro, é, talvez, uma imersão entre vazios de esquecimento, vazios de morte e vazios de existência: como se as coisas se sucedessem num vazio, onde são suspensas entre um suporte esquecido e uma borda que ainda não está à vista. A cada instante, as palavras nascem numa ausência de ser, surgindo uma junto às outras, sós, (...,) ou agrupadas segundo aproximações incongruentes, semelhanças ilusórias (...)25

.....Incidentes

26

A imaginação da rosa Imagine uma rosa exuberante, cujas grandes pétalas de coloração radicalmente rosa lembram um tecido de veludo escorrido em uma onda espiralada sem fim ou começo. O veludo da pétala disfarça o bruto e aconchega o vazio. As pétalas ativas em sua formação de língua ou onda estendem um duplo convite para quem as olha: afirmação de potência e ressentimento, admiração e constrangimento. A rosa mais linda do mundo, a rosa viva, a rosa cantante, a rosa das rosas. Um ramo verde e espinhento com um vestido de cetim ondulado e solto. Uma rosa imponente e viva, caprichosa e exagerada de tão bela. Pétalas como lábios carnudos na boca de uma mulher vaidosa. Essa seria uma história romântica se não fosse trágica. A flor pomposa ousou invadir um território opaco e sombrio com seu susto colorido e 24

Gilles Deleuze. Raymond Roussel ou o horror do vazio. A Ilha Deserta: e outros textos. Iluminuras:SP, 2006. p. 100. 25 Michel Foucault. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999. p.121. 26 Inspirado em: Roland Barthes. Incidentes. Martins Fontes: SP, 2004.

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predestinadamente contrastante. A flor fora colocada na pia de porcelana num vaso formado por uma garrafa de plástico cortada ao meio. Imagine essa rosa, brilhante e festiva, uma rainha entre as flores começando a ruborizar sua pele se sentindo deslocada. Com a despedida do último raio de sol, a cor viva da rosa começa a mergulhar no negrume informe da noite. A escuridão e a brisa noturna despertam na flor uma magia só sentida por aqueles que ousam perder-se de si mesmos, a flor deslocada começa a exalar seu mais profundo perfume. Cada espírito que habita o local procura o encanto do seu cheiro como uma ternura esquecida, como um afago para sua mísera condição de invisibilidade vagante. O invisível perfume da flor, por ser tão cheio de vida, atrai seu próprio fim. Naquele território de desrazão onde a flor fora colocada, está aplicada a mais crua selvageria natural das relações. As formigas aprenderam a rastrear os mais tênues aromas da terra e também elas, seres que estão habituadas a viver e se alimentar no campo do rejeito, do dejeto indesejado, sentiram o perfume da rosa. No tempo de uma noite, as grandes pétalas da rosa imaginada foram completamente recortadas pelas garras das formicideas.

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Um gato e a suspensão do instante

Linhas

de

som

vindas

de

diferentes

direções

constroem uma direção imprecisa no corredor vazio. Caminho ao sabor do acaso, sem destino, com a mente desocupada. O som dos pés tocando o chão e os barulhos do vento mexendo as portas, rangendo dobraduras e afinando janelas marca o compasso de uma existência. Estou sozinho no segundo andar do quarto pavilhão.

Pressinto outra vida diferente da

minha. A abertura de uma porta à minha esquerda propõe um encontro imprevisto: um gato imóvel na janela. A materialização de uma vida marcou uma ruptura no tempo, senti meus pés fora do chão e por um instante experimentei uma suspensão do corpo. É o gato que me olha com instinto de felino na espreita do ocaso. Eu, na espreita dos meus pensamentos.

Lagartixa seca na gaveta Você nunca sabe onde se encontram as chaves. Alguém sempre indica seu lugar. Alguém disse: - a chave está na gaveta da escrivaninha do corredor! Ali estava o corpo seco de uma lagartixa, um parafuso solto e uma chave de bronze.

Entre mofos O mofo está entre. Sempre e em tudo. Entre a cerâmica e o esmalte do azulejo, os minúsculos seres vivos, amigos íntimos do ar e amantes da umidade, construíram seus mapas.

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....... Referências Bibliográficas: BARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record: RJ, 2001. BARTHES, Roland. A Preparação do Romance II: a obra como vontade. Martins Fontes: SP, 2005. __________. Incidentes. Martins Fontes: SP, 2004. __________. O Rumor da Língua. Martins Fontes: SP, 2004. __________. Roland Barthes por Roland Barthes. Cultirx: SP, 1977. __________. Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes: SP, 2005. BAUDELAIRE, Charles. Pequenos Poemas em Prosa. Record: RJ, 2006. CASTAÑEDA, Carlos. Viagem a Ixtlan. Record: RJ. 1997. DANTAS, Maria Flávia Drummond. O Canto das Sereias. Em: Maurice Blanchot. Lúcia Castello Branco; Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antônio Silva (Orgs). Annablume: SP, 2004. DELEUZE, Gilles. Raymond Roussel ou o horror do vazio. Em: A Ilha Deserta: e outros textos. Iluminuras:SP, 2006.DELEUZE, Gilles La distinción ética de los existentes: potencia e afecto. En Medio de Spinoza.

Cactus: Buenos

Aires, 2008. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rés: Portugal. S/d. DELEUZE, Gilles. Para acabar com o juízo de Deus. Em: Crítica e Clínica. Editora 34: SP, 1997. FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Em: Ditos e Escritos IV. Ed. Forense Universitária: RJ, 2001. FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Em: Hubert Dreyfus, Paul Rabinow. Michel Foucault: uma trajetória para além do estruturalismo e da hermenêutica. Forense Universitária: RJ, 1995. FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999. NEUBARTH, Bárbara. Entre vassouras e pincéis. . Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010.

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NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Companhia das Letras: SP, 2004. ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. PRECIOSA, Rosane. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. SOUSA, Vera Lúcia Inácio. Vida Incidental. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010. VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O Arquiteto. Editora 34: RJ, 1996. VIOLA, Paulinho. Argumento. Em: Nova História da Música Popular Brasileira, 1976. ZORDAN, Paola. Notas sobre uma vida frontal. Catálogo da exposição “Eu sou Você”, promovida pelo Acervo da Oficina de Criatividade junto com o Museu da UFRGS. No prelo. Imagens: (por ordem de aparição no texto) - Folhas que caem. Série de fotografias. Pátio do quarto pavilhão do Hospital Psiquiátrico São Pedro; 2010. - Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 15/10/1991. - Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel e giz de cera, s/t, 05/11/1990. - Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 03/01/1992. - Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 01/11/1990. - Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 07/11/1990. - Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 08/11/1990. - Luz Cirúrgica. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2010. - Porta. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2010. - O gato na janela. Composição de fotografias. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP. 2009. - Lagartixa seca na gaveta. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2010. - Mofo. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2009.

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Aulas Por sua fundamental importância para a produção deste texto, torna-se necessário referir também as aulas com as professoras: Tania Galli (PPGPSI), Juliane Farina, Débora Coelho e Patrícia Kisrt (Curso de Especialização: Instituições em Análise), e Paola Zordan (PPGEdu); e com o professor Luis Artur Costa (Instituições em Análise).

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Ensaios / Dossiê

C.RCP: uma vida Sara Hartmann1

Ele se chamava girorino e tinha as pernas bambas. O caminho de quarto à sala era lento e lhe faziam o certo. Não era pra ficar aleijado, cladizem. Ia de olhos grandes vendo as chaves na cintura dela. Passar de pés sem sapato e era vermelho como o sofá, era alemão de cabelo fogo, era de olhos azuis cada vez maiores. A polícia não vinha como eu pensava, não pode fazer errado. Não é de fazer errado, sujeitinho.

O que se pode dizer de uma vida, ocupada por muitas outras, senão através de uma procura pela medida justa nas palavras? É como nos aparece certa existência e suas redondezas. A ela chamaremos, a princípio, C. Não conhecemos sua pele nem seu cheiro, quiçá uma imagem de corpo inteiro. Suspeitamos sua presença em desenhos, pinturas e escritos; é ela nos diários, ao canto da foto; alguém e algo dela dizem. Sabemos estar longe, e cada vez mais perto, dessa vida que vai nos tomando a imaginação, sempre prenhe de outras. Quem sabe não sejam todas as vidas diferentes, e sim alguns possíveis de uma. Temos, aqui, certa vida de arquivo. Entre altas paredes, impregnadas de sabe-se lá quantos rostos, C. é uma interna de sombras inexploradas. Investigá-la nos lança em espaços em branco, procurando povoar aquilo que resta como dado sem importância. São efeitos de real a que nos dedicamos, quando “é uma cena pintada que a linguagem assume” (Barthes, 2004). A realidade sendo “aquilo que é” não passaria de resistência ao sentido, como se o que vive não pudesse significar, somente existir.

1

Sara Hartmann, psicóloga, mestranda do Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, membro da equipe do Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. sarabhartmann@gmail.com

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Toda vida que se quer escrever precisa ser inflada a partir do que deixa. São traços com os quais se escolhe inscrever, organizar, justificar, ilustrar, irromper ou reviver uma vida. A maneira de proceder vem responder à pergunta: o que caberá aos idos? Questão mais espinhenta, quanto o que se vai fazer com ela não conta com uma voz de retorno toda sua, toda C. Sequer se sabe se ela mesma se reconhecia uma. Sua vida servirá, assim espera-se, para abrir caminho entre aquelas de um jeito ou de outro escarnecidas. Vamos desde um agenciamento amoroso até um agenciamento histórico2. O primeiro passo, portanto, é o desejo. Escreve-se para contentá-lo, o que não é pouco. Nesse caso, satisfazemos o ímpeto de falar com algo que provoca eriçamento dos sentidos, uma atenção perturbada, alegria sem riso. Nessa vida e neste trabalho, a escrita quer ser uma plataforma de produção. Para quem escreve, para quem lê, para quem virá. Em um sentido radical, que a vida apareça passível de ser vivida e revivida, já que estar nela é buscar produzir-se em um plano mais que factual. Essa vida carrega-nos através de seus possíveis e já não somos os mesmos, até porque, dificilmente, assim permaneceríamos. É uma vida rigorosa, entretanto, que exige um pedaço a ser entregue, um bocado de espaço-tempo até que se escute. Não fosse pelos criadores de arquivos, seriam caminhos desérticos de encontros, impossível o acaso fora do esbarrão na rua, do instante de cruzar olhares. Quantas finezas jamais teriam subsistido... Não que o lugar ao vento signifique o fim de um gesto, mas uma outra existência. Para Foucault (2006), a escrita de vidas infames formava cristais de acesso a mundos. Dizia ele que, sob palavras lisas como pedra, algo insiste. Aqui, escolhemos fustigar uma tranqüilidade tacitamente assumida, segundo a qual o que está dito fica sem pronunciação póstuma. São agitações demais em um encontro para que se possa passar os olhos e seguir, sem parada. Dali não se pode sair incólume, já que não é de se esperar pés sem marcas após uma caminhada sobre pedregulhos. Ou escolhe-se fazer outra coisa.

2

Cf. Bedin, 2008.

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Proibido machuca.

O aparecimento se dá, portanto, pela decantação de diversas camadas, entre papéis, fotos de longe, nossas histórias. Então, como escrevê-la? Seqüência de datas, endereços, registros civis, um riso incontrolável. São elementos que explicitam o desafio de transpor uma vida para a escrita. Logo percebe-se que não há transposição, a bem dizer, mas uma criação arejada pelos espíritos ou sopros implicados, quando “todo verdadeiro pensamento é uma agressão” (Deleuze, 2007, p. 306). Em uma espécie de prenúncio, encontra-se a figura de C. escapando das fotografias, perdendo ou multiplicando seu nome. Não se deixa de tentar espreitá-la, procurando retornos. Mas nenhuma descoberta é primeira. Escutase, assim, uma proximidade, sem saber bem o que acontece nas linhas escritas ou por vir, guardando um futuro que é colocar tais coisas em papéis. O que se atribui a ela, certamente, mistura prazer e esforço por um rosto. Procurando não olhar em seus olhos, ou para seus olhos, e sim nadar através deles, como nos diz Miller (2008). Desfazer a face esquadrinhada assim como os começos se perdem no texto que deles extirpa os motivos. A fim de dizer, no que acontece, a porção de mundo em transformação. Desejada, essa escrita faz da vida uma aparição amada, e logo não se pode reconhecê-la. Ela parte de onde estava, habitando mundos que lhe são

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possíveis. Uma escrita à direita do texto que escreve e repete Cê nas vidas ditas doentes para sempre. Ela segue reunindo nomes. Não é próprio do homem pretender resolver enigmas?

Ma vie, ta vie, tra-la-lá vi Eu nasci em três mais dez de onze de oitenta mais seu quatro, e menos este. Mesmo mês e ano em que nasce no hospital, um. Unidade impossível, “transfira-se” para ti de lá no dia menos cinco. Este o número que não tens nos teus. Cinco entre-nós. É isso, teu prontuário 0 1 4 2 1 3 3: mil novecentos e cinqüenta e dois cidade perto d’eu antes de mim. Quando nascia meu pai era tu no planalto plaino. Soledades conjuradas, talvez consegui. Vir antes de ti no mesmo ano e mês, talvez pra te encont . Não quero diminuir

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de nós até zer/cen/sar -ar Vou des-cor-dar.

Uma vida não se encontra. Ela é um compósito de signos soltos. Esta ou aquela, uma vida qualquer acontece nas cores de flores, nas pegadas feitas por lobos, nos objetos de um baú, sempre beirando o limite de seu próprio desaparecimento. Uma vida é certa incidência no transcendental. Por isso, ela aponta para a impessoalidade, algo que se reúne singularmente naquele momento, encarna fragilmente um corpo, sem colar-se a nada. Não é a vida deste ou daquele, e sim vida sem dono, vida-alguma-coisa. A energia do último suspiro de um vivente, quando os acontecimentos passados não têm importância. Algo resiste ali, força que implica a mudança constante, a continuidade do mundo. É o que deixa, de cada existência, rastros capazes de atingir corpos futuros. Uma vida invoca planos de vida compartilhados, tocantes em algum ponto das suas distâncias. Tal vida é produzida ao se exprimir. Assim como certa secreção e seu odor demarcam territórios existenciais, por onde uma significação é possível, criação e experiência são virtualmente simultâneas. Cor, calor e postura criam para um animal um mundo. Ele mesmo é criado ao traçar seu território, espécie de arte em estado puro, quando a própria vida engendra as linhas e os campos de sua existência possível. Vida e obra são vidobra, vidarbo, indiscerníveis e em ambas se fazendo, uma através da outra (Corazza, no prelo). Na extremidade da morte de C., anunciada e ritualizada em diários, há a abertura de uma região de sentido. Fala-se de “um vácuo no lugar em que antes tínhamos as cores, o caos carregado de tinta” (Diário da Oficina de Criatividade, 1999). Aparecem aos poucos cadernos, é momento em que algo agarra as palavras. Tomando da morte sua finura e peso, o encontro estende uma linha de tempo povoada de intensidades. Passam a aparecer junto aos olhos traços de Cida, e as palavras estão levemente bagunçadas.

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No fim fiquei cega

É desde o fim de outro que se quer sair de casa, ganhar pedaço de rua, mostrar ao mundo o que já vinha alimentando o corpo, a fim de estendê-lo. Há no acontecimento algo mais que toma lugar, sem necessariamente efetuar-se, ou seja, sem adquirir um estado de corpo. É justamente para além dos fatos que um tal acontecimento3 instaura desvio no tempo regular. Como os eventos de uma vida que não se ajustam à cronologia, em que é impossível delimitar começos e fins. Pode-se imaginar uma espécie de bolsa de eventos errantes, que habitam a margem paralela à organização em etapas. Névoa a guardar “uma parte sombria e secreta, que não pára de se subtrair ou de se acrescentar a sua atualização” (Deleuze, 1992, p.202). Essa pura reserva que não encarna, linha abstrata apontando ao que mais está no que acontece, dá sinal a uma reserva. O que é incapturável, espécie de núcleo duro do acontecimento, espera-nos em direção ao que quer da vida o mais potente. Como será o algo apontado? Ultrapassar a efetuação é fazer corpo com a reserva do acontecimento, fundado em mim, e muito grande para mim, já que não se efetua de todo. O inacabado retorna em nova realização, trabalha e dissolve o mundo atualizado. Impossível desfazer-se da ambigüidade de um crescimento em mão dupla, em que o acontecimento se efetua e indica mais. Remontá-lo envolveria, primeiro, não restringir seu alcance. Vislumbre da necessidade de uma linguagem hesitante e fragmentada. Em outras palavras: lançar-se à caça do que dizer do acontecimento, não será a alçada aos incorporais, abertura às vidas possíveis de um encontro, ou seja, ao que o acontecimento teria de mais revolucionário? Em direção à vida 3

É com Gilles Deleuze, em especial em Lógica do Sentido (2007), que tomamos o acontecimento como conceito que opera sentido, enquanto lança um incorporal a cada efetuação em estado de coisas.

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desalojada, desembrulhada em possíveis, liberada da forma individual. De modo que passado e futuro acompanhem o presente como uma membrana. Algo, assim, vislumbra diversos mundos. Cani morta e viva, desenhando e acamada, toda a vida uma convergência ou divergência de fatores, responsáveis pela possibilidade. Buscar onde está, o que fala, como desaparece uma vida que deixa vácuo e atrai palavras, relançando-a a partir do que aponta sem efetuar. Desvia-se então do saber que se pretende suprahumano, do eu que sintetiza todo o mundo, da arte como reflexo. Toma-se um ar à frente e se está na poeira. Com Celda viva e próxima, ida e outra, Celda que virá. O encontro é então um roubo duplo. O que se segue nos diários e desenhos não mais coincide, e não deixa de se encontrar. Ela é dita artista e suas escolhas precisam ser caçadas a lupa, deixando ver as linhas frágeis de uma procura expressiva. Lá onde os fatos são fiapos, percebe-se que cada vida é um esboço, de múltiplas possibilidades.

Escrevinhança "Eu não escrevo / não escreverei / para pessoas que não podem dar-me uma quantidade de tempo e qualidade de atenção comparáveis às que lhes dou”27 Querer ser o leitor de alguém, desejo mais píndaro e primevo deste lampejo de olhar. Ser o outro corpo, aquele que é atingido, responsável pela reação, qualquer que seja, à produção lançada. Sempre aturdido, doravante. Como ser justo ao que nos acontece desde o surgimento de uma vidarbo, seguindo as trilhas de arquivo até os tempos do desenrolar de ouvido? Como tomar C. sem desmerecer a distância? Pois se não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. Uma segunda origem não seria aquela que sucede a primeira, mas seu reaparecimento28. Sobrevivência 27

Valéry, 1973-1974. "Je n’écris/n’écrirais/pas p[ou]r des gens qui ne peuvent pas me donner une quantité de temps et qualité d’attention comparable à ceux que je leur donne”.

28

Cf. Deleuze, 2006.

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em um mundo que tarda para recomeçar: no ideal do recomeço há algo que precede o próprio começo, que o retoma para aprofundá-lo e recuá-lo no tempo. Um mínimo insiste e subsiste no que vem mover a terra de tempos em tempos. Se é possível habitar o rio dos acontecimentos, mergulhar em seu fluxo, é de onde se sai com pedaços de vivência, fragmentos de estória. Impossível sobrevir sem esquecer e transmutar. Imagina-se uma abertura que mantenha a vibração, uma espécie de língua estrangeira, tênue desligamento. Quando se procura ferramentas para contar uma vida, Roland Barthes surge como uma escrita ao acaso, do prazer e do estilo que fazem de seus textos tentativas incansáveis de vidobra. Para ele, os fragmentos são “pedras sobre o contorno do círculo (...) cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas” (Barthes, 2003 p.108-110). Opacidade e beatitude de um sorriso, de uma flexão, de um dia, uma estação. O artigo indefinido é uma espécie de índice de singularidades, no caminho de uma vida que está em toda parte, que é potência completa. Transporta-nos ao corpo surgido no contato com os documentos, à experiência com arquivos e ritmos de uma vida. Interna no fora e, assim, enclausurada. Incidências que são justamente indizíveis como todo, e que escapam à história encerrada. Tocada pelo contorno do acontecimento, uma vida não é dizível, aspirando ao incorporal, se não provoca uma linguagem a se abalar em seu caráter explicativo. Será uma caminhada das almas ao ar livre, estrangeiridade como borda para vida, obra e pensamento. Riscar, resmungar, chorar, correr Celina. São infinitivos destacados da linha que o encontro efetua, e para a qual aponta.

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Gosto de nomes, chaves, facas. Adereços.

No lugar, portanto, de uma biografia completa, fragmentos cuja finalidade última é música. Combinação singular de sons e silêncio, linguagem arejada para a formação de outros rostos. Que as leituras por vir possam ser infiéis ao corpo proposto, justas apenas com a potencialização da vida. Fragmentos biografemáticos, assim, “cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicuristas, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão” (Barthes, 2005, p.172). É o desejo convidativo desse escritor de pormenores, o qual transladamos para o retorno de uma vida em novas efetuações, sendo o sentido o possível expresso dos encontros. Vida, assim, não pode ser um jogo de errância em torno do que lhe falta. Aquela que é contada, apreende-nos como os animais que povoam quem se ama. Não são eles amados através de alguém? Ou como se poderia separar tais coisas? Ligar às minhas, as multiplicidades que este ser encerra, fazê-las encontrarem-se. Não quaisquer, nem qualquer. Mas da vida aquilo impessoal e íntimo, isto. Aforismo do pensamento e anedota de vida são então de uma mesma distribuição de singularidades. Uma anedota trabalhada, esticada, é desejada em seu incorporal, quanto ao que pode liberar, desde cada estado de vida, uma depuração de pensamento. Viver Cinara atravessando as salas, as

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fotografias, as horas. É preciso este amigo insinuante, a dizer “vê comigo, lê comigo” essa vida e seus povos. O biografema enquanto companhia tangível, que puxa linhas de alguém para abaixo do nariz (Bedin, 2008). Seu critério, a paixão que abre o corpo, assim como um amigo ou amante ensinam sem anunciar. Ceni, de quem apenas metade da face está à mostra em fotos de arquivo, é meiamada, através dos afetos que retornam ativos do encontro. Quiçá. Que Cilda senão a que se debate, ressuscitada nas batalhas de expressão? São cem ildas longas, retornadas, nilcadas, enimescidas, na esteira de um corpo em pedaços como as estrofes da poesia sustentam palavras pesadas. Já que “o biografema nada mais é do que uma anamnese factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo” (Barthes 2003, p.126). Sendo o incompatível possível apenas quanto a pessoas e mundos em que os acontecimentos se efetuam, a comunicação se dá no que passa de um a outro acontecimento, em termos de singularidades acósmicas, impessoais e pré-individuais. Ser um indivíduo envolve uma prega de efetuações. Lançar-se além, por sua vida, traz

caos e algum perigo. Mais ou menos como a

personagem do romance “Palmeiras Selvagens” descreve o amor, como aquele que abandona quem não é forte o bastante. Se alguém morre, nesse caso, é quem não pode permanecer: “É como o oceano: se você não presta, se começa a empesteá-lo, ele te cospe fora em alguma parte para morrer” (Faulkner, 2003, p. 77). Que dizer de desejar a ferida que se nasce para encarnar? Querer o indizível da paixão que certa existência movimenta, até dizer um mínimo. A escrita fragmentária é rumorosa se pode abalar a construção de uma vida estagnada, invadida, apaziguada, seguindo uma linha incorporal, que não dá garantias. Seremos só uma existência, ou seremosd

Sê É noite. Ela deixa o quarto nu em direção ao corredor que se retorce. Suas mãos pressionam a parede maciça, ali onde as palavras são ditas em qualquer ouvido. Pergunta-se como estar

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acompanhada quando não há silêncio. Depois da oitava porta ela se vira sobre o pé gelado, tenta escutar sono detrás. Suspende a respiração. Nem um fiapo.

Surgem linhas, suspeita-se alguém. Em toda pausa transparece: escrever dá medo. Escrever com as pontas dos dedos, uma expressão mendiga, a vontade de apagar-se. Logo que um rosto aparece, não se vê a hora de encontrar seu fim. De fato, acompanha-se uma decomposição desde dentro, experimentando traçá-lo. Não é do rosto concreto de uma vida que nos ocupamos. No máximo, partimos dele, e a ele retornamos outros. Uma vida liberada na decomposição e reformulação. Há um plano diabólico de inscrição, quando um rosto se destaca. Uma seleção ao longo de um campo de rebatimento ou de significação. A força atrativa inevitável de uma linha partindo, traindo a órbita. Atravessar os olhos, borrar a boca, diagramar bochechas. A caminho do a-significante, desfazendo o rosto, mesmo se a tentativa fracassa. Gostar-se-ia que fossem linhas moles, indolentes, que se espalhassem, encontrassem duras e, assim sendo, que entre si houvesse roubo. Que as duas séries fizessem desvio, elas que não coincidem, mas que se deslocam uma em relação a outra. Que sejam noturnos, que cheguem.

Sua camisola se arrasta carregando fios de cabelo. As maçanetas das portas, já quis arrancá-las em dias furiosos. Desenha-as nas manhãs quando lhe pedem cartões de natal. Sim, seus cartões são pequenas portas para abrir, com janelas ainda menores. Será impossível que se aquietem? A cada ano nova cor, esquece da anterior como deixa acumular feridas nas pernas. Já não há espaço para cada abertura.

Fazer-se até que não haja mais nada de estranho entre nós. Só assim algo se passa, "somos sempre loucos em dupla, ambos se tornam loucos no

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dia em que ‘massacraram o tempo', isto é, destruíram a medida" (Deleuze 2007, p.82). A comunicação dos acontecimentos se dá percorrendo distâncias,

entendidas não como espaços vazios onde repentinamente surge outra coisa. Mas uma faixa que leva de um a outro, em que se dá a diferenciação. Faixa a ser desenrolada topologicamente.

Chega agora a uma bifurcação, a primeira, e distende o passo quando uma luz fracamente corta o caminho. Como uma memória antiga, seu estômago dá sinal e em seguida desaparece. De onde vim, pensou, tinha a cara cheia e as horas contadas. Aos poucos um corpo de baixo deixou minha pele mais fina, quase imperceptível. Não me saem da cabeça, de dia, as linhas das roupas de cada um. Sua camisola gruda. O corredor continua no escuro, agora mais denso. Quando eu ando, eu ando. Lembra-se das duplas, entre dois era capaz de ver. Na verdade, isso a forçava, com a possibilidade de esmagar a ambos. Nada mais à frente, a não ser seus gestos. Quand la nuit tombe, je tombe aussi. 4

É na medida de uma vida que pede mais, e que, portanto, decompõe em si qualquer medição, que se escreve procurando insistir sobre o plano de significação. Sem querer agarrar nada, já que o prazer do texto não é seguro, e movimenta.

4

Quando a noite cai, eu caio também. Cf. Camille, 2005.

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“aconteceu aconteceu teve livrinho pra salva”

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Referências BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. BARTHES, Roland. O efeito de real. Em: Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BEDIN, Luciano. A vida em escrileitura: biografemas e o problema da biografia. Projeto de Doutorado no PPGEdu/ UFRGS, 2008. CAMILLE. Quand je marche. Em: Le Fil [CD]. Londres: Virgin Records, 2005. CORAZZA, Sandra Mara. Introdução ao método biografemático. In: Vidas do Fora FONSECA, Tania Mara Galli & BEDIN, Luciano (Orgs.) Porto Alegre: Editora UFRGS, (no prelo). DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Ano zero – rostidade; Como criar para si um corpo sem órgãos Em: Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... Educação & Realidade 27(2):10-18, 2002. DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. Em: A ilha deserta – e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. FAULKNER, William. Palmeiras selvagens. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. FONSECA, Tania Mara Galli et al. Pesquisa e acontecimento: o toque no impensado. Psicol. estud., Dez 2006, vol.11, no.3, p.655-660. ISSN 1413-7372 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Em: Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. MILLER, Henry. The time of the assassins: a study of Rimbaud. Nova Iorque: New Directions, 1962. VALERY, Paul. Cahiers. Edição estabelecida por Judith Robinson, Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1973-1974.

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Coleção C. Ribeiro. Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, Porto Alegre.

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Entrevista Maria Helena Bernardes Entrevista: Alexandre Nicolodi e Denis Nicola

Horizonte Expandido – Santander Cultural Entrevista realizada em 10/06/2010 Enquanto Maria Helena Bernardes terminava uma entrevista à uma emissora de televisão local, fazíamos os nossos últimos ajustes nas questões roteirizadas para a entrevista com a curadora da exposição Horizonte Expandido, localizada no Santander Cultural. Entre um café e outro, as perguntas e respostas que vinham a tona no espaço educativo/biblioteca instalado logo na entrada da exposição, ‘viajavam’ entre a exposição e o Projeto Areal. Porém, o sentido de trânsito na qual a entrevista decorria, mostrava como muita das coisas que estavam sendo colocada e apresentada na mostra de registros fotográficos e vídeos, principalmente, são parte também da proposta do Areal a praticamente 10 anos. Como isto tudo se relaciona, o leitor pode conferir abaixo, na entrevista.

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“... é como a Karen Lambrecht diz: “esse artista vai ter que saber viver no deserto quando aquilo que ele acredita estar fazendo de importante pra ele não vai ser solicitado, vai ficar na prateleira do sistema e ele vai atravessar o deserto, mas sairá do deserto fortalecido como artista.” Panorama – Fale sobre a mostra Horizonte Expandido, ou seja, como surgiu a proposta para esta exposição, como foi o processo de criação e desenvolvimento da mesma? Maria Helena Bernardes – Essa foi uma exposição organizada em muito pouco tempo. Foram apenas 4 meses, desde o “nascimento” até a abertura da exposição... foi um trabalho super intenso! Mas de maneira geral Horizonte Expandindo tem uma relação direta com o projeto Areal, que mantenho com o André Severo, que é meu parceiro aqui nessa curadoria, que é um projeto em arte contemporânea que tem por característica produzir trabalhos artísticos que são criados na esfera do Areal. São trabalhos que excluem, digamos assim, uma necessidade de uma mediação já dada para sua apresentação. Desde 2000, ano em que iniciamos o projeto, propusemos para nós mesmos uma espécie de “espaço de respiração”, ou seja, um espaço de liberdade em relação a um formato de apresentação de obras de arte, no caso das artes visuais, que se apresentava cada vez mais especializado. Porque da metade dos anos 90 em diante, momento em que sentimos isso, os espaços, as instituições culturais, começam a ganhar um porte no mundo inteiro, até mesmo aqui no Brasil mesmo não tendo na época uma estabilidade econômica como temos hoje, o mundo da arte estava se profissionalizando rapidamente.

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“Esses artistas agiam de maneira diferente, fizeram o que fizeram porque queriam dizer certas coisas e tocar alguém., (...) tem essa pulsão por tocar o outro, tocar o seu contemporâneo de uma forma tão apaixonada e intensa...” Todas essas categorias profissionais, desde curadores, mediadores, críticos, administradores e produtores culturais em todas suas especificações, rapidamente se montaram; e para nós isso foi uma estrutura sufocante porque quanto mais especializada a estrutura de apresentação mais específica é o objeto que ela demanda e as condições que ela oferece para apresentação do mesmo. O Areal foi a criação de um espaço de liberdade para que nós pudéssemos pensar livremente as formas que nós traríamos nosso pensamento à público fora dessas condições tão delimitadas. O Areal faz 10 anos esse ano, em função disso, houve um entendimento, por assim dizer, entre a coordenação de projetos do Santander Cultural que vinha conversando com a NAU produtora em busca de um projeto local que traduzisse, de certo modo, uma visão de arte contemporânea que pudesse promover um evento

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consistente, que acompanhasse o mesmo nível das exposições usuais do Santander, e que pudesse ser feito em espaço curto de tempo para aproveitar essa agenda. Como o André e eu tínhamos vontade de ver certos trabalhos que serviram de referência para que nós tomássemos certas decisões no Areal, nos ajudassem a construir uma reflexão sobre esses meios de apresentação, sobre a relação artista, sistema de arte e público, ou também artista e o público diretamente. Como nós tínhamos uma série de artistas a quem nos sentíamos devendo uma “homenagem pessoal”, mesmo que fosse íntima, e que gostaríamos de ver e compartilhar com nossa cidade algumas obras fundamentais.

“... descobrimos que nesse lugar nenhum, onde existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é possível um artista agir. E não é preciso que ele anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder produzir conhecimento, relações...” A NAU produtora conversou comigo e com o André sobre uma exposição do Areal, uma exposição reflexiva já que o Areal não propõe trabalhos para serem expostos. Onde nós oferecêssemos uma leitura, do ponto de vista do Areal, de artistas e obras que sido referencias para comemorar esses dez anos. Uma “curadoria Areal”... foi assim que surgiu a exposição. Então, de certa forma, nós pensamos nessa curadoria como nós costumamos pensar um livro. Nós temos a nossa série Documento Areal que é através da forma de livros comunicar pensamentos que vem das artes visuais, da produção contemporânea. Pensamos que essa exposição é uma espécie de Documento Areal sob a forma de uma exposição. Mostrar o trabalho de outros da melhor forma possível, tentando não formatá-los de modo a subjugá-los numa leitura muito autoral nossa que costura isso com aquilo. Pretendemos dar autonomia a cada trabalho e não construir roteiros de visitação. Pensar quase com a cabeça de um artista em seu atelier. Uma obra para ser mostrada por vez, nesse caso teria que ser uma coletiva, e felizmente é, um grande apanhado de trabalhos. Existe uma função pública aí, de informar, compartilhar, trazer o maior número

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de coisas que pudéssemos trazer dentro de boas condições museográficas. Mas tentamos manter a cabeça como artistas, pensamos, por exemplo: Como o Smithson pediu para que fosse mostrada a Spiral Jety? Então é assim que será mostrada... Sem a interferencia de outro trabalho. Cada vídeo desses que deve ser mostrado em monitor, está sendo mostrado em monitor, o que é vídeo-instalação está como vídeo-instalação, nos monitores foram criadas cabines com uma arquitetura e uma acústica que permitem um maior isolamento e intimidade com aquele trabalho. Procuramos montar a instalação de maneira que uma obra não interferisse na outra, e principalmente, que nós não interferíssemos nas obras, seja com textos ou com mediação em frente à obra e etc. Então foi assim que pensamos a exposição, com cabeça de artista!

“O Areal foi a criação de um espaço de liberdade para que nós pudéssemos pensar livremente as formas que nós traríamos nosso pensamento à público fora dessas condições tão delimitadas.” Panorama – Já que você citou o Projeto Areal, talvez tu possas falar um pouco mais, especificamente, sobre este projeto e da sua história, tendo em vista que foi daí que surgiu essa parceria com o Santander e essa exposição. M.H – Para deixar um pouco mais claro a natureza da concepção artística do Areal pode ter em relação à natureza dos trabalhos aqui presentes nessa mostra. Porque, com estes trabalhos aqui expostos, a gente vê alguns “links” também, não só de reflexão, mas também de realização artísticas, guardadas as devidas proporções. Então aqui estão presentes todos os “heróis”, não só nossos, mas como de todas as pessoas que apreciam a arte contemporânea. Não seremos nós que nos colocaremos ao lado deles na história nem nada disso, simplesmente sentimos certa afinidade com a maneira que estes artistas tiveram de ver a arte e ver a vida. Bom, então o que é o Projeto Areal? No início, em 2000, eu e o André Severo éramos amigos, mas ainda não tão próximos quanto depois da criação do Areal. Nós identificamos como inicio

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dessa amizade uma mesma angústia, pois é um projeto que nasce da crise, da angústia.

Estávamos num momento de nossa trajetória como artistas emergentes, eu sempre brinco que artista emergente é que nem país com economia emergente, pois só deixa de ser emergente se outros quiserem (risos). Então como estávamos na malfadada categoria de emergentes, e eu uma emergente mais velha já com 33 anos, o André um emergente novinho com seus 25, 26 anos, e participando de um programa nacional que se chamava Rumos Visuais, do Instituto Itaú Cultural, era a primeira edição do Rumos. Na época nos deixaram muito claro que era um programa que, em primeiro lugar dava visibilidade para a produção nacional fazendo com que artistas de diferentes regiões circulassem pelo país. E também, internamente, o que nos era dito era que nós iríamos, na qualidade de artistas emergente, experimentar o tipo de situação profissional que os artistas já estabelecidos experimentam, que é ver de perto a organização de uma exposição, conhecer curadores profissionais,

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viver uma rotina de montagens em instituições importantes... Enfim, havia uma série de coisas ali que davam a entender que se tudo desse certo depois dessa grande sabatina que era o Rumos e os que passassem para a etapa posterior iriam desfrutar desse “Olimpo” que são as artes visuais profissionais. Enquanto uma parte de nossos colegas estivessem funcionando de maneira harmônica dentro disso tudo sem sentir nenhuma contradição nem nada, o André e eu nos identificamos numa angústia. Nós nos demos conta que aquilo que o Rumos nos apresentava como um futuro era algo que para nós não servia, pois aquilo nos angustiava, nos deprimia - falando francamente. Percebíamos que havíamos trabalhado duramente para chegarmos até ali, pois na época éramos artistas que mantinham atelier, ambos éramos fanáticos, daqueles de trabalhar em suas obras 24h por dia de Segunda a Segunda. Ou seja, trabalhávamos tanto para chegar num lugar que nós não queríamos, que era ter um tipo de atividade profissional como artista que consistia em produzir situações dentro de uma caixa, que é o atelier, colocá-las dentro de uma caixa de madeira revestida com plástico bolha e enviá-las para outra caixa que seria o espaço expositivo. Então, de caixa em caixa nós iríamos passar nossas vidas, e distantes de uma realidade mais viva, de uma troca mais intensa, mais experimental que de algum jeito nós queríamos proporcionar.

“... aqui estão presentes todos os “heróis”, não só nossos, mas como de todas as pessoas que apreciam a arte contemporânea (...), simplesmente sentimos certa afinidade com a maneira que estes artistas tiveram de ver a arte e ver a vida.” Criar o Areal foi buscar essa outra condição, uma condição de autonomia, de tentar descobrir que outros trabalhos nós saberíamos fazer fora das nossas caixas... e também para sustentar aquele ritmo do Rumos que cada vez foi ficando mais insustentável e angustiante, saímos a viajar apenas para conversar, para desabafar sobre essa angústia. Íamos de ônibus para qualquer lugar longe de Porto Alegre e que não tivesse nenhuma instituição cultural funcionando. Lugares estes mais isolados como Mostardas, São José do Norte... e voltada sempre no mesmo dia. Aproveitando também para pensar em

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uma

situação

em que

não

exista

a estrutura

profissional da

arte

conseguiríamos nos sustentar como artistas, se isso estava dentro de nós ainda. Onde não teríamos nenhuma confirmação externa da nossa condição de artistas, sem a confirmação do sistema de arte para nos dizer que éramos artistas ou não. Tentávamos responder àquela velha pergunta, do inicio do romantismo ainda, “existe uma necessidade em mim de fazer isso? O que acho que posso contribuir sendo um artista? A quem interessaria isso? Com quem posso trocar idéias? Quem são os interlocutores fora da estrutura préestabelecida na arte?”

Então, fizemos esses exercícios de viagem durante um ano e as praias eram angustiantes também, assim como o Rumos, pois nos víamos sem saber o que fazer, o que ser! Não nos encontrávamos nem num lugar nem no outro! E foi nessa falta de identidade, nesse meio, que aprendemos a pensar as cosias em transito, fazer estas coisas em transito. Por exemplo Vaga em campo de

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rejeito1 que é uma situação casual, onde fui parar lá em Arroio dos Ratos e deixo que uma série de situações se apresentem e vão se realizando coletivamente em solidariedade que recebi de vários moradores do local; e daí a situação vai se montando na minha frente e eu vou aprendendo e as pessoas vão me ensinando. Então juntos criamos uma situação sem prazo para terminar, que não resultou numa exposição, mas é comunicada num livro que já é outra coisa, não é apenas o resultado da experiência, é outra coisa, outra etapa do mesmo trabalho que se caracteriza quase como um conto. E o André desenvolveu um trabalho também em viajem que está relacionado no Documento Areal: consciência errante2. Ou seja, descobrimos que nesse lugar nenhum, onde existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é possível um artista agir. E não é preciso que ele anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder produzir conhecimento, relações... Enfim, eu acho que a idéia é essa, ente o artista que conhece alguma coisa e o outro não artista mas que tem sua vida, tem uma experiência rica e conhece outras coisas, produz um atrito e desse atrito se gera conhecimento e troca. O Areal é isso, é proporcionar que esses encontros aconteçam. Pra isso criamos a Arena, onde são dados cursos, mas que tem duas camadas: é uma associação sem fins lucrativos para o desenvolvimento dos nossos projetos. E a outra é uma empresa, onde as duas estão na mesma sede e estão relacionadas, que é onde eu dou os cursos e outros professores também. A NAU produtora, que o André é sócio, também produz, além de ir atrás de recursos para algumas ações do Areal, sobretudo filmes. Então lentamente, ao longo de 10 anos, instituir alguns suportes para esta autonomia. E esse é um trabalho incondicional, que não cede a nenhuma condição que não do seu próprio desejo, de seu movimento espontâneo. Isso é o Areal!

“As vezes você pode ser demandado por outros, que te convidam para uma situação, e você arregaça as mangas e vai trabalhar, mas em algo que te convença 1

BERNADES, Maria Helena; Vaga em Campo de Rejeito; São Paulo: Ed. Escrituras, 2003 (Documento Areal 2) 2 SEVERO, André; Consciência Errante. São Paulo: Ed. Escrituras, 2004 (Documento Areal 5)

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no sentido moral, ético, espiritual, humano, lúdico. Mas não por outros interesses.” Panorama – É uma relação direta com os trabalhos da mostra.... M.H – Temos uma dívida para com a arte contemporânea que busca rever as relações entre a arte e as pessoas fora dessa categoria inerte que é púbico, abstrata; fora do evento cultural. Todos nós temos uma dívida, colocamos um pequeno passinho, senão à frente, talvez, um pouquinho mais ao lado ou fazemos um “puxadinho” desse grande pensamento que encontramos aqui no Santander Cultural. Quando lemos nos livros temos a sensação de que está tudo resolvido, pois os autores possuem esse dom de nos apresentar tudo já resolvido. Mas diante do trabalho eles reviram do avesso, pois são muitos frescos. Tem um grau de intensidade, experimentação, de inquietação viva e de forma aberta. Panorama – De modo em geral, como é feito o trabalho do projeto pedagógico? Afinal a mostra abrange também um publico que busca e que espera uma obra mais formal, materializada, quase que “entregue”, tendo em vista que esta exposição evidencia muito mais o conceito do processo, as idéias e as questões das transformações do espaço/tempo. E, além disso, como se percebe essa relação do vídeo, que na maioria dessa exposição, serve mais como documento/registro dos trabalhos expostos com esse mesmo público visitante? M.H – Um dos pontos de apoio ao público que não é familiarizado a esta exposição foi criar uma das portas de entrada, que nós pensamos e que poderia facilitar o acesso a esse tipo de obras a cada trabalho desses, a cada um dos artistas aqui representados, e em cada trabalho também, o artista está, de alguma forma, presente como sujeito. Talvez isso tenha sido o único critério que tivemos, após termos escolhidos os artistas, assim como este leque de obras destes mesmos artistas, foi a escolha de trabalhos nas quais o artista tivesse uma participação, uma presença direta. Que ele estivesse falando diretamente ao público, ou que o corpo, a imagem do corpo do artista estivesse presente, ou que ele se dirigisse ao público diretamente através de um texto ou através de uma ação, representada por uma fotografia, como exemplos. Então

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queríamos que essa exposição fosse um pouco como o Areal: uma plataforma de encontro entre o visitante e o artista, mesmo o artista não estando de corpo presente. Isso porque no nosso entender esses artistas tinham uma necessidade verdadeira, que foge ao sentido de produzir profissionalmente um trabalho de arte “porque sou um artista” , então eu produzo obras. Esses artistas agiam de maneira diferente, fizeram o que fizeram porque queriam dizer certas coisas e tocar alguém. Então se essas pessoas tem essa pulsão por tocar o outro, tocar o seu contemporâneo de uma forma tão apaixonada e intensa, isso já é um ponto de comunicação legal. Acredito que qualquer pessoa possa se sentar em frente ao trabalho falado do (Joseph) Beuys, que é uma conversa quase como um debate entre ele e interlocutores de uma platéia, e acompanhar o que está sendo dito. Agora é claro que referencias específicas existem ali como existem em diversas outras áreas de atuação profissional. Mas ainda assim existe um canal de contato, tenho certeza, por serem pessoas que faziam, falavam, agiam por uma necessidade real e autêntica de tocar o outro. Ou seja, o fato de não serem “burocratas” da arte, mas sim pensadores e artistas inquietos, apaixonados e com uma visão humanista que de fato implica ao outro, com uma compreensão solidária o outro precisa alcançar para funcionar. Então, em princípio, com alguns destes trabalhos, as pessoas que vem aqui visitar a exposição, com algum desses trabalhos, ela irá se relacionar.

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Então não vemos, nessa exposição, um daqueles exemplos dolorosos de exposições da arte conceitual dos anos 70, digo experiência dolorosa no sentido de você sair “moído” com todas aquelas coisas pra ler, com todas as relações, por vezes cientificas, que são estabelecidas e etc., que possuem seu

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mérito, na qual eu concordo absolutamente, mas que precisam de um mergulho no contexto, contexto este que é referencial, de leitura, filosófico. E isso não faz com que a arte conceitual seja menos importante ou menos relevante. Mas não é o caso dessa exposição. É também dos anos 70 mas está fora, digamos assim, daquela produção. Então as atividades pedagógicas estão considerando isso! Além dos mediadores que estão aqui presentes para ajudar, temos esse espaço de encontro que é a biblioteca, onde as pessoas podem vir, sentar ler livros, conversar, pesquisar sobre os artistas da mostra. Os mediadores, alguns voluntários do Arena, estão preparados e a disposição para recomendar leituras, conversar sobre as obras, dar sugestões, trocar idéias. Além disso temos também visitas guiadas que semanalmente o André e eu fazemos com o público visitante. ... Panorama – Sem desmerecer os que aqui estão presentes, nesta exposição, há algum artista ou obra que vocês sentem por não ter conseguido trazer par a mostra? M.H – Acredito que as coisas mais importantes estão aqui. Coisas que chegaram a ser cogitadas de serem trazidas, mas devido ao curto tempo de produção tivemos que deixar de lado... Queríamos muito mais um trabalho do Smithson, Hotel Palenque3, que é uma projeção de slides com a voz dele, já tínhamos até a tradução do texto. Mas trabalhos como esse, que exigem a realização com projetor de slides e não data show, pois ele precisa do som da troca dos fotogramas... é necessária uma antecedência muitíssimo maior, o que não era possível. Havia outro com slides do Dan Grahan, Homes for America4, um trabalho que circulou primeiro como publicação numa revista em 1967. Esses dois trabalhos queríamos muito! Desistimos também de alguns trabalhos “mais materiais”, como os múltiplos do Joseph Beuys ou alguns objetos do Gordon Matta-Clark, pois queríamos mostra o lado escultor social dele entre outros objetos por entendermos que não se tratava de uma exposição que devesse ter uma presença material forte e sim uma vivência, o 3

T¨rabalho de Robert Smithson realizado em 1969 em um hotel abandonado no Novo México, Nos Estados unidos . Mais Informações em http://www.robertsmithson.com/photoworks/hotelpalenque_300.htm ou http://www.guggenheimcollection.org/site/artist_work_md_146E_1.html 4 Fotografias de Graham realizadas em 1966-67 sobre a arquitetura das casas das famílias norte-americanas.

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tempo pensado... e o filme dá conta disso. Nós pensamos que as pessoas, no caso do Beuys, por exemplo, precisavam esquecer um pouco este lado dele escultor, unicamente, e fazer ver o lado dele “escultor social”, que é fazendo aquele vídeo/filme que vemos na exposição, das conversas com o público, dos debates, etc. Mas de modo geral não tivemos nenhuma grande frustração! Uma surpresa que tivemos, foi quando nós incluímos o Chris Burden, que num primeiro momento não estava na exposição, pois tínhamos outros trabalhos em mente. E de repente demos uma virada num determinado momento nesta idéia de presença, e assistimos o vídeo completo do Burden, e o modo como ele conta o seu trabalho é realmente muito especial para todos aqueles que estudam performance, ou a relação artista-público.

“... descobrimos que nesse lugar nenhum, onde existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é possível um artista agir. E não é preciso que ele anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder produzir conhecimento, relações...” Panorama – Parte da produção contemporânea apresenta um resultado, por vezes, muito parecido ao que se fazia na época dos trabalhos/registros aqui presentes na mostra Horizonte Expandido. Em muitos casos, nessa nova produção, temos uma sensação de “vazio” diante dos trabalhos. Seria talvez, por essa mesma produção de hoje pensar mais na obra como uma coisa pronta e não ter os mesmo impulsos geradores da mesma época. Afinal, os trabalhos aqui expostos tem cerca de 40, 50 anos. O mundo era outro, as questões, tanto sociais como as da própria arte, eram diferentes. Não te parece que hoje, não são todos os casos, alguns trabalhos se apresentam como meras cópias esvaziadas? E dessa repetição, ao nosso ver, cria-se um certo “vazio” na arte contemporânea... mas esse questionamento, que não é exclusivamente nosso, as vezes passa por um discurso ressentido com o mercado, com as instituições, entre outros sujeitos atuantes do sistema, e que, por isso, não é realizado. Porém, quando é realizado, é taxado dentro deste discurso ou passa desapercebido. Como você vê isso acontecendo hoje?

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M.H – Bem.. .eu também tenho o mesmo cuidado que vocês estão tendo nesta questão ao falar disso, pois muitas vezes, como tu disse, acaba parecendo um discurso muito ressentido, muito facilmente até. Acredito que quem escolhe ser artista, não quero dizer que isso seja uma verdade absoluta, escolhe não assumir um compromisso com suprir demandas, produzir mercadorias, produzir atrativos... ou seja, não ter compromissos com niguém. Panorama – A não ser suprir nossas próprias demandas pessoais. M.H – Exato! Uma demanda que sintamos ser legítima, seja do nosso tempo ou dos nossos sentimentos e percepções. As vezes você pode ser demandado por outros, que te convidam para uma situação, e você arregaça as mangas e vai trabalhar, mas em algo que te convença no sentido moral, ético, espiritual, humano, lúdico. Mas não por outros interesses. Isso estamos falando da minha, ou da nossa visão, que abandonamos esse modelo institucionalizado por acreditar em algo mais. Cada um deve fazer o que gosta e Let it be! Não se trata aqui de discriminar, mas de opção de vida. Mas posso dizer que uma das coisas que mais nos chocou ali naquele início de profissionalização do meio

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artístico, na segunda metade dos anos 90, foi ver como rapidamente jovens artistas aderiam de forma acrítica à essa vitrine, e as demandas dessa vitrine. E também como todo mundo começou de repente a falar em carreira e não mais em trajetória artística. Artista tem trajetória, porque trajetória significa ter tentativa e erro, muitos erros, muitas tentativas e alguns acertos.

Mas carreira é uma coisa em que se soma pontos e se ascende. Então quando começou a se falar num profissionalismo que implicava em carreira, se falava em competitividade e eficiência, e cada um apresentava portfólios muito bem apresentados antes mesmo de ver a obra! E isso nos provocou uma aversão,

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pois não é só isso que compõe o mundo da arte e dos movimentos da arte jovem. Tem aí uma corte e tem os prêmios, e tem também uma roda viva comendo, engolindo e pedindo novas mercadorias. Existem modos de ser um artista integro e correto dentro desse sistema vigente, mas, é como a Karen Lambrecht diz: “esse artista vai ter que saber viver no deserto quando aquilo que ele acredita estar fazendo de importante pra ele não vai ser solicitado, vai ficar na prateleira do sistema e ele vai atravessar o deserto, mas sairá do deserto fortalecido como artista”.

“Uma ‘curadoria Areal’... foi assim que surgiu a exposição. Então, de certa forma, nós pensamos nessa curadoria como nós costumamos pensar um livro.” Eu particularmente acredito haver modos de ser um artista sério tanto dentro como fora do sistema, fora eu quero dizer da lógica dele, porque ninguém está fora, o sistema é todo o circuito onde gira a palavra arte, pelo menos eu entendo assim. Até porque hoje o sistema absorve praticamente tudo... em diferentes níveis, nas suas estratégias e corporações... mas eu acho que nós podemos ser um artista sério em qualquer lugar, mas o importante e encontrar este lugar. Mas a gente percebe esses funcionamentos e tem coisas que nos chocam as vezes. São assuntos, são coisas que incomodam a gente e que nós devemos discutir. Por exemplo, as obras desta exposição, os filmes e vídeos, não eram nem exibidos ou mostrados, a não ser entre os próprios artistas. Tudo isso não era um sucesso garantido... muito pelo contrário: as pessoas que fizeram essas ações, abandonaram o que eram garantido... abandonaram o terreno seguro... e isso aqui (a obras da exposição) é o terreno inseguro, isto daqui é o deserto, pois os artistas saíram da zona de conforto. Mas o sistema é muito grande, e ele absorve tudo muito rapidamente, sendo legitimado e usado pelo entretenimento, pelo evento cultural, pois são muitos espaços para se preencher. O sistema de artes hoje é uma máquina muito grande. Mas ao pensar sobre os artistas desta exposição, os seus anseios quanto a estes trabalhos era utilizar o vídeo para registrar a experiência no sentido de

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duração, no registro de uma vivência intensa, ou seja, processual. Era gravar e comunicar essa intensidade, pois não se pensava em produto, em mercado, se pensava nessa vivencia, nessa experiência, em abertura, em desmonte de coisas e ao mesmo tempo no registro de coisas acontecendo, no registro de um entendimento, de um processo. Diferente de hoje que é um tiro muito certeiro fazer um vídeo ou uma foto.

“São trabalhos que excluem, digamos assim, uma necessidade de uma mediação já dada para sua apresentação”

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Expediente

Editores

Alexandre Nicolodi Artista Plástico graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em Escultura. Vive em Porto Alegre.

Denis Nicola Artista Plástico, Publicitário e Fotógrafo. Graduado em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCRS e em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Vive em Porto Alegre.

Jornalista

André Dornelles Pares Jornalista e Filósofo licenciado. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Unisinos e Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vive em Porto Alegre.

Conselho Editorial

Paula Viviane Ramos Jornalista e crítica de arte. Mestre (2002) e Doutora (2007) em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS). Professora Adjunta do Instituto de Artes da UFRGS. Desenvolve pesquisa sobre arte moderna, arte contemporânea e artes gráficas. Vive em Porto Alegre.

Maria Ivone dos Santos Artista, Doutora em Artes Plásticas na Universidade de Paris I, Panthéon Sorbonne em 2003. É professora da área de escultura do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena com Helio Fervenza o Grupo de Pesquisa: Veículos da Arte (CNPq) e o Programa Formas de Pensar a escultura – Perdidos no espaço (www.ufrgs.br/artes/escultura/). Vive em Porto Alegre.

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Paulo Gomes Artista plástico, curador independente e professor na UFRGS. Mestre e Doutor em Artes Visuais – Poéticas Visuais, pela UFRGS. Desenvolve pesquisa na área de Poéticas Visuais, sobre arte contemporânea e arte no Rio Grande do Sul. Tem textos publicados em livros, revistas e jornais. Vive em Porto Alegre.

Neiva Maria Fonseca Bohns Professora adjunta do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas. Mestre e Doutora em Artes Visuais - História, Teoria e Crítica de arte pela UFRGS. Professora de Arte Contemporânea, História da Arte no Brasil, História da Arte no Rio Grande do Sul e Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea no Brasil e arte no Rio Grande do Sul. Atua como crítica de arte e curadora de exposições de arte contemporânea. Membro do Conselho Curatorial da Fundação Vera Chaves Barcellos. Tem textos publicados em livros, revistas e outros veículos especializados.

Design Gráfico – versão online

Adreson Vilson Vita de Sá Artista e designer. Formado pela UFSM, atualmente graduando no Instituto de Artes (UFRGS), trabalha com design gráfico e projetos de arte (Bienal B). Atualmente está na diretoria da Associação Chico Lisboa. http://adreson.com

Design Editorial

Natália Correa Artista e

Colaboradores

Gabriel Karasek Artista plástico e web designer de Porto Alegre. Graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente morando em São Paulo onde trabalha na www.cubo.cc. Mais informações em www.gkarasek.com.

Letícia Lampert Artista plástica, designer gráfica, web designer e fotógrafa, Vive e trabalha em Porto Alegre. Formada em Desenho Industrial/Programação Visual, pela Ulbra, é graduada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade federal do

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#06 – Jun/Jul 2010

Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Mais informações e portfólio em www.leticialampert.com.br.

Angela Cagliari Artista plástica graduada pelo Instituto de Artes da UFRGS com ênfase em Fotografia. Vive e Atua em porto Alegre. Recebeu prêmio do British Council para intercâmbio acadêmico na Inglaterra em 2007.

Roberto Muniz Graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ênfase em desenho. Há muitos anos trabalha com desenvolvimento web e publicidade on-line.

Vitor Butkus Artista visual. Graduando em Artes Visuais, habilitação em História, Teoria e Crítica, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa transdisciplinar Corpo, Arte, Clínica.

... E todos aqueles que contribuíram, e contribuem das mais diversas maneiras, para a publicação dessa revista.

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#06 – Jun/Jul 2010

“Um espaço público para o intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca da produção artística contemporânea..." Mesmo com a produção artística contemporânea vivendo um período de grandes realizações, são muitos os teóricos que analisam o período a partir da óptica de uma "crise da arte", ou mesmo do "fim da arte". Esses mesmos intelectuais reconhecem que, se existe crise, parte importante dela deve-se à escassez de material crítico. De fato, foi-se o tempo em que se podia encontrar crítica de arte em jornais e revistas, os meios tradicionais para esse e outros tipos semelhantes de manifestação... Hoje, o exercício da crítica, notadamente da crítica de arte, parece ter encontrado lugar nos ambientes acadêmicos. No entanto, será que essa estratégia não estaria restringindo ainda mais a reflexão sobre arte, sobretudo sobre arte contemporânea, a círculos de iniciados no assunto? Foi pensando nessas e em tantas outras questões que criamos a revista PanoramaCrítico. O nosso objetivo é disponibilizar um espaço público para o intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca da produção artística contemporânea, brasileira e internacional. PanoramaCrítico também tem como objetivo possibilitar a troca entre instituições, acadêmicas ou não, que tem algum tipo de atuação voltada ao campo. Assim, o site se coloca como um espaço para a divulgação de atividades, eventos, cursos e palestras na área. Isso significa que estão todos convidados a participar!

PanoramaCrítico

é uma publicação bimestral.

Acesse: www.panoramacritico.com

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