Revista Interferência

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Imaginando sons Folk apancalhado Eu não gosto de Rock

edição # 01 . dezembro de 2009 . distribuição gratuita

O céu é o limite

Coletivos de música formam rede para fomentar a música independente


Espaรงo reservado para publicidade


Primeiro veio a cisma de fazer uma revista impressa para uma cena que vive navegando pela internet. Depois a pergunta: por que não? Você já imaginou quantas revistas impressas existem? Fofoca, ciência, tecnologia, uma só para os usuários de Macintosh. Por que não uma sobre música independente? É enorme a quantidade de bandas, de agentes culturais e de pessoas interessadas no assunto. E há ainda uma grande quantidade de informações sobre esse universo . Dava até para ser jornal diário. Mas vamos largar de imaginação, uma revista mensal para começar. A idéia é retratar a cena independente. Mas não é só para falar quão lindas são as pessoas que atuam na cena, quão democráticos são os espaços e quão felizes são os músicos independentes. Às vezes tem que chutar o balde, provocar discussão e colocar o dedo na ferida. Porque fomentar a cena é trazer debate, e o debate não surge quando tudo está às mil maravilhas. A revista Interferência vem para isso mesmo. Mostrar os trabalhos dos músicos, colocar as pessoas para falar, incomodar um pouquinho. Sobretudo fugir do jornalismo de agenda que paira em grande parte da imprensa. Cadê as coberturas de evento, minha gente? Temos uma parte de agenda, confessamos, mas não é só de shows. Tem novidades também, mas é para falar do que surge na cena, o que não é pouca coisa. A primeira edição fala das barreiras que o músico enfrenta para ter acesso às gravadoras independentes, destrincha um pouco do universo dos coletivos de música e traz a história da cena independente que emergia com o Teatro Lira Paulistana, além das possibilidades propostas pelas novas tecnologias, como o SMD. A gente também passeou bastante! Fomos no interiorzão da Bahia descobrir artistas que são independentes sem saber, rodamos eventos diversos, como Festival Garimpo, Garajada, Duelo de MCs. Não fugindo do clichezão, a Interferência foi feita de quem é da cena para quem é da cena. Nossa vontade é dizer sobre a música independente nacional, mas levando em consideração que quem faz a revista está na capital mineira, é impossível não termos Minas Gerais como grande referência e ponto de partida. Mesmo assim, Interferência tem a preocupação de mudar um cenário nacional ainda pouco valorizado, além de fomentar a música independente a partir da valorização dos seus agentes. E a gente sabe que é preciso melhorar muita coisa: infra-estrutura, divulgação, distribuição e acesso à produção fonográfica… Interferência é um espaço criado para que músicos, produtores e simpatizantes possam explorar e interferir à vontade. Leia, critique, opine e faça acontecer! Esperamos que você goste da nossa primeira edição e de todas as outras que estão por vir!

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Para

começar, uma

revista mensal!

Expediente arevistainterferencia@gmail.com Reportagem e texto Adriana Mitre Pâmilla Vilas Boas Edição e revisão Adriana Mitre Elton Antunes Pâmilla Vilas Boas Projeto Gráfico Andréa Miranda Fotografias Érico de Oliveira Lygia Santos Caricatura Rafael Sete Infográfico Bruno Fonseca Ilustração capa e matéria de capa Augusto Molinari Colaboradores desta edição Carlos Jáuregui Filipe Motta Nuno Manna Rafael Azevedo Victor Dias Victor Guimarães Terence Machado

editorial

interferência #01


índice

interferência #01

cartas em cena favoritos

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04 05|06 07

independência ou morte Não era um Teatro qualquer O que ficou do Lira Paulistana

08|11

O pioneiro que não foi o primeiro Em 1977, Antônio Adolfo lança de forma independente seu disco “Feito em casa”

12|13

opinião terence machado

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bastidores

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entrevista Coisa de agitador makely ka

opinião pâmilla vilas boas

16|20

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Outros Festivais Rec-Beat para começar bem o ano 22|23 Festival acontece durante carnaval de Recife

ultra-som Imaginando sons 24|27 Sons e imagens se misturam em apresentações musicais Parece, mas não é CD! Conheça a tecnologia SMD

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Matéria de capa O céu é o limite Coletivos de música formam rede para fomentar a música independente

ocupar

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35


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dez|09

quatro canais Coletivo que se encerra em si 36|37 Graveola surpreende com seu lixopolifônico Curumin globalizado 38|39 Carreira solo de Curumin já é conhcecida nos EUA e Japão Mundo a fora 40|41 Banda PAVIU traz referências para o reggae Folk apancalhado Rock Indie descontraído com a banda Dead Lover’s

42|43

programa de indie Eu não gosto de Rock! 44|46 Festival Garimpo reuniu bandas de vários estados em BH Debaixo do viaduto 47|49 Sexta-feira a noite é dia de Duelo de MC’s O importante é a festa 50|51 Garajada transforma garagens em espaço para música independente

Encarte

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Na tora Medo do desconhecido Conheça a ferramenta Bandcamp

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Nem tão igual, nem sempre diferente 54|55 Gravadoras independentes: democráticas? Como gravar um CD

discoteca

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59|61

agenda

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Top 10

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opinião

adriana mitre

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cartas

interferência #01

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“Falar de música pra quem faz música é sempre um desafio. Primeiro, porque qualquer picaretagem jornalística é facilmente detectada por olhos e ouvidos atentos. Segundo, porque esses olhos e ouvidos vão estar sempre famintos por coisa nova, de qualidade e sem rabo preso com o mercado. Acho lindo esse espaço novo pra música independente. Desejo muito boa sorte à Interferência nessa empreitada – e espero que vocês puxem a sardinha pra Minas Gerais!” Carol Abreu, percussionista de Belo Horizonte

“Toda forma de divulgação independente é válida. Porém, a revista tem que se diferenciar do digital para atrair as pessoas que estão acostumadas com a internet. Ser sincera e apostar nas bandas de qualidade e que tenha conteúdo, não só para ser amigo e falar que tudo é bom. A revista deve abranger tudo e apostar no profissionalismo.” Thiago Correia, vocalista e guitarrista da banda Transmissor

A revista Interferência tem espaço reservado pra você interferir à vontade! Mande seu email. Fale bem, fale mal, mas fale de nós, ou para nós! Contato: arevistainterferencia@gmail.com

“Uma revista de música independente é essencial para a divulgação de novos artistas e bandas de qualidade, mas para isso não basta a música independente, é preciso uma revista independente, livre de jabás e otras cositas más... estou ansioso pelos próximos números. Viva a independência!” Terêncio de Oliveira, estudante de jornalismo da UFMG

“Qualquer manifestação que realce a música independente, no cenário musical que se estrutura atualmente, é sempre vista com bons olhos. Ao realçar o trabalho de bandas que estão fora do eixo das grandes gravadoras – mesmo que o declínio destas seja inevitável – estimula-se a produção musical e potencializa-se o trabalho e a abordagem de novos veios estéticos e temáticos.” Vinícius Provensani, baterista da banda o Grande Nada

“A revista é vital para a cena independente, mesmo com a predominância do digital. Até porque as revistas estão voltando e são um meio importante, principalmente para quem está começando e não tem acesso à comunicação de massa.” Carolina Lima, cantora e compositora de Belo Horizonte

“Me lembro do fanzine “Nossa Música” da década de 80. Eu comecei tirando fotos para esses fanzines. Eles tinham muita importância na época. A revista também é uma forma de reunir bandas, jornalistas e crítica. É um espaço para todo mundo.” Fernando Furtado, empresário do Skank

“O papel é indispensável e continua sendo, ainda mais que no Brasil nem todo mundo está online. No impresso existe mais credibilidade na informação, tem alguém que assina e que é responsável pelo material. Na internet nem sempre você pode confiar.” Marcos Almeida, vocalista e guitarrista da banda Palavrantiga

“Me lembra os Fanzines. Na época em que não tinha internet, o que existia eram os fanzines. Eu morava em São Paulo e peguei essa fase. Era extremamente importante porque o que tinha na cena independente ia para lá. Hoje você tem a internet , tem muita coisa e às vezes confunde. Por isso a revista é muito importante, para reunir essas informações.” Ítalo Lago, produtor e dono de estúdio de gravação e ensaio de Belo Horizonte


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Sem medo da Internet

O músico Leoni lança o “Manual de Sobrevivência no Mundo Digital”. De acordo com o cantor, é um livro interativo. O e-book vai se transformar num livro físico depois de passar pela crítica de seus leitores virtuais. Numa linguagem própria dos manuais, Leoni fala, dentre outras coisas, dos novos recursos da internet, das novas biografias na era digital e marketing. Indispensável para quem ainda está perdido nesse novo cenário. Dá para baixar pelos sites: http://www.sendspace.com/file/57aaqo http://www.leoni.art.br

No circuito

Articular os agentes de cultura do Brasil e Mercosul. Esse foi o objetivo da primeira Feira de Música do Sul, que aconteceu entre os dias 19 e 22 de novembro no Rio Grande do Sul. O evento é importante por incentivar o potencial econômico da cadeia produtiva da música e integrar o Sul no calendário das feiras de negócios na área da cultura. O Circuito Fora do Eixo também apoiou o evento, onde, realizaram as “Noites Abrafin/Fora do Eixo”.

Convite de fim de ano

Um músico mais conhecido toca com músicos convidados. Esse formato de programa é comum. Mesmo assim, esse ano, a Rede Minas apostou na idéia. Para os especiais de fim de ano, ela criou a série “Convida”, que será exibida no programa Feira Moderna a partir da primeira semana de dezembro. Os “conhecidos” foram Ricardo Cotus, Maurinho Nastácia, Henrique Portugal e Renegado. Como convidados não faltaram bandas independentes. Henrique Portugal, por exemplo, convidou Udora, Transmissor, Monno e Dead Lover’s Twisted Heart. Para Luciano Alkimim, diretor de produção e programação da Rede Minas, a idéia é colocar os artistas fora da sua rotina, para trazer um ambiente mais pessoal, onde eles tocam com amigos por “brincadeira”. A gravação do programa não foi brincadeira, mas o ambiente era bastante descontraído. A previsão é que o programa com Henrique vá ao ar na terceira semana de dezembro.

Para qualquer estilo

Em outubro desse ano a revista Billboard, com nada menos que 119 anos, ganhou uma edição brasileira. A Billboard brasileira será veiculada mensalmente pela editora BPP, e contará com matérias e assuntos ligados à música nacional e internacional, incluindo os tradicionais rankings, como “Hot 100”e “The Billboard 200”. A primeira edição trouxe Roberto Carlos na capa por ser o campeão de vendas de disco no Brasil. Ao contrário da versão americana, a brasileira será mensal (lá é semanal) e terá como foco o público consumidor e não a indústria da música. Por isso, atira para qualquer lado. Na revista é possível ver artistas do Rock, Sertanejo, Eletro Brega e todos os estilos que couberem numa edição.

em cena

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em cena

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Se Deus quiser

O PMW Rock Festival já é tradição em Palmas. Só que dessa vez todo mundo vai ter que esperar mais um pouquinho. Sem maiores esclarecimentos, o festival foi adiado devido a problemas internos no Ministério da Cultura. O PMW, que ia acontecer entre os dias 13 e 15 de novembro, foi adiado para 18, 19 e 20 de dezembro. É a segunda vez que isso acontece devido a problemas com os recursos do festival, que é integralmente patrocinado pelo Ministério da Cultura. Expectativas aumentam. Tomara que ele aconteça de verdade.

Virna Lisi volta a ativa

Depois de 12 anos inativos, a banda mineira Virna Lisi voltou a se reunir. Tinham três discos gravados, vários clipes que fizeram parte da programação da MTV nos anos 90 e um público cativo. Em resumo, tinham bons motivos para fazer mais uma apresentação, ou muitas. O grupo, com exceção do guitarrista Marden Veloso, se apresentou com a mesma formação para o show de abertura do Festival Eletronika , Festival de Novas Tendências Musicais, que aconteceu de 5 a 7 de novembro, em Belo Horizonte. Contando com Ronaldo Gino na guitarra, Marcelo de Paula no baixo, Luiz Lopes na bateria e César Maurício no vocal, o show de Virna Lisi foi composto por suas antigas canções, que misturava rock com vários outros estilos musicais.

Para ouvir enquanto espera

Se não tem nada para fazer enquanto espera um avião, o melhor é ouvir música independente. O programa “Frente”, idealizado por Aliás Mobile e Henrique Portugal, vai para a TV. Não vai para as TVs convencionais, nem para internet, onde já é exibido há quatro anos. A idéia é que “Frente” vá para as TVs dos shoppings, aeroportos, ônibus. Ou seja, lugares em que as pessoas gastam seu tempo esperando. Com quatro programas prontos, eles esperam completar dez para ser veiculado. “Frente” terá a duração de 5 minutos. Primeiro a banda fala um pouco do contexto da produção das músicas e depois toca. O Programa “Frente” também tem seu formato para rádio. Apesar de, até então, ter veiculação apenas na internet , o programa tomará novos ares, saindo dos bites para as ondas das rádios convencionais. Já foi fechado acordo para veiculação do programa em rádios de Fortaleza, Vitória e Belo Horizonte. O “Frente” terá 30 minutos de duração.


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Organizado e colorido!

Adriana Mitre

Fiquei cerca de meia hora só me divertindo com o site de Érica Machado, por conta da animação e a maneira divertida como ela dispõe os links na página inicial. Tudo muito organizado e colorido! Há pouco tempo, o endereço eletrônico ganhou uma cara nova por causa do seu mais novo disco “Bem me quer mal me quer”. Mas o antigo site, que virou um link do novo, consegue ser ainda mais interessante. Teve que mudar, afinal o antigo endereço tinha a cara do seu primeiro CD “No Cimento”. O resultado do site é uma forma inteligente de trabalhar a imagem de Érica Machado e convidar o internauta a ouvir suas canções, que, mesmo não sendo lá grandes coisas, ficam interessantes quando acompanhadas das animações . http://www.erikamachado.com.br

Foco de Luz

Adriana Mitre

Durante a produção deste número da revista Interferência, conheci muitos sites de músicos. O que mais me chamou atenção e também me matou de raiva foi o de Arrigo Barnabé. O músico, que sempre gostou de provocar com suas músicas inusitadas, não ficou para trás com o site. É quase uma afronta, do tipo “quero ver o tanto que você está disposto em conhecer meu trabalho”. Assim que você entra no site de Arrigo, um foco de luz aparece no meio de uma tela preta. Quer saber da agenda ou entrar em contato? Arraste o foco com o mouse até os devidos links. Na página seguinte, o foco de luz não desaparece. E não se iluda, não tem a opção que dispensa a animação. Se é que isso pode ser chamado de animação. Para conhecer o endereço eletrônico de Arrigo, tenha paciência e arraste o foco! http://www.arrigobarnabe.com.br/site.html

dotu dotiverin

Pâmilla Vilas Boas

Riqe te pexbaa kita moo. Não entendeu nada? Nem eu...Também quem disse que era para entender. A banda dadaísta Pexbaá cria suas letras de um jeito inusitado, sorteando sílabas, que, no final, não fazem sentido algum. Seguindo a linha do desentendimento é o seu myspace. As informações sobre a banda estão em inglês, em amarelo e em letras garrafais. Juntamente com o desenho dadaísta de fundo são uma combinação perfeita de incompreensão. Não dá para ler com facilidade. Divertido mesmo são os vídeos que a banda dispõe no myspace. É difícil assistir um só. Já o site é bem minimalista. Não tem frescura, só release, contato e download. Bom para quem gosta de simplicidade. http://www.pexbaa.com.br/ http://www.myspace.com/pexbaa

Site na ativa

Pâmilla Vilas Boas

Quem acessa o myspace da banda canadense The Organ não imagina um milhão 272 mil e 499 acessos. Eu mesma me assustei quando, pela primeira vez, tive a curiosidade de dar uma olhada no myspace delas. O layout é extremamente simples, com uma estética bem amadora. Isso para provar que não precisa ser sofisticado para chamar a atenção. Mesmo que a banda tenha decretado o fim em 2006, só hoje, 18 de novembro, contaram com 184 acessos. http://www.myspace.com/theorgan

FAVORITOS

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Foto Arquivo Riba de Castro

independência ou morte

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Passados 30 anos, fica a memória, a originalidade e o exemplo do Lira Paulistana

O Teatro Lira Paulistana, responsável por reunir a Vanguarda Paulistana, funcionava em um porão, no bairro Pinheiros. Para ter acesso, era preciso descer vários degraus


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Não era um

Teatro

qualquer Praça Benedito

Calixto, Bairro Pinheiros, zona oeste de São Paulo. O endereço, onde funcionava o antigo Teatro Lira Paulistana, hoje abriga uma fábrica de congelados. A diferença é tanta, que foi preciso fazer uma maquete para explicar a estrutura e o funcionamento daquele espaço. Do teatro, ficou a memória e a sua importância como representante da arte alternativa no início da década de 80. “Eu achei que a história do Lira ia acabar, porque as pessoas esquecem. Mas durante todos esses anos, sempre tinha gente me pedindo entrevista pra fazer uma tese, uma pós-graduação. E sempre quem procurava não eram pessoas que fizeram parte dessa geração, não eram saudosistas. Isso me chamou muita atenção”, conta Riba de Castro, exsócio do teatro. Então, para preservar a memória do Lira Paulistana ele resolveu escrever um livro e produzir um documentário que contasse aqueles anos de intensa produtividade.

E a história do Lira chama atenção justamente por não ser a de um teatro qualquer. Aquele pequeno espaço se diferenciou pela programação alternativa e pela grande diversidade cultural que abarcava. “Foi a expressão da coragem e da ousadia empresarial de um grupo de visionários”, diz o músico Tiago Araripe. Os seus cinco sócios – Wilson Souto Jr., também conhecido como Gordo, Chico Pardal, Plínio Chaves, Ribamar de Castro e Fernando Alexandre – investiam nas mais diversas produções: música, teatro, filmes, exposições e publicações. Apesar de toda essa expressão, talvez seja no campo da música que o Lira tenha se representado mais fortemente.

Elemento catalisador Inaugurado no dia 25 de outubro de 1979, o teatro Lira não tardou em acrescentar shows musicais à sua programação. Havia uma grande procura por espaços culturais que pudessem atender à demanda dos vários grupos alternativos que surgiam na época. A abertura à música independente fez com que, aos poucos, o teatro fosse ficando conhecido como um lugar onde era possível tocar e ver coisas novas. “Eu freqüentava o Lira mesmo sem saber quem estava apresentando, porque eu sabia que iria encontrar algo interessante de se conhecer”, revela a cantora Ná Ozzetti , que integrava o grupo Rumo. Ná também reconhece a importância daquele endereço para o início da sua carreira musical: “Era o lugar que recebia as novas propostas musicais e o trabalho de artistas que, como eu, estavam começando”. Do talento dos artistas que passavam pelo Lira, surgiu a idéia da criação de um selo fonográfico. “A gravadora surge a partir de Itamar Assumpção. Se não houvesse a necessidade de gravá-lo, seguramente tardaria em surgir um selo ali. Itamar era um músico novo, interessante, recém chegado em São Paulo e não tinha nada gravado”, explica Riba. Depois de Itamar


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e a banda Isca de Polícia, com o disco “Beleléu”, vieram outros, como Tiago Araripe, Tetê Espíndola, Língua de Trapo, Cida Moreira e Pau Brasil. O músico e professor Luiz Tatit, também integrante do Rumo, conta que seu grupo não foi gravado pelo Selo e que o seu trabalho musical já existia anos antes do teatro ser inaugurado. Mesmo assim, reconhece que o Lira “virou um elemento catalisador dos trabalhos independentes”. Além do espaço para temporadas de shows, Tatit comenta que aquele era um importante ponto de venda de discos. A dimensão alcançada pelo Teatro Lira Paulistana no cenário musical independente chegou a ser tanta que ganhou a atenção da imprensa. “Todo show que a gente fazia saía algo a respeito. Os críticos compraram nossa briga”, conta Ná Ozzetti. Mas também, muitos eventos não tinham como passar desapercebidos. Talvez por ter um espaço pequeno no teatro, ou por ousadia mesmo, o Lira começou a fazer eventos ao ar livre. No começo era na própria avenida Benedito Calixto, em frente ao teatro, mas, no aniversário da cidade de São Paulo, o evento chegou a fechar a Avenida Paulista. A imprensa, além de cobrir esses shows, foi a responsável pela expressão “Vanguarda Paulistana”, utilizada para fazer menção a alguns dos artistas que participa-

vam da programação do Lira, como Rumo, Premê e Itamar Assumpção. Arrigo Barnabé ganhou o título, mas, ao contrário dos outros, nunca se apresentou no teatro da Avenida Calixto. “Nunca tocou porque a banda era muito grande e não cabia”, explica Riba. Apesar da nomenclatura, Ná Ozzetti lembra que não havia um movimento estético comum, como a Tropicália ou o Mangue Beat: “fomos apelidados de Vanguarda Paulistana, mas não tinha nada que nos unisse nesse sentido. Acho que foi uma coincidência mesmo”, diz. Luiz Tatit acrescenta: “os grupos sempre foram separados porque os projetos eram diferentes e queriam marcar sua diferença, até pra delimitar seu território. A produção independente era o comum entre todos”. Apesar das diferenças, Tiago arrisca outro palpite: “Creio que a palavra-chave em comum aos artistas do Lira seja originalidade”. O movimento do teatro era mesmo marcado pela diversidade, que ia da música regionalista do grupo Paranga, ao instrumental, da banda Metalurgia. O rock também teve sua representação, com grupos como Titãs e Ultraje a Rigor, que estavam no início de suas carreiras. Se por um lado as apresentações mostravam uma pluralidade de sons, o público não era tão diverso assim. “Não dá pra generalizar, mas grande parte dos freqüentadores eram universitários da nossa geração”, conta Ná Ozzetti. O Lira tinha um público de universitários, que poderia ser considerado elitizado e apresentava músicas de qualidade. Foi justamente por isso, que, em um determinado momento, a Continental, única grande gravadora nacional, fez um acordo com o Selo Lira Paulistana. “A Continental bancaria os discos do Lira, que, em troca, daria prestígio às suas produções, que, naquela época, estavam associadas à música brega”, explica Tatit. Apesar do acordo selado com a gravadora, Riba afirma que a relação com os músicos seriam mantidas as mesmas de antes, ou seja, “o fonograma e o master eram propriedade do artista e a sua porcentagem era de 50%. Meio a


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Foto Arquivo Riba de Castro

meio”. O acordo deu certo por um tempo, mas depois disso o Lira não resistiu. “A Continental funcionou como a esperança que não se concretizou, o que terminou por desestimular a continuidade do Lira”, diz Tiago Araripe. Tatit tem uma visão menos romantizada: “O Gordo percebeu que o projeto não daria certo e que seria mais interessante ele trabalhar na Continental como produtor”. Riba de Castro ainda aponta outros elementos que contribuíram para o fim do teatro. Para ele, chegou o momento em que os grupos veteranos já não cabiam mais dentro do pequeno teatro e novos talentos já não apareciam. A conseqüência era uma programação menos interessante. Além disso, “éramos cinco sócios e, com o tempo, as relações se desgastam”, conta. Apesar de encerrar suas atividades, o Teatro Lira Paulistana deixou suas contribuições. Para Ná Ozzetti, “fica o fruto de tudo o que ele permitiu realizar. Os trabalhos estão aí e ficaram como referência. Zeca Baleiro, Chico César, Zélia Duncan e Cássia Eller, quando surgiram, vieram nos procurar e revelaram que tinham sofrido bastante influência”. Além das influências, para Tiago Araripe, ainda fica o exemplo: “O Lira foi a prova viva de que é possível não depender das grandes gravadoras nem dos meios de difusão de massa para fazer um trabalho consistente”. É por essas contribuições que, após 30 anos da sua inauguração, há a preocupação com o resgate cultural e histórico daquele movimento. Além do documentário e do livro, o disco “Cabelos de Sansão”, de Araripe, acaba de ser relançado pelo Selo Saravá Discos, de Zeca Baleiro. Todo esse trabalho de reconstrução e memória tem como objetivo valorizar uma época e um movimento importante para a história da música brasileira e do seu cenário independente. Os sócios do Lira, os músicos e o público que freqüentava o teatro possibilitaram um caminho contrário à lógica do mercado das grandes gravadoras. Sem muito dinheiro e com pouca infra-estrutura, Riba diz que aquilo era, antes de tudo, uma vontade de fazer.

Primeiro show ao ar livre, produzido pelo teatro, lança o jornal Lira Paulistana


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O pioneiro que não foi o

primeiro

Em 1977, o pianista Antônio Adolfo produziu disco independente das gravadoras Pianista, compositor e intérprete, Antônio Adolfo já integrou a banda de Elis Regina e produziu arranjos musicais para artistas como Emílio Santiago, Marcos Valle e Nara Leão. Em 1977, o músico queria gravar um disco. Pretendia fazer algo diferente, conforme seu próprio ritmo. Apesar de já ser relativamente conhecido pela sua música, principalmente pelos festivais que participava, as grandes gravadoras gostavam de algo similar ao que Antônio fazia com o Brazuca e, por isso, dessa vez, não foi selado um acordo. Movido pelo desejo de gravar, o pianista contratou os músicos, alugou o estúdio, gravou a fita (sim, ainda era fita!), mixou, procurou uma fábrica de discos e também uma gráfica para fazer a capa do álbum. Inicialmente, foram 500 cópias, todas bancadas pelo músico. Toda essa empreitada do “Feito em Casa”, nome do disco de Antônio, foi reconhecida por muitos como o primeiro disco independente do Brasil. Ele discorda: “muita gente fez seus próprios discos antes de mim. O próprio Tim Maia com o disco Tim Maia Racional. Inclusive, ele me deu dicas de como proceder”. Apesar de não concordar com o reconhecimento, Antônio Adolfo acredita que o “Feito em Casa” abriu caminhos para que outros músicos pudessem autoproduzir seus discos. Depois dele, vieram Danilo Cayme, Boca Livre, Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola e tantos outros. Por que então se diz que Antônio abriu caminhos e não outro antecessor? Repercussão. O pianista sabia que mais difícil do que gravar seria distribuir o seu disco. “Eu cheguei a colocar anúncio no jornal para vendedores. Teve uns dois ou três malucos que bancaram a idéia e resolveram ver no que aquilo ia dar”, conta. As tentativas de vendas chamaram atenção do programa Fantástico, da Rede Globo, que fez uma matéria com o músico vendendo seus discos nas lojas. Depois que a mídia se interessou, ficou relativamente fácil colocar o disco nas grandes lojas. O resultado foi a venda de mais de 20.000 cópias. “Meu disco realmente iniciou um processo. Os músicos até se juntaram e criaram a

A década de 70 marcou um começo, ainda tímido, da produção musical independente no Brasil. Numa época em que as mainstream tinham o controle e o lucro do mercado, gravar um disco era ousadia e podia ser considerado luxo. Neste grupo, Antônio produziu grandes sucessos como “Teletema” e “Ana Cristina” e gravou discos pelas grandes gravadoras. O disco é quase todo instrumental e conta com a participação da cantora Joyce. Foi reeditado no ano de 2002. Os dois volumes foram lançados em 75 e 76, pelo selo independente “Seroma” (abreviação do nome Sebastião Rodrigues Maia, que significa, de trás para frente, amores). Os discos assustaram os fãs pela capas inusitadas e pelas músicas, que falavam sobre a Cultura Racional.


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Associação dos Produtores Independentes de Discos, a APID”, relembra. Antônio Adolfo também discorda de ser intitulado músico independente. Para ele, o termo independente sempre foi vinculado às gravadoras menores, que não tinham relação com as multinacionais. O mais correto seria autoprodutor, que “se refere ao artista que se produz, que banca o disco. Ele pode distribuir ou não, vai depender do seu talento empresarial”, explica. O músico ainda critica o mau uso do termo, empregado estrategicamente por muitas gravadoras que pretendem lucrar com projetos que incentivam a música independente. “Os que mais suam pra produzir um disco são os autoprodutores, porque essas gravadoras ditas independentes

são pequenas empresas que, na verdade, querem ser grandes, querem faturar com o negócio”, ressalta. Até hoje, Antônio Adolfo produz seus discos pelo seu próprio selo, o Artezanal. Ele aponta diferenças de época, menciona as mudanças da tecnologia, do preço e da acessibilidade e revela: “Hoje em dia você não é mais um bicho de outro mundo. As pessoas me estranhavam vendendo discos nos shows. Agora todo mundo faz isso, até os músicos das grandes gravadoras”.


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Chega de

saudade Por que é difícil surgir por aqui bandas com excelência, inventividade e ousadia? Gerações inteiras crescendo com a obrigatoriedade de disciplinas como Cultura Religiosa no 2º grau e até nas universidades, e a ausência de pelo menos uma chance de iniciação musical, pode explicar parte dessa carência. É que, neste país, ou você faz faculdade de música pra tocar em orquestra, ou demonstrar toda a sua erudição em formatos tanto ou até mais engessados. Ou pra mergulhar no JAAAAZZZ, (assim mesmo, em caixa alta e olhar superior de quem, como diria Skylab só repete, repete, repete) deixando a impressão de que a música pop é sempre descartável e de que o livre improviso salva a mesmice do JAAAZZZ e seus “sempre” criativos músicos. Em Minas Gerais, a coisa ainda é pior. Porque você ainda tem o brilhantismo (ou iluminismo?) dos “Miltons geniais”, da “Escola Toninho Horta” de JAAAZZZ instrumental, da “harmonização dos Borges”, que incrustam em novas gerações, repetidoras e sem talento algum, que acabam por vomitar “Badauê Music” e de peito inflado dizer: “eu venero o Toninho Horta porque a musicalidade dele é estudada até no exterior”! Só que lá, para um guitarrista virar um Tom Morello (Rage Against The Machine), Jonny Greenwood (Radiohead) ou mesmo um Toninho Horta da vida, o cara passa por vários capítulos. Ao contrário daqui, onde o “marcador do livro ou da partitura” nunca mais sai da mesma Horta. Ao passo que, pra turma do pop classe média alta, não cabe mais a desculpa de que os instrumentos daqui são piores, os estúdios também e assim por diante. Isso ficou completamente

Terence Machado

pra trás. E até o Eric Clapton começou com um violão e outras guitarras fajutas, antes de comprar sua primeira Stratocaster. O Lúcio Maia, da Nação Zumbi, também não nasceu com uma a tiracolo. Nem o Scandurra foi criado com Rickenbaker vitaminada. O problema é que do jazz ao POP, ou do pop ao JAAAZZZ, se você quer ser um músico diferenciado, não basta talento pra repetir. É preciso talento pra ousar e ousadia sempre inclui algum risco. Ser apadrinhado por alguém de renome, seja ele um jornalista influente ou artista mega respeitado, não vai tirar ninguém da garagem ou do conservatório. Acrescentar “um tiquinho assim de Carimbó” ou qualquer armação regionalista ao som, não vai, por si só, torná-lo incrível. Candombe não pode ser sinônimo de mambembe. Engrossar a fila do Astros, Ídolos, Fama ou qualquer programa desses pode até servir pra ganhar uma grana, carro ou moto. Mas é mais fácil levar pseudo músicos para pseudo palcos. Ou seja, se a churrascaria for o objetivo final de um sujeito enquanto (pseudo) artista e o mico não representar nada nessa busca, o jeito é ir “bora” nessa! Nesse caso, melhor ir pro Japão, onde qualquer um é João Gilberto e o Paulinho Pedra Azul viraria Little Paul Blue Stone, com toda pompa. Chique um nome artístico assim, no estrangeiro, não! Talvez, chegando lá, seja possível sentir, além do cheiro da picanha, um pouco de saudade e também frustração. É que encontrar um japonês imitando alguém, como se fosse um Paranoid Android, e se divertindo horrores num karaokê qualquer, pode baixar a auto estima de um Bem-te-vi engaiolado e engordurado. O pior é perceber que bem longe do Japão, dos pseudo músicos de churrascaria e dos karaokês, a nossa música ande assim, tão pouco atraente. Se Maria Rita cantando samba como se fosse a mãe (com os mesmos tiques e caretas) é a mpb luxuosa, o Rappa, Capital Inicial, Titãs, Barão Vermelho, Paralamas e Skank ainda são os grandes que sustentam algo no pop rock. E se Fresno, NX(abaixo de)Zero e similares representam o frescor, a saída é ir correndo pro Temaki da vez, fazer o seu pedido, o sinal da cruz e rezar. Eu já escolhi o meu: um temaki com macarrão do Bolão e escamas de surubim! Se, em meio aos delírios da certeira intoxicação, escutar um pós-emo country core e achar que é Weird Fishes, já valeu!

Terence Machado é jornalista, baterista enferrujado, taurino, cruzeirense não-ortodoxo, louco por cinema, tarado por música, podia ter sido dono de alguma loja de discos mas, ao invés disto, acabou criando o programa Alto-falante. Ah, heterossexual, desde criança!


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“O disco do cara pode estar folhado a ouro, se você não gosta dele, você não compra”.

Richard Silva, do Departamento Comercial da indústria de SMD

“Se você não procurar algo bem pessoal, uma forma de som que seja sua, você se pega no meio de um bolo de gente”. Curumin

“Ninguém tem mais tempo de ouvir ninguém”.

Luiz Tatit, sobre a grande quantidade de produção fonográfica atual

“BH tem estúdio demais. É igual boteco”.

Daniela Rennó, dona do Estúdio Acústico

“Eu não acho que ele não tá dando um exemplo muito bom, porque ele é a favor dos downloads gratuitos”. Antônio Adolfo, sobre o ex-ministro da cultura Gilberto Gil

“A gente estuda pra caramba, ensaia muito, carrega instrumento nas costas, gasta gasolina e, chega lá, o cara te trata como um vagabundo”.

Luiz Gabriel, da banda Graveola, sobre como os músicos são tratados em alguns espaços

“A gente começou de forma independente também. Eu acabo aprendendo muito com as bandas por que elas trazem novas referências”. Henrique Portugal, tecladista do Skank, falando do seu programa de TV sobre bandas independentes

“São infundadas as críticas de que as bandas que tocam no festival estão ligadas politicamente aos coletivos”.

Pablo Capilé, coordenador de Planejamento do Espaço Cubo

“Desde Roling Stones até banda de garagem, tem o mais dedicado e os outros que querem só tocar”. Camila Cortielha, uma das coordenadoras do Pegada, sobre a permanência de bandas nos coletivos

bastidores

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entrevista

interferência #01

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Coisa de

agitador adriana mitre

Makely Ka é cantor, compositor, poeta, editor de livro e de revista, agitador cultural e tudo mais que lhe couber no cenário artístico. Tem mais de 40 músicas gravadas por intérpretes, como Titane, Júlia Ribas e Aline Calixto. Artista? Político? Político e artista. Mas Makely não é político da política. É engajado no movimento cultural e procura fazer valer direitos que andam perdidos por aí. Para conhecer melhor esse sujeito, resolvemos fazer com ele a primeira entrevista da primeira edição da primeira revista criada por nós! O encontro foi marcado para uma sexta-feira, a uma e meia da tarde. Eu estava tentando entrar de ré na rua contra mão, onde fica o apartamento de Makely, quando o celular tocou. Era ele. Disse que estava levando o filho na escola e que se atrasaria um pouco. Esqueci de dizer que ele também é pai. Eu e minhas companheiras de entrevista, que já estavam no endereço marcado, não esperamos muito. Assim que ele chegou, fomos em busca de um lugar para a conversa. Já no caminho, Makely surpreendeu com sua simplicidade. Tinha uma postura diferente daquela que assumia nos palcos. Escolhemos o restaurante Mandala. Makely não tinha almoçado. Fez seu pedido e dispensou a carne vermelha. Coisa de agitador cultural. Dividiu seu prato com a fotógrafa, que também não tinha almoçado, e, sem se preocupar com a comida esfriando, respondeu à entrevista, explicou suas falas, aprofundou os assuntos e deixou claro o porquê que Makely Ka é uma referência para os músicos mineiros.


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Por que Makely Ka é conhecido como “agitador cultural”?

Eu acho que esse agitador cultural é por uma necessidade de produzir e por uma falta de interlocução. Inicialmente, você não consegue convencer ninguém a comprar a sua idéia, mas você tem que fazer isso de alguma forma. Neste sentido, você começa a se desdobrar em várias atividades e as pessoas que estão vendo esta movimentação começam a identificar isso como um tipo de agitação cultural. É uma necessidade de colocar o trabalho na rua. E esse trabalho, hoje, é diferente. Até meados dos anos 90, tinha uma coisa muito definida para se tornar um músico. Você tinha suas músicas, fazia uma demo e levava para as gravadoras. A gravadora te bancava e você entregava para eles a produção. Já a partir dos anos 90, era possível um cara fazer um disco em casa, gravar, reproduzir e distribuir. Com isso, você eliminou várias etapas que demandavam uma equipe grande, mas também precisou aprender várias habilidades que você não estava apto.

“Até pra você ser egoísta nesse meio, você tem que pensar no outro”

Essa mudança foi uma opção do músico?

Foi uma falta de opção. Você falou que antes tinha um caminho para se tornar músico. Hoje, existe um caminho?

Eu acho que hoje existem todos os caminhos, mas é impensável uma figura compor e esperar que Maria Bethânia bata na sua porta e diga: “Você é genial! Vou gravar uma música sua!”. É muito pouco provável que isso aconteça hoje. Quem tem essa expectativa se frustra. O processo é muito diferente e, se as pessoas não têm um espírito de agitador, a música acaba virando hobby. O agitador é no sentido de profissionalização. Uma tentativa de viabilizar a carreira de forma que aquilo se transforme na sua atividade e no seu ganha pão. Enquanto agitador, você pensa na sua carreira, na sua profissionalização ou no coletivo representado por músicos independentes?

Lygia Santos

Até pra você ser egoísta nesse meio, você tem que pensar no outro. Qual é a melhor forma para ser reconhecido? É coletivamente. Por exemplo, as primeiras pessoas que consomem o meu trabalho são músicos, artistas que estão produzindo também. Se eu quero que eles consumam meu produto eu tenho que consumir o deles também.


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entrevista

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Pra você, quais são os grandes desafios de ser músico independente?

“O sucesso pra gente é conseguir pagar as contas com o nosso trabalho”

“Canção do Coração Quis fazer uma canção pra falar do coração: que bate que bate que bate e tá bão que bate que bate que bate e tá bão.”

Sobreviver do próprio trabalho. E pra isso você tem que planejar sua carreira. O músico hoje não pensa no sucesso. A princípio ninguém que está produzindo música independente está pensando em virar celebridade, mas está pensando em viabilizar seu trabalho em um circuito pequeno que garanta sua sobrevivência. A primeira coisa que a gente diz é que o sucesso pra gente é conseguir pagar as contas com o nosso trabalho. Imagina, a gente faz o que gosta de fazer e não tem nem um vínculo corporativo. Se a gente conseguir viver disso, já é sucesso. Então, você acha que a autonomia é a grande vantagem de ser independente?

É a primeira das vantagens. Têm outras, como a questão dos direitos autorais, que em muitos casos não são do artista. Por exemplo, a obra toda do Gilberto Gil não é dele, é da editora. Isso acontece com a Érika Machado, que lançou seu disco pela gravadora Indie. Agora o myspace dela está travado porque ela colocou as músicas para download e a Indie a denunciou, alegando que ela estava disponibilizando conteúdo que não era dela. Você toparia um contrato com uma grande gravadora?

Isso é uma coisa que a gente discute. Eu não penso o meio independente como um trampolim. Tenho muitos amigos que ainda têm um gostinho, que gostariam de fechar com uma grande gravadora. E você?

Eu acho inviável trabalhar da forma com que eles trabalham. Tá, eu toparia, mas teria que ser do meu jeito, apesar de saber que assim eles não vão querer trabalhar. E eu nunca procurei, eles vão ter que vir me procurar. Você foi o primeiro músico em MG a conseguir na Justiça o direito de exercer livremente a profissão de músico sem a obrigatoriedade de se filiar à Ordem dos Músicos no Brasil. Qual a importância desta conquista?

Abriu precedente. Depois disso, vários outros músicos entraram com ações contra a Ordem, sendo que hoje tem mais de 200 com ganho de causa. Eu mesmo passei o meu processo para vários. O argumento usado no meu mandato tem como base um artigo da Constituição de 88, que fala que a manifestação artística é livre.


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Por que não fazer parte da Ordem?

Wilson Sândoli, presidente da OMB por 41 anos, sempre foi alvo de inúmeras acusações e controvérsias por suas gestões. Documentos provaram irregularidades graves em sua administração.

“Tá, eu toparia, mas teria que ser do meu jeito (assinar contrato com uma grande gravadora)”

COMUM Para conhecer melhor a Comum acesse o site: www.bhmusic.com.br/comum Endereço: Av. Augusto de Lima, 233 - sala 74 - Centro (Edifício Maleta), Belo Horizonte - MG. A sede funciona de segunda a quarta, das 10h30 às 16h30. Contato: comum@bhmusic.com.br

O que acontece é o seguinte: a Ordem foi criada em 1960 pelo JK e é uma autarquia federal que tem o intuito de proteger os músicos. Acontece que, em 1965, os militares intervieram e colocaram na Ordem um presidente que tinha ligações com o governo militar. Esse presidente ficou até 2006, mas, teoricamente, a presidência tinha que ser trocada a cada dois anos. Ele criou uma máfia e a ordem passou a não oferecer nenhum tipo de apoio aos músicos. A sua única ação era cobrar as mensalidades. Você é o fundador da Cooperativa da Música de Minas (Comum). O que é essa cooperativa?

A Comumé um sistema que legaliza o trabalho do músico, cria um vínculo de representação e negocia com o contratante. Os músicos em geral trabalham na informalidade. Um contratante qualquer, quando fecha um show, te exige uma nota fiscal e você não pode dar um recibo de pessoa física. 99% dos músicos são pessoas físicas e compram nota. Mas, quando você compra essa nota você paga um valor como se tivesse recolhendo seus impostos. Se a gente quer viver do nosso trabalho, a primeira coisa que temos que fazer é formalizá-lo. Não dá pra viver como um ambulante. Músico não tem aposentadoria, não tem comprovante de renda, não tem nada. Chegamos ao formato da cooperativa porque é uma empresa que tem benefícios e é incentivada pelo governo. As notas passam a ser emitidas pela Comum que paga todos os impostos e garante os benefícios para o músico. Além dessa função prática, a Comum tem outros objetivos. Por exemplo, nós temos um manifesto pela música autoral que coloca várias condições mínimas para que o trabalho do músico seja apresentado dignamente, que vão desde condições acústicas, físicas de espaço, até tempo de duração máximo de shows. Atualmente, quantos músicos fazem parte da Comum?

Hoje, a gente tem cento e poucos cooperados. Qualquer um pode entrar na Comum?

É uma cooperativa de profissionais. O cara tem que estar no mercado de alguma forma e comprovar que atua na área da música, seja como fotógrafo de shows, como jornalista que cobre o cenário musical, ou como músico que toca em bar.


entrevista

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Você é editor do livro Contra-Indústria, cujo nome foi sugestão sua. O que você chama de Contra-Indústria?

A indústria musical incorporou a lógica de ultra-especialização que veio da divisão do trabalho e teve origem na Revolução Industrial. O cara que fazia a capa de disco não entendia nada de música, assim como o artista não entendia nada do que estava fazendo. Virava alguém sem realidade, porque não sabia quem era o público dele, não sabia como era feita a divulgação do seu trabalho, não sabia da estratégia de venda. A roupa que usava, não era ele quem escolhia. Mas, agora, está chegando um momento de mudança, com a presença forte do auto produtor, que é esse cara que dá conta de todos os elos produtivos. Pensa bem, esse cara pega todos os elos da cadeia até chegar ao consumidor, que, às vezes, é ele próprio. Eu conheço gente que compra o próprio trabalho para gerar volumes de venda. Um cara que eu conheço pôs um disco na loja e depois deu grana pros amigos irem comprar seu disco para parecer que estava vendendo. A Contra-Indústria é exatamente a mudança da divisão do trabalho. Quem trabalha dentro da Contra-Indústria trabalha dentro de um outro modelo que nega aquela lógica industrial que a gente vê da Revolução Industrial.

“Eu conheço gente que compra o próprio trabalho para gerar volumes de venda”

O seu engajamento político interfere na sua estética musical?

Interfere. Eu acho que é uma coisa só. Tento não ser panfletário, porque é chato. Quero passar uma posição, mas não quero convencer ninguém de nada. O nome do seu CD “Autófago” faz referência à música que se auto-consome. Você pode explicar melhor esse conceito? “3 DE MAIO Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi”

Lygia Santos

Autófago tem uma relação com a antropofagia do Oswald. O Oswald é um cara muito caro pra minha geração e pra cultura brasileira de uma forma geral. Mas a idéia, antes revolucionária, de pegar o que tem de melhor lá fora e absorver, já ficou obesa de tanta informação e de tanta pagação de pau do que vem de fora. O movimento de autofagia agora é a de absorver toda essa informação. A gente não precisa mais de referência e não precisa mais copiar os ingleses ou os americanos. A gente já tem elementos pra voltar pra dentro de novo. E não que seja um nacionalismo, porque já somos cosmopolitas. Além desse sentido, o movimento de autofagia tem a ver também com a idéia da serpente que come o próprio rabo dentro dos elos da cadeia produtiva, que é o cara que consome a própria música.


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Ultrapassada sim senhor Pamilla Vilas Boas

Optou por jornalismo, mas não tem medo de dizer que queria viver de música. Pâmilla Vilas Boas é compositora, tem banda e só toca nos ensaios. Adora escrever sobre música, mas não quer acreditar na história de que crítico é músico frustrado.

Nem adianta mais tentar tocar minha pobre e velha guitarra. Nesse caso é velha mesmo, uma Giannini que comemora seus 30 anos de idade. Não dá tempo de dar a devida atenção nem no seu aniversário, pobre coitada. Também tenho que ser político, militante, estar atenta aos novos meios de comunicação e tecnologias. Só nisso eu ficaria minha vida inteira. Não consigo mais compor. Também nem precisa. A foto de divulgação, o release, os contatos, a articulação. É isso que vai ditar se uma banda entra no circuito ou não. É até simples, faz tudo isso e depois enfia qualquer música guela a baixo. Mulherzinha ultrapassada e romântica, coitada, ainda fica achando que música é arte. Sei que vocês devem estar pensando que parei na década de 70. Antes, deixa eu explicar melhor. Desde que a música é música ela sempre teve um trabalho árduo de produção e divulgação. Não é só compor e sair tocando. Por trás dessas grandes bandas sempre existiam grandes produtores. Jim Page era um, rato de estúdio, que dava notícia das mais sofisticadas formas de gravação. Todo esse trabalho de produzir e lançar uma música é importante, mas vejam que hora nenhuma eu deixei de usar a palavra MÚSICA. A sensação é que hoje a música tem ficado em segundo plano. O que vale é a imagem da banda, a presença de palco, ser descolado e mais os infinitos adjetivos da era high tec. E todo esse aparato nem sempre é utilizado em favor das composições. Vale mais divulgar, entrar em todos os sites de relacionamento. Às vezes rola de divulgar a banda, a música deixa pra lá. Ok, eu entendo que hoje as bandas têm que dar conta de todas as etapas de produção, não tem mais a mordomia de antigamente. Mas será que não dá para conciliar? Será que os músicos independentes vão deixar de se preocupar com a primeira etapa (criação) para pensar só nas últimas? Eu não abro mão de ficar viajando em letras e harmonias, de tentar comunicar a minha e outras experiências através das composições. Cansei. Agora vou dar um oi para minha guitarra e para as letras que estão jogadas no canto da sala há mais de um mês. Ixi, acabei de lembrar que não chequei minha caixa de email. Deve ter coisa importante, né? Então, deixa para depois.

opinião

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Rec-Beat para começar bem o ano

Caroline Bittencourt

outros festivais

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Festival de música independente democratiza ainda mais o carnaval de Recife Adriana mitre

Mesmo conhecendo poucos carnavais, eu arrisco dizer que o carnaval de Recife é o melhor do país. A capital, conhecida como a mais violenta do Brasil, dificilmente é palco para brigas nessa época do ano. Quando tive a oportunidade de ir, era tudo clima de alegria. Talvez porque a palavra que mais caracterize o Carnaval de Recife seja democratização. Além de encontrar toda uma diversidade de sons e pessoas, das mais diferentes idades e classes sociais, todas as atrações são gratuitas. Maracatu e frevo não faltam. Mas tem espaço para tudo e, é claro, a música independente não fica de fora. O Festival Rec-Beat é o responsável por representar esse circuito e dar vez para bandas que trazem novidades sonoras. O Reac-Beat surgiu a partir do projeto de mesmo nome, criado em 1993, que tinha como objetivo divulgar a música pernambucana e seu mais novo movimento, posteriormente batizado de Manguebeat. Em 1995, o festival se apresenta, pela primeira vez, no carnaval de Olinda, com uma pequena infra-estrutura. Alguns anos depois, a convite da Secretaria de Cultura, vai para Recife Antigo, na rua da Moeda, e começa a apresentar uma programação mais diversificada, com músicos e bandas

nacionais. Mas é apenas com mais uma mudança de endereço, agora no Cais da Alfândega, às margens do rio Capibaribe, que o Rec-Beat toma maiores proporções e agrega apresentações musicais internacionais vindas, principalmente, de países latino-americanos. “Foi um desdobramento natural. O festival cresce e rompe suas fronteiras”, explica Antônio Gutierrez, o Gutie, produtor cultural responsável pelo evento. Atualmente, no palco ao ar livre, o Rec-Beat, que acontece de sábado à terça de carnaval, tem público garantido, que chega a alcançar vinte mil pessoas por noite. O evento tem orgulho de apresentar uma diversidade musical que vai do tango ao carimbó. “Eu sempre tento linkar tradição com novas tendências, novas sonoridades”, conta Gutie. Para os que acham que o Festi-


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Sempre uma surpresa! Toda a programação do evento é escolhida pelo próprio Gutie. “O festival sempre ficou muito na minha mão. Ele começou comigo e é uma coisa pessoal. Eu sei qual é o conceito do Rec-Beat. Às vezes as pessoas pensam que é uma salada, mas a minha concepção do festival é muito clara. Gosto de buscar tradições e brincar com novas sonoridades”. Para Ana Garcia, uma das acessoras de imprensa do evento, o caráter pessoal do Rec-Beat não atrapalha em nada a sua qualidade. “Gutie tem uma sensibilidade para pensar no que funciona bem durante o carnaval, no palco dele, na cidade. Acho que ele é um dos únicos que consegue fazer um festival tão bem misturado, em termos de sons e público”, diz. Antes de fechar as atrações, Gutie diz que sempre procura conhecer novos trabalhos. Para quem tem interesse em tocar no festival, ele sugere: “Eu acho que mandar material e link é ainda um caminho. Eu estou muito aberto. Não me sinto um deus que já sabe tudo que vai acontecer. Na verdade, eu gosto de me surpreender e ser surpreendido”. E supresa por surpresa, Antônio Gutierrez já teve várias. “Wado, por exemplo. Quando tocou no Rec-Beat, ele tinha um cdr, que recebi escrito a mão. Era uma coisa bem tosca, mas quando pus pra ouvir achei bem bacana. Tanto é que hoje o cara taí, tem mais de um disco gravado. Acontece”. Das atrações internacionais, além de receber material, Gutie tem circulado bastante e conhecido novidades interessantes. “Há a vontade de levar coisas novas para o público. A gente tem uma relação muito distante da produção ibero-americana e latino-americana, da nova produção inclusive”. Em 2010, o Rec-Beat comemora 15 anos! Apesar de já ter vários nomes na lista, Gutie não comenta a programação porque diz que ainda está em fase de negociação. Mas como se trata de uma comemoração, adianta que quem for terá boas surpresas.

Quem já passou pelo Rec-Beat Nacional

Curumin São Paulo Eddie Pernambuco Macaco Bong Mato Grosso Móveis Coloniais de Acaju Brasília Porcas Borboletas Minas Gerais Riachão Salvador Rogério Skylab Rio de Janeiro

Internacional

val é uma proposta contrária à programação habitual do carnaval, Gutie faz questão de dizer que é completamente integrada à festa: “com o palco do Rec-Beat eu tento transpor a mesma sensação que você tem quando está passando nas ruas. Você olha para um lado e vê um bloco, para o outro, uma fantasia engraçada, um maracatu. Só que com o palco você tem uma linguagem mais espetacularizada, debaixo de uma luz, com um som bacana”.

Bomba Estereo Desorden Público Original Hamster Orquestra Tipica Fernandez Fierro

Colômbia Venezuela Chile Argentina

O email do produtor é recbeat@recbeat.com Revelação Da pequena cidade de Arcoverde, Pernambuco, o grupo Cordel do Fogo Encantado sai para fazer seu primeiro show musical no Festival Rec-Beat. Isso foi 10 anos atrás. “Era um grupo de teatro que eu convidei pra fazer uma apresentação como banda, como um espetáculo mais musical. Foi aí que surgiu a banda”, conta Gutie. Hoje, Cordel do Fogo Encantado tem projeção nacional e internacional e surpreende com um som diferente, que mistura guitarra, percussão e poesia.

Outras fronteiras Neste último ano, o Rec-Beat ganhou uma edição em São Paulo. O póscarnaval da cidade recebeu, no SESC Pompéia, atrações de Pernambuco e da América Latina em três dias de evento. Diferente de Recife, em São Paulo o evento não foi gratuito. Ainda não há certeza quanto a outras edições. “Temos o interesse em repetir a dose, inclusive já abri negociações”, conta Gutie. Quanto a ir para outras cidades, o produtor explica que já houve manifestações de interesse, mas ele não sabe se quer pulverizar tanto o festival.

Caroline Bittencourt

Independente de serem independentes Desde 1998, o Rec-Beat conta com a apresentação do bloco Quanta Ladeira, que acontece no fim da tarde dos domingos carnavalescos. Este bloco reúne artistas com certa notoriedade, que cantam e improvisam paródias de canções conhecidas. Tudo pode virar tema para a brincadeira, mas é claro que a política nunca fica de fora. Comandado por Luga Queiroga, Silvério Pessoa e Zé da Flauta, o Quanta Ladeira já contou com a participação de gente como Lenine, Pitty, Nelson Motta, Roberta Sá, Otto, Elba Ramalho, Paulinho Moska e Moraes Moreira.

Original Hamster, do Chile, mixa e brinca com vários estilos durante o festival de 2009 À direita, Gogol Bordello, da Ucrânia, uma das principais atrações da última edição do Rec-Beat


ULTRA SOM

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Imaginando

sons

A música não está mais sozinha, com ela, a imagem divide os palcos O VJ entra em cena. Como numa orquestra, ele rege o movimento das imagens. A banda mal começou a tocar e ele cria, usa imagens já captadas anteriormente e depois mixa tudo. Lança no projetor toda a sonoridade que pode ser expressa imageticamente. O espectador mergulha no ambiente criado no espetáculo. Seus sentidos são aguçados pelas imagens e sons num misto de tecnologia e criatividade. E isso não é de hoje. Os gregos já entendiam o poder da união de música e imagem. Além de performance instrumental, eles utilizavam da poesia, dança, teatro e até mesmo “efeitos especiais” produzidos através de jogos de luz e movimentos dos cenários Depois foi a vez do cinema descobrir a magia do som. Se num primeiro momento, a música estava presa a traduzir as cenas do filme, com o desenvolvimento do cinema essa relação ficou muito mais complexa. Cineastas como o russo Eisenstein já diziam do papel fundamental que a música pode criar dentro da sétima arte. Depois foi a vez dos músicos descobrirem o poder das imagens, que poderiam ser mais que um simples cenário. Um marco na história da utilização de imagens e um dos primeiros eventos multimídia foram as apresentações de Andy Warhol e da banda Velvet Underground no final dos anos 1960. Uma vez, enquanto os integrantes, vestidos de preto, executavam suas músicas, Andy encheu o lugar de loucos que vieram de um hospício e começou a projetar as imagens deles na parede. E no Brasil não foi diferente. O músico pernambucano Ednardo, já na década de 70, utilizava projeção em suas apresentações. Como não existia o digital, ele projetava em película. Hoje essa relação entre música e imagem tem sido levada ao extremo. Os avanços tecnológicos permitem produção e projeção de imagens em tempo real, além da interação dos softwares com o público.

Em 1978, Ednardo realiza o filme Cauim, em 16 mm. O filme era projetado durante shows de lançamento do disco homônimo. A película foi aprendida pela repressão da ditadura militar e devolvida, no final da apresentação com várias cenas picotadas.


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Em sintonia Plataforma para performances com projeção de vídeo em tempo real. A maravilha dos VJs! O Live é um seqüenciador de áudio que pode ser tanto um instrumento para performances ao vivo como ferramenta para gravar e editar músicas. Operação em tempo real, não precisa parar para ouvir as modificações.

No início de 2008, o VJ 1mpar iniciou um projeto conceitual audiovisual generativo chamado HOL No projeto, cores, formas e movimentos são sincronizados com notas, harmonias e ritmo.

É possível, numa apresentação, sincronizar os movimentos do músico com as imagens projetadas. A plataforma de vídeo Vdmx, juntamente com o software Ableton Live, criam diversas dessas sincronias. Para isso, é preciso definir a entrada e saída de informação MIDI entre os softwares ou computadores. Com eles, você pode estabelecer que a entrada de um acorde define, por exemplo, uma mudança de imagem. Pode ainda criar outros comandos, como, por exemplo, a alteração da cor da imagem na medida em que o áudio é modificado. Além disso, com a plataforma de interação multimídia, processing, pode-se pensar na relação com o público. Esse software é muito usado em instalações e performances de arte, pois trabalha com uma variedade enorme de sensores e interfaces inteligentes. Imagine uma projeção de imagens com balões. Alguém do público pode bater no balão e a imagem automaticamente se afasta com a pancada, como na vida real. O VJ 1mpar, além de realizar trabalhos autorais também faz trabalho de VJ para outras bandas e artistas como Skank, Roberto Carlos e Somba. Ele explica que, nesses softwares, você pode fazer sincronia de forma bem simples, basta integrar o software musical e o que gera a imagem. “O live funciona bem como ponte entre música e imagem. Você pode relacionar a mesma melodia midi, que está tocando no instrumento musical, para tocar em imagem. Pode mandar disparar cada nota do teclado em vídeo, exemplifica.” Uma forma bem mais complexa é a chamada música generativa. No HOL, trabalho mais autoral do VJ 1mpar, música e imagem são feitas ao mesmo tempo, tudo de forma generativa. “Eu toco no teclado uma nota que gera uma imagem e gera um som”, explica. Música ou imagem generativa são aquelas criadas por computador, através de algoritmos e programações específicas. Um software completamente aberto, como o Max/Msp ou vvvv, permite a criação de comandos que geram imagens e sons exatamente da forma que o artista deseja. A partir dessa programação, notas e imagens são criadas em tempo real com ou sem o controle do VJ. “No generativo, se você quiser, a coisa nunca se repete. Pode criar uma música que vai acontecer infinitamente sem nunca se repetir”, esclarece.


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Meu VJ Conforme explica o músico Fabiano Fonseca, essas tecnologias transcenderam a relação do VJ abrindo portas para outros tipos de interação entre música e imagem. “Hoje, com a tecnologia, a coisa está indo para um hiper-realismo, mais do que a imagem como simples alegoria”, explica. De acordo com o videomaker Chico de Paula, realizador de performances audiovisuais, música visual não é uma categoria e sim uma nova forma de abordar o audiovisual. “Você tem uma maneira de abordar o audiovisual onde o texto prevalece, como na TV, ou polifônica, onde a música entra para trazer outros elementos”, explica. Algumas bandas convidam VJs para participar das apresentações dos seus shows. Sem conhecer bem o repertório da banda, ele escolhe imagens aleatórias muitas vezes baseado nas letras das músicas. O VJ 1mpar conta dos trabalhos que realiza para outras bandas e artis-

tas, como a projeção para o show do Roberto Carlos. “Eu não tenho liberdade total porque a música não é minha, trabalho entre arte e design porque tenho um cliente”, conta. Já outros artistas, fazem do VJ um integrante, ele participa dos ensaios e compõe junto com a banda. A imagem também pode ser um instrumento, trazer pausa e barulho para os shows. Só que, como explica Chico, “tem gente que usa porque tá na moda, não é audiovisual, é musica com cenário. Não é o fato de você usar projeção, ou usar painel de led, imagem abstrata, que vai traduzir um conceito”, opina. Em seus trabalhos, Chico busca partir de um conceito que vai nortear a criação da música e da imagem. Tudo para traduzir o ritmo, o clima, o comportamento e sensação que quer causar no público. Talvez essa seja a grande função dessa mistura de linguagens: fazer o público imergir no espetáculo.

O VJ 1mpar faz performance do seu projeto mais autoral, HOL, em São Paulo. Os softwares geram sons e imagens ao mesmo tempo.


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dez|09 Marília Bérgamo

E eu com isso? Fabiano dá algumas dicas para quem quer ir além da música. A primeira coisa é desenvolver um conceito que pode partir de discussões como: que tipo de filme os integrantes gostam? Qual a sensação que querem passar para o público? Às vezes, para chegar nesse conceito, não é preciso nem fazer uma projeção de imagens, o jogo de luzes pode ser a solução. Para Fabiano, as bandas usam pouco a iluminação. “Ela é mais importante que o vocalista”, afirma. Você pode, por exemplo, programar para que as luzes se apaguem e acendam em determinado momento da música. Para quem achou que todo esse aparato tecnológico está distante de ser utilizado por bandas independentes, uma dica: gambiologia. O que esse termo significa? É quando você cria os aparatos tecnológicos que vai utilizar. Fabiano fala do exemplo do laser tac, construído com apenas oito reais. Com ele você desenha com a luz e o programa reconhece e projeta o desenho. O projetor é indispensável, mas em quase toda casa de show tem um. Aproveite!

Fabiano Fonseca, Tatu Guerra e Chico de Paula se apresentam no Emergência 2009. Projeções se misturam aos sons, ao texto e ao movimento corporal.


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Parece, mas não é CD! Tecnologia SMD traz como principal conceito o preço baixo Adriana mitre

Semi Metalic Disc, ou simplesmente SMD. Já ouviu falar? Confesso que até pouco tempo atrás nunca tinha ouvido a respeito. Descobri por acaso e comecei a pesquisar sobre o assunto. Pouco tempo depois, ganhei um SMD de presente. Não achei indelicado o valor à vista: R$ 5,00. Um novo conceito de mídia para armazenamento de áudio, que tem como principal diferença o preço. Idealizado e patenteado pelo cantor Ralf, da dupla sertaneja Crystian e Ralf, o SMD é um formato diferenciado do CD, mas que tem a mesma qualidade e o mesmo funcionamento nos aparelhos de CD usuais. As diferenças estão na sua fabricação e na sua proposta comercial. Além da semi-metalização, que protege apenas a região onde foram queimadas as faixas do disco e faz com que sua borda fique transparente, a embalagem de acrílico é substituída por uma de papel cartão e, necessariamente, vem com o valor tabelado impresso na capa. Esses detalhes tornam mais barata a fabricação e transporte deste novo formato. Por causa da semi-metalização, a capacidade de armazenamento do SMD é menor do que a de um CD, sendo possível gravar uma média de 60 minutos. A perda de espaço, no entanto, é compensada no preço do produto. A produção do SMD é cerca de 30% mais barata do que a de um CD e o valor da sua comercialização pode chegar a ser 80% menor. É esse o principal motivo que chama atenção dos músicos independentes. O selo Bolacha Discos, do Rio de Janeiro, já tem 12 lançamentos em SMD. “Com a política de preço baixo, conseguimos espalhar o conteúdo dos nossos artistas pelos quatro cantos do Brasil. Muita gente leva mais de um CD e acaba dando para algum amigo ou familiar”, explica Paulo Monte, sócio do selo. A banda mineira RockNova também optou pelo SMD, no lançamento do seu primeiro disco, em 2008. “Todos os custos de gravação e produção saíram do nosso bolso. Procuramos o produto que melhor se adequasse ao nosso orçamento”, explica Borba, guitarrista da banda. Borba diz que em pouco mais de um ano já venderam cerca de 2 mil e 500 discos. A banda Songoro Cosongo, da Bolacha Discos, já chegou à marca de


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Revista que acompanha o SMD onde o artista pode inserir sua biografia, release, letras das músicas, patrocinadores, contatos, etc. “Quando começamos com o SMD, poucas bandas no Rio usavam essa tecnologia. Teve gente até achando que a Bolacha era representante do SMD e ligavam pra gente encomendando disco” – Paulo Monte. http://www.myspace.com/bolachadiscos

5 mil cópias vendidas. A maior parte das vendas é feita diretamente para o público. Estima-se que 50 a 60% das vendas de SMD produzidos pela Bolacha Discos sejam feitas em shows e eventos que o músico participa. Se as vendas são boas, o lucro não é tanto. “A banda depende de uma venda em grande quantidade para obter um lucro substancial”, comenta Borba. Por causa do valor tabelado, a distribuição do SMD pode ficar comprometida: “Quando você precisa aumentar a rede de distribuição física e pensa em colocar o SMD em alguma loja, a margem de lucro do produto fica ainda mais reduzida”, observa Paulo. Apesar do SMD ser uma alternativa interessante para músicos independentes, nunca é ruim diversificar. “A vantagem de se trabalhar com vários formatos é poder oferecer diferentes produtos e preços para todos os tipos de público”, diz Paulo. Borba completa: “Não existem regras, é preciso pensar na melhor estratégia da banda para o momento que ela está”. Até porque, para o guitarrista, o SMD tem suas limitações. “A maior desvantagem é o formato do encarte. Você tem que se esforçar pra fazer um produto visualmente interessante e informativo ao mesmo tempo”, comenta. Paulo discorda que o SMD limite a identidade visual do músico por causa do encarte em papel cartão e garante que existem alternativas, como a própria Revista SMD, que pode vir acoplada ao disco por um acréscimo de R$1,00 ao valor do produto final. Por 20 anos, a patente mundial para a fabricação do SMD ficará na responsabilidade da indústria Microservice. Essa exclusividade também não é uma das vantagens do SMD. Segundo Richard Silva, do Departamento Comercial da indústria, em um ano e meio, mais de 5 mil SMDs foram produzidos. Para uma patente mundial, o volume de venda ainda é pequeno. Richard explica o motivo: “É um produto novo e é o nosso próprio cliente quem divulga o produto. Mas a divulgação e o uso tendem a aumentar porque os artistas independentes são muitos”.


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céu

O é o limite Coletivos de música trazem novas alternativas para os músicos independentes Tirou a câmera do bolso e foi se aproximando. Enquanto o policial dava uma dura no indivíduo que foi assistir o show de rock, ele ameaçou. Se aproximou mais e clique! O polícia não se contentou. Correu atrás, pegou a câmera, rasgou o filme e quebrou tudo. Essa foi uma das cenas responsáveis pelo fim, em 2003, do maior festival de Ribeirão das Neves, o Rock Neves. Do festival e de praticamente toda a cena independente da cidade. Mas Ribeirão das Neves, cidade dormitório da região metropolitana de BH, conhecida pelos presídios e pela violência, começa de novo a pôr fim ao verdadeiro paradeiro cultural que tomou conta do lugar. Com a criação do coletivo Semifusa em abril de 2009, já é possível ouvir os ruídos da guitarra e a agitação cultural na cidade.

Mudando de cenário Nas cidades onde chegam, os coletivos, aos poucos, transformam a realidade local. Se nas metrópoles é possível sentir os efeitos da coletividade, imagina naquelas cidades carentes de qualquer evento cultu-


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ral. Rodolfo, um dos fundadores do coletivo Semifusa, conta que, para tocar em Ribeirão das Neves, eles tinham que fazer os eventos “na tora”. É só ver o caso do Rock Neves. Tim Santos, baterista da banda Cidadão Comum, foi um dos idealizadores da proposta. Ele conta que antes do festival não existia show de rock, nem lugar para tocar, só algumas bandas de garagem que não iam além de pequenos ensaios. “Nos primeiros era um junta junta”, explica Tim. Uma banda levava bateria, a outra guitarra, caixa de som. Para Tim, o terceiro festival, em 2003, foi o ápice. Com o apoio financeiro da prefeitura deu até para trazer banda de fora, como o pessoal do Dead Fish. Na quinta edição a prefeitura não apoiou mais. “Com choro conseguimos palco e som precário”. O evento começava às 18:30 e o som chegou às 18:00. E foi aí que aconteceu o episódio com os policiais, abuso de autoridade. “Aqui em Neves tem muito isso”, afirma. Depois disso, o pessoal desanimou, não teve mais festival. “Tem gente que até hoje pergunta quando vai voltar o Rock Neves”, comenta Tim. Não houve mais nenhum apoio da prefeitura. “O prefeito atual é evangélico, deve achar que Rock é do cão”. Às vezes nem tinham muito jeito para a criação de material de divulgação, mas faziam assim mesmo. Enquanto nos eventos, feito pelas próprias bandas, com exceção do Rock Neves, o público era de 200 pessoas, o evento de lançamento do coletivo, realizado em abril de 2009, contou com duas mil. Hoje, com apenas alguns meses, o Semifusa está organizando um festival para dezembro. Eles abriram inscrições apenas para bandas que pertencem a algum coletivo. Muitos grupos quiseram participar. Gente de coletivo de Brasília, Montes Claros, Rio Grande do Sul. Mais um caso? Em Sabará, também na região metropolitana de BH, a história não tem sido diferente: falta de espaço, incentivo às bandas. “Não tinha nada, só tocar no Matriz [casa de shows belo horizontina onde tocam bandas independentes, principalmente de Metal] à tarde”, conta o fundador do Fórceps, Leo Santiago. Em 2007, com quatro pessoas, Leo ajudou a criar o coletivo Fórceps. A primeira ação foi um show com quatro bandas numa escola de Sabará, e a realização de palestras e oficinas. Dois anos depois já estavam na praça principal com shows de bandas de cinco estados representados no festival Grito Rock. Dez mil pessoas lotaram a cidade.

Na rede Tudo isso pode até parecer milagre, mas é efeito de muito trabalho dentro e entre coletivos. Os coletivos são a junção de várias pessoas que trabalham de forma colaborativa com base em princípios da economia solidária. Se conseguem trabalhar assim, devem isso à internet. No caso do coletivo Pegada, de Belo Horizonte, tudo começou com um email. Lucas Mortimer conta que foi depois da movimentação com o Seminário Prático da Música, que ocorreu em junho de 2008. O seminário é parte do Festival Stereoteca, que tratou de temas como Comunicação, produção executiva, comercial e artística no Brasil. “O mais interessante não foi o projeto e sim as respostas do email que diziam: ‘vamos formar uma cena independente em BH’”, conta. A primeira resposta foi a da Camila Cortielha, hoje uma das coordenadoras do coletivo: “ò zin, num vem inventar a roda não, zin”. “Todo mundo foi respondendo, encaminhando para outras pessoas. Aquele email possibilitou reuniões e foi fechando no grupo mais interessado”, conta Camilla. Primeiro, o Pegada foi organizado em torno de algumas bandas, Mas, hoje, eles se orgulham por não ser mais um coletivo de bandas. Para eles, geralmente as bandas entram para se promover e buscar seus interesses. Um dos coordenadores, Juliano Jubão, tinha a definição de cor: “estamos preocupados com a cadeia produtiva da música, não é só a música. Produção, divul-

Festival que une vários estilos, Regional, indie rock, hip hop e MPB. Para fomentar a cena de Belo Horizonte, o festival abre espaço para o que há de novo e instigante


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gação, comunicação, distribuição de produtos. Cada um fazendo um pouquinho para complementar.” Camila diz que é muito difícil uma banda inteira compreender o trabalho do coletivo. Quando uma banda entra, acaba ficando apenas o mais interessado. “Vão ficando as pessoas que identificam valores semelhantes. Fizemos uma carta para identificar esses princípios comuns que regem as ações e as relações que se estabelecem no coletivo”, explica. É para organizar tudo isso e discutir ações, que o email passa a ser tão importante. Assuntos como quem vai fazer o flyer, a reunião de planejamento para aprovar lei de incentivo. Nessas listas aparece de tudo. O coletivo Pegada, por exemplo, tem uma política de núcleos, com função e coordenador. Quem entra no coletivo integra o núcleo que tem maior afinidade. Se atuo como jornalista posso integrar o núcleo da comunicação, por exemplo. Além disso, eles contam com uma rede de colaboradores pontuais. As demandas que vão orientar as ações dos núcleos vem das frentes de trabalho. “Teve a frente para realizar o Níver do Pegada. Os núcleos organizaram suas demandas e ações para realizar essa frente”, explica Camila. As demandas eles jogam na lista de email. “Ou um faz, ou outro faz”, explica Camila. Dentro desses núcleos fixos, é claro que tem pessoas dedicadas e outras nem tanto. “É uma política do “faça você mesmo”, que a gente adota. ”Para Jubão, essas ações são uma questão de sustentabilidade. Ele, inclusive, exemplifica com o fato de ter conseguido um emprego no Fórum da Música por causa da sua trajetória no coletivo. “Todo mundo entende que é um trabalho a longo prazo, hoje a gente tá dando sangue e amanhã as coisas vão dar esse sangue para a gente. Estamos fomentado uma cena que vai sustentar a gente. Se não fizermos isso agora, não vamos ter aonde apoiar”, relata.

No eixo

É Considerado o festival que traz mais atrações no período de três dias. O festival, realizado pelo Espaço Cubo, acontece em Cuiabá

Até agora, todos os coletivos citados fazem parte do circuito Fora do Eixo. Esse circuito integra coletivos do Brasil inteiro e foi criado a partir do Espaço Cubo, de Cuiabá. O Espaço Cubo surgiu em 2002, com a movimentação dos cursos de Comunicação da cidade. Para romper os muros da Universidade, foi criado um coletivo de áudio e vídeo. Com o tempo, começaram a perceber que a música era a que tinha maior demanda no setor cultural. “Quando precisaram tocar, montamos a cubo evento. Quando precisaram se divulgar, montamos a Cubo Comunicação. Quando precisaram gravar, montamos o estúdio Cubo de Gravação e, assim, a música ganhou muita força dentro das ações que desenvolvíamos”, explica o coordenador de planejamento do coletivo, Pablo Capilé. Mas deixa bem claro: “não é coletivo de música e nunca foi. O Espaço Cubo sempre esteve focado em discutir políticas públicas, transformação do comportamento do jovem, tendo a música como principal ferramenta para isso”, afirma. O Espaço Cubo assumiu tamanha dimensão que, hoje, é exemplo para vários coletivos no Brasil, principalmente em Minas. O Fora do Eixo é integrado por cerca de 40 coletivos, sendo que nove estão localizados em Minas, desses, oito estão no interior. Por que o nosso exemplo vem de Cuiabá e não do Rio ou SP? Para Pablo , há uma tendência maior de acomodação nesses estados, por que acham que tudo já foi feito por lá. Como estão distantes do eixo RJ-SP, se sentem mais provocados com os desafios e estimulados a construirem uma história. Além disso, Cuiabá reúne identidades diferentes, por ter recebido pessoas do Brasil inteiro. “Facilita para que culturas de vanguarda sejam implantadas, você não tem aquela cultura arraigada. Tem a possibilidade de trabalhar com uma perspectiva mais subversiva e contemporânea”, comenta. Léo foi trabalhar em Cuiabá e ficou impressionado com o Festival Calango. Mais impressionado ainda com a repercussão do festival e com a movimentação aonde não tinha nada. “A gente também não tinha nada, nos identificávamos mais com Cuiabá do que com Belo Horizonte”, disse.


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Sem eixo O edifício Maleta, espaço tradicional de Belo Horizonte, guarda lugares secretos. Um deles é o Ystilingue, espaço escondido na varanda do Maleta, onde eu encontrei o Manuel, um dos fundadores do coletivo Azucrina. Ele já tinha sido entrevistado pela revista para falar do Azucrina, mas foi naquele lugar que pude experimentar um pouco da filosofia do coletivo. Azucrina não faz parte do circuito Fora do Eixo. Não são todos os coletivos que se organizam dentro desse circuito. Alguns dizem não ter ideologia, nem uma estrutura de organização tão rígida. “A gente já tentou uma organização de uma maneira fixa, mas queremos abolir as relações de poder e não ficar dizendo o que cada um tem que fazer”, explica Manuel. De acordo com ele, o ponto forte do coletivo é tentar criar espaços de convivência entre as pessoas, provocar discussões e debater alguns temas. “O ponto crucial do Azucrina é essa vivência e relacionamento entre as pessoas. Entre você e o espaço. Não é ser uma coisa externa. Não é você ir lá para a sua baia e trabalhar 6 horas”, explica. O Ystilingue não é um espaço apenas do coletivo, é um espaço de ninguém ou de alguém que queira ficar com a chave. Sem muita previsão ou planejamento, as pessoas se reúnem ali. O som fica ligado e às vezes tem apresentações. Uma menina chegou, nunca tinha tocado antes, arrumou um violão e fez sua apresentação. Conversando com um dos freqüentadores, ele perguntou se eu queria tocar lá no dia seguinte. O Azucrina surgiu em 2006, com a reunião de um grupo de amigos para montar um estúdio. O lugar começou a ficar pequeno e eles alugaram uma casa no bairro Santa Tereza. A casa estava dando problema, eles a abandonaram. Hoje contam com nove pessoas em BH, uma na Alemanha, outra em Paris e outra em São Paulo. Nesse período eles criaram a “Escola Autônoma de Feriado”, um evento que acontece no carnaval, em referência ao Carnaval Revolução, que era realizado em Belo Horizonte, com shows e debates sobre temas como alimentação, anarquia e homossexualidade. “O carnaval acabou. Ia umas mil pessoas. A gente sentiu falta de ter um espaço”, conta Manuel. Além desse evento, o Azucrina apoiou shows de bandas no Mercado Novo em prol da loja grátis. E fizeram o “Na rua, na rede, na tora”, no viaduto Santa Tereza, que contou com nove bandas e 500 pessoas circulando em uma tarde. O coletivo não tem banda de trabalho. Quando fazem algum evento, eles escolhem os artistas que estão envolvidos com o trabalho, ou que tem algum tipo de questionamento e que entendem a proposta. “O Azucrina record tenta movimentar uma cena, não só uma cena para as bandas. Não é chamar as bandas, colocar um cartaz, mas sim gerar um relacionamento entre as pessoas. A gente está sempre mediado, as relações são muito impessoais.”, explica Manuel. O coletivo foi um dos primeiros a utilizar o viaduto Santa Tereza como espaço para evento. No começo era sinônimo de sujeira, hoje já é um espaço formalizado. “Se tem um espaço que tá meio largado, um espaço que se associa à sujeira, a gente utiliza”, relata Manuel. Uma vez quando eles iam fazer um evento em uma boate, de última hora a dona do lugar resolveu não realizar os shows. Eles arrumaram um gerador e fizeram os shows na rotatória, até que a polícia chegou. “A gente gostou tanto, que fez umas três vezes. A polícia ficou cada vez mais rápida, da última vez não deu nem para montar o som”, lembra .

Na fita Macaco Bong e Vanguat são duas das bandas brasileiras de maior sucesso. Grande parte dos coletivos Fora do Eixo consideram que é preciso focar em uma banda de trabalho, fazer com que ela tenha condições de rodar todo o Brasil e que possa representar o coletivo. No caso do Espaço Cubo, essas duas bandas foram justamente as escolhidas. Geralmente,

Evento que reunia várias atividades como debates, oficinas e shows em Belo Horizonte. O pessoal que organizava foi para São Paulo. Hoje o evento acontece lá

Projeto auto-organizado e anticapitalista localizado numa loja no mercado novo de Belo Horizonte. Lá você pega a mercadoria usada que quiser e o que você não usa pode deixar lá também


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são as primeiras bandas que entram no coletivo, as primeiras a gravar e a circular. Para Pablo Capilé, quando tem caso de sucesso como eles, as outras bandas passam a querer contribuir no coletivo para alcançar o mesmo sucesso. “São o resultado de um árduo trabalho do coletivo, não nasceram do nada e começaram a rodar o país”, explica. É por isso que mesmo depois do sucesso, a banda continua contribuindo com o coletivo, inclusive com parte do cachê. Todo o Fora do Eixo tem a sua banda de trabalho. No Pegada é a banda Cães do Cerrado, No Fórceps, o Quarto Instrumental, e no Semifusa, a banda Cidadão Comum. O que define isso? Critérios musicais? Não. No caso do Pegada e de outros coletivos, a banda é escolhida de acordo com o seu trabalho no coletivo. A Cães do Cerrado, como explica Jubão, é a banda que tem maior número de integrantes no coletivo e que se dedica muito ao trabalho. No cenário independente atual não há mais preocupação com a música enquanto expressão artística. Essa foi a primeira constatação, que Pablo Capilé não hesitou em derrubar. “Só existe o circuito porque a preocupação é ter boas bandas. O Macaco Bong e Vanguart eram horríveis e hoje estão entre as 5 melhores bandas do país. Ser bom não é só dom e sim o quanto você tem que investir, ralar, ensaiar”, constata. Além disso, para Pablo não adianta o coletivo ser articulado se a banda é ruim. Pode rodar um ano com uma banda ruim, no outro ele não roda mais porque ninguém vai querer ouvir. “A idéia do coletivo não é formar um monte de político, é formar um monte de agente cultural politizado que entende que a estética é importante”, completa. Na rede de festivais independentes de Minas o mais comum é a garantia de vagas para as bandas de coletivos. Mesmo assim, Pablo diz que no Brasil, em 2008, circularam 900 bandas, dessas apenas cerca de

150 eram de coletivos. Isso durante os 35 festivais realizados nesse ano.

Fora do caixão Alguns coletivos, como o Espaço Cubo, levaram os princípios da economia solidária ao extremo aos criar o Cubo Card, uma moeda complementar para oficializar as relações de troca. Por exemplo, eu posso ter uma banda e precisar de um designer. Ao invés de pagar com dinheiro, eu pago com serviço. Eu posso prestar esse serviço para uma outra pessoa que trabalha para o designer. Ao invés do designer pagar com dinheiro, ele paga com o meu serviço. A moeda surgiu para facilitar essas trocas. A idéia é que cada coletivo crie a sua própria moeda. O Pegada ainda está viabilizando a sua, mas já tem as tabelas de preço. Essas tabelas não são pautadas pelo mercado e sim pelo valor simbólico que o serviço pode ter. “É o valor que se agrega na cadeia. A gente valora sem ser pautado pela mais valia e sim com o que eu vou ganhar simbolicamente. Um mesmo produto pode valer x para mim e y para você. Porque ele vai me dar uma coisa em troca e você outra. Vai agregar outro valor”, compara Camila. Uma salve para Marx! Economia solidária, tão falada pelos coletivos, é uma forma de produção diferente da capitalista em que o objetivo principal não é o lucro e sim a solidariedade. Pessoas que se reúnem de forma auto-gestionária, sem dono nem chefe. As discussões são tomadas em conjunto e o dinheiro é dividido igualmente. Esse movimento, inspirado em ideais socialistas, ganhou força na década de 90 por causa da crise no neoliberalismo. Assim como os coletivos de música podem ser considerados uma resposta à incapacidade do mercado musical de absorver toda a produção, a economia solidária é uma resposta à incapacidade do capitalismo em absorver todo mundo. A pesquisadora em economia solidária, Sibelle Diniz, se espanta com a capacidade de gestão e de ação dos coletivos de música. Isso porque a gestão do grupo e a competição com associações lucrativas, para ela, são as grandes dificuldades das organizações de economia solidária. Já os coletivos crescem muito rápido e são os maiores fomentadores da cena independente. O que existe em comum é o relato das pessoas que preferem se associar dessa forma pelo crescimento pessoal, troca de experiências e informações. Ela fala também da importância em criar uma rede de serviços. “O mercado da arte é peculiar, difícil de avaliar com as mesmas ferramentas de mercado. Identidade, relações e paixão pelo trabalho, vocação. Por isso se encaixam bem na economia solidária”, explica. Sibelle aponta que um dos grandes riscos desse tipo de associação é o de se fechar muito. A gente só vai ajudar quem está no coletivo. “O lado ruim é fechar as possibilidades de articulação com a sociedade”, aponta.


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Na TV

No rádio Na rádio Educativa do Paraná, FM 97,1, a música independente está presente em toda programação. A rádio, que toca música brasileira das 09hs às 00hs, mescla artistas consagrados com músicos pouco conhecidos. Além da programação, no início do ano, eles criaram um programa que se chama Produção Independente. De acordo com a produtora musical da rádio, Luciana Monteiro, é um programa bem simples: eles escolhem quatro CDs de artistas diferentes, colocam as músicas e comentam. O programa vai ao ar todo sábado às 15hs. O mais comum, segundo Luciana, é os artistas enviarem seu CD para a rádio via correio ou irem pessoalmente conversar com o programador musical. Os que estão dentro do perfil, entram na programação. Endereço: http://www.rtve.pr.gov.br/

Do Sol TV é um programa de música independente da cidade de Natal. O programa já existia no canal youtube, mas os produtores queriam migrar para a TV. Foi aí que, em setembro, eles fizeram parceria com a TV a cabo No Minuto, presente em 25 municípios do Rio Grande do Norte. O Do Sol tem uma hora de programação semanal e, além de veicular o conteúdo produzido por eles, transmite também clipes de bandas e documentários que tratam da cena independente. Eles recebem materiais de bandas de várias partes do país. Se você quer fazer parte da programação, basta enviar um email para assessoria@dosol.com.br com algum vídeo seu no Youtube. Se os produtores acharem interessante, eles solicitam o material em qualidade maior para exibir na TV. O programa passa todo sábado às 11hs, canal 27, e tem várias reprises durante a semana.

Na rede Em 2006 quase não existiam blogs que falavam de música independente. Marcelo Santiago sentiu falta de um espaço para falar da cena musical independente que estava crescendo no país e, por isso criou o blog “Meio Desligado”. No início, ele esteve focado nas bandas. Com o tempo, o blog passou a tratar de questões importantes para a cena independente, como a lógica da produção fonográfica, ferramentas para divulgação de bandas na internet e cobertura de eventos. A idéia não era fazer jornalismo de agenda, mas análises críticas da cena. Hoje ele recebe material de várias bandas para que comente no site e sempre escuta tudo o que chega. Quem quiser pode mandar para marcelo@meiodesligado.com.br. A maioria das pautas não surge desses materiais e sim do que ele encontra pela rede. Confira: http://www.meiodesligado.com/

Na casa Difícil é encontrar espaços que tocam música experimental. Sem parar e esperar que uma casa de shows caia do céu, os músicos Henrique Iwao e Mário Del Nunzio tiveram uma ótima idéia: transformaram a república, em 2007, em um espaço para a música experimental. O lugar ficou conhecido como Ibrasotope. Uma vez por mês eles realizam um concerto de eletroacústica. Na primeira parte do evento, as pessoas sentam no chão, e vão escutar uma seleção de músicas do estilo. Na segunda parte, tem o show de algum grupo ou artista. A casa conta também com uma sala oficina para construção de instrumentos eletrônicos, e conta com um público de, em média, 30 pessoas. Para ouvir sua música tocando na casa ou ir lá tocar, você pode mandar seu myspace para os organizadores. Tem uma curadoria que busca sempre uma diversidade de estilos dentro da música experimental. Endereços: www.ibrasotope.blogspot.com www.myspace.com/ibrasotope

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quatro canais

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Coletivo que se encerra em si

A banda mineira Graveola recicla e produz som com qualidade Graveola e o Lixo Polifônico é o nome

completo do que já se acostumou a chamar apenas Graveola. Banda ainda recente do cenário independente de Belo Horizonte, já possui um CD gravado e um público cativo. O som que fazem? Yuri Vellasco, baterista da banda, arrisca uma resposta: “É uma junção de fatores, uma profusão de sabores e uma mistura de cores”. Captaram? O som do Graveola não é mesmo fácil de ser definido. Uma mistura musical com multiplicidades de gêneros como o Rock, Pop, Brega, Axé e outros tantos. Na dúvida, o estilo se insere no universo extenso da MPB. Afinal, a banda concorda que a música brasileira é sua grande referência, se é que isso quer dizer ou definir alguma coisa. Graveola tem qualidade, humor e o lixo polifônico. Recicla. Brinquedos e utensílios domésticos somam-se ao seu instrumental e pedaços de canções, muitas descartadas pelo tempo, compõem parte do repertório. Se não fosse complicado falar em inovação nos dias de hoje, poderíamos dizer que a banda tem uma proposta musical inovadora. Não é bossa-nova, nem tropicalismo, mas tem algo de diferente. O resultado é uma boa experiência aos ouvidos. No palco, a banda é formada por sete pessoas, tendo apenas uma figura feminina. Além do lixo polifônico, José Luiz Braga é responsável pela voz e violão, Luiz Gabriel Lopes voz, violão e guitarra, Marcelo de Podestá, teclado, Bruno de Oliveira, baixo, João Paulo Prazeres, instrumentos de sopro, Yuri Vellasco, bateria, e Flora Lopes, percussão. Fora do palco, a banda se esten-

Não estava na entrevista e, por isso, não está na foto.


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Lygia Santos

de e se une a outros integrantes que formam o que Luiz chama de “coletivo que se encerra em si mesmo”. Difícil? Ele explica: “A gente se estrutura como um coletivo porque a gente produz mais do que a música. Todo mundo tem bagagem diferente, de várias áreas. Tem a Luisa, por exemplo, que pensa imagem, vídeo, foto, cenário. Ela faz parte do Graveola, ainda que não esteja no palco”. A idéia de coletivo também vem da divisão de tarefas. Pra ser do Graveola não basta tocar, é preciso ter um bico. “Eu virei o responsável por agendar os ensaios. Custe o que custar, eu tenho que fazer os ensaios acontecerem. Isso é importante pra não sobrecarregar uma pessoa, como acontecia antes”, explica João. O único CD da banda, “Graveola e o Lixo Polifônico”, foi lançado no início de 2009 e viabilizado pelo Fundo Municipal de Cultura. Todo o CD está disponibilizado no site oficial, assim como encarte e letras de música. Por quê? “Ninguém ganha direito vendendo CD. Se não é a gente que disponibiliza, é outro. Mas nós disponibilizamos com identificação da faixa e com boa qualidade”, conta Marcelo. E apontam outras vantagens: “Disponibilizar o download no site já é um estímulo pra pessoa conhecer a nossa cara. E pela internet a gente vê que até um cara na costa oeste da Polônia ouve Graveola. Se não fosse assim, quando que isso ia chegar lá?”, diz Luiz. Apesar da banda já ter repertório suficiente para gravação de outro CD e de estarem frenéticos para entrarem novamente no estúdio, não há previsão para lançamento de um novo trabalho. Eles reconhecem que existem outras prioridades, como trabalhar a divulgação do seu CD. Os próximos planos são a tentativa de fazer turnê para levar o som polifônico para outras cidades e estados.

Equipe fixa: Rafa(el Barros - produtor, Luisa Rabello - fotógrafa e iluminadora, Fernando Braga - conselheiro e técnico de som. Auxílio luxuoso: Flávia Mafra - produção e projeções de sombras, Priscila Amoni - cenários e projeções de vídeo, Bernard Machado - fotos e vídeo, Maurício Rezende- vídeo.

www.graveola.com.br “O site é o canal que a gente tem pra colocar conteúdo que está pra além da música, pra além da banda como banda.”, Luiz Gabriel. Myspace: www.myspace.com/ graveolaeolixopolifonico Flickr: www.flickr.com/photos/graveola Lastfm: www.lastfm.com.br/music/ Graveola+ E+O+Lixo+Polifônico Twitter: twitter.com/Graveola Facebook: www.facebook.com/people/ Graveola-E-O-Lixo/1797267055


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Curumin é o apelido de Luciano Nakata

Albuquerque. Baterista e percussionista, ele também canta, toca teclado e compõe. Já fez parte da banda de Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata, Paula Lima, Céu e tantos outros. Tem carreira solo, com trabalho autoral. Dois discos já foram lançados. É bastante ocupado e, por isso, não é fácil falar com ele. Talvez pelo pouco tempo disponível, ele tenha sido bem direto na entrevista, com respostas rápidas, sucintas, mas satisfatórias. Antes de completar 20 minutos de conversa, ele já indicava a necessidade de desligar o telefone. Tudo bem. Mais uma última pergunta seria suficiente. A palavra curumin vem de Kurumin, que significa “menino” na língua tupiguarani. O apelido foi dado quando ele ainda era criança, por causa da sua feição, que se assemelhava a de um índio. A descendência, no entanto, não é indígena. É uma mistura de espanhóis com japoneses que, segundo ele, interfere na sua produção musical. “Cada pequena coisa que forma nossa identidade, nossa personalidade, interfere muito na música que a gente faz”, comenta. Apesar de Luciano ter uma canção em japonês, não é a música oriental que mais influencia o seu som. Ele mesmo menciona a música negra como a maior referência do seu trabalho autoral. Elementos do funk, hip hop, reggae e salsa marcam presença em suas músicas. O eletrônico, ele explica que entrou mais como uma ferramenta. E, como ferramenta, ele soube explorar e utilizar bem. “É um tipo de instrumento em que eu consegui achar um jeito meu de trabalhar e que consigo passar bem a coisa que eu queria tocar.” O seu primeiro disco, “Achados e Perdidos”, lançado em 2003, contém 12 faixas que agregam uma multiplicidade de sons e ruídos. De guitarra a cavaquinho, o músico faz algumas baladas, como “Vem Menina” e “Samba Japa”, assim como inova e agrega um estilo mais particular, como na psicodélica “Olhando de uma Janela, no Centro da Cidade”. O suíngue está presente em quase todo o disco e a interpretação da “You haven´t done nothing”, de Stevie Wonder, comprova a sua qualidade musical, que agrega elementos brasileiros à canção, como o pandeiro de fundo, e abandona o arranjo original de metais.

Curumin

Globalizado Trabalho autoral sai do Brasil, passa pelo Japão e vai para a Terra do Tio Sam


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O disco “Achados e Perdidos” recebeu críticas positivas e trouxe bons frutos para sua carreira. A música “Guerreiro” se tornou trilha sonora de uma propaganda da Nike, lançada no exterior. “Foi importante em termos financeiros e para a propagação da música. Além disso, a propaganda foi muito bem feita. Envolvia uma coisa de futebol que foi legal, que eu gosto muito”, conta. “JapanPopShow” é o segundo disco de Curumin, lançado em 2008. Um disco mais ousado e, talvez por isso, não tão fácil de agradar aos ouvidos de primeira viagem. As 13 músicas que compõe o álbum são bem dançantes, com pegadas de samba-rock, funk, hip hop e muito eletrônico. O disco possui participações de vários músicos, como Marku Ribas, Lucas Santana e BNegão . “JapanPopShow” também se diferencia do seu primeiro trabalho pelas letras mais politizadas, como “Kyoto”, “Mal Estar Card” e “Caixa Preta” . Essa politização, que pode parecer incoerente com a venda de “Guerreiro” para propaganda da Nike, não é encarada assim por Curumin. “Colocar uma música na

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propaganda faz parte da lógica do sistema que eu vivo. Eu não vivo numa caverna. Eu faço parte de um sistema, por mais que eu tenha críticas a ele”, defende. Os dois discos do músico também são distribuídos nos Estados Unidos e Japão. Apesar de ainda não ter visitado o oriente, ele já fez várias turnês na terra do Tio Sam e diz que a recepção tem sido muito boa. “Acho que teve uma coisa de ocasião, onde o mundo se abre para os mercados culturais e se interessa por coisas diferentes do que se costumava ouvir”. No Brasil, Luciano acha pequena a recepção do público e atribui isso ao fato de a música independente ainda ser um mercado em crescimento. Ele reconhece, no entanto, que “com a internet, a troca de informações na rede disseminou muito a música que não toca nas rádios”. Apesar de perceber a importância da internet , o músico diz que ainda não tem estrutura para manter um site ou um blog. Ele tem apenas a ferramenta do myspace como divulgação e o blog de um amigo, que disponibiliza suas músicas para download. Curumin não vive de sua carreira solo. Atualmente, está tocando com Guizado, Arnaldo Antunes e Iara Rennó: “É legal porque eu também dou uma reciclada, penso em outras coisas, faço outros trabalhos e consigo viver só de música”. http://www.myspace.com/curumin http://www. originalpinheirosstyle.blogspot.com/

foto divulgação


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Mundo

aFora Para a banda carioca PAVIU, o importante é levar a mensagem, esteja onde estiver

“A gente toca na baixada, no Leblon, Copacabana e na Favela”. A banda Carioca PAVIU, Pré Antevisão Urbana, não tem restrição, toca onde dá para tocar e para quem quiser ouvir a mensagem. Até no meio de um baile funk. Não era um baile proibidão e sim uma festa para as crianças. Quando começaram, houve uma dispersão do público, mas os poucos que ficaram viajaram no som. Como relatam, a banda também tem muitas referências e algumas tem relação com o que o pessoal das favelas cariocas costumam ouvir. O PAVIU tem letras sociais e um tom bem engajado. Não são letras políticas, de acordo com o vocalista e letrista da banda, Igor Kappler, apenas retratam temas presentes no cotidiano. Para eles, a música tem uma linguagem difícil de absorver, numa região em que o funk carioca domina. Se na favela as pessoas demoram mais para compreender o som, de cara elas se identificam com as letras. “A galera mais cult, por ter acesso às músicas mais complexas, tem uma facilidade maior para ouvir, mas não se identificam como o pessoal da favela”, explica o percussionista. Na zona sul não tem espaço e a periferia, tirando alguns constrangimentos, pode ser de mais fácil acesso. “Apesar de ter que pedir autorização para o pessoal das facções, eles não ficam rondando durante o show e geralmente liberam o espaço”, explica Igor. Além disso, eles já têm uma convivência maior com o pessoal da favela. O percussionista Rodrigo Dread ensina os moradores a construir instrumentos musicais com materiais reciclados. No III BH Indie estava ele com uma espécie de marimba feita com garrafa pet e madeira reciclada. Deu para ver uma garrafa de vinho acoplada à percussão. Mas nunca dá para levar toda sua produção, é muito difícil ter estrutura nos locais dos shows. “Nos eventos, se tem mesa, não tem microfone, se tem microfone não tem canal suficiente”, explica o percussionista.


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A arte de se parecer

Conflito comendo solto Olha aí estão tomando O que sempre foi nosso por direito sagrado

Baile funk em que há apologia às facções

O PAVIU poderia ser considerado uma banda de reggae, não fossem composições que trazem o rock, o psicodélico e o samba. Se em algumas eles se prendem à rítmica do estilo jamaicano, em outras eles superam suas barreiras. As músicas “Terreo Urbano” e “Nego Xangô” são reggae rock sem fronteiras. Para eles, ter tanta influência é inevitável. O Rio é formado por pessoas de várias partes do país. Numa rua tem forró, na outra é lugar de samba, do outro lado o maracatu. “Acaba fazendo um som liquidificador que faz assinatura no final”, conclui o vocalista. O cérebro funciona por referência. De acordo com o baterista João Abdala, as pessoas tendem, quando escutam uma música, a buscar um trecho ou algo que identificam com o que já conhecem. A comparação foi inevitável, não parece com o Rappa? Conversando na porta do Matriz, casa de show mais alternativa de Belo Horizonte, ensaiei fazer essa pergunta várias vezes durante a entrevista. No final das contas ninguém se zangou. A razão da semelhança com a banda, segundo os integrantes, está na construção dos arranjos para a gravação do primeiro CD. O dono do estúdio disse para fazerem arranjos simples que tornasse a música mais comercial. A pressa para finalizar a gravação e a falta de experiência fez com que eles mudassem as músicas. Até me convidaram para participar do show no III BH Indie para me convencer de que a banda é diferente. Hoje, querem gravar as músicas de novo e com os arranjos originais. Eles acreditam que o que chama a atenção do público é justamente a originalidade. Um outro jeito de entrar no mercado.

Cidade maravilhosa

Érico Silva

Apartamento no hotel de Copacabana, sarau de poesia, o morador fez uma festa para seus convidados. O PAVIU era um deles. A banda foi a primeira a chegar para ajeitar o equipamento, às 23:30. Os artistas mais famosos foram passados na frente. Resultado, só foram tocar dez para cinco da manhã e apenas uma música. Os integrantes explicam que a dificuldade de espaços para as bandas no Rio é geral. “Não é como em BH que tem essa união das bandas para fomentar a cena. Lá é só o lucro com os shows”, afirma o vocalista. Mesmo se tratando do eixo Rio – São Paulo, que historicamente foi o lugar mais procurado pelas bandas. “Estamos no centro do furacão. É cem vezes mais difícil. Estou querendo tocar num lugar e tem mais 100 querendo. E tem esse negócio de que contato no Rio tem muita peixada”, explica o baterista. Em Belo Horizonte as bandas ainda têm problema com a falta de espaço para tocar, mas eles me convenceram, no Rio é ainda pior. www.myspace.com/bandapaviu


QUATRO CANAIS

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Folk

apancalhado

Sem definições, a banda Dead Lover’s se orgulha por não seguir um estilo específico Rock, Folk, Punk, Disco, Eletro, Brega.

Falar do estilo da banda Dead Lover’s não é fácil. Guto, um dos guitarristas, até concorda com algumas definições de que o grupo é um folk apancalhado ou punk afolkalhado. Porém, essa não é a intenção. “Não é esse o fim da banda, ser folk ou punk, e sim explorar coisas novas”. A banda está cercada de elementos da cultura pop. Amplo? Um bocado. Guto acredita que o fio condutor do som deles é ser baseado nas tradicionais canções. Música simples com refrão e com as partes bem definidas, recheadas de clichês do rock, como as canções de amor. “A canção de amor também pode ser irônica”, explica Guto. E tudo isso tem a ver com as referências dos integrantes da banda. No começo, o baixista Vinícius escutava a fase do iêiêiê dos Beatles. Já Guto estava mergulhado no folk.


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Em 1977, fez a música “Nunca mais”, e chegou a ser considerado o “Bob Dylan Brasileiro”. “Sou o que resta de uma noite esquecida. Noite de festa e razão dessa vida”.

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E o brega? Odair José já foi um convidado de show do Dead Lover’s. O brega é popular e, para os integrantes, tem muito a ver com o folk. Todas essas referências contribuem para o ar descontraído e divertido que a banda não quer deixar de ter. Mas quem conhece a banda não imaginaria que uma entrevista com dois dos integrantes pudesse ser tão pouco descontraída. Também, falar de música independente suscita questões como dificuldades em tocar e a pouca valorização dos músicos, o que não parece nem um pouco divertido. E disso os Dead Lover’s entendem muito bem. “Na cadeia produtiva da música, o músico é o único que não recebe nada. Esse negócio de independente precisa ser repensado. Eu dependo de várias coisas e os músicos, cada dia mais, dependem das leis de incentivo governamentais. E se o governo parar de investir, a música vai acabar? Assim como aconteceu com o cinema?”, questiona Guto. A formação atual começou em 2006 – Guto na guitarra, Pat na bateria, Vinícius no piano e baixo, e Ivan na guitara e vocal – mas os integrantes se conhecem há muito tempo. Em 1997, época em que o punk era um dos estilos que reuniam muitas bandas em BH, Guto e Vinícius já tocavam juntos. Tinham uma banda de rock com letras em português, estilo Mutantes. Hoje, Dead Lover’s se divertem tocando com bandas muito diferentes. “Já tocamos com Graveola, que é meio MPB, e com a banda funk Satanista UDR”, conta Vinícius. Tem uma festa que eles sempre fazem que se chama “Grave Lover’s”. Para eles, a cena atual é mais um movimento político e cultural do que algo que se define por estilos. “A gente nunca foi bom para tocar cover”, essa foi a explicação de Guto para a banda que, desde o início, só

Luan Barros

Foi diagnosticado com distúrbio bipolar e até provocou acidente de avião. Suas canções falam de amores perdidos, problemas de comunicação, Gasparzinho. A maioria das gravações é feita em casa. Yo La Tengo, Sonic Youth e David Bowie são alguns de seus fãs.

tocou música própria. Tudo começou com a ajuda de um grande amigo deles, que fez gravações caseiras de suas canções. Ele ajudou a gravar, a fazer os arranjos e a produzir as músicas. A banda já tinha tudo gravado, mas nunca tinham feito shows. Logo no fim da gravação o baterista saiu. Foi aí que Pat assumiu as baquetas. No início de 2007, a banda começou a tocar em BH. De lá para cá, as coisas vem dando certo. Enfrentam as dificuldades de tocar em locais que o som não é muito bom e os problemas para se deslocarem para outras regiões do país. Mesmo assim, viajaram muito no primeiro semestre de 2009. “Tocar na Obra – bar de BH onde tocam bandas independentes – é do caralho. O som é horrível, dá tudo errado, mas não sei por que o show é sempre muito bom”, relembram. Muitas das vezes bons equipamentos não garantem o espetáculo. No festival que participaram no Recife tudo aconteceu perfeitamente, só não deu para sentir a energia do público. A banda, atualmente, está gravando um CD. A gravação foi feita em casa, o mesmo amigo ajudou a produzir as músicas. Mas dessa vez foi por opção mesmo. Guto conta que receberam algumas propostas, mas que optaram por criar o novo álbum sem nenhuma interferência externa. “Tem a ver com a forma que você encara fazer música. No nosso caso, é o faça você mesmo”, explica. A diferença é que o álbum será lançado em CD e Vinil por um selo e será masterizado em um estúdio “foda”, conforme caracterizam. Sobre a origem do nome da banda? Bem, Dead Lover’s Twisted Heart é o nome da música de Daniel Johnston. Para a banda, o músico é referência. Além de falar de amor, ele também gravou seu CD em casa. www.myspace.com/ thedeadloverstwistedheart


programa de indie

interferência #01

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O último Festival Garimpo reuniu bandas de todo o Brasil. As bandas Nuda e Los Porongas vieram de longe

Eu não

gosto de

Rock!

O Festival Garimpo lotou o estúdio bar nos dias 11 e 12 de setembro, balada rock que trouxe bandas de várias partes do país.

Pâmilla Vilas Boas

“Eu não gosto de rock. Não sei o que estou fazendo aqui”. Essa frase marcou o último final de semana do festival Garimpo, que aconteceu entre os dias quatro e doze de setembro. Marcou para mim, é claro, que ouvi essa frase de uma menina na fila antes de entrar nos shows. O público do festival me chamou a atenção. Sabe quando você não sabe direito para onde ir e vai onde tem mais gente? Talvez ninguém tivesse avisado a ela que se tratava de um festival de música independente... Essa movimentação boca a boca, típica da grande roça BH tem lá o seu lado positivo, os shows estavam lotados. As mulheres, quase todas de salto alto, os homens, bem arrumadinhos. No fim da noite, mesmo com a cerveja long neck a R$ 3,90, grande parte das pessoas, demonstravam ares de bebuns. Era uma balada como outra qualquer. A fila para entrar nos shows era realmente assustadora e os seguranças não estavam com muita pressa. O Estúdio Bar, local onde aconteceu o festival, um dos únicos em BH a oferecer espaço para músicos independentes, à primeira vista dá uma sensação de porão. Depois de algum tempo, uma impressão de labirinto. Depois de todo o desabafo, vamos às bandas.

Érico Silva

Eu também vou reclamar Graveola e o Lixo Polifônico, banda belo horizontina, abriu o show de sábado - 12 de setembro - do Festival. Talvez tenham sido eles os responsáveis pelos “alternativos” que se mesclavam entre o clássico público do Estúdio Bar. O repertório continha músicas do único CD da banda mais algumas novidades. Uma delas “Sou tecnológico e tecnicolor”. Se os Mutantes não morreram, não foi Arnaldo Batista quem ressuscitou, foi o Graveola mesmo. A banda possui criatividade semelhante e uma capacidade a la Mutantes de digerir influências diversas num som bem particular. “Pára, continua, pára, pára, continua, nua”. Nem precisa dizer que todo mundo (até as pessoas que não gostam de rock) cantou e dançou ao som de “Insensatez”. O


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brega também ganha outras dimensões ao som do Graveola. Teve uma música lenta (esqueci o nome) que com seu romantismo exagerado deu um pouco de sono. Vai ver que foi só eu, uma insensível relutante. Vale lembrar que eles tocaram Itamar Assumpção, única música cover do show. Depois foi a vez da banda pernambucana Nuda. Nunca tinha ouvido falar, mas já tinha escutado a música mais conhecida deles, “Maruimstad”. Letra, melodia, instrumental de ouvir até o disco furar. Na hora que a banda conterrânea Eddie começou a tocar, se o show já estava cheio, as pessoas se multiplicaram por cissiparidade. Tinha saído para conversar com os músicos e quando voltei não tinha nem espaço para me movimentar. Mal deu para ver a cara do Eddie. Só um ser desajeitado empunhando uma guitarra que dançava como se estivesse no carnaval. Jamais poderia pensar que o nome de um CD pudesse ser tão elucidativo. Lá estava eu num “Carnaval do inferno”. As pessoas atiravam cerveja no palco (sem se preocupar com o valor do produto), Eddie interrompeu o show e pediu para pararem. “Pelo menos estou bebendo de graça e vocês não”, bradou. O inferno é um lugar quente e cheio de fumaça de cigarro. Já de fora do show dava para ouvir os gritos: “quando a maré enchê, quando a maré enchê. Tomá banho de canal quando a maré enchê”.

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Doors, um olhar perdido que lembrava Jim Morrison. As levadas de bateria e o uso de teclados também evocavam a banda. O vocalista tinha uma espécie de ataques epiléticos durante o show. Em alguns momentos, parecia estar prestes a sofrer uma convulsão. Nunca vi alguém incorporar – literalmente – o repertório. E a versão de Come Together, dos Beatles, que eles tocaram no meio do show? A melhor que já ouvi! Não sei se foi porque não havia conseguido “captar” o espírito das músicas deles, mas quando começaram a tocar Beatles entrei em sobressaltos. A versão era muito original, a melodia foi cantada de forma um pouco diferente e a música durou mais tempo. No final, eles emendaram com Pato Fu: “Eu queria tanto encontrar uma pessoa como eu.” “Ficou legal, imagina se a gente tivesse ensaiado”, comentou o vocalista depois do término das improvisações da banda. O festival foi encerrado com o show da banda Transmissor, de Belo Horizonte. Não fiquei até o final. A calmaria e a sutileza do instrumental me deram muito sono. A insensível aqui foi dormir.

A saga continua...

É um estilo musical que surgiu em 1977 após o auge do punk. Incorpora o “faça você mesmo” e o caráter visceral do estilo, mas, ao mesmo tempo, é uma negação das regras de conduta punk

Érico Silva

Quem abriu o show de sábado foi a banda belo horizontina Pêlos de Cachorro. Quando vi o naipe dos integrantes, negros, altos e com cabelo black power, pensei: “que ótimo! Uma banda de funk rock”. Ainda não tinha prestado atenção num detalhe, todos os integrantes usavam saiotes. É claro que a primeira pergunta que fiz quando fui conversar com a banda foi, “por que vocês usam saia?” Logo, logo eu explico. Esse detalhe misterioso se traduzia no som. Músicas sombrias e melodiosas. Ruídos e mais ruídos. Em muitos momentos do show o guitarrista, como Jimi Hendrix, dançava com a guitarra em frente aos amplificadores. Microfonia. Dava para sentir um pouco de Joy Division e essas bandas pós – punk da década de 80. Os riffs de guitarra e o instrumental eram precisos e soavam muito bem. Para mim, faltava alguma coisa. Não sei, estava procurando boas melodias. O segundo show, pelo que percebi, foi o mais esperado. Os Los Porongas, banda que nasceu no Acre, empolgava um grupo que balançava a cabeça na frente do palco. O vocalista falava e gesticulava como se estivesse bêbado (quando conversei com ele depois do show, ele não parecia ter bebido tanto assim). Pode ser um artifício de presença de palco. Em muitos momentos parecia The


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programa de indie

interferência #01

No camarim

Festival independente criado no Aglomerado da Serra em Belo Horizonte

Érico Silva

Festival que é capaz de tornar Rio Branco na capital do Rock alternativo brasileiro. O Festival faz parte do circuito Fora do Eixo

As saias geram curiosidade e impacto no público. Segundo os integrantes do Pêlos de Cachorro essa é a principal razão para o uso da vestimenta. Insisti na questão e eles me responderam que tem a idéia do romper limites, o andrógino. No corredor do Estúdio Bar a banda toda parou para me contar um pouco de sua trajetória. A discussão acabou se centrando, como sempre, nas referências musicais. Enquanto falavam da vontade de inovar e fazer um som diferente, eu dizia ter sentido um ar Pop nas melodias da banda. Eles não se preocuparam e disseram não temer o estilo. Ufa! A banda cresceu na favela Aglomerado da Serra, na região sul de Belo Horizonte, ouvindo The Cure e Joy Division. Eles não tinham instrumento. A situação era brava mesmo. O baterista conta que, na época que começou a tocar, foi todo empolgado à Serenata, loja de intrumentos, para comprar uma bateria. Detalhe, ele só tinha 70 reais. Não dava nem para um violão. Com o passar do tempo, a vontade de reunir as bandas para tocar e a ausência de uma cena independente em BH, a banda criou o Favela Rock. Os dramas de uma banda independente não acabam por aqui. O vocalista do Los Porongas já havia dito durante o show: “antes de viver de música, tive que aprender a fazer mágica também”. Depois do show, o baterista me convidou para conversar com a banda no camarim. Terence Machado, apresentador e editor do programa Alto Falante, da Rede Minas, que organiza o festival, estava lá, todo empolgado com a apresentação da banda. Meio ressabiada entrei. Boas histórias foi o que não faltou. O vocalista chegou a vender o carro para pagar a iluminação do festival Varadouro. Investimento que foi para frente. Hoje, o Varadouro é o principal festival do Norte do Brasil. A banda começou no Acre em 2007 e, recentemente, se mudou para São Paulo para investir na grande empreitada de viver de música. Com a mudança, a movimentação pelos festivais ficou mais fácil e, agora sim, eles estão colocando em prática o curso de mágica, tendo que multiplicar o dinheiro para pagar as contas no fim do mês. O vocalista da banda Nuda era redator publicitário e gozava da vida de um ser bem empregado. Mas decidiu se arriscar nos terrenos áridos da música. No começo era bancar e gastar com a banda. Hoje, até dá para pagar as despesas. Às vezes ainda falta, como quando só tinham 10 reais para pagar o almoço da banda toda. Foram numa padaria em Goiânia e a garçonete ofereceu pão de queijo se eles tocassem. Não é que eles fizeram um mini-show ali mesmo.


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Debaixo do

viaduto

Em Belo Horizonte, Duelo de MCs tem rap, dança de rua e público cativo adriana mitre

Lygia Santos

Tive medo de estacionar o carro na-

quela região. Da última vez que parei por ali, meu veículo foi arrombado. Debaixo do viaduto Santa Tereza não é dos lugares mais bonitos de Belo Horizonte e muito menos dos mais seguros. Mas é ali mesmo que acontece o Duelo de MCs toda sexta-feira. O lugar, geralmente abandonado, se transforma em um espaço de propagação da arte dos MCs, com shows de rap, dança de rua e com o famoso duelo, que permite aos MCs mostrarem suas habilidades com as palavras, rimas e improvisações. No último dia 23 de outubro fui conhecer o evento e, por precaução, resolvi estacionar numa avenida mais movimentada. Estava acompanhada da fotógrafa e foi ela quem avisou do atalho para chegar até o duelo. Ótimo. Era só descer uma escada. Depois de errar o caminho e ser acompanhada pelos olhos repressores de dois punks de moicanos coloridos, a segunda tentativa foi certa e impactante. Demos de cara com três homens. Nota de 10 reais esticada com pó branco em cima. Mesmo assustadas, seguimos caminho pela escada que fedia urina. Claro que sei que cenas como aquela acontecem nos mais diversos lugares, dos mais requintados inclusive, mas a forma escancarada me assustou. Chegamos no local do duelo, mas as batalhas ainda não tinham começado. No início, eram poucas pessoas, dentre elas algumas crianças. Um pouco apreensiva, demorei a prestar atenção naquele ambiente, mas assim que a tensão foi passando, percebi que ali era também um lugar amistoso, onde se reuniam pessoas que já se conheciam, provavelmente frequentadores assíduos do evento. O MC Simpson me diz que participa do duelo desde o seu começo. “Quando não faço batalha, eu me apresento, sou juri, ou ajudo com os equipamentos”, conta. Em 2007, Simpson venceu a Liga Nacional de MCs, conseguiu maior visibilidade nacional e acaba de lançar um SMD com 14 faixas .

programa de indie

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Lygia Santos

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Apesar do caso de Simpson, muitos MCs encontram maior oportunidade nas batalhas travadas debaixo do viaduto do Santa Tereza. Todos os interessados podem se inscrever e sempre há um sorteio, que define os oito participantes da noite. Cada sexta-feira o duelo tem um formato diferente, mas em todos há a disputa entre MCs e a escolha de um vencedor.

Naquela sexta Antes do início do duelo, Dowg Monge lembra o público da dificuldade que tiveram para conseguir o espaço e a infra-estrutura mínima para manterem o evento toda sexta. Sem cerimônia nenhuma, ele chama atenção dos pixadores, que gostam de fazer sua arte durante o duelo, pede para não mijarem na rua e nem na parede dos banheiros químicos e reclama com a galera que usa drogas. Nem sempre funciona. “Não cabe a nós julgarmos quem não faz o que a gente tenta propagar, porque é uma questão muito acima do que está aqui, vem da educação em casa, na escola, entre os amigos na rua e em todos os espaços de convivência social”, explica Dowg, mestre de cerimônia e organizador do evento. O formato da noite era o Duelo de Conhecimento. “Eles colocam um quadro e escolhem palavras. Os MCs disputam as palavras que estão ali e o mais criativo ganha”, explica Simpson. Os temas do duelo foram “Modificações Urbanas” e “Crime Organizado”. No momento em que é anunciado o começo da batalha, as pessoas se aglomeram e já começam a fazer torcida antes mesmo do sorteio acontecer. Durante a batalha, a grande maioria do público presta muita atenção na improvisação dos duelistas. Com uma base musical de fundo, bem marcada, cada MC tenta aproveitar da melhor forma o tempo disponível para fazer frases com as palavras que correspondem ao tema indicado. A efusão é grande quando as rimas tomam um caráter de protesto. E protestar parece ser marca forte dos duelistas, que disseminam a cultura do rap. Quando a base musical acaba, os participantes concluem em poucos segundos suas apresentações. Os MCs que agradam mais a platéia ganham muitos aplausos na hora da votação, mas, talvez por uma questão de respeito, todos recebem palmas, mesmo que com menos entusiasmo. Há também um público que demonstra suas insatisfações e reclama quando acha que os candidatos fogem da proposta ou fazem rimas ruins. Nessa sexta, Chapolim foi quem recebeu a maior torcida, mesmo sendo difícil entender o que ele falava e sem perceber muito o sentido da maior parte das suas rimas. Ele só não ganhou o duelo da noite porque o jurado não deixou. O vencedor, além de ter mais alguns minutos para fazer uma apresentação final, recebe 16 reais que é a soma dos dois reais de inscrição dos oito participantes do duelo. Simbólico e justo para um evento independente. Entre a eliminatória, a semifinal e final do duelo de


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MCs há a apresentação de pocket shows. É um espaço para grupos de rap que já possuem um trabalho musical. Foi o momento em que as pessoas mais se dispersaram. Já não se via a torcida e o mesmo envolvimento do público. “Hip Hop cristão não dá”, ouvi isso de alguém perto de mim. Tentei prestar atenção nas letras do show, mas na segunda música eu já não conseguia me concentrar. Achei mais interessante ver o movimento do público do que ouvir o rap, que sempre me pareceu cansativo. Nessa hora alguns dançavam, outros conversavam e a latinha para recolher contribuições para o evento passava, pedindo o dinheiro trocado do público. Foi também durante o show que uma menina caiu na minha frente e teve algo parecido com um ataque epilético. Fiquei em choque e, quando pensei em reagir, ela já se recuperou e começou a rir da situação com seus colegas. Um cheiro de cola infestou o lugar. Depois do pocket show foi a vez da dança de rua. O dj comandou as músicas e os próprios dançarinos abriram uma roda. As piruetas e os rodopios no chão contagiaram o lugar. Custei a perceber que dentro da roda existiam dois grandes grupos que pareciam disputar a dança entre si. Com o tempo, a rixa foi ficando mais clara. Eles se desafiavam e se insultavam por gestos e pela própria dança. Havia os que se cumprimentavam e se abraçavam depois de uma disputa. Mas houve um momento em que a disputa esquentou a ponto de iniciar uma briga que, prontamente, foi separada por todos os outros. A dança acabou ali. “É normal fazer rixa para que as pessoas possam se soltar na dança. Mas os insultos nunca têm contato físico. É a primeira vez que a briga acontece”, explicou Rafael “Mantena”, um dos dançarinos envolvidos.

A organização O Duelo de MCs acontece há dois anos. A idéia surgiu depois de um show que teve em Belo Horizonte por causa da Liga Nacional de MCs. Um grupo de amigos, depois nomeado “Família de Rua”, se encontrou e resolveu fazer eventos “na tora”, com som de carro mesmo. No início, o evento acontecia na Praça da Estação, mas as chuvas fizeram o grupo escolher o Via-

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duto do Santa Tereza como ponto de encontro.“Era um espaço não utilizado, servia apenas para pessoas urinarem, fumarem, mas foi criado para comportar eventos culturais , o que acabou sendo mais uma força pra gente usar o espaço. Com o processo de negociação, a gente conseguiu o alvará e, aos poucos, conseguimos banheiro químico e o ponto de luz”, disse Dowg Monge. Depois de utilizarem som de carro, a “Família de Rua” percebeu que precisava de um equipamento de som próprio. “Quando ainda éramos nove integrantes, nós montamos uma vaquinha , compramos o som no valor de três mil, dividimos e pagamos em dez meses”, conta Júnior Soares, o Juninho, também organizador do evento. Mesmo assim a aparelhagem era insuficiente e foi aí que o NUC, Negritude Unida Consciente, começou a emprestar o equipamento que eles usam. O único custo é o transporte, que fica no valor de 60 reais. “É por isso que rodamos uma latinha pedindo contribuições. Quando a grana não dá a gente intera do próprio bolso”, diz Juninho.

Lygia Santos

Espaço, equipamento de som e ponto de luz foram importantes conquistas para que o Duelo de MCs acontecesse toda semana.


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Érico Silva

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O importante é

a festa!

Sem público e com muita descontração, aconteceu o primeiro festival que reúne bandas nas garagens de Sabará Pâmilla Vilas Boas

Participar do Garajada no

último dia 17 de outubro na cidade de Sabará (MG) foi um momento nostálgico. Primeiro foi lembrar da época em que vivia no interiorzão de Minas, lugar sem estúdios de música, professores ou qualquer tipo de equipamento sofisticado. A garotinha aqui, no auge dos seus 14 anos, sempre foi proibida de tocar guitarra e de participar de qualquer ensaio de qualquer banda, principalmente dos metaleiros do mal. O jeito era sair, olhar de um lado para o outro e correr para dentro da garagem, onde a banda de metal, Madness, ensaiava. Aquele equipamento horroroso, aquele barulho infernal, a falta de espaço, a falta de ar... Tudo bem que o lugar onde aconteceu o primeiro Garajada era luxuoso, área aberta, espaçosa, com jardim e tudo. Mas, só o fato das bandas estarem num cantinho e as pessoas em volta, já deu uma sensação garagísitica. E tem toda uma ideologia também. Depois do festival Escambo, produzido pelo coletivo Fórcepes e que reúne bandas de todo o Brasil em Sabará, os músicos ficaram literalmente sem lugar. De acordo com um dos donos da casa, Marcelo Santiago, o festival é muito grande, movimenta a cidade e traz bandas de todos os lugares. Quando tudo acabava era aquela ressaca coletiva. Foi pensando nisso que o coletivo inaugurou o Garajada. A idéia é fazer um festival mensal dentro das garagens das bandas de Sabará. Cada festival, uma garagem diferente.

Para quem precisa? O evento não foi divulgado. Recebi o flyer por email e levei um susto: R$ 20,00 para entrar. Quase um contra-senso, um preço tão caro para ouvir duas bandas na garagem. Fui conversar com o dono da casa, Marcelo Santiago, que, por coincidência, é o criador do “Meio Desligado”, um dos blogs mais importantes da cena musical independente. Ele me explicou que o primeiro Garajada era para ser só um teste. Não fizeram divulgação e colocaram o preço alto para assustar. Mas o que poderia dar

errado na improvisação que é, por natureza, um ambiente de garagem? A polícia... “Ah, eu me lembro de quando eu toquei numa garagem da minha amiga no interior. Estávamos comemorando o aniversário dela”, comentou o fotógrafo convidado para fazer as fotos da revista Interferência, ao ouvir Marcelo. Histórias sobre eventos em garagens foi o que não faltou. “No meio da festa chegou a polícia e pediu para a gente parar. Nesse momento, começamos a tocar Polícia, versão do Sepultura – “’Polícia para quem precisa, polícia para quem precisa de polícia’ –Se é para parar de tocar, paramos em grande estilo”. A casa de Marcelo fica do lado do quartel de polícia de Sabará, e ele estava com medo de que eles interrompessem a festa. A chance era pequena, já que o evento começou à tarde e tinha hora para acabar. “O pessoal do bar ao lado toca brega a madrugada inteira. Por que a gente não pode colocar umas bandas para tocar durante o dia”, desabafou. Talvez por que as bandas fazem barulho? Principalmente a que abriu o show? Mas garagem é assim mesmo, suscita problemas de vizinhança. “Quando o pai do baterista morreu, a gente foi no enterro. Lá pelas 22hs o baterista liga e chama a gente para ensaiar e nós fomos”, continuou o fotógrafo que tinha uma história para cada tema da conversa.


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Do capeta

Voz que produz som rouco, grave e profundo. Para saber mais, escute Sepultura.

www.myspace.com/defensoresdocaos

As bandas Cães do Cerrado e Defensores do Caos tocaram no último Garajada em Sabará A performance das bandas deixou o evento bem descontraído

Uma surpresa foi ouvir a banda trash “Defensores do Caos”, que abriu o Garajada. Outra foi eu ter gostado da banda. Tudo bem que já revelei as minhas escapadas para o metal quando comecei a ouvir música, mas deixo bem claro que foi só uma fase. A banda era agressiva, o vocal era bem gutural mesmo. Mas tinha um ar ingênuo e despretensioso, coisa que as bandas de BH precisam muito aprender com o pessoal do interior. Uma sensação meio Queens Of The Stoneage, que mostra que a agressividade pode ser muito sutil. Depois me explicaram, o vocalista escuta Bezerra da Silva. Tinha uma sinceridade descontraída nos integrantes da banda, que fizeram questão de avacalhar a entrevista. Minha mãe chama Tereza repetiu o baixista, umas vinte vezes. Um desprezo bem humorado pelos métodos jornalísticos. Nem tão bem humoradas são as letras das músicas e o myspace da banda. A imagem principal é uma criança africana passando fome, as letras falam do capitalismo, da pobreza, isso para quem conseguir entender alguma coisa. Depois foi a vez da banda Cães do Cerrado. Punk legítimo, devastador e desorganizado, assim como tem que ser. Os integrantes pulavam, trombavam, hora um cantava, hora outro, o vocal era coisa que não dava para ouvir. Alguém pediu bis e outro para tocar Raul. Uma das poucas vezes que uma banda se recusa ao granfinale.

Toca Raul Sempre no fim do show um engraçadinho gritava “toca Raul”. No Garajada eram vários, mesmo com público formado apenas por amigos, namoradas e os integrantes da banda. Mas não é um evento independente? Mesmo assim não abriram mão do Raul. E não foi só isso. No início, enquanto as bandas ajeitavam os equipamentos, o sonzinho só tinha espaço para Queens of the Stoneage e coisas afins. No final dos shows, a fase iê, iê, iê dos Beatles e Led Zepellin. Por que não pode tocar música independente nos intervalos dos eventos independentes. Ninguém gosta? Se não bastasse, enquanto conversava com Léo, que também mora na casa, chegou um dos amigos: “Você podia mudar essas músicas”. Eu pensei: “Até que enfim alguém sensato”. “Coloca Raul aí!”. Aí não teve jeito, eu tive que dar uma de chata: “Por que você não pediu um artista independente? Não gosta de nenhum?”. Sem disfarçar a raiva, ele soltou um palavrão e disse que como repórter eu deveria saber o valor de Raul para a música brasileira.

Érico Silva


encarte

interferência #01

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Interferência viajou para Bahia. Fomos à Carinhanha, Angico e Malhada, no médio São Francisco, para conversar com os músicos dessas cidadezinhas. Por lá, eles vivem a música independente sem saber. Fábio tem 40 anos e sempre quis ter uma banda de rock. Na adolescência, em Carinhanha, cidade com cerca de cinco mil habitantes, não encontrou pessoas dispostas a formar uma banda. Foi para Salvador e quando ia entrar em um grupo, casou-se e voltou para a terra natal. Hoje é vocalista da New Haley Rock, com os filhos de seus amigos. Nessas cidades onde Axé e o Tecno

Brega parecem dominar, ainda pode haver chance para uma banda de Rock. Na comemoração do centenário da cidade, em 2009, sobrou a quinta de madrugada para a banda. Todo mundo se assustou, cerca de mil pessoas compareceram. O amor pelo Rock veio do primo alcoólatra. Fábio conta que ele trouxe para sua mãe o álbum branco dos Beatles. “Com 12 anos, era o que eu queria fazer”, afirma.

Angico, distrito de Carinhanha, não chega a mil habitantes. Nessa terra seca de música, de shows e manifestações culturais, ainda tem espaço para o compositor João Batista tocar seu violão. “Milhões de estrelas brilham em um caminho que não há pedras nem espinhos”, cantou João olhando para baixo. O violão é elaborado, quase uma Ode a suas influências: Roberto Carlos, Raul Seixas, José Augusto. Na cidade não tem professor. Um viajante que passava por ali ensinou para ele algumas posições: Dó, Ré, Mi. Delas ele tira a inspiração para pequenos solos e arranjos no seu violão velho. Ele toca nos eventos da escola, aos 42 anos fez uma música para sua formatura na oitava série. Ele tem vontade de gravar as músicas: “a vontade era maior, mas foi vencendo com o tempo”, explica. Hoje, ele investe na filha que quer ser cantora. “Quem sabe ela não vai ter a oportunidade que eu não tive”, comenta.

Pedrinho da Viola é músico conhecido em Malhada. Junto com a banda Kactus rodou os estados de Minas e Bahia. Na época em que começaram, só existiam quatro bandas de baile na Bahia e eles tocavam música internacional dos anos 60. Hoje, mesmo com a predominância do Axé, a banda sempre manteve a tradição. Pedrinho já seguiu carreira solo, tocou com Paulinho Pedra Azul, Beto Guedes e com o único cover do Chiclete com Banana reconhecido, que já foi até no Faustão. É funcionário da prefeitura e tem um grupo de seresta. Aprendeu com músico de conservatório e se orgulha de ler partitura. Sobre as canções próprias, se lembra da época da banda Kactus. O Zeca Baia, que já tocou com eles, fez a música que ficou famosa. “Minas de ventos e velas, Minas que vem e que vai”.


Medo do desconhecido Bandcamp é uma boa opção para bandas que querem um espaço próprio na rede

A plataforma Bandcamp não é tão conhecida pelas bandas brasileiras. Mas tem gente que usa, como a banda de Belo Horizonte Cães do Cerrado, que abandonou o myspace e foi postar suas músicas no site próprio, criado a partir do bandcamp. No endereço www.myspace.com/caesdocerrado tem um playlist vazio e logo abaixo um manifesto: “Procure e invente. A banda Cães do Cerrado é radicalmente contra a padronização da música independente - por isso não usamos o myspace.” “Para criar um bom layout, tem que ter mestrado em myspace”, compara o baterista da banda Paulo Malibu. Além disso, no myspace, é preciso conviver com aquelas propagandas do Fresno e companhia que ficam sempre no topo da página. Uma das alternativas para não ter que dar com os olhos nos emos de todo o dia, é essa plataforma ainda pouco conhecida. De acordo com o blog Música Líquida, o Bandcamp é uma espécie de wordpress.com para artistas independentes. Ao invés de blog, cria sites de música para quem quer ir além dos sites de relacionamento. A grande desvantagem é justamente essa: o Bandcamp não é um site de relacionamento e, por isso, não permite uma interação direta com o ouvinte. Mas o melhor de tudo é que é leve, fácil de ouvir em conexões lentas e a banda mesma consegue fazer um layout simples e que funciona. O serviço é gratuito e a plataforma é fácil de usar. Para ter acesso ao Bandcamp basta fazer um cadastro rápido, que dura menos de um minuto. Depois fica tudo muito claro. As informações e opções de uso vêm uma atrás da outra. Primeiro você pode fazer o upload das músicas e, o melhor, de quantas você quiser. Além disso, a pessoa que for baixar a música da banda pode escolher o formato. Quando o ouvinte clica na música, aparece o item download track com todas as opções e o programa, automaticamente, faz a conversão. Depois disso você escolhe se vai permitir que o consumidor faça o download gra-

tuito ou se vai querer que ele pague por isso. Se o download for pago, quando a pessoa clica na música, aparece o valor dela. Pode também permitir apenas que o ouvinte escute a música e não faça o download. O ouvinte que quer conhecer melhor alguma música do playlist, pode clicar nela e ver a letra e outras informações. A opção share permite ao usuário compartilhar a música com amigos através do facebook, myspace, email, blogger, etc. Outro recurso são as estatísticas que contabilizam o acesso ao site. Por meio delas, o músico é capaz de monitorar as músicas mais acessadas, as que foram ouvidas por completo, as que foram ouvidas novamente e as que o ouvinte não terminou de ouvir. Tudo bem simples. É como se fosse uma tabela, primeiro vem o nome da música e, ao lado, essas descrições. Clicando na opção Buzz, é possível monitorar as discussões sobre sua música. Dá até para ver para onde os ouvintes linkaram sua música. É possível ter acesso ao site em que colocaram o link para sua música e, dessa forma, participar das discussões e convidar as pessoas para um show, por exemplo. Acesse: http://bandcamp.com/. 320k mp3, mp3 VBR High or Low, FLAC, Ogg Vorbis, Apple Lossless or AAC High or Low.

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igual diferente

Nem tão , nem sempre Acesso ao Universo das gravadoras independentes ainda tem barreiras

Pâmilla vilas boas

Algumas têm o discurso afiado: existem

para fomentar a cena. Outras preferem os artistas mais consagrados. A grande maioria espera que o músico já chegue com CD gravado ou o financiamento do artista, mas tem aquelas que bancam todo o processo de produção, gravação e divulgação. Para quem pensou que as gravadoras independentes são as mesmas em qualquer lugar ou que são sinônimo de acessibilidade, se enganou. Elas têm processos distintos de relacionamento com o artista e de posicionamento em relação ao mercado fonográfico. A gravadora Mais Brasil, por exemplo, faz a divulgação e distribuição do trabalho dos músicos. Geralmente, esperam que o artista chegue até a gravadora com o CD pronto ou em estágio avançado. A banda Pexbaá, que será lançada pela gravadora, chegou até com a arte do disco finalizada. Porém, de acordo com o diretor do selo e editora Mais Brasil Música, Eduardo Garcia, se o trabalho for bom, eles auxiliam para que o músico busque formas de viabilizar a gravação. Já a gravadora CID, de São Paulo, prefere apostar em artistas conhecidos. No caso deles, o CD é todo gravado e produzido pela gravadora. Ela aposta em artistas consagrados para que tenham o retorno com a venda de CDs. Hoje a produção é pequena, conforme explica a assistente de produção, Beatriz Cunha. Apesar disso, a gravadora, que tem 50 anos de atuação, já teve momentos de intensa produção. Com a crise na


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Banda que faz resgate histórico da música brasileira dos séculos passados. Como a canção Estampie de um músico anônimo do século XVIII.

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venda dos CDs, eles passaram a ter mais cautela com a escolha dos lançamentos, que a cada dia acontecem em menor quantidade. Independente? Para Elisângela sim, afinal, não são uma empresa multinacional. Ousada é a atuação do Centro Popular de Cultura, CPC – UMES, de São Paulo. Eles gravam, produzem e divulgam o CD do artista e, além de tudo, apostam em novos nomes. É uma gravadora especializada em música brasileira que, de acordo com o diretor João Moirão, escolhe o artista não pela carreira ou viabilidade comercial e, sim, pela qualidade musical. Já gravaram o disco de 45 anos de carreira de Inesita Barroso e da banda Carmina, que não é tão conhecida. “Para fazer o disco, o critério é o trabalho ser bom. Depois disso é que a gente pensa no que vai vender”, explica. A única dica que ele tem para o artista que quer ter acesso à gravadora: “não se preocupe em fazer algo que ache que vai vender e sim algo que sinta, profundamente, que merece ser feito, independente se vai ter que dar murro em ponta de faca para levá-lo para frente. Tem uma boa chance de fazer um bom trabalho, aí a gravadora vai acolher”, esclarece. Como eles se mantêm? Não é com a venda de disco e sim com outras atividades. O CPC é também produtora de filmes, livros e eventos. Em algum momento uma atividade vai financiando a outra. Hoje em dia, é difícil, tanto para uma gravadora independente ou para uma major, pagar todo o investimento do artista apenas com a venda de discos. A grande diferença é que as independentes ainda têm grandes dificuldades para divulgar o seu produto. “Até algum tempo atrás, o gargalo estava na prensagem e gravação do LP, que era caro. Com o digital, esse aspecto ficou mais acessível, o gargalo está na circulação, no que toca”, explica João. Enquanto as gravadoras independentes são responsáveis por mais de 85% dos títulos produzidos no Brasil, elas ocupam um espaço inferior a 5% nas rádios FMs, por exemplo. E a desculpa nem é aquela de que mudar significaria uma perda na audiência. A questão é que, de acordo com João Moirão, mais de 50% da arrecadação das rádios vêm do jabá, por isso repetem tanto uma música só, que poderia dar lugar a várias outras produções. O estúdio Máquina, gravadora independente de Belo Horizonte, que pertence ao Skank, encontrou outras alternativas para trabalhar com os músicos. Lá, o artista marca uma reunião e recebe uma espécie de assessoria do produtor. O produtor executivo do estúdio, Alceu Lustosa, explica que pode ser um artista que não tem nada gravado, um cantor sem nenhuma canção, ou um compositor que não canta. O estúdio vê o que o artista quer, o que pode ser trabalhado e auxilia desde o processo de registro até a gravação e divulgação. Se ele não tem dinheiro, eles ajudam a construir um projeto de lei de incentivo à cultura. Esse projeto de produção de novos artistas se chama “De Frente para a Máquina”, que tem como objetivo, de acordo com Alceu, movimentar a cena de Belo Horizonte. Sobre os critérios de escolha e de trabalho com os artistas “não existe uma fórmula, mas várias que se adequam à necessidade de cada um”, diz. Numa coisa ele concorda, não dá para gravar todo mundo. Mesmo assim, o volume é grande: 35 produções em três meses do projeto. E todo mundo deve estar pensando na Trama Virtual, que é uma das gravadoras mais conhecidas. É aí que entra a questão da acessibilidade. Se recusaram a falar com a revista. Com a Biscoito Fino foi difícil, mas uma das fundadoras da gravadora, Olivia Hime, nos concedeu 10 minutinhos. A gravadora escolhe artistas que estão dentro de seu perfil, que tem como base a música brasileira e, nesse caso, há uma preocupação comercial. “Eu não vou escolher uma banda que tem dois acordes no fundo, não faz o meu estilo”, explica Olivia. Já gravaram desde Chico Buarque, Rita Lee até o grupo Garganta Profunda.


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duas e pro ic s ú m s ua s etapas gravar s nhecer a planeja o e c u e q d ê a c ução. hor Para vo sua prod ando da a s n s a s p o id tá m , es os envolv gravar e zir um CD process possível s É o ! e il n o c e ã fá ç m os is de grava e gastar ficou ma a r o o d n tu o , s anda, dia ade sua dem Hoje em is qualid a a d r m e r d n te dio, ponível! vai depe homestu heiro dis que tudo in o d r o la d c e É . o tempo dinheiro ização, d n a g r o a da su

Pré-produçã

o

É a fase em qu e há a escolh a do repertór músicas e pr io, análise da eparação para s a gravação. defini-se har Na pré-prod monia, ritmo, u çã o instrumentaçã e tudo mais qu o, melodia, ef e garanta um ei to s bo m resultado importante qu na gravação. e as músicas É já estejam be m ensaiadas.

dio Com um homestu ado, minimamente equip to fei é e qu muito do ão durante uma gravaç te a ran du to fei r pode se a pré-produção, como o lad tec um de ão gravaç nto. ou outro instrume

Uma pré-produção o de bem feita é sinônim ios túd es economia. Os gos pa o sã nte me ral ge por hora. Tempo é io com dinheiro! Um estúd bra co na ca qualidade ba a hora. is rea 80 dia mé em

zer a préSe você vai fa CD, tenha um do produção ma de e um progra computador car To . sposição gravação à di em s to en m ru st a linha dos in possibilita m bé m ta o um teclad ar o como pode fic uma visão de al. resultado fin


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Softwares

bolso, Existem softwares para todos os tipos de icos e computadores e interesses, uns mais didát qual ver para uise outros com mais recursos! Pesq Gara programa te atende melhor. Alguns exemplos: geBand, Cubase, Logic, Vegas, Pro Tools.

Produtor musical

leitura Uma boa dica é a do es um dos dois vol , do m” ge xa Mi de uia “G ão e vaç gra de o engenheir nriques. produtor Fábio He to da Os guias falam tan to da parte técnica quan ve vol en e qu artística, ão de processos de criaç . arranjos

Muito importante para acompanhar o proc esso. Escolha um produtor que entenda de música e de gravação. Ele não precisa saber tudo, mas tem que ter uma noção básica de tecnologia, conhecer sobre áudio, timbre, microfonação e acústica. Caso não haja verba suficiente para pagar um produtor, é você quem vai ter que exercer essa função. Seja interessado e proc ure conhecer os processos que envolvem uma gravação

Gravação

É a captação e registro do som. Esse é o momento na de obter os melhores sons possíveis. Não pense que mixagem você vai poder corrigir erros de gravação.

Um bom estú dio tem que ter bons equi pamentos, com destaq ue para os microfones. Mas não adianta nada ter bons equipamento s, se não tem um técn ico que saiba operálos. Procure indicações.

rumentos Grave os inst nais ca e vocais em efeitos e m se s, do separa . equalização

a, mas é Não é regr avar nesta comum gr bateria e a: ci seqüên s rítmicos, to instrumen onia e baixo, harm . Só a ia od depois mel tilizar 8 u de po a bateri . microfones

pode o também A captaçã dio, u st e m m ho ser feita e rá lução se mas a reso s que muito a ix a b mais nais. io ss fi ro p estúdios ção é para Alta resolu : específico o um públic p3 m l, a n fi A los. os audiófi a ix a ato de b é um form ito utilizado. mu o çã lu reso


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Edição

a ediptação do som, faz-se Durante e depois da ca que fica e cortes e escolhas do ção, responsável pelos m, juntaedição é o técnico de so do que sai. Quem faz a musical e os músicos. mente com o produtor

A edição també m pode ser feita fora do estúdio, pelo pr odutor ou pelos músico s.

Se mixar em lugar diferente da gravação, tome cuidado s para usar monitore o nã se s, nte lha seme nouvirá o som difere . ão vaç gra da te

Mixagem

É o momento de tra tar o que foi feito, colocar os instrumentos em suas devidas altur as , além dos detalhes e dos efeitos.

Masterização

nsidade de todas Esta é a etapa em que o som e a inte âmetro para a masas faixas do CD são igualadas. O par o estilo da música. Se terização segue de acordo com um volume maior do o estilo for Rock a tendência é ter que MPB, por exemplo.

Prensagem e capa

do CD

A fase final antes da distribuição. É o mom ento de pensar os detalhes do CD , como a arte gráfica , as fotografias, o material utilizado para a capa e a diagr amação.

Esta etapa é um grande diferenc ial do trabalho am ador para o trabalh o profissional. In vista na masterizaç ão do seu CD.

te, é a fase Geralmen ana está em que a gr as é tão m a, minguad quanto importante rocure P . as as outr , peça as iv at rn te al os que ig am ajuda a do assunto entendam trabalho m u e faça faça! que te satis

Dica Geral

estúdio proO preço de uma gravação em um anização dos fissional varia. Dependendo da org m e masterimúsicos, a gravação, edição, mixage de R$ 10.000,00. zação de um bom CD fica em torno algumas etapas Este preço pode diminuir, caso prios samplers seja feita em homestudio. Os pró rumentos, ficam players atuais, que simulam inst mais cuidatão perfeitos, que, com um trabalho s! alho trab doso, é possível produzir ótimos

Fonte: Daniela Rennó – Percussionist a, vibracionista e dona do estúdio Acús tico, de Belo Horizon te.


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Psicodelia brega e sincera Carlos Jáuregui

O disco Uhuuu!, lançado em setembro de 2009, traz um Cidadão Instigado levemente mais econômico na mescla de ritmos do que no disco anterior, de 2005. No entanto, a banda de Fortaleza mantém o mesmo cuidado com os arranjos, que dão um clima psicodélico e um tratamento muitas vezes inesperado para as canções. As letras, por sua vez, vestem desde as reflexões mais profundas até as mais banais com a sinceridade, a melancolia e a simplicidade estética do brega romântico. O espírito de Uhuuu! pode ser sintetizado pela canção “Como as luzes” (faixa 6), que conjuga levada rítmica, timbre vocal e letra no estilo “Amaldo Batista” com um tremolo de guitarra e um grandiloqüente arranjo final de metais à la trilha de faroeste. Para quem ainda não conhece esses “semi-hippies tristes... às vezes revoltados” – como eles mesmos se definem -, a banda surgiu em 1999 e já produziu três discos sob a liderança de Fernando Catatau, cantor, compositor e guitarrista dos bons, que já tocou com artistas como Otto e Vanessa da Matta. Saiba mais: cidadaoinstigado.com

Enfant terrible

Victor Guimarães

Se é possível adaptar a teoria dos Cahiers du Cinéma para a música popular, diga-se que Quase em Silêncio, de Rafael Macedo, é um disco de autor. Do primeiro ao último segundo, seja quando se aventura no vocal ou quando cede a tarefa a outros, Rafael Macedo está sempre lá, manejando cada escolha. Quase em silêncio é concreto, na letra de “Fogo Água e Papel” ou no som das tomadas de fôlego. É surpreendente. Músicas cheias de variações internas, de nuances, que crescem e desaparecem subitamente. Quando menos se espera, a canção dá uma guinada e desloca nossos ouvidos recém-acostumados. Rafael não faz concessões, e prolonga as notas, e dilata os começos. Preza menos pelo trabalho da palavra e investe com força nas melodias e, sobretudo, nos arranjos. No entanto, quando uma boa letra aparece, ela vem com a força lírica de “Moça”. Um disco de contornos imprecisos, que abre um monte de possibilidades de escuta. Pérolas a poucos? Digamos que um certo hermetismo pascoal, que vem em boa hora para nos empurrar pela porta da sala de jantar. Algo assim, como um Godard num sábado à tarde. Saiba mais: www.myspace.com/rafaelmacedo

Um épico pra passar na Tela Quente Nuno Manna

Como num filme sem um fim, segundo disco da banda gaúcha Pública, é um disco que quer claramente ser ouvido mais de uma vez. Isso não só porque o seu final refere-se diretamente ao seu início e sugere a execução cíclica, mas pela dose boa de pretensão claramente investida. Tenta ser um disco grande, denso e, porque não, importante. Certamente alguma importância ele tem. É um disco de Rock que não se limita ao predicado “gaúcho” que costuma acompanhar as referências aos conterrâneos. Por isso, bem ou mal, a banda tomou proporções e abrangência maiores. Mas o cacife que sustenta a banda parece não ser tão largo quanto o passo que ela tenta dar. Falta um pouco de força, sobretudo para os motivos das músicas, e um pouco de maturidade pra não deixar a coisa com muita cara de quem se esforçou tanto e teve que construir com tanto rigor seu groove. Ainda que o resultado seja um trabalho bem feito, o convite a uma nova audição é absolutamente resistível. Saiba mais: www.publicaoficial.com

DISCOTECA

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Mais que samba com guitarra! Victor Dias

Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta a princípio parece mais uma banda “samba com guitarra” herdeira dos Los Hermanos. Mas uma segunda ouvida no disco Frascos, Comprimidos e Conservas mostra que o grupo, formado em Salvador, tem uma sonoridade bem mais complexa e repleta de referências. É notável que o samba puxa quase todas as canções do disco, mas dá pra perceber também muita influência do roquenrou, principalmente nos solos e distorções de guitarra, do jazz, em alguns timbres, linhas harmônicas e levadas de bateria, e até do roque progressivo, presente principalmente nas introduções de muitas canções. As letras, em geral, tem o amor como tema principal e são bem simples, o que garante uma boa unidade, inclusive com o projeto gráfico do disco, feito com fotos de diferentes ambientes de uma casa. Tirando alguns clichês, como usar “nêga” como interlocutor no samba “Você sabe dessas coisas”, o disco é repleto de bons momentos, principalmente nas músicas mais dançantes como “Ó você dizendo” e também na bela e crua “Azucrim”. Curiosamente, a faixa título do disco destoa um pouco do resto das canções e é nesse momento que o som da banda se mostra menos consistente, mas nem por isso ruim. Saiba mais: roneijorgeeosladroesdebicicleta.com

Sua Majestade, Ná

Victor Guimarães

Eram os idos de 1968 quando Caetano gravou “Coração Materno”, o clássico de Vicente Celestino. Desde então, releituras de canções da era do rádio vêm sendo feitas com mais e mais freqüência, e com os mais diferentes propósitos. Em 2001, Ney Matogrosso gravou seu Batuque, cantando justamente músicas das décadas de 30 a 50, que fizeram sucesso na voz de Carmen Miranda. Essa era basicamente a proposta do show Balangandãs, de Ná Ozzetti, cuja turnê aconteceu no segundo semestre de 2008. No início de 2009, o show virou disco de estúdio. Mas por que ouvir este, depois de todos os outros? Parte da resposta está no nome da intérprete. A voz de Ná, com inflexões mirandianas, é uma colherada (atrás da outra) de doce de leite num Domingo de Ramos. Mas há também os arranjos ousados, os excelentes músicos. Se Balangandãs não retém nada do gesto tropicalista, não deixa de ser extremamente agradável aos ouvidos. Ná Ozzetti é uma das únicas cantoras brasileiras a conseguir que a milésima segunda regravação de “E o mundo não se acabou” não seja um imenso clichê. Saiba mais: www.mcd.com.br/na

Sério, irônico, estranho e normal!

Rafael Azevedo

Tudo que respira quer comer mostra Carlos Careqa em ótima forma! Contando com a produção impecável de Mário Manga, o disco saiu no início de 2009 saciando os que estavam à espera de Careqa em um trabalho de inéditas desde 2006. O disco vai da extrema seriedade à ironia. O mais puro lirismo está na letra e no arranjo de cordas da faixa “Fantasias”, cantada por Fernando Vieira, também parceiro da composição. As participações especiais são destaques. Mônica Salmaso participa da faixa “28 (Vinte e oito)” e o roqueiro-rural Zé Rodrix da “Vacamor”, um tipo de elegia a uma vaca. O disco ainda apresenta outros artistas, com destaque para as belas vozes de Juliana Perdigão, em “Feltro no ferro”, e de Tatiana Parra, em “Isso passará”.Tudo que respira quer comer merece ser ouvido com calma e atenção. A estranheza da capa, que contém a foto de um sujeito com uma máscara de cavalo, vai se normalizando ao longo de cada faixa. Saiba mais: www.carloscareqa.com.br


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Wado é o nome! Victor Dias

Wado é o nome artístico de Oswaldo Shlickmann. Santa Catarina é o nome do estado em que nasceu e Alagoas, do estado em que foi criado. Atântico é o nome do oceano que separa o Brasil da África, negro é o nome do que alguns chamam de raça e outros de cor e Atlântico Negro é o nome do mais recente disco de Wado, de 2009. Surpresa é o nome do que senti quando vi quão promissor era o som que ele fazia. “Estrada” é o nome da primeira faixa, cheia de suingue dançante, que marca grande parte do disco. “Atlântico Negro” é também o nome da segunda faixa, uma vinheta que explica muito a idéia do disco: a morte da raça e o hibridismo, uma metáfora da sonoridade das músicas. Hibridismo é o que mais vemos no disco: uma mistura de sons da música popular regional com temas mais universais. Ruptura é o nome do que acontece com a sonoridade do disco a partir da faixa 7, de nome “Macaco Pavão”. O disco deixa de lado suas referências regionais e cai numa pegada pop. Incômodo é o nome do que eu senti quando ouvi essa parte do disco e Junior (da Sandy) é o nome do cantor que me veio à cabeça durante essa audição. Ouça é o nome da minha dica para as seis primeiras faixas, dispense é o nome pro resto. Saiba mais: www.myspace.com/wwwado

Pra manter ou mudar?

Filipe Motta

O vocalista André Gonzales fala em beijar um ouriço na faixa “Lista de casamento”. Espinhento? Nada. O som dos Móveis Coloniais de Acaju se mostra menos arisco em C_mpl_ete. A feijoada búlgara, termo que a própria banda usa para se referir ao seu som, foi preparada com menos calorias desta vez. A anarquia dos metais que dá à banda seu jeitão inconfundível continua presente, só que com alguns decibéis a menos. Mais espaço para as levadas de guitarra que ficavam escondidas nas músicas. A mudança traz algumas surpresas interessantes, como o solo ao final de “Indiferença”. Ao desafio de lançar o segundo disco depois do aclamado Idem, de 2005, a banda respondeu com ligeiras mudanças que deixaram o trabalho mais Pop - quase no ponto para sair do mundinho underground. As letras, que focavam política, arte e crítica aos costumes, agora mostram os Móveis mais românticos. Deve ter gente chiando por conta disso. Mas sacadas espertas ainda dão a graça: Entrou no ar sem saber porque/ O sonho da família dentro da TV/ Batom na boca, swing no quadril/ Supostamente namoradinha do Brasil, em “Cheia de manha”. Saiba mais: www.moveiscoloniaisdeacaju.com.br

Carlos Jáuregui Carlos Jáuregui é jornalista, quase mestre em linguística e recebeu sua formação musical nas peladas que bateu em La Paz com José Zapata (uma espécie de Roberto Carlos boliviano).

Filipe Motta

Nuno Manna

Rafael Azevedo

Victor Dias

Victor Guimarães

Filipe Motta, estudante de Comunicação, é contaminado por música e bactérias do rio Caraça.

Nuno Manna é estudante de jornalismo, blogueiro e precisa ser segurado quando começa a falar sobre música ou cinema.

Rafael Azevedo é estudante de jornalismo na UFMG e insiste em ser músico.

Victor Dias é música todas as horas e músico nas horas vagas.

Victor Guimarães é quase jornalista, blogueiro do Green Submarine e compositor de quinta aos domingos depois do almoço.

COLABORADORES DESTA SEÇÃO


AGENDA

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Música de trabalho Quando | 5 e 6 de dezembro Onde | Fundação Memorial da América Latina Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664 - Metrô Barra Funda - São Paulo-SP O quê | Cena Musical Independente - II Mostra Paulista de Bandas . Festival que pretende incentivar a música independente e alternativa do Estado de SP. Dez bandas são selecionadas através de uma banca julgadora e fazem shows dos seus trabalhos autorais. Mais informações: www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/cenamusical2009/home.html

Tomates Fritos Quando | 9 a 13 de dezembro Onde | Recife O quê | Feira Música Brasil. O tema dessa feira é “Música Tocando Negócios” e conta com rodadas de negócios, painéis de debate, estandes de exposição e grandes shows. O mercado de shows no Brasil, downloads X streamings e o direito autoral na era digital são alguns dos temas dos debates. Mais informações: http://feiramusicabrasil.com.br/site/

Na beira mar Quando | 11 e 12 de dezembro Onde | Master Beach, na Praia do Futuro – Fortaleza - CE O quê | CearaInRock . Festival que está em sua segunda edição e é voltado para bandas de rock cearense. A programação é definida a partir da seleção de músicos residentes do Estado do Ceará. Mais informações: www.paneladiscos.com e www.myspace.com/cearainrock

Da pesada Quando | 11 a 13 de dezembro Onde | Pousada Refúgio do Lago, na cidade de Lages - SC O quê | Orquídea Rock Festival 2009. V Festival de Rock Metal. Esse ano vai reunir 30 bandas em 3 dias de show e, além das bandas nacionais, contará com algumas atrações estrangeiras. Mais informações: http://www.orquideanegra.com/localizacao.html

O meu dinheiro aí Quando | 15 de novembro a 20 de dezembro Onde | Wonka Bar R. Trajano Reis, 326 – Centro e Facinter (Campus Divina) R. do Rosário, 147 – Centro - Curitiba O quê | Música em Tempos de Internet. Ciclo de palestras com profissionais de diversas áreas da produção musical para analisar a condição da produção, do mercado e do consumo da música com o advento das mídias digitais e da Internet. Apresentação de videoclipes de bandas independentes de todo o país. Mais informações: http://www.gramofonegroup.com/2009/11/musica-em-tempos-de-internet.html

Aterrizando em espetáculos Quando | Até 30 de Dezembro O quê | A TAM recebe projetos culturais que tenham como data de realização o primeiro semestre de 2010. Esse ano, os recursos serão destinados a casas de show, peças teatrais, cinemas, espetáculos e musicais, moda e museus. As propostas devem ser encaminhadas para o endereço comunicacao.mkt@tam.com.br Mais informações: www.tam.com.br/


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Os dez melhores discos de bandas independentes, Eduardo Curi é coordenador de impor Eduardo Curi. prensa do Coletivo Pegada, DJ e vai em muitos shows.

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UHUUU! - Cidadão Instigado (2009) Melhor disco deste ano e da carreira deles. Música pop e experimental da melhor estirpe.

Atlântico Negro - Wado (2009) Para quem gosta de ironia, bom humor e boa música. Recomendo todos os outros discos dele também.

3

Artista Igual Pedreiro – Macaco Bong (2008) Para calar a boca de quem diz que música instrumental é chata. Além de todo o simbolismo que este disco carrega para quem está envolvido com o Circuito Fora do Eixo.

Na brasa fugaz da cana queimando - Visitantes (2009) College Rock com muita variedade também. Muito bom!

5

Banda argentina de Córdoba que tem sido a minha favorita durante as minhas discotecagens. Melodias em tons menores com pitadas de tango, disco, ska, punk e outras coisas mais que eu não saberia dizer.

Sample 01 - The Hell´s Kitchen Project (2008)

6

A Vida é Doce - Lobão (1999) O disco nem é tão bom, mas o rebuliço que ele causou na época por ser numerado, vendido em banca de revista e ser muito mais barato que CDs vendidos em lojas foi sensacional. A minha cópia é a de numero 22374.

Freak To Meet You - The Very Best of Jumbo Elektro - The Ultimate Compilation -Jumbo Elektro (2004) Uma visita a todos os clichês dos anos 80, com muito humor. Sensacional!

9

4

Niños Revueltos - Los Cocineros (2004)

Electro Rock com baixo, bateria e vocal. Funciona muito melhor ao vivo, mas ter as músicas em casa para saber cantar durante os shows é sempre bom.

7

2

8

Pareço Moderno - Cérebro Eletrônico (2008) Maravilhoso!

Donkey - Cansei de Ser Sexy (2008) Muita gente torce o nariz, mas eu adoro!

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TOP 10

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opinião

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Primeira ou

segunda profissão

Adriana Mitre é quase jornalista. Poderia já ter seu registro profissional, mas escolheu o caminho mais difícil: o diploma. Enquanto estuda, Adriana canta em casa, no chuveiro, em bares, nas festas de amigos e em teatros musicais.

adriana mitre

Já pensei em ser cantora. Largar um futuro promissor como jornalista e me inserir nos palcos da vida em troca de pão. Não que eu ainda não pense em continuar meus projetos musicais. Mas é que a gente bem sabe que só de pão ninguém vive. E se vive, não é por escolha. Como já diziam os Titãs, “a gente não quer só comida...”. Também queremos educação, saúde, transporte, aulas de piano, teoria musical, técnica vocal… Faz-se as contas e depois de completar seus 20 e poucos anos (a idade é mero exemplo e pode ser alterada de acordo com a experiência musical de cada um), você percebe que quer e precisa mais do que cerveja como pagamento do seu trabalho. Sim. T-R-A-B-A-L-H-O. Não é só os seus pais que acham que o que você faz é hobby, os donos de bares e promoters de merda também acham que é brincadeira. Afinal, o que é que se faz, normalmente, no sábado à noite? Quantas vezes não ouvi “Hoje nós não lucramos. O dinheiro só vai dar para cobrir os custos”. E o que são os custos? Ah, sim! As pessoas que trabalham: donos de bares, promoters, garçons, faxineiras, seguranças… Para que a coisa não fique tão feia, eles tentam te consolar não cobrando sua cartela de consumação. Mas eu só bebi uma cerveja. Paciência. Mas eu gastei gasolina, deixei de ir no casamento da minha prima e tenho a conta do celular pra pagar. Paciência de novo. E haja paciência e amor à música para aguentar tanto desrespeito. Na hora de dividir as despesas fica fácil, queria ver dividir os lucros! Depois de tanto murro em ponta de faca, conclui-se que é preciso ter uma segunda profissão, ou uma primeira, dependendo do ponto de vista. Há aqueles que conseguem se manter, mais ou menos, na mesma área: dão aulas de música, viram produtores de bandas, aprendem a ser luthier de intrumentos musicais. Aos outros, surgem a oportunidade de decobrirem a paixão por outras profissões, ou a infelicidade de terem que conviver com outras atividades. Conheço advogados, biólogos, jornalistas, publicitários, professores, engenheiros, veterinários. Todos músicos.


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