3° Grande Baile Místico - 2023

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da Ilha de Santa Catarína - 2023

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC Reitor Dilmar Baretta Vice-Reitor Luiz Antonio Ferreira Coelho Pró-Reitora de Administração Mariana Fidelis Vieira da Rosa Pró-Reitor de Planejamento Alex Onacli Moreira Fabrin Pró-Reitora de Ensino Gabriela Botelho Mager Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade (Proex) Alfredo Balduíno Santos Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Francisco Henrique de Oliveira Museu da Escola Catarinense (MESC) Coordenadora: Profª Sandra Makowiecky

Dados Internacionais de Catalogação (CIP) T315

3º Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina - olhar feminino e magia : o fabuloso em Vera Sabino e Jandira Lorenz / organização Maria Isabel Orofino, Vera Collaço e Sandra Makowiecky – Ilha de Santa Catarina : Ondina Editora, 2023. 150 p. : il. color. ; Inclui bibliografia ISBN 978-65-995982-3-4 1. Folclore - Florianópolis. 2. Lendas. 3. Festas folclóricas. 4. Arte de rua. 5. Arte e mitologia. 6. Cultura popular. 7. Mito e magia I. Orofino, Maria Isabel. II. Collaço, Vera. III. Makowiecky, Sandra. CDD (21. ed.) 398.0981641 Ficha catalográfica elaborada por Ana Claudia Philippi CRB 14/525

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maria isabel orofino, vera collaço e sandra makowiecky

Organização

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da Ilha de Santa Catarína - 2023

Olhar feminino e magia: o fabuloso em Vera Sabino e Jandira Lorenz

Ilha de Santa Catarina primavera de 2023

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© 3º Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina Conselho curador (2019-2023): Sandra Makowiecky, Gelci José Coelho (Peninha - em memória), Sílvia Lenzi, Vera Collaço, Sandra Ramalho e Oliveira, Sandra Meyer Nunes, Zena Becker, Maria Isabel Orofino (Bebel), Roseli Pereira, Laudelino José Sardá e Roberto Costa. Coordenação geral: Bebel Orofino Coordenação de produção: Patrícia Amante e Alessandra Gutierrez Revisão: Cláudia Bechler Produção executiva: Zena Becker e Sandra Makowiecky Fotografia: Luiza Filippo; Nilva Damian, Sandra Puente e Líliane Giordano (2CKS Fotografias); Arte e diagramação: Marli Henicka Capa: Arte digital sobre fotografia original de Tuane Ferreira. Verso da capa: Pau de fitas Bruxólico, de Gelci José Coelho (Peninha). Realização: Museu da Escola Catarinense – MESC/UDESC Bloco Místico Casa dos Açores de Santa Catarina Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes - FFC/SETUR/PMF Feira de Cascaes – FFC/SETUR/PMF Patrocínio: Engie Lojas Koerich Apoio: SESC SC Casa da Memória – FFC/SETUR/PMF Galeria de Arte do Mercado Público – FFC/SETUR/PMF 30 Por Segundo

Sede: Museu da Escola Catarinense – MESC Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Rua Saldanha Marinho, 196 - Centro Florianópolis, SC - 88010-450 6


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SUMÁRIO

10 APRESENTAÇÃO BEBEL OROFINO 22

PREFÁCIO SANDRA MAKOWIECKY

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PONTO DE VISTA ZENA BECKER

AÇÃO 1: O BLOCO MÍSTICO NO CARNAVAL DO BERBIGÃO DO BOCA 28

A ORIGEM DO BLOCO MÍSTICO: O CARNAVAL É A NOSSA PRAIA – ALESSANDRA GUTIERREZ GOMES E PATRÍCIA AMANTE

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GALERIA: FOTOS DE LUIZA FILIPPO, NILVA DAMIAN E SANDRA PUENTE (2CKS)

AÇÃO 2: O MURAL O BAILE MÍSTICO DE VERA SABINO 52

VERA SABINO EM MURAL URBANO: UMA FRATURA NA REALIDADE COTIDIANA – SANDRA RAMALHO E OLIVEIRA

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GALERIA: FOTOS DE NILVA DAMIAN E SANDRA PUENTE (2CKS)

AÇÃO 3: CIRANDA MÍSTICA 70

ARQUIVOS MÓVEIS NAS ARTES VISUAIS E NA DANÇA – SANDRA MEYER NUNES

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O UNIVERSO MÍTICO NA ARTE DE VERA SABINO – LÉLIA PEREIRA NUNES

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O FABULOSO EM JANDIRA LORENZ – SANDRA MAKOWIECKY E LUANA WEDEKIN

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JANDIRA LORENZ: O MUNDO COMO DESENHO – SANDRA MAKOWIECKY E VANESSA BORTUCAN DE OLIVEIRA

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SOBRE A EXPOSIÇÃO O FABULOSO EM JANDIRA LORENZ E O LANÇAMENTO DO LIVRO PALAVRAS MÁGICAS DE BEBEL OROFINO – SANDRA MAKOWIECKY

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RESENHA: PALAVRAS MÁGICAS: MAIS UMA PRODUÇÃO COM A MARCA BEBEL OROFINO – SANDRA RAMALHO E OLIVEIRA

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AÇÃO 4: OUTUBRO MÍSTICO 2023 122

A CRIAÇÃO E A RESISTÊNCIA DO OUTUBRO MÍSTICO: O MÊS DA MAGIA NA ILHA – BEBEL OROFINO

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ISTEPORAS BRUXÓLICO: CHANCHADA COM GOSTO DE MAGIA – BEBEL OROFINO

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A 22ª MOSTRA DE CINEMA INFANTIL DE FLORIANÓPOLIS RECEBE O

BAILINHO MÍSTICO – BEBEL OROFINO

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LIVROS MÁGICOS: UMA VIAGEM MÍSTICA – BEBEL OROFINO

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BAILINHO MÍSTICO NO ARMAZÉM RITA MARIA – BEBEL OROFINO

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CARNAVAL DE PRIMAVERA E TEATRO DE E NA RUA: FESTAS NOS ESPAÇOS PÚBLICOS – VERA COLLAÇO

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ENFIM, O CORTEJO ALGÓRICO GRANDE BAILE MÍSTICO 2023 – BEBEL OROFINO

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SHOW CALDEIRÃO DO BRUXO COM O MENESTREL VALDIR AGOSTINHO – BEBEL OROFINO

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HOMENAGEADAS DO ANO: VERA SABINO E JANDIRA LORENZ

193 AGRADECIMENTOS: A FORÇA DA UNIÃO 198

HOMENAGEM ESPECIAL: O PENINHA NOS DEIXOU. E AGORA?

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APRESENTAÇÃO SOLTAMOS AS BRUXAS! BEBEL OROFINO1

A força do sonho

Há uma realidade nossa que de tão volátil quase nos escapa. Essa realidade nasce de entre lendas como se erguessem gigantes, gnomos, delfins e duendes de dentre névoas. Mas o que se ergue na verdade representa o que há de fantástico, sumarento e rico no país. Uma lenda é verossímil? Sim, porque assim o povo quer que seja. De pai para filho, de mãe para crianças, é transmitida uma fabulação de maravilhas que estão atrás da História. Como ao redor de uma fogueira em noite escura, conta-se em voz sussurrante um ao outro o que, se não aconteceu, poderia muito bem ter acontecido nesse imaginoso mundo de Deus. E assim oralmente se escreve uma literatura plena e suculenta, em que o espírito secreto de todo um povo vira criança e brinca de “faz de conta”. Brinca? Não, é muito a sério. Pois o que é que pode mais do que um sonho? (...) Clarice Lispector, 1976.2

SABOR DE MISSÃO CUMPRIDA Será que foi um milagre que fez com que no domingo, dia 29 de outubro de 2023, as torrenciais chuvas de primavera parassem para que o 3º Cortejo Alegórico Grande Baile Místico finalmente pudesse passar? Após uma longa espera de quatro anos (por causa da pandemia da Covid-19), e em 2023 com várias 1 Coordenadora de Produção do Movimento Baile Místico – agora Bloco Místico – de 2019 a 2023. Professora de Mídia e Comunicação. Doutora ECA/USP. PosDoc REDE CLACSO/PUC SP. Pesquisadora independente. Este projeto foi acolhido pelo Museu da Escola Catarinense da Universidade do Estado de Santa Catarina sob a orientação da sua Diretora Professora Dra. Sandra Makowiecky, no período de 2019-2023. 2 LISPECTOR, Clarice. Doze lendas brasileiras: como nasceram as estrelas. Rocco: Rio de Janeiro, 2019. 10


“Não foram bruxas que queimaram. Foram mulheres...” Dulce Tupy

mudanças de agenda por causa das incessantes águas no mês outubro, sim: as bruxas nos protegeram. E finalmente o fantástico cortejo alegórico pode voltar às ruas do Centro Histórico de Floripa. E nesta edição em homenagem a duas incríveis artistas: Vera Sabino com uma linda Ondina da Ilha em um mural de arte de rua, realizado por Tuane Ferreira. E Jandira Lorenz que com sua mito-poética inspirou a criação de uma ala só para as suas Bruxas Lunares. Cumpriu-se assim a promessa de que a cidade receberia, de novo, o incrível carnaval mito-mágico que encantara a todos no ano de 2019. Com o cortejo na rua, encerramos um ciclo de quatro anos de trabalho organizado a partir do conceito de Cooperação Institucional. Assim, este texto brota como um relatório final deste percurso e vem carregado de alegria, emoção e muita gratidão. Em nome do Conselho Místico ou Conselho Curador – grupo trabalhou de modo colaborativo desde o início e que viabilizou a realização desse projeto – composto por: Gelci José Coelho (em memória), Sandra Makowiecky, Sílvia Lenzi, Vera Collaço, Sandra Meyer Nunes, Sandra Ramalho, Zena Becker, Roseli Pereira, Laudelino Sardá e Roberto Costa - agradecemos a todas as pessoas, artistas e técnicos, envolvidos neste encontro de coletivos culturais que se tornou o Movimento Baile Místico. E, também em nome da nova Trempe de Coordenação do Bloco Místico, da qual faço parte com Patrícia Amante e Alessandra Gutierrez Gomes e que surgiu no Carnaval do Berbigão do Boca 2023 renovando assim a proposta, a nossa gratidão eterna a todos os foliões mágicos e metamórficos que chegaram para encantar a cidade. Desde o surgimento do projeto, a lista de adesão só cresce! Benza Deus! E agora, correndo o risco de deixar de lembrar de alguém, é preciso citar aqui a participação comprometida de Jackson Cardoso, Denise de Castro, Jone Cesar de Araújo, Valdir Agostinho, Laércio Luiz, Carolina Borges de Andrade, Sandra Espíndola, Nado Garofallis, Rodolfo Kowalsky, Dionísio Damiani Filho, Lúcia Prazeres, Magali Schneider, Andréa Rihl Gomes, Márcia Konder, Luiza Filippo, Nilva Damian, Sandra Puente, Fernando Guedert, Nando Pereira Oliveira, Sérgio Ferreira, Valdemir Klamt e Kamila Debortoli. Sem vocês, o movimento não chegaria à apoteose que experimentamos em 29 de outubro de 2023 com o grande desfile.

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Fotos de Luiza Filippo

cortejo alegórico grande baile místico 2023

Não se trata de um desfile com figurantes contratados. Não se trata de figurinos desenhados por um único profissional, artista. Cada integrante é criador de seu personagem fantástico, ao seu próprio modo e com sua liberdade de expressão. Há uma curadoria que preza pela originalidade dos elementos materiais e simbólicos com base na cultura da Ilha de Santa Catarina. E as pessoas desfilam pela alegria de participar e, principalmente, por adesão, movidas pela causa do projeto, que é a defesa da cultura popular original da Ilha de Santa Catarina com base em sua história natural e social. Em nosso caso, com foco no universo fantástico e mito-mágico do seu imaginário popular, sobretudo nos modos como este foi traduzido por um grande número de seus artistas (em diversas formas culturais), os quais serão homenageados a cada ano e/ou edição do evento. O 3º Cortejo Alegórico Grande Baile Místico, no domingo de Sol de 29 de outubro de 2023, em pleno mês de muita chuva, saiu do Largo da Catedral, em frente à Praça XV, com um carnaval de seres mágicos com a participação de mais de 500 integrantes metamorfoseados em bruxas lunares, estelares e outras, bruxos de muitos tipos, benzedeiras, boitatás, vacatatás, sereias, lobisomens, fantasmas, almas penadas, piratas, pescadores assustados, rendeiras encantadas, personagens imortais, boi de mamão, maricota e bernunça e muitos outros. O cortejo, entoado por três bandas – Amor à Arte, Bateria do Bloco Baiacu de Alguém e Bloco Cores de Aidê – tomou rumo em direção ao mural de Antonieta de Barros, na esquina da Tenente Silveira com a Deodoro. Ali desceu em direção ao Largo da Alfândega, onde culminou com o show do menestrel Valdir Agostinho. Um auto! Um auto da Ilha da Magia. 12


aula-performance berro pelo desterro: fantasmas de anhatomirim e o 1º cortejo alegórico grande baile místico (2019).

Até o momento, o Baile Místico – hoje Bloco Místico – já homenageou os seguintes artistas que integram o chamado Movimento Mito-mágico nas artes catarinenses3: (i) Gelci José Coelho (autor do conto que inspira o Baile Místico) e (ii) Franklin Cascaes (patrono do projeto); (iii) Ernesto Meyer Filho; (iv) Vera Sabino e (v) Jandira Lorenz. Os homenageados em 2024 serão Eli Heil – principal expoente feminina do Movimento Mito-mágico – e Hassis, no centenário desse bruxo maior. O que se viu naquele domingo de outubro foi apaixonante e literalmente encantador. Crianças embevecidas. Idosos deixando o número do telefone e pedindo para participar na próxima edição. Grandes nomes da arte local desfilando. A maior reunião de coletivos de artistas dos últimos tempos. E o mais criativo e comprometido bloco de foliões com uma grande quantidade de fantasias originais, inspiradas na pesquisa sobre a produção de artistas visuais do chamado Movimento Mito-mágico nas artes catarinenses. Revela-se aí um verdadeiro tesouro cultural que merece toda atenção e respeito. Uma pequena amostra do incrível acervo de narrativas de realismo mágico, raríssimo em todo o Brasil e que compõe o patrimônio cultural imaterial da Ilha de Santa Catarina, fortemente influenciada pelo repertório medieval luso-açoriano, em mescla com a presença africana (de vários grupos) e indígenas, majoritariamente guaranis.

A CIDADE PEDIU BIS... Tudo começou no dia 4 de outubro de 2019, uma sexta-feira. O 1º Grande Baile Místico aconteceu de repente, sem aviso prévio. Num susto de arte! Um dia de evento apenas, mas com uma programação que ficou na história: a aula-performance Berro pelo Desterro: fantasmas de Anhatomirim, seguida de debates e fechando o dia com o Cortejo Alegórico Grande Baile Místico, inspirado na lenda Baile de Bruxas em Itaguaçu, de

3 Adalice Maria de Araújo. Mito e magia na arte catarinense. Tese de Livre Docência. Universidade Federal do Paraná. Editora da UFPR, 1973. 13


autoria de Gelci José Coelho, o Peninha, o primeiro homenageado do projeto. Pela primeira vez a cidade se deparava com os personagens de suas lendas e mitos passeando pelas ruas: as bruxas conduzindo a festa que contava com a participação de lobisomens, boitatás, sereias e outros seres mágicos, em tamanho real, tridimensional, desfilando em cortejo. Um festival mito-mágico com um elenco fantástico de alegorias multicoloridas. Nós, o bruxaredo, pedíamos licença para passar! A emoção foi enorme. Quem viu, amou! E a cidade pediu bis! Mas... Veio a pandemia! E o cortejo só conseguiu voltar para as ruas quatro anos depois. Quatro longos anos de luta e espera! Certa tarde de quarta-feira, antes de partir, o Peninha me disse na sua cozinha-sala que a gente nunca mais veria um desfile como aquele de novo. Seguramos o projeto com perseverança pois promessa é dívida! O grupo comprometeu-se a trazer o cortejo de volta. E o resultado em 2023 foi tão maravilhoso que fez valer cada gota de suor e lágrima, consagrado o projeto com muitas merecidas gargalhadas ao final! Uma benção! Pois agora, lá no céu, o Peninha viu o cortejo de novo! E deve estar muito, muito feliz, pois fica evidente que os artistas que desfilaram estão comprometidos com uma causa deixada por ele: valorizar a cultura local e exigir um museu para a monumental obra de Franklin Cascaes. O Bloco Místico exige a exposição dos 44 conjuntos em cerâmica, 400 desenhos a bico de pena e inúmeras anotações de campo de autoria do professor Franklin Joaquim Cascaes. Obra valiosíssima para a cidade, sua cultura, sua memória, identidade e patrimônio cultural. “A cidade precisa da obra do Franklin Cascaes”, dizia uma das faixas levadas por bruxas, lobisomens, bichos do jogo e fantasmas. O projeto, que sempre contou com a orientação e apoio do seu conselho curador, exigiu um fiel trabalho de coordenação de produção, posição que ocupei ao longo de todo o percurso de 2019-2023. Foram quatro anos de trabalho realizado como colaboradora junto ao Museu da Escola Catarinense (MESC/ UDESC), com o apoio integral da Prof. Sandra Makowiecky, sua diretora. Essa posição no projeto garantiu a mim uma “entrada em campo” privilegiada para observar o cenário da produção cultural local em termos das condições e estruturas de suas instituições, bem como suas políticas públicas e o mercado cultural.

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Nilva Damian e Sandra Puente (2CKS)

Luiza Filippo

rodrigo rizo e taune ferreira pintando o mural o baile místico de meyer filho e bordados para exposição – grupo linhas do corpo (2021).

No início do percurso, registramos o projeto no Cartório de Títulos e Documentos como proposta coletiva. Na sequência, surgiu a demanda de que o cortejo, para que fosse autoral, tivesse um hino. Foi quando tomei a iniciativa e inventei uma música e a letra, apenas como exemplo. O pessoal gostou e o Hino do Baile Místico acabou pegando. Ondina chamou as filhas e os filhos do nosso lugar, nativos ou adotivos, mas que estejam comprometidos com a preservação do patrimônio natural e cultural da Ilha de Santa Catarina de Alexandria, pedindo proteção à padroeira do lugar. Assim, canta o hino: Ondina vai chamar As filhas e os filhos do nosso lugar Hoje tem música, dança e festa, Iemanjá No pedacinho de terra perdido no mar, Ondina (bis) O velho bruxo falou Que nas águas do sul do mundo Onde há o mar de um azul profundo Onde Caboto aportou E ali se apaixonou Pelo encanto e perfume das suas matas Sentiu saudades da sua amada E à Santa Catarina implorou Santa Catarina de Alexandria Protegei o Baile Místico A linda festa da Ilha da Magia (bis) A partir de agosto de 2019, desde as primeiras reuniões e decisões tomadas em Conselho, ocupei o lugar de coordenadora de produção do Movimento Baile Místico, em praticamente todas as suas ações até 2023.

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ROTEIRO DE AÇÕES CULTURAIS REALIZADAS NO PERÍODO 2019-2023 O projeto teve as dependências do Museu da Escola Catarinense (MESC/UDESC) como principal cenário. Nossos agradecimentos à carinhosa equipe pela atenção e cuidado: Jucélia Borges (nossa guardiã na portaria), Cassiano Reinaldin, Trika Guimarães, Seu Adriano de Andrade, Dona Eliane Fernandes, Fernanda Barbosa, Beatriz Goudard, Cristina Roschel Pires e Patrícia Anselmo Lisowski. O “bruxaredo” será eternamente grato. A seguir apresentamos uma relação de todas as ações culturais realizadas pelo projeto Baile Místico, desde o início, aqui citadas por ordem cronológica: 23/03/19 – Lançamento do livro autobiográfico de Peninha, Gelci José Coelho, com o título Narrativas absurdas, verdades contadas por um mentiroso (Santa Editora). 4/10/19 – Aula-performance Berro pelo Desterro: fantasmas de Anhatomirim, com direção de Vera Collaço e Sandra Meyer Nunes. 4/10/19 – Ciclo de palestras e mostra de vídeo Por que Desterro perdeu para Florianópolis?, com a participação de Vera Collaço, Rodrigo Rosa e Eliane Veras da Veiga. 4/10/19 – Com a cooperação e coordenação de Zena Becker e Márcia Regina Teschner, da Associação FloripAmanhã, e de Sílvia Lenzi, a pequena Feira Gastronômica. 4/10/19 – Com a cooperação de Ana Lúcia Coutinho e Adriana Aparecida de Brito, da Fundação Catarinense de Cultura, e de Sílvia Lenzi, uma pequena Feira de Artesanato. 4/10/19 – 1º Cortejo Alegórico Grande Baile Místico, às 18h, percorrendo as ruas do centro histórico da cidade, sob direção de Vera Collaço, Sandra Meyer Nunes e minha. 10/10/20 – Lançamento no site da FloripAmanhã e MESC de videodocumentário com depoimentos sobre o evento, neste momento impedido de acontecer por conta da covid-19. 10/10/20 – Lançamento no site da FloripAmanhã e MESC do PDF da revista-catálogo 2019: 1º Grande 16


Marco Cezar

o conselho místico (2021).

Baile Místico – a cidade reconta a sua história e as suas lendas, organizado por Vera Collaço e por mim, pela Editora da Udesc, com o apoio da Prof. Sandra Makowiecky; 20/11/20 – Lançamento da revista-catálogo 2019: 1º Grande Baile Místico – a cidade reconta a sua história e as suas lendas, em formato impresso em papel. 7/12/21 – Lançamento da obra mural O Baile Místico de Meyer Filho, realizada por Rodrigo Rizo. Painel de 264 m², com 33 metros de altura, localizado na face leste do lendário Edifício Comasa, na Rua Felipe Schmidt, 58 – no coração da cidade. 23/3/22 – Lançamento da exposição Bordados para Meyer Filho, organizada por Susan Mariot, Sílvia Lenzi e Vera Collaço, com a participação de 25 bordadeiras. 23/3/22 – Lançamento do livro Lendas da Ilha de Santa Catarina, de autoria minha e de Peninha (Gelci José Coelho), da Ondina Editora. 23/3/22 – Lançamento da exposição Ínsula, de Letícia Martins, com as ilustrações especialmente criadas para o livro Lendas da Ilha de Santa Catarina. 10/8/22 – Recebimento impresso da revista-catálogo 2º Grande Baile Místico: o universo fantástico de Meyer Filho, organizada por Vera Collaço, Sandra Makowiecky e por mim.

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Nilva Damian

Sandra Puente

lançamento do mural o baile místico de vera sabino (2023).

11/02/23 – Lançamento do Bloco Místico, em parceria com Patrícia Amante e Alê Gutierrez, com o amparo do lendário bloco de carnaval Berbigão do Boca, que praticamente salvou o projeto. 23/3/23 – Lançamento da obra mural O Baile Místico de Vera Sabino, realizada por Tuane Ferreira, com a participação de Paula Borges na captação e produção, da Harmônica Artes e Entretenimento. Novamente outro painel de 264 m², com 33 metros de altura, localizado agora na face oeste do lendário Edifício Comasa, na Rua Felipe Schmidt, 58. 4/5/23 – Realização do seminário Ciranda Mística, em parceria com a Prof. Sandra Makowiecky no MESC, com ciclo de palestras sobre as obras de Meyer Filho, Vera Sabino e Jandira Lorenz. 4/5/23 – Lançamento do livro Palavras Mágicas, de minha autoria, com ilustrações de Jandira Lorenz, no MESC. 4/5/23 – Lançamento da exposição O fabuloso em Jandira Lorenz, com curadoria de Sandra Makowiecky e Juliana Crispe, no MESC. 01/10/23 – Lançamento da programação Outubro Místico 2023, por iniciativa do Bloco Místico, sob a coordenação de Patrícia Amante e Alê Gutierrez. 13/10/23 – Apresentação do espetáculo teatral Isteporas Bruxólico, com direção de Alessandra Gutierrez, integrando a programação do Outubro Místico. 17/10/23 – Participação na exposição de artes visuais do projeto Livro de Artista, nesta edição com o título Livros Mágicos: uma viagem mística, e sob a coordenação de Patrícia Amante em A Grupa: 13 mulheres artistas. O projeto tomou como referência o livro Palavras mágicas: aventuras e mistérios na Ilha de Santa Catarina para crianças, de minha autoria, pela Ondina Editora. 12/10/23 – Apresentação do Bailinho Místico na Mostra de Cinema Infantil, com a participação de Valdir Agostinho, Alê Gutierrez e bruxas do Desterro, Francolino e Andréa Rihl, com produção de Roseane Panini. 18


Nilva Damian

bloco místico – carnaval do berbigão do boca (2023).

28/10/23 – Apresentação do Bailinho Místico no Armazém Rita Maria, com a participação de Valdir Agostinho, Alê Gutierrez e bruxas do Desterro, Francolino e Andréa Rihl, com produção de Roseane Panini. 29/10/23 – Finalmente, a realização do 3º Cortejo Alegórico Grande Baile Místico pelas ruas do Centro histórico da cidade, junto à Feira de Cascaes e com a participação de mais de 500 artistas no desfile, a maior reunião de coletivos culturais já vista na cidade. Um conjunto de conjuntos, como a obra de Franklin Cascaes, que reúne 44 conjuntos em cerâmica. Uma obra que só faz sentido em conjunto e junto ao povo. Por isso exigimos neste cortejo: um museu para Franklin Cascaes! 29/10/23 – Realização do show Caldeirão do Bruxo, com Valdir Agostinho e banda, junto à Feira de Cascaes. 27/11/23 – Entrega do PDF da terceira revista-catálogo 3º Grande Baile Místico - Olhar feminino e magia: o fabuloso em Vera Sabino e Jandira Lorenz. Essa ação marca a finalização da primeira etapa do projeto, já com a transição realizada para o Bloco Místico.

27 ações de autoria coletiva, inéditas, originais! Foram muitas entregas! Seis livros, três cortejos alegóricos, duas paredes-murais, exposições de arte, vídeos, fotos, colóquios, debates, aula-performance, shows musicais, pequenas feiras, uma riqueza! O Movimento Baile Místico já deixa um legado. Dona Lina Alexandrina, querida benzedeira da Lagoa da Conceição, ensinou a Benzedura contra o medo, a qual compartilhamos aqui para que não tenhamos medo de seguir nossos sonhos e projetos. E que a vida nos ofereça oportunidades e ambientes perfeitos para que tudo aconteça. Porque, como dizia o nosso querido Peninha: “A gente quer é que aconteça!”. Vamos juntos!

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Sandra Puente

bebel orofino e silvia lenzi

“Pai Nosso João Canteiro Bem me disse o São Mateus Que eu andasse onde quisesse E que medo eu não tivesse Nem da sombra Nem da lomba Nem daquela mais pesada Que tem a palma da mão furada E a unha entravada”

Que as bruxas continuem nos protegendo para que, daqui a adiante, possamos formar um instituto ou ainda ponto de memória para acolher as próximas ações deste encantado coletivo cultural. E assim divulgar e valorizar a mitologia e o universo fantástico da Ilha de Santa Catarina. Que assim seja, por todos os santos dos santos, amém!

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convite para o grande baile místico 2023 com as obras pau-de-fitas bruxólico e ser encantado de gelci josé coelho - peninha, o mentor e guardião do projeto.

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PREFÁCIO

SANDRA MAKOWIECKY1

Este livro encerra uma trilogia e consagra uma construção que começou no início do ano de 2019, com a proposta de Bebel Orofino (sim, tudo começou com ela) de realizar uma festa com o conto de Peninha sobre as bruxas de Itaguaçu, e com o acolhimento da ideia por parte de uma instituição da nossa querida Universidade do Estado de Santa Catariana, Udesc, pelo Museu da Escola Catarinense, sob minha coordenação, e por um Conselho Curador que logo depois se constituiu. O Conselho Curador do Baile Místico era formado por mim, Gelci José Coelho (Peninha), Sílvia Lenzi, Vera Collaço, Sandra Ramalho e Oliveira, Sandra Meyer Nunes, Zena Becker, Maria Isabel Orofino (Bebel), Roseli Pereira, Laudelino José Sardá e Roberto Costa. Lembro como se fosse hoje: Bebel chegando cheia de entusiasmo, uma folha rabiscada de propostas e os olhos brilhando, com aquele sorriso que abre todas as portas. Não há como dizer não para a Bebel, ela é encantadora de serpentes e dona de uma capacidade de produção impressionante. E, convenhamos, era uma ideia muito boa. Cansada que estava de eventos mais acadêmicos, eu escutei tudo atentamente, tanto a proposta dos fantasmas de Anhatomirim quanto a festa das bruxas, e sugeri então o nome Baile Místico. Na hora deu a liga. De lá para cá, foi um “Deus nos acuda”. Ou melhor dizendo, um “Bruxas nos acudam”! Os livros – vamos aos livros, pois tem muita história para contar, então o jeito é focar nos livros . Em outubro de 2019, o MESC (Museu da Escola Catarinense) sediou a primeira edição do Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina, e o evento é descrito em detalhes no livro lançado em 2020, chamado 1º Grande Baile Místico – A cidade reconta a sua história e as suas lendas, organizado por Vera Collaço e Maria Isabel Orofino, publicado por meio da Editora Udesc. O livro oferece uma síntese de todo o evento de 2019, com seus dois momentos marcantes: 1) a aula-performance Berro pelo Desterro: fantasmas de Anhatomirim, com o debate sobre a Revolução Federalista de 1894; e 2) um panorama sobre o desfile alegórico Cortejo Grande Baile Místico, com as lendas que o inspiram, a saber: Festa de Bruxas em uma tarrafa de pescaria, de Franklin Cascaes, e Baile de Bruxas em Itaguaçu, de Gelci José Coelho (Peninha). Traz também uma galeria com as melhores fotos do evento. 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC e Diretora do Museus da Escola Catarinense, MESC/UDESC. 22


No ano de 2020, veio a pandemia de Covid-19, mas não paramos com o mundo das ideias. Todavia, não teve baile em 2020, e seguiu não acontecendo nos anos de 2021 e 2022. Mas nossas cabeças continuavam fervilhando e conseguimos uma enorme conquista. No ano de 2021, a Câmara Municipal aprovou por unanimidade o Projeto de Lei n. 10.790, de 5 de julho de 2021, proposto pelo Conselho Curador do Baile Místico, criando o Outubro Místico, cujos objetivos são: valorizar o patrimônio histórico artístico e cultural do município de Florianópolis; difundir a cultura mitológica local; e promover palestras, debates, encontros, feiras, eventos e seminários com foco na temática para o público em geral. Ainda, mesmo na pandemia dos anos de 2020 e 2021, preparamos muitas ações que estão descritas no segundo livro do Baile Místico, que recebeu o nome de 2º Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina 2021: o universo fantástico de Meyer Filho, organizado por Vera Regina Martins Collaço, Maria Isabel Orofino e Sandra Makowiecky, publicado por meio da Editora Udesc. A primeira parte do livro traz um debate sobre a cidade como obra de arte, e o painel O Baile Místico de Meyer Filho como símbolo; textos, poemas e um ensaio fotográfico sobre o processo de realização do mural, registrando o trabalho de Rodrigo Rizo e Tuane Ferreira. A segunda parte do livro comenta a exposição Bordados para Meyer com a participação de 29 bordadeiras. Já na última parte, há uma menção ao livro Lendas da Ilha de Santa Catarina, de Bebel Orofino e Gelci José Coelho (Peninha), com ilustrações de Letícia Martins e publicado pela Ondina Editora. O Museu da Escola Catarinense seguiu sendo palco da exposição de bordados e do lançamento do livro, além de sede do Baile Místico. Chegamos ao ano de 2023 já com uma enorme produção para mostrar no livro que ora se apresenta e se chama 3º Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina. Olhar feminino e magia: o fabuloso em Vera Sabino e Jandira Lorenz, organizado por Vera Collaço, Maria Isabel Orofino e Sandra Makowiecky, publicado por meio da Udesc. Neste livro, muitas ações são descritas. Para começar, veremos a união na folia do Berbigão do Boca com o Bloco Místico no carnaval, tomando as ruas com nossos personagens históricos e lendários, imaginários, surrealistas. Também apreciaremos o mural O Baile Místico de Vera Sabino e a sua concepção. Outro evento sensacional foi a Ciranda Mística, realizada no Museu da Escola Catarinense, com a presença das artistas Vera Sabino, Jandira Lorenz e Sandra Meyer Nunes para falar sobre a obra de seu pai, o artista Meyer Filho. Um encontro raro, uma verdadeira 23


celebração que ficará registrada em textos sobre Vera Sabino, Jandira Lorenz e Meyer Filho. Acompanharemos a exposição de obras de Jandira Lorenz em O fabuloso em Jandira Lorenz, sendo algumas das obras as ilustrações do livro Palavras Mágicas, de Bebel Orofino. Por fim, teremos o Grande Baile Místico na Feira de Cascaes 2023, uma festa muito esperada, adiada por conta das chuvas que assolaram o estado de Santa Catarina no mês de outubro de 2023. Poderia ser isso uma síntese? Não creio. Os livros são os registros, a documentação que fica, mas não são eles que causarão a transformação. A sede do projeto foi o Museu da Escola Catarinense, e acreditamos que uma etapa se encerra agora. O projeto cresceu, tomou as ruas, tomou a cidade, contagiou artistas, artesãos, apaixonados pela ilha. Toda a ideia original foi implantada e se consolidou em uma ação cultural transformadora. “Mais que executar, uma ação cultural de caráter transformador, deve liberar potencialidades da sociedade, abrindo espaço para a autonomia e o protagonismo da própria sociedade”, segundo Turino (2020). Afirma o autor que a cultura forma consciências, oferece alternativas, amplia o repertório cultural do povo; informa, democratiza o conhecimento, respeita as diferenças, fomenta a produção criativa. Convida as pessoas a refletirem sobre sua realidade, cria e transforma. A grande síntese é esta: o Baile Místico é uma ação cultural transformadora que, no seu quinto ano de existência, plantou todas as sementes que já deram desejados frutos. A cidade adotou o projeto, como era nossa intenção inicial, é a maior conquista. Em processos de transformação cultural, são as mentalidades que mudam mais lentamente, mas, sem um início de mudança neste campo, não há transformação possível. Sem falsas modéstias, foi uma revolução. O tempo confirmará o que estamos escrevendo agora. Um brinde ao final de um; outro ao início de novo ciclo. E tudo se renova e segue. Uma frase do hino do Baile Místico é nossa prece final para um novo começo nas águas do Sul do mundo, num pedacinho de terra perdido no mar: “Santa Catarina de Alexandria, protegei o Baile Místico, a linda festa da Ilha da Magia”.

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PONTO DE VISTA

ZENA BECKER1

FLORIPA PRECISA SE UNIR PARA VALORIZAR A CULTURA MÍSTICA Sem desmerecer nem desdenhar “culturas importadas” que acabam sendo abraçadas pela população, especialmente os mais jovens, é hora de Florianópolis criar uma frente ampla – que vai de empresários, escolas, artistas até o poder público – para consolidar e preservar a sua inigualável cultura mística. Ainda mais neste ano de 2023, em que mais um bruxo desta Ilha de magias e mitologias ascendeu aos céus e foi se juntar àquele com quem ele próprio trabalhou incansavelmente para imortalizar, o eterno Franklin Cascaes. É a este trabalho do nosso Gelci Coelho, o Peninha, que nos deixou no mês de março, que me refiro como modelo para esta “frente ampla”: pesquisar incansavelmente, ter um calendário anual, promovendo ações e eventos como o Baile Místico, atrair crianças e jovens para as maravilhas e folclores de sua própria terra, e – fundamental – obter os investimentos necessários, especialmente junto à iniciativa privada, para dar sustentabilidade a esse patrimônio que é de todos nós – e a todos nós cabe preservar. Para se ter uma ideia do tamanho e do valor desse patrimônio, vamos recorrer ao precioso texto de Peninha intitulado As Bruxas, em que, ao definir que “o inimaginável é absolutamente possível na Arte de Franklin Cascaes”, o pesquisador revela que “a Ilha de Santa Catarina é o único mundo aceitável, segundo Cascaes, e foi reservada pelo Arquiteto do Universo para que fosse habitada pelos seres sobrenaturais, logo, deuses também”. É grandioso, é majestoso, universal. Então, aqui neste texto, aproveito para propor essa “frente ampla” pela cultura mística de Floripa e, ao mesmo tempo, para homenagear esses dois bruxos que viveram para ajudar a construir e preservar esse patrimônio único da Ilha. Falar de Franklin Cascaes é falar de Peninha, e falar de Peninha é falar de Franklin Cascaes. Os dois nunca se separaram, e agora, com certeza, estão mais juntos do que nunca. E com eles os famosos “elementais aéreos, como os boitatás e as bruxas, que voam quando querem. Os elementais terrestres, lobisomens, saci, curupira, caipora que vagam pelos caminhos ermos da Ilha de Santa Catarina. Os elementais aquáticos, como as sereias, as ondinas, a boiguaçu que, sendo uma cobra,

1 - Coordenadora de Projetos Especiais da Prefeitura de Florianópolis – PMF. 25


também é terrestre e aquática. Neste Universo dominam seres inusitados, convivendo numa harmonia de extrema serenidade”, como descreve Peninha em As Bruxas. Deste patrimônio encantado e surreal, lembramos também da mais famosa lenda contada por Gelci Coelho, o Baile de Bruxas em Itaguaçu. As icônicas pedras da praia no bairro de Coqueiros, na parte continental de Florianópolis, seriam bruxas que foram petrificadas por não terem convidado o diabo para a grande festa que promoveram ali. De acordo com o informativo Notícias da UFSC, a lenda já faz parte do repertório cultural da nossa região e foi devidamente reconhecida pelo poder público municipal, que a registrou em uma placa de ferro fixada no local. As Pedras de Itaguaçu foram tombadas como Patrimônio Natural, Paisagístico e Cultural do Município em 2014. Pois é por todo esse patrimônio, seja ele material ou imaterial, que apelo agora às nossas forças vivas da comunidade que se unam para promover, preservar e deixar como herança às próximas gerações, como determinou o Arquiteto do Universo, que fez de Florianópolis e da sua Ilha da Magia lugar único entre planetas e constelações.

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AÇÃO 1 O BLOCO MÍSTICO NO CARNAVAL DO BERBIGÃO DO BOCA

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A ORIGEM DO BLOCO MÍSTICO: O CARNAVAL É A NOSSA PRAIA ALESSANDRA GUTIERREZ GOMES4 E PATRÍCIA AMANTE5

Tiiiiirititi, Tiiiiirititá! Por debaixo do telhado e por cima do silvado, avoa, avoa minha borboletinha! Nossa entrada no Movimento Baile Místico foi movida pela memória dos excelentes carnavais que a cidade já viveu. Os comentários sobre o Grande Baile Místico falavam de um cortejo alegórico com os personagens mito-mágicos da Ilha e isso nos contagiou também. Com o coração pedindo um bom carnaval, depois de tanto lockdown, procuramos a Bebel Orofino para propor alguma ação coletiva e ela nos apresentou a duas grandes figuras hoje no carnaval da Ilha: Nado Garofallis e Rodolfo Kowalsky, diretores do lendário bloco de carnaval Berbigão do Boca, patrimônio cultural da cidade. O Bloco do Berbigão do Boca, enquanto parceiro do movimento desde a sua primeira edição, acatou com alegria a vinda do Bloco Místico para a festa deles. Para nós, foi uma grande honra. Chegava então o convite para a criação do Bloco Místico, o filho legítimo do Movimento Baile Místico. A ideia era organizar não o cortejo inteiro, mas pegar carona no carnaval do Bloco Berbigão do Boca trazendo os seres mágicos das lendas da Ilha, como bruxas, bruxos, benzedeiras, boitatás, vacatatás, cabratatás, fantasmas, almas penadas, lobisomens, sereias, ondinas etc. Seguindo assim a proposta do projeto Grande Baile Místico, que tem como matrizes narrativas as lendas Festa de bruxas em uma tarrafa de pescaria, de Franklin Cascaes, e Baile de Bruxas em Itaguaçu, de Gelci José Coelho, o Peninha, que trabalhou diretamente com o mestre Franklin Cascaes por 12 anos como seu assistente. A CONVOCAÇÃO DA CATERVA Após essa primeira reunião com os organizadores do Berbigão do Boca, houve um encontro no Mercado Público, espaço cedido com o apoio de Roseli Pereira, presidente da Fundação Municipal de Cultura,

4 Coreógrafa e bailarina. Studio Ale Gutierrez. 5 Curadora e Professora de Artes Visuais. Oficinas de Arte. Centro Integrado do Cultura-CIC. 28


para a qual foram convidados os apaixonados e simpatizantes do tema “mito e magia na arte catarinense”. Era a convocação de um novo bloco para desfilar junto ao consagrado Berbigão do Boca. Sorte grande! Como sempre, quando as propostas estão caindo de maduras, a organização é rápida! Há processos para os quais a demanda social parece puxar a ação e tudo flui, todos têm muita clareza do que precisa ser feito, basta a convocação. E, claro, algumas orientações gerais sobre figurinos e fantasias, tendo como principal referência a obra de cada um dos grandes artistas da cidade que se dedicaram ao tema do mito e da magia. Na primeira reunião, mesmo em cima da hora, compareceram 36 pessoas, número ótimo para uma primeira experiência. Porém, a procura nos surpreendeu. Tivemos de limitar a entrada para o espaço fechado do Berbigão do Boca (no dia do carnaval) a 100 pessoas, e propomos aos demais que não haviam se inscrito até a data sugerida que se unissem ao grupo na hora do cortejo pelas ruas à noite, somando com todo o grupo. FANTASIAS E FIGURINOS As fantasias em Florianópolis sempre foram presentes e apreciadas nos bailes, ruas, blocos de “sujos” e concursos em todos os tempos. É importante contextualizar esse elemento dentro da manifestação carnavalesca. No entanto, com a “industrialização” do carnaval que temos hoje, trazendo um modelo meio que universal por todo o país, sente-se falta de um espaço para a manifestação criativa popular em Florianópolis, um espaço para improvisação, criação. Antes dessa “industrialização”, era comum famílias inteiras saírem de casa para ver nas ruas as fantasias, sempre com a expectativa da surpresa, do lúdico, e o Bloco Místico abriu um espaço para esse processo de criação. Junto às Sociedades Carnavalescas, e por influência delas, começaram a aparecer no carnaval desterrense as fantasias, que logo adquiriram caráter diferenciador das posições sociais. A gente fina vestia-se de conde, príncipe, duque, as suas fantasias eram de seda, de veludo e outros tecidos pesados e caros, enfeitados com lentejoulas, vidrilhos e outros adornos. Os pobres saíam de “sujo”, isto é, arrumavam uma roupa velha qualquer, vestiam-se pelo avesso, pintavam a cara 29


a primeira convocação da caterva para o bloco místico – fevereiro de 2023.

ou arranjavam uma velha máscara, em geral pavorosa. Porém, a fantasia mais popular, por ser mais barata, consistia numa simples batina preta enfeitada, conhecida por “dominó”. (Duarte, 1985, p. 6) Assim, as fantasias e adereços deveriam ao máximo buscar as referências na arte e nos demais elementos naturais da flora e fauna, bem como na cultura local. “Como Franklin Cascaes nos mostrou, há muitos elementos locais que devem ser valorizados, como as fibras naturais, flores, rendas e redes. E como o Peninha contou, houve um dia em que as bruxas também desejaram fazer um baile como aqueles do Clube 12 de Agosto para usarem babados, luvas, chapéus e casquetes, saias plissadas, saltos e todo o luxo a que tinham direito. Então as bruxas do Cascaes são mais naturais, e as do Peninha são chiquérrimas. Fiquem à vontade para escolher a sua bruxa”, destacou Bebel Orofino. Ainda segundo sua sugestão, para o nosso bloco, todos os elementais da Ilha e dos arredores comparecem: ÁGUA – ondinas e tritões (dia, Sol); TERRA – lobisomem, lobas (graxains, pois são os lobinhos locais), orquídeas, garapuvus e todos os bichos do mato (noite, Lua cheia); FOGO – boitatá, vacatatá, cabratatá, bezerrotatá, serpente de fogo, urubu (noite escura); e AR – bruxas, bruxos, estrelas, mariposas, borboletas, corujas, gaivotas e todo ser que ‘avoa’ (noite, estrelas e Lua crescente e cheia). “A escolha da fantasia é livre e uma boa dica é olhar o seu elemento e criar a partir disso”, destacou Bebel. As fantasias podem combinar muitos elementos naturais, artesanais, industriais e (em especial) materiais reutilizados. Valdir Agostinho, por exemplo, foi precursor no reaproveitamento de materiais descartados. Suas fantasias são mosaicos e bricolagens com embalagens de todos os tipos, cores e texturas. Jone César de Araújo cria com esponja como ninguém. O luxo é muito bem-vindo! A combinação é o ideal. Outra orientação destacou também que a mitologia local é muito rica, com muitos personagens além das bruxas. Os bruxos, por exemplo, são muito presentes. E, reza a lenda, que os mais famosos são a trempe Franklin Cascaes, Meyer Filho e Seixas Neto. Todo bruxo é muito bem-vindo! A mitologia local foi traduzida por muitos artistas visuais, em especial Cascaes, Meyer Filho, com os jardins de Marte, Vera Sabino, 30


a primeira foto do bruxaredo do bloco místico.

Rodrigo de Haro, Eli Heil, Hassis, Tércio da Gama, Tercília, Jandira, Janga, Max Moura, Peninha, todos eles ótimas referências para as fantasias. Bebel Orofino destacou ainda que o episódio histórico da mudança de nome da cidade, revela que o poeta Cruz e Sousa e o escritor Virgílio Várzea elaboraram um Projeto de Lei para chamar a cidade de Ondina e que, em suas correspondências, sempre identificavam a cidade por este nome. Com essa dica, descobrimos as entidades das águas mansas, das nossas baías, riachos, manguezais e lagoas. Então, tanto sereias do mar grosso quando ondinas das águas mansas são muito bem-vindas. Há também os tritões (aliás, Tritão foi um bar famoso em Coqueiros). Há hipótese de que todos os surfistas são tritões. O PROCESSO DE CRIAÇÃO O Bloco Místico flerta com a arte contemporânea da cidade quando explora os mitos e cria um diálogo, quando resgata a oração contra bruxas, por exemplo, e não somente a questão do folclore. Oito meses depois, olhando de fora todo esse movimento, as imagens, os vídeos e fotografias, os processos de criação, observamos que o Bloco Místico é uma obra de arte aberta, pulsante e viva, para Sailes (2008) “[...] cai por terra a ideia da obra entregue ao público como a sacralização da perfeição”. A obra estaria sempre em estado de provável mutação. Foi surpreendente, principalmente pela criatividade dos foliões, as fantasias, o uso dos materiais, era um show à parte, trazendo cada pessoa uma obra de arte única, algumas efêmeras, cujo uso era somente para aquele momento, pois eram feitas de materiais naturais, com o aroma de alfavacas e alecrins que ficava pelo ar. Ainda segundo Sailes (2008), [...] ao caminhar em direção a uma teorização sobre processos de criação, em uma perspectiva mais geral, estamos em pleno campo da globalização, tomando como referência para tais generalizações os documentos singulares e individuais de uma grande multiplicidade de artistas. Sob esse ponto de vista, reunir a 31


diversidade singular possibilita termos um olhar de natureza mais geral: a generalização é, assim, alimentada pelos processos específicos. Ao mesmo tempo, as discussões sobre características que são gerais a todos os processos devem contemplar ou abrir espaço para compreender aquilo que é específico de cada sujeito que está envolvido em percursos criativos. O Bloco Místico teve, na sua essência, um olhar para a pesquisa e a criação, extrapolando a intenção de ser apenas diversão, pois, ao compor o figurino, o folião, com a ajuda das referências dos artistas locais e antes de escolher a referência preferida, teve que fazer uma pesquisa, ampliando o seu conhecimento. Abordou também a questão ambiental, atento aos materiais que podem ser reutilizados. E quando um curioso ou um turista parava para perguntar o que era aquela fantasia, o próprio folião explicava o que era, a inspiração etc., narrando e transmitindo informalmente a história da cidade. O Bloco Místico é uma obra de arte coletiva em contexto de rua e a céu aberto. A iniciativa foi muito além do que imaginávamos. Com uma adesão surpreendente, foi possível mostrar uma face maravilhosa da nossa cultura local: o “fantástico”, que é tão grande, rico e plural. Que nossas fantasias e figurinos provocassem questionamentos, curiosidades a quem estivesse nos assistindo. O encantamento foi total, a magia espalhada no ar, enfeitiçando turistas e o grande público em geral. E assim foi. E foi lindo!

Pela Cruz do Signo de Salomão, eu te benzo com a vela benta na Sexta-feira da Paixão! Treze raios tem o Sol, treze raios tem a Lua! Pedimos licença pra passar, pois o Bloco Místico vai pra rua!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, H. P. O Carnaval de Florianópolis. Um Breve Histórico. Florianópolis: Centro de Comunicação e Expressão/UFSC, 1985. SAILES, C. A. Redes da criação, construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Editora Horizonte, 2008. 32


GALERIA LUIZA FILIPPO, NILVA DAMIAN E SANDRA PUENTE (2CKS)

sexta-feira: 11 de fevereiro de 2023. no largo da alfândega, junto ao vão central do mercado público (lá dentro do coração da cidade) o bloco místico vai chegando junto ao carnaval do lendário bloco berbigão do boca, patrimônio cultural da cidade, com seu grande elenco de encantados bonecos. que honra! as bruxas acompanhadas do urubu e do lobisomem. a bruxa-chefe lá de biguaçu chegou chegando, poderosíssima! o galo galático curioso, uma galactéa e uma bruxa bailarina saúdam os honrados bonecos de meyer filho e luís henrique rosa. um encontro mágico que vai ficar na história.

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duas bruxas alemãs (possivelmente), uma flora da mata atlântica e uma bruxa rústica.

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3 duas benzedeiras e abaixo a famosa bruxa brabuleta e um ser misterioso que veio a seu convite. era bruxa e benzedeira de todo tipo. e alguns seres raríssimos que vieram de universos paralelos para abrilhantar a festa.

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a caterva da bruxa urubu. sensacionais. poderosíssimas. reza a lenda que elas são as anfitriãs do baile de itaguaçu.

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um pescador de santo antônio de lisboa abraçado a um fantasma. uma gata galáctica. outra linda flora, espírito da floresta. e uma bruxinha safada.

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uma bela flora junto ao emblemático trio misterioso: o lobisomem da lagoa, o boitatá marciano e o famoso bruxomanéagostinho. abaixo, novamente bruxomanéagostinho e a chegada da poderosa chefe bruxa lunar.

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o bloco místico chegou para encantar a festa! tiiiiiiiiirititi!! tiiiiiiiiiiirititá!

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bruxas-benzedeiras e uma bruxa cornífera junto ao estandarte do grande baile místico. ao lado, momento maravilhoso no encontro de dois mestres da cultura local: a bruxa-chefe da caterva de biguaçu e o bruxomanéagostinho, um lendário benzedor lá das bandas da fortaleza da barra da lagoa.

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só encantamento e magia. alguns destaques: bruxomanéagostinho, boitatá marciano e o lobisomem da lagoa com outra linda flora. e a trempe de coordenação: bruxa urubu, ondina do ribeirão e bruxa lunar.

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o lindo brilho do boitatá marciano. icônico registro: os bonecos do berbigão recebem o bloco místico desfilam pela rua deodoro acima, aqui com a linda igreja de são francisco ao fundo.

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uma linda bruxa lunar mostra a sua alegria diante de tanta energia coletiva, energia positiva, energia criativa. quanta! que maravicheuris!

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o galo galático observa atento e encantado. deslumbrado com o que vê: o nosso universo fantástico, a nossa cultura popular vibrante, radiante, abençoados por nega tide – nossa eterna cidadã samba – com a catedral iluminada ao fundo. no berbigão do boca: “a grande festa da ilha, começa o carnaval, que maravilha!”.

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AÇÃO 2 O MURAL O BAILE MÍSTICO DE VERA SABINO

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VERA SABINO EM MURAL URBANO: UMA FRATURA NA REALIDADE COTIDIANA

SANDRA RAMALHO E OLIVEIRA1

De algum ponto da colina onde se encontra a Rua Felipe Schmidt se foca o olhar em um retângulo vertical, como tantos dessa mesma forma existentes no espaço urbano. Mas esse retângulo se destaca de outros vizinhos seus, pois propõe uma surpresa e impõe olhares cheios de curiosidade. Mesmo para os iniciados em muralismo, forma de arte secular que hoje é considerada uma das dimensões da arte pública, aquela empena do lado esquerdo do Edifício Comasa chama a atenção, como o faz também a empena direita, em homenagem a Meyer Filho. Por outro lado, os conhecedores da poética da artista Vera Sabino logo identificam o seu DNA na imagem gigantesca, embora tenham visto obras dela apenas em dimensões menores. Ou seja: se a estes causa admiração, surpreende ainda mais a cidadã e o cidadão ditos comuns. Por contraste com a monocromia urbana de Florianópolis, como a de tantas outras cidades, sob esse ponto de vista a imagem funciona como uma fratura na realidade cotidiana, pois quebra a anestesia a que estamos condenados quando imersos na regularidade das ações programadas previamente, como o deslocar-se de um local a outro pelas ruas da cidade para cumprir uma tarefa qualquer. O conceito de “fratura” foi proposto e estudado por Algirdas J. Greimas (2002, p. 26), inicialmente, na literatura, noção definida como “[...] suspensão do tempo e a petrificação do espaço”, e a imagem deste mural, por similitude tanto em relação ao conceito graimasiano quanto à significação dicionarizada de rompimento, quebra, nos passa, como sensação primeira ante a sua visualização, um efeito de sentido que creio poder chamar de fratura da realidade. Greimas (2002) também considera a fratura como um “relâmpago passageiro” que em seguida se esvanece, mas, no caso desta imagem, o tempo a ser dispensado a ela dependerá de cada enunciatário, passageiro, não no sentido de que passa rápido, mas passageiro no sentido de ser um passante, tempo que sempre será imprevisível, ao menos na primeira percepção, isto é, uma ruptura no cotidiano.

1 Professora doutora da Universidade do Estado de Santa Catarina. 52


Se vamos a uma mostra de arte, a programação é apreciar obras de arte; se vamos a um hospital ou fazer uma visita a um doente, ou — Deus nos livre! — a programação é fazer um exame, ou sofrer um procedimento. Se vamos ao comércio, a uma instituição qualquer pública ou privada, a programação não é apreciar uma obra de arte. Daí a quebra da programação referente ao nosso deslocamento no centro da cidade ao nos depararmos com a obra intitulada “O Baile Místico de Vera Sabino”. Diante da imagem, percebe-se que ela sugere ser abordada começando pela parte superior e percorrida com o olhar de cima para baixo, dado o fato de sua forma retangular ser vertical. Em seguida, o efeito de sentido que a imagem propõe é que a cena se passa à noite. Há uma coerência interna que ratifica essa dedução pelas formas e cores: primeiro, a noite se manifesta nos azuis na parte superior da ima- “o cavalo branco” (paul gem, que contrasta com o branco das muitas estrelas e do grande círcu- gauguin, 1898), um acidente estético visual. lo que faz alusão à Lua; depois, o efeito de sentido da noite é reiterado nas formas triangulares sobrepostas em amarelo, cujos vértices visíveis saem de uma espécie de capacete na cabeça de dois seres humanos, provavelmente pescadores, considerada a percepção de objetos verticais em preto, que sugere remos. Reitera a noção tanto de os personagens serem pescadores quanto da atribuição de sentido de remos aos objetos nas mãos deles o fato de que essa cena está contida por uma forma horizontal na cor rosa que, tendo volume, passa a ideia de uma canoa ou uma bateira, vocábulo este herdado dos portugueses colonizadores. Mas há algo que envolve tudo o que se vê até aqui, exceto o céu, descendo o olhar ao longo da parede: é o mar. Manifestando-se em um azul-esverdeado ou verde-azulado, ele serve de fundo para a imagem e pode se deduzir, que mesmo à noite, esse mar pode ser visto dada a luminosidade da Lua incidindo sobre ele, com suas ondas, inclusive três delas presentificadas por cuidadosos arabescos diante da canoa, bem como pelos detalhes de espuma em branco e pela linha sinuosa que o delimita no horizonte.

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Então, nossos olhos enchem-se com uma figura feminina, isto percebido pelos seus cabelos negros, longos e ondulados. Os cabelos reiteram os arabescos das ondas e conversam com as igualmente sinuosas linhas que sugerem a noção de um polvo, bem como às que contornam uma planta, abaixo e à direita, possivelmente uma planta aquática por ser coerente com o todo. As escamas dos peixes também são pequenas formas que se repetem, isto em termos de linhas e formas. Em termos de cores, o rosa da canoa se repete no peixe sobre a cabeça da mulher e na cor do seu vestido. Essas reiterações também conferem unidade ao conjunto visual. Se ficarmos atentos, podemos perceber que as cores utilizadas não são muitas, a paleta de Vera é econômica, mas a diversidade se dá pelos diferentes tons das mesmas cores. Isso também confere unidade aos diversos elementos que compõem a imagem, criados pela artista. As distintas linhas sinuosas e curvas, somadas à diagonalidade de um eixo imaginário definido pelo conjunto formado pelo rosto da mulher e pelo peixe com detalhes vermelhos, que se cruza com outro eixo diagonal igualmente imaginário e passa pelo meio das costas desta figura dominante até o cacho de cabelo ao lado do seu olho à direita, conferem à imagem movimento, apesar de se tratar de uma imagem fixa, pois linhas curvas e sinuosas, bem como retas diagonais, mesmo como eixo imaginários de figuras, geram efeito de movimento. Os dois últimos eixos imaginários que localizam as figuras na imagem, ao mesmo tempo que geram movimento por serem diagonais, como estão em sentido inverso, cruzando-se, também equilibram a composição. A mulher está de costas, mas mostra seu rosto a quem aprecia a imagem. Entretanto, seu olhar dirige-se ao alto, parece mirar o infinito, é tristonho e nos deixa intrigados. Seria uma imagem humana ou um ser fictício, fantástico? Esse caráter de entidade mitológica é reiterado pela textura do rosto, uma das marcas registradas da poética de Vera Sabino, cuidadosamente reproduzida no mural por Tuane Ferreira, a autora da gigantesca obra. A textura da pele remete a uma superfície que, não sendo própria da natureza humana, passa a ideia de um ser vinculado ao mar, aparentado a um polvo, ou a uma espécie de estrela do mar, por exemplo, o que nos permite associar esse ser estranho e cativante ao nosso universo fantástico, ao mundo da mitologia da

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“os primeiros passos” (van gogh,1890; jean françois millet, 1858-1866). Ilha de Santa Catarina, que é enriquecida visualmente com o conjunto da obra de Vera Sabino, no qual as entidades que denotam ou conotam seu vínculo com o mar estão presentes em profusão. Assim, o acidente no cotidiano de quem passa pela Rua Felipe Schmidt e arredores, em Florianópolis, consiste em uma quebra na anestésica paisagem urbana. Acidente, bem entendido, além de seu significado dicionarizado, refere-se, para os estudiosos da linguagem, e aqui da linguagem visual, a tudo que difere da programação, da previsibilidade, da regularidade. Se o abalroamento de um automóvel no nosso trajeto é um acidente, para os que se ocupam dos significados e sentidos também é um acidente encontrar a cor verde na obra intitulada “O cavalo branco”, de Paul Gauguin, parte do acervo do Museu Van Gogh em Amsterdam: a gente nunca esquece. Daí os estudiosos chegaram à conclusão de que o acontecimento, na vida ou na arte, fora da regularidade ou fora da curva, como se diria na estatística e, informalmente, nos dias de hoje, são mais potentes em significação e sentidos. São aqueles dias, pessoas ou coisas que não se esquece porque têm mais sentidos que aquilo considerado, digamos, “normal”, cotidiano, rotineiro. Um ponto ainda digno de registro, e que tem a ver com a questão do objeto desta análise, pois é do âmbito da criação verbal, visual ou outra, é relativo ao problema da autoria, já que a obra mural se chama “O Baile Místico de Vera Sabino”, que foi recortado, ampliado e executado por Tuane Ferreira. A questão da autoria, cópia, plágio e outras similaridades entre criações artísticas e mesmo científicas, em vários sentidos, e com distintas bases teóricas, é tema do livro Intertextualidades Visuais, publicado em 2021. Quem é o autor ou autora do painel “O Baile Místico de Vera Sabino”? Dizem os estudos mais recentes sobre autoria que muitas das acusações de plágio são inadequadas (Conrado, 2018). E Ramalho e Oliveira e Jordani (2021), amparados em Anatole France (1891), entre outros, mostram que quando se muda o suporte, as dimensões, o contexto ou outros aspectos, não se trata de plágio ou cópia, mas de um novo texto visual, outro texto. E mostram, na arte visual e na literatura, exemplos clássicos. Van Gogh copiou François Millet?

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“as meninas” (picasso, 1957; velázquez, 1656). Picasso copiou Velázquez? Em cada caso, as motivações e intencionalidades são diferentes, mas avaliações apressadas, superficiais e destituídas de fundamentos costumam fazer julgamentos equivocados. São muitos os exemplos através dos tempos, e a questão da autoria consiste em um tema complexo, além de antigo. No caso específico, trata-se de uma homenagem a Vera Sabino, cujo obra foi recortada e adaptada às dimensões do suporte, entre outras alterações procedidas pela artista Tuane Ferreira. Entretanto, sabe-se que a artista homenageada participou das adaptações e da realização da nova obra. Assim, pode-se dizer que “O Baile Místico de Vera Sabino” se trata de um trabalho em coautoria entre Tuane Ferreira e Vera Sabino. E, por favor, não chamem de releitura. Este nome infeliz não sei exatamente de onde veio, mas suspeito que tenha vindo mesmo do campo de ensino de arte nas escolas. E agradou todas as áreas a ponto de deparar-me, certa vez, com um objeto de grife falsificado, o que deduzi pelo preço e pelo acabamento, e então perguntei se era uma réplica, para não acusar a loja de um crime. Com um misto de muita segurança e orgulho, a vendedora afirmou: “não, é uma releitura”. Portanto, há muitos modos diferentes de estabelecer relações entre obras. Pode ser adaptação, alusão, analogia, apropriação, citação, colagem, cópia, descrição, dialogismo, equivalência, ilustração, imitação, inspiração, isomorfia, interação, interdisciplinaridade, interconexão, interfaces, interpretação, intertextualidade, interdiscursividade, intersemiose, palimpsestos, paráfrase, paródia, pastiche, plágio, polifonia, recriação, redução, repetição, sinestesia, tradução, transcriação, transferência, transformação, transmutação, transposição, transmigração, versão, mas, geralmente, o que se chama de “releitura” é, na verdade, uma recriação.

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Ainda cabe, por fim, uma referência ao título da obra, “O Baile Místico de Vera Sabino”, análoga a uma anterior, na outra empena do mesmo Edifício Comasa, intitulada “O Baile Místico de Meyer Filho”. Ambas foram de iniciativa de um movimento pela preservação da memória, dos costumes e de lendas locais, ou seja, da cultura do nosso município, em que “baile” é interpretado em um sentido ampliado. Não se trata de um evento em um espaço formal no qual as pessoas se encontram para dançar, embora o movimento tenha sido lançado em uma espécie de baile público, onde personagens das nossas lendas, folguedos e representantes de costumes locais tomaram as ruas do centro da cidade ao som do hino do Baile Místico, de músicas do Berbigão do Boca e do bloco Cores de Aidê. Com a pandemia, o movimento encontrou outros meios para divulgar nossa cultura, como em publicações como esta e nas iniciativas de articular presentes para a cidade que sejam mais permanentes do que um evento efêmero. E aqui discuti, em breves reflexões, “O Baile Místico de Vera Sabino”, um marco de nosso universo fantástico, uma verdadeira joia para o espaço urbano, uma fratura na anestesia do tédio do cotidiano da cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONRADO, Marcelo. Arte e direitos autorais: os dilemas da autoria na arte contemporânea. In: CONRADO, Marcelo (org.). Dilemas da arte contemporânea. Curitiba: Edição do Autor, 2018. FERREIRA, Tuane; SABINO, Vera. O Baile Místico de Vera Sabino. Florianópolis: Imagem visual - recriação em mural a partir de recorte vertical em obra s/n de Vera Sabino, 2022. GREIMAS, Algirdas Julian. Da imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002. RAMALHO E OLIVEIRA, Sandra; JORDANI, Airton. Intertextualidades visuais. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2021.

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GALERIA FOTOS DE NILVA DAMIAN E SANDRA PUENTE (2CKS)

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a jovem artista tuane ferreira, nas alturas do edifício comasa, faz emergir uma ondina de vera sabino e encanta a cidade com a fidelidade aos tons, traço e textura. sem dúvida alguma, um presente para a cidade. uma homenagem para pensarmos sobre o olhar feminino e a magia. a força, o lugar, a arte e a coragem das mulheres! fica a homenagem do grande baile místico 2023 a elas! a nós!

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ficha técnica

Projeto Cultural: Mural O Baile Místico de Vera Sabino Artista homenageada: Vera Sabino Artista Mural: Tuane Ferreira Artista Assistente: Rodrigo Gambim Produção: Victor Moraes Heyde Assistente de Produção: Alan Diego Técnico de Segurança: José T. Ferreira Junior Assessoria de comunicação: Atre Comunicação Personalizada e Toró Comunicação.

Realização: Harmônica Arte e Entretenimento e Museu Escola Catarinense (MESC/UDESC)

Apoio Cultural:

Agradecimentos

Grupo Dimas Ibis Hotel Reviva Construtora

Vera Sabino Antônio Fasanaro Valdir Agostinho Nilva Damian e Sandra Puente – 2 CKS Fotografias Sérgio dos Reis – Síndico Edifício Comasa Marli Henicka Viviany Amorim Estacenter Parking Lojas Americanas Felipe Schimidt José Luis Petiton Del Toro Thiago Nestali de Deus Diogo Matias de Carvalho Freitas Francine Goudel Grupo Ondrepsb IPUF | COMAP Guarda Municipal de Florianópolis Fundação Franklin Cascaes Prefeitura Municipal de Florianópolis

Patrocínio: Engie Prefeitura Municipal de Florianopolis – PMF Lei Municipal de Incentivo a Cultura Fundação Municipal de Cultura Franklin Cascaes – SETUR/PMF

Movimento Baile Místico Coordenação Geral: Bebel Orofino Conselho Místico (2019-2023): Sandra Makowiecky, Gelci José Coelho (Peninha - em memória), Sílvia Lenzi, Vera Collaço, Sandra Ramalho e Oliveira, Sandra Meyer Nunes, Zena Becker, Maria Isabel Orofino (Bebel), Roseli Pereira, Laudelino José Sardá e Roberto Costa

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AÇÃO 3 CIRANDA MÍSTICA

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ARQUIVOS MÓVEIS NAS ARTES VISUAIS E NA DANÇA

SANDRA MEYER1

Escrevo estas linhas como um exercício de memória de uma fala realizada no evento Ciranda Mística, promovido pelo movimento Baile Místico no dia 4 de maio de 2023, no Museu da Escola Catarinense MESC2. Na ocasião, compartilhei com o público presente aspectos do projeto Arquivos implacáveis Meyer Filho3, realizado no ano de 2022, com destaque para a recente organização do acervo deixado por Meyer Filho (Itajaí, 1919 - Florianópolis, 1991), bem como sobre os desafios inerentes à manutenção de acervos de artistas. O artista chamou de “Arquivos implacáveis” o conjunto de obras e documentos guardados em vida que revela importantes fatos do movimento artístico dos anos 1940 aos anos 1980 em Santa Catarina, especificamente do surgimento da arte moderna e da criação e consolidação do Museu de Arte de Santa Catarina (Figura 1). Para falar sobre memória e acervo relacionado a Meyer Filho, não tenho como desconsiderar o modo como, desde muito jovem, me vi envolta entre obras e documentos, antes mesmo que eu me desse conta de que herdaria um vasto arquivo de artes visuais – o de meu pai, o artista plástico Meyer Filho – ou formaria um representativo acervo da dança catarinense por conta de uma trajetória na área de mais de quarenta anos como bailarina, coreógrafa, professora e pesquisadora. Meu pai formou, entre as décadas de 1940 e 1980, um vasto acervo de desenhos, pinturas e documentos diversos representativos de sua carreira, hoje aos cuidados do Instituto Meyer Filho, associação cultural que presido. Por outro lado, vivi contextos da dança em Santa Catarina desde o final dos anos 1960. Participei intimamente do movimento entre memória e história dançando, lecionando, escrevendo e coreogra1 Artista e pesquisadora. Professora aposentada do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. É presidente do Instituto Meyer Filho. 2 Na programação, constava um colóquio, do qual fiz parte; a abertura da exposição O fabuloso em Jandira Lorenz; o lançamento dos livros Palavras Mágicas: aventura e mistérios na Ilha de Santa Catarina, de Bebel Orofino, e O universo fantástico de Meyer Filho, organizado por Vera Collaço, Bebel Orofino e Sandra Makowiecky. 3 Arquivos implacáveis Meyer Filho foi um projeto realizado em 2022 pelo Instituto Meyer Filho, Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), Fundação Catarinense de Cultura (FCC), Governo do Estado de Santa Catarina e Governo Federal, por meio da Lei de Incentivo à Cultura. O programa público e gratuito foi composto por exposição do acervo de Meyer Filho no Museu de Arte de Santa Catarina com ações pedagógicas que envolveram cursos para professores, oficinas para estudantes e um seminário sobre arte moderna e contemporânea, bem como a publicação do livro Arquivos implacáveis Meyer Filho, a edição de um documentário, a organização e o tratamento do acervo do artista, entre outros desdobramentos. 70


figura 1. desenho de meyer filho, de 1957, com comentários do artista. acervo da família.

fando. Mais tarde, como pesquisadora vinculada a uma instituição de ensino superior, a Universidade do Estado de Santa Catarina, debrucei-me sobre arquivos motivada pela urgência de estudar a dança a partir do meu principal lugar de atuação: a Ilha de Santa Catarina. Tornar-me uma espécie de guardiã da memória não foi uma escolha, mas uma condição, no caso do acervo herdado de meu pai, e um apreço pelo arquivo, no caso da dança. Aos poucos, as reminiscências afetivas e os documentos variados transformaram-se em interesse de pesquisa acadêmica e de experimentação artística, tanto no campo das artes visuais como na dança. Uma pergunta persistia: como acionar um arquivo? Como eles podem ainda nos interpelar? A criação e a pesquisa em arte envolvem a formação e a dinamização de arquivos, os quais não se encontram em documentos somente, mas no corpo, em suas práticas e discursos. Nesse sentido, acionar um corpo-arquivo não seria um processo que tenta a todo custo uma conexão com o passado. Como salientou Michel Foucault (2004), um arquivo é um sistema que articula simultaneamente passado, presente e futuro. Ao problematizar o arquivo em Arqueologia do Saber, ele destaca que a história tradicional busca apagar a irrupção dos acontecimentos em benefício das estruturas e narrativas fixas, transformando memórias do passado em documentos. Já na “nova história”, defendida por ele, o documento não é matéria inerte. É possível descobrir, no próprio tecido do documento, outras séries e relações, permitin71


figura 2. charge brasil 1954. meyer filho, 1954. acervo da família.

do relacionar um arquivo com o que hoje é uma produção contemporânea, bem como pensar a produção contemporânea como aquela que produzirá arquivos incessantemente. A memória precisaria ser, então, exercitada e praticada no aqui e agora. Ao longo dos anos, experimentei diferentes dispositivos para praticar memórias, tanto com o acervo deixado por meu pai quanto com o meu, de dança, para não somente salvaguardar documentos, mas para acioná-los no presente, inclusive coreograficamente. Ou seja, investigar novas séries e relações que pudessem instaurar perguntas e questionamentos aos arquivos resguardados. Além disso, criar, arquivar, colecionar, organizar, manter e, principalmente, tornar público o acesso à comunidade de acervos e arquivos é também sinônimo de muita luta e angústia, considerando que as políticas públicas de incentivo à manutenção dos acervos em nosso país são incipientes. Ressalto aqui a importância de se pensar na elaboração de políticas públicas para fortalecer as relações entre o público e o privado no que se refere aos acervos e arquivos de artistas, uma vez que eles possuem uma dimensão poética e histórica que precisa ser conhecida e socializada. Quando se trata de um acervo de artes visuais da envergadura do deixado por meu pai, com mais de 4 mil itens, a complexidade aumenta. O vasto arquivo criado por Meyer Filho em cinco décadas é um patrimônio da família, mas também da sociedade, uma vez que a sua trajetória se confunde com o surgimento e a consolidação do movimento de Arte Moderna em Santa Catarina. O arquivo-artista e o artista-arquivo apresentam uma história própria que é também a história de um conjunto de relações históricas, estéticas, políticas e sociais (Figura 2). E os arquivos de dança? Não são somente livros e vídeos que registram um esforço de mover e salvaguardar corpos-arquivos, mas as próprias danças, que inventam mundos. Se arquivos são feitos de impermanências, e não meramente de lugares onde se pode armazenar coisas e discursos, então como ativá-los? O 72


figura 3. jazz la suite. studio de dança. florianópolis. tac, 1979. acervo de sandra meyer.

pesquisador Andre Lepecki (2013, p. 70) nos fornece uma pista instigante para dar voz a um arquivo de dança: “Somente coreograficamente, pois um arquivo não armazena, ele atua, por meio das zonas, temporalidades e ritmos da presença”. Ele salienta que o corpo do(a) artista, em detrimento de sua condição de impermanência e de esquecimento, pode ser também o lugar em que as memórias não se estratificam, permitindo novas e constantes atualizações. O arquivo de dança que formei não é somente sobre a minha atuação, confunde-se com a própria história da dança em Florianópolis, desde a segunda metade dos anos 1960 até a atualidade. Ele é um conjunto de relações. A primeira pesquisa sobre memória e história da dança que realizei foi em 1993, logo que ingressei na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), e culminou na publicação A dança cênica em Florianópolis (Nunes, 1994). Realizei uma série de entrevistas com artistas, professores(as) e coreógrafos(as) e recorri aos recortes de jornais, a programas de espetáculos e fotos que havia guardado, pois, afinal, estava imbricada em parte dessa história (Figura 3). A pulsão arquivista herdada de meu pai manifestava-se cada vez mais. Na época, não havia registros ou arquivos organizados sobre a história da dança catarinense, quadro que pouco se modificou, infelizmente. Como intuito de levar a público acervos pessoais que são também sociais, as pesquisadoras Jussara Xavier e Vera Torres e elaboraram comigo, em 2019, um projeto/site chamado Midiateca de dança (midiatecadedanca.com)4. O acervo disponibilizado nele reflete momentos vividos e testemunhados por nós, autoras, num movimento entre experiência, memória e história. Os projetos que desenvolvemos em nossas traje4 Reforço a importância de apoio por meio de editais públicos voltados à memória no campo da arte. O projeto Midiateca de Dança foi contemplado pelo Edital de Apoio às Culturas 2018 do Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis, em uma iniciativa da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes e da Prefeitura Municipal de Florianópolis. O site teve lançamento em dezembro de 2019. 73


figura 4. espetáculo visões. ballet desterro. alesc, florianópolis, 1989. acervo de sandra meyer.

tórias são esforços de leitura das múltiplas realidades da dança e reúnem anos de produção e documentação da cena da dança em Florianópolis e Santa Catarina. Nesse sentido, vai além de nossas próprias capacidades de narração e de experiência. Midiateca vem da ideia de biblioteca ampliada, abastecida com diferentes suportes de informação, e conta com acervo de livros, artigos, trabalhos acadêmicos, críticas, entrevistas, fotos, vídeos e textos de catálogos e programas. Há poucas iniciativas no sentido de organizar e sistematizar arquivos na área de dança no Brasil. Assim, a dimensão histórica ajuda a entender a produção atual em dança em relação aos artistas e acontecimentos que a constituíram. Desse modo, tenho vivenciado experiências que problematizam a ideia de arquivo na arte por meio de dispositivos que acionam acervos, permitindo que eles “falem”, inclusive poeticamente, em um contexto contemporâneo. Eu dirigi um grupo de dança chamado Ballet Desterro e coreografei, em 1989, Visões, um espetáculo em que transformava em gesto dançado não somente a obra-vida de meu pai, mas a de Eli Heil e Rodrigo de Haro (Figura 4). Ao som de Asi era el Tango, uma de suas músicas favoritas que ouvia enquanto ele pintava, as dançarinas do Ballet Desterro traduziam no corpo gestos que evocavam a ação de carimbar. É contado e recontado por muitos(as) o fato de que o artista utilizou carimbos para desenhar quando foram tiradas da sua mesa no Banco do Brasil, onde trabalhava, as canetas que costumava usar em seus estudos. A investigação sobre como a trajetória de meu pai e a convivência familiar teriam impactado minha vida e a arte que produzo gerou uma performance apresentada no Memorial Meyer Filho em 2016. Com a performance Sem título5, ativei cineticamente corpos-arquivos, o meu, o de meu pai e o dos espectadores presentes. Retomo aqui a provocação de Jacques Derrida (2001, p. 8): “Em que se transforma o arquivo 5 A performance é uma das ações do Projeto Corpo, Tempo e Movimento, idealizado pelas artistas da dança Diana Gilardenghi, Milene Duenha, Paloma Bianchi e Sandra Meyer. Para mais informações: https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/ article/view/21284 74


figura 6. exposição meyer filho - 60 anos. museu de arte de santa catarina - masc (prédio alfândega), 1979.

figura 5. ballet desterro, meyer filho. desenho para impressão em camisetas. acervo de sandra meyer.

figura 7. sem título. projeto corpo, tempo e movimento. memorial meyer filho. florianópolis,

2016.

figura 8. sem título. projeto corpo, tempo e movimento. memorial meyer filho. florianópolis, 2016.

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figura 9. meyer filho em frente a um outdoor. florianópolis, 1980. acervo da família. foto de pedro alípio.

quando ele se inscreve diretamente no próprio corpo?. No Memorial Meyer Filho, convoquei em Sem título memórias de seu lado irreverente e reinventei procedimentos de composição por ele utilizado, carimbando meu corpo coberto de tinta no chão e nas paredes da galeria. Figura presente em sua iconografia, Meyer Filho levou dois galos numa gaiola na exposição em comemoração aos seus 60 anos, no MASC, em 1979 (Figura 6). Na performance Sem título, evoquei este momento inserindo-o em outro contexto (Figuras 7 e 8). Ao serem performados, os arquivos, meu e de meu pai, se misturaram, não como resgates de um passado, mas como reminiscências, movimentos incompletos que provocam afetos e consequentes memórias. Nesse sentido, os corpos e suas danças, bem como os gestos das artes visuais, a cada vez que são acionados, permitem questionar e reescrever outros modos de atualização da memória, investigação histórica e ativação de arquivos. Os arquivos implacáveis de Meyer Filho, a partir dos trabalhos realizados no projeto homônimo, estão agora totalmente digitalizados, fotografados, indexados e catalogados, bem como disponibilizados no site do Instituto Meyer Filho (meyerfilho.org.br) por meio do Tainacan, uma plataforma digital museológica que vem permitindo a democratização do acesso ao acervo. Um dos critérios utilizados no processo de documentação das coleções foi a elaboração de um modo de organização que levasse em conta a especificidade do acervo e, principalmente, o modo como o artista o arquivou. Meyer Filho costumava arquivar o acervo registrando comentários e testemunhos pessoais por desenhos e escritos em forma de crônicas e diário aberto, nomeados pelo artista de “croniquetas”, cujo conteúdo revela o seu olhar singular sobre fatos relacionados à arte e à cultura catarinense e nacional, bem como ao cotidiano da cidade de Florianópolis (Figura 9). A potência imagética de suas pinturas e desenhos não está dissociada das autobiografias e anotações perspicazes em documentos e obras, das entrevistas concedidas por ele aos veículos de comunicação, da sua visão crítica, de seu posicionamento político e ético, da sua vida pessoal e de bancário, dos quintais e viveiros organizados como espaços de criação, das conversas de boteco, bem como dos relatos sobre suas 76


figura 10. sandra meyer e meyer filho. fundos da residência do artista, na rua altamiro guimarães. florianópolis, 1980. acervo da família. foto de pedro alípio.

viagens a Marte. O artista autodenominou-se como “Embaixador do Planeta Marte na Terra”, sendo o planeta vermelho, para ele, a utopia de um mundo novo, sem guerras e desigualdades sociais. Diferentemente da provinciana Florianópolis dos anos 1950 e 1960, lá sua arte era reverenciada pelos cultos cidadãos marcianos. Contudo, arquivos, para mim, não são apenas documentos acomodados numa reserva técnica, tanto no que diz respeito ao acervo constituído por meu pai quanto a aquele que vivenciei por meio da dança. São também inscrições no corpo, adquiridas no convívio em um longo processo de feitura duma vida “como uma obra de arte”, como na ética foucaultiana, no que ele denominou de “artes de existência” e “práticas de si” (PINHO, s/d).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DERRIDA, J. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2001. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 147-148. LEPECKI, A. El cuerpo como archivo: el deseo de recreación y las upervivências de las danzas. In: NAVERÁN, I.; ÉLIJA, A. (org.). Lecturas sobre Danza y Coreografia. Madrid: Artea Editorial, 2013. NUNES, S. M. A dança cênica em Florianópolis. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1994. PINHO, L. C. A vida como uma obra de arte: esboço de uma ética foucaultiana. s/d. Disponível em: http:// www.ufrrj.br/graduacao/prodocencia/publicacoes/etica-alteridade/artigos/Luiz_celso_Pinho.pdf. Acesso em: 1 out. 2023

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O UNIVERSO MÍTICO NA ARTE DE VERA SABINO

LÉLIA PEREIRA NUNES1

Acabo de encontrar a alma. Demarcada – insular. Lá... Pertinho da imaginação. Nada igual Um horizonte de águas, Desenhando a dança. Jardim dos Aromas (Semy Braga). No cenário cosmopolita e, ao mesmo tempo, provinciano de Florianópolis, a alma da Ilha de Santa Catarina, o olhar derramado, na intensa linguagem plástica das formas e de um colorismo vívido, aflora e faz vibrar os fervores insulares, captando o mundo ilhéu na fronteira entre o real e o imaginário, rompendo limites entre universos, aflorando o realismo fantástico que habita esta Ilha mítica, eternizando-o em suas telas. O pincel percorre a tela imaculada, imprimindo a marca indelével, a epifania das formas e de cromacias no seu poder de criar e manipular cores vibrantes a seu bem-querer, que revelam – o universo mítico da artista plástica Vera Sabino. Sabemos que no sentido estético e artístico, a epifania é um momento privilegiado de revelação. Posso afirmar que a arte de Vera Sabino é um contínuo desvendar de caminhos da Floripa da velha figueira ou do jardim florido da casa da Armação, e dali para um mundo sem amarras nem muros, tal qual o horizonte líquido da sua “pátria pequena” – a Ilha de Santa Catarina. Sim, ela emoldura o olhar doce ante a magia exuberante da natureza – flores e frutos colhidos no seu jardim ou seres marinhos emergindo do mar que nos abraça no vaivém manhoso de suas ondas. Resultado? Uma preciosa unidade formal, um repertório de historicidade e de tradições alicerçadas no substrato açoriano sobrevivente no litoral catarinense, onde a plenitude do olhar se debruça sobre a efervescência do seu imaginário e do imaginário ilhéu. Um olhar doce que deixa aflorar certo apaziguamento interior em justaposição com um olhar de guerreira, de energia, de esperança, de crença e de luta pelos

1 Presidente da Academia Catarinense de Letras. Agosto de 2023. 78


valores essenciais da sua terra, do mar que a rodeia, da vida que levita no vendaval de mudanças que assola a sua Ilha, abençoada por Santa Catarina de Alexandria, que tanto ama e defende. Vera Sabino, há seis décadas, é um dos ícones das artes plásticas contemporâneas e uma das mais notáveis pintoras catarinenses. Define-se autodidata. Defino “esplêndida”. Tem uma pintura madura, vibrante, mágica, etérea, moldada num mundo figurativo de muitos tons, na profundidade do senso cromático explorado em todas as suas nuances em variações decorrentes do vermelho, amarelo e azul na composição de sua arte feiticeira. O primeiro prêmio chegou quando ainda estava na escola secundária, em 1964. E nunca mais parou de pintar, e pinta com imenso prazer e talento. Foi no ano de 1969, quando obteve o primeiro prêmio no Salão de Artes Plásticas para Novos em Curitiba (Paraná) e realizou sua primeira exposição individual, que começou a construir a admirável trajetória artística. E a cada passo ou a cada obra se supera. A arte de Vera é depoimento, verdadeiro inventário da alma do lugar. Sente-se o pulsar de tudo e de todos. Histórias, reais e imaginárias, tout court significante que surpreende e comove. É preciso decifrar o emaranhado de traços cheios de beleza e poesia. É preciso mergulhar na sua escrita visual e ler o que escreve com pincéis e tintas em loucas composições, numa inquietude sem fim. Foi bem isso que senti – espanto e encanto – quando, em setembro de 1973, fui à vernissage de Vera Sabino no Studio A2, comandado pelo humorado e irreverente jornalista Beto Stodieck, de saudosa memória. Desde então fiquei enredada na exuberância do seu imaginário, na liberdade de concepção, na magia inconfundível da sua arte. Vera Sabino é incansável artista do fazer e do saber ilhéu, acrescenta sempre, entrelaçando na linguagem plástica e na apurada técnica por ela inventada, um mosaico de cores, de tons quentes, de intensa luminosidade, da sensualidade das formas que transparecem no universo mítico de Vera, onde tudo cabe e é permitido no tênue fio que conduz e, ao mesmo tempo, separa o real do irreal. Na comunhão do inconsciente com elementos da paisagem, o microcosmo ilhéu em movimento revela-se em metáforas visuais e preciosa policromia. Dessa maneira, sua obra apresenta-se como uma fascinante narrativa visual. Passeia pelas tradições e pela memória coletiva, revisita mitos. Em sua rebeldia, quebra padrões estabelecidos e deixa fluir a riqueza do imaginário insular.

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Como mencionado em depoimento no catálogo da exposição Fervor da Ilha, da Fundação Franklin Cascaes, em março de 2002: Abrem-se as janelas da minha ilha, deixando penetrar na alma o perfume de cada lugarejo. Na Lagoa da Conceição, o querosene das pombocas lembra o alguidar com camarão e a minha cabeça à milanesa de rolar nas dunas. O lírio de brejo perfuma Santo Antônio de Lisboa, afirmando que as bruxas estão ali se banqueteando de ostras. [...] Na Costa da Lagoa, refúgio original de tantos perfumes, reacende a cada nascer do Sol a alegria de ter nascido aqui.

Uma arte que navegou pelos caminhos do mar e chegou aos Açores. Um percurso reconhecido e respeitado no arquipélago açoriano dos seus ancestrais, onde a sua criação artística tem sido amplamente divulgada nos meios de comunicação social, como no Açoriano Oriental, no Correio dos Açores e na Revista Atlântida, do Instituto Açoriano de Cultura – IAC, e muito admirada, sobretudo ao escrever uma diacrônica pictórica da Festa do Divino Espírito Santo, a maior manifestação cultural dos Açores, no arquipélago e nas comunidades da diáspora. Ao fazer de sua arte instrumento de resgate e preservação do patrimônio cultural imaterial, transpondo para seus quadros símbolos, rituais, religiosidade, canoas, tarrafas, rendas, tramoias labirínticas, laelias purpuratas, bromélias, crenças, mar, serpente, mulher, bruxas, Vera rompe a visão estática do passado e vai ao encontro do futuro, e também do nosso passado sem ser passadista, como bem escreveu o escritor Mario de Andrade em carta a Paulo Duarte (Veloso; Madeira, 1999, p. 115): “Entre ser passado e ser passadista há uma grande diferença, diz ele. Goethe era passado mas não passadista. Passadista é o ser que faz papel de carro de boi numa estrada de asfalto.” Adepta do realismo fantástico, faz uma relevante leitura visual do etnógrafo Franklin Cascaes e das histórias publicadas na sua obra O Fantástico na Ilha de Santa Catarina, a qual resultou na série bruxólica em homenagem a Cascaes, com imagens pintadas dos contos Balanço bruxólico, Bruxas roubam lancha baleeira de um pescador, Congresso bruxólico, Eleição bruxólica e Mulheres bruxas atacam cavalos. Na coreografia embruxada, a paisagem imagística é cenário e ocupa o espaço circundante enquanto as mulheres-bruxas estão no primeiro plano, como é característica a presença permanente da figura feminina em sua obra.

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Vera Sabino percorre os caminhos, descortina a magia, e entre vivências e convivências busca inspiração nos usos e costumes da Ilha, nas lendas, rezas, fadários, sensações, e sem qualquer inibição desnuda a mulher. Mulheres multiplicam-se, metamorfose, imagem sensual, insólita reinvenção, sortilégios de sua arte. Medusas adornadas em suas cabeças com peixes, seres marinhos, cobras, pássaros, flores, numa composição encantada; rendeiras de olhos negros, fetiches profundos e vívidos, como o olhar da gaivota a espiar rotas; sereias emergem antropomorfas tentadoras no meio do mar revolto, cristais de ondas, cabeleira de espumas, corpo rendado de escamas em contraste com o rosário hagiográfico de suas madonas, santas e vias-sacras. Por último, bruxas da Ilha, feiticeiras, nuas ou vestidas, seios fartos, boca carnuda, vermelha, a exalar sensualidade na coreografia da paixão, insólita reinvenção ou sortilégio de sua arte. Mulher e bruxa. Bruxa-mulher. Seriam “bruxas disfarçadas de pitonisa ilheia”, sugeridas pelo poeta Lindolfo Bell (2004, p. 6) no magistral ensaio Vera Sabino: triunfo da transfiguração? Imagens femininas, bruxólicas, numa alusão à mitológica Circe, a feiticeira da Ilha de Eeia, de longas tranças, a tecer a tela da imortalidade. Pois, agora! A resposta está na arte de Vera Sabino, marcada pela presença permanente da figura da mulher em toda sua valorosa obra. Entre o real e o imaginário não há fronteiras, apenas tangem o insondável e se cruzam no tempo. Eis o tempo de Vera Sabino! Vera da Ilha, voz liberta, iluminada, revelada na sinfonia de sua arte plena de epifanias, baleeira alada de seu imaginário – alimento da alma – traduzida na sinfonia de sua arte, de seu olhar, do seu universo mítico.

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obras do acervo de vera sabino. s/ título. técnica: acrílica sobre eucatex. tamanhos variados. períodos diversos.

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O FABULOSO EM JANDIRA LORENZ SANDRA MAKOWIECKY1 E LUANA WEDEKIN2

Quando pensamos no evento Ciranda Mística e na exposição denominada “O Fabuloso em Jandira Lorenz”, logo nos ocorreu fazer uma fala sobre a artista Jandira Lorenz. Quem falaria sobre ela? Alguém do grupo do Baile Místico e mais um(a) convidado(a). Ao definir o meu nome, Sandra Makowiecky, representando o grupo do Baile, o convite recaiu sobre Luana Maribele Wedekin. Uma questão despontou. Jandira Lorenz foi professora de História da Arte de Sandra Makowiecky, e Sandra Makowiecky foi professora de História da Arte de Luana M. Wedekin. Um eixo une esse trio, além do enorme respeito e admiração mútuos: o amor e a paixão pela história da arte como disciplina acadêmica na universidade e fora dela, nos museus, nos livros, na cidade, na vida. Foi Jandira Lorenz, com suas aulas maravilhosas, que me fez definir minha opção profissional, e foi Sandra Makowiecky que acabou definindo o caminho de Luana quando ela se decidiu pela História da Arte. No dia do evento, vivemos momentos especiais, também mágicos. Brotou emoção. E foi um dos momentos mais bonitos de nossas vidas, pois mostramos que estamos na universidade, o lugar onde sempre sonhamos estar. Vivemos sonhos plantados por Jandira, que germinaram em Sandra e Luana. Falamos de uma linhagem de saber e amor pela arte, de que nos orgulhamos e, para nós, é uma honra. Nossa carreira, que tem sido muito plena, deve muito à Jandira, que determinou nossas escolhas, nossos caminhos. Foi um momento muito emocionante em que, na apresentação, escrevi: JUST US – Jandira, Sandra, Luana. A plateia sentiu o clima de admiração e respeito ali reinantes. Jandira merecia tudo o que estávamos falando, em ambiente de muita emoção. Por vezes, parecia que o coração não cabia dentro do peito. Somos muito sortudas, concluímos eu e Luana. Tivemos fadas-madrinhas. Jandira foi minha fada-madrinha, eu fui a de Luana e, com certeza, Luana será fada-madrinha também, se já não é. Paralelo ao evento, ocorria no museu uma exposição com obras de Jandira Lorenz que foram feitas para a ilustrar o livro Palavras Mágicas, da autora Bebel Orofino, na exposição chamada O Fabuloso em Jandira Lorenz.

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC e Diretora do Museus da Escola Catarinense, MESC/UDESC. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC. 86


figuras 1, 2 e 3 - sandra makowiecky, luana m. wedekin e jandira lorenz em momentos da apresentação de o fabuloso em jandira lorenz, museu da escola catarinense, em 4 de abril de 2023. créditos da imagem: letícia damázio.

figura 4. vanessa bortucan de oliveira, jandira lorenz e sandra makowiecky. fundação cultural badesc, agosto de 2014.

Cabe ressaltar que o trabalho mais completo sobre Jandira Lorenz é a dissertação de mestrado em Artes Visuais sobre a artista, realizada por Vanessa Bortucan de Oliveira sob orientação de Sandra Makowiecky, intitulada A sobrevivência das imagens em Jandira Lorenz: uma poética da montagem, do ano de 2014, apresentada no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). 87


Na apresentação, Sandra Makowiecky abordou vários textos que escreveu, listados ao final deste relato1, sobretudo em coautoria com Vanessa Bortucan de Oliveira. Escolhemos para esta publicação reproduzir um dos textos mais gerais sobre o processo e a poética de Jandira Lorenz, que segue abaixo, escrito em coautoria entre Vanessa Bortucan de Oliveira e Sandra Makowiecky, no ano de 2011. 1 - Textos Apresentados Colóquio: MAKOWIECKY, S. Jandira Lorenz: transmutação e desenho como potência. In: MAKOWIECKY, S.; CHEREM, R. M. (org.). Passado-presente em quadros: uma antologia da história da arte em Santa Catarina. 1. ed. Florianópolis: AAESC - Editora da Associação de Arte-educadores de Santa Catarina, v. 1, p. 133-140, 2019. 2) MAKOWIECKY, S.; OLIVEIRA, V. B. Jandira Lorenz: o mundo como desenho. DAPesquisa, v. n 8, p. 334-354, 2011. 3) MAKOWIECKY, S.; OLIVEIRA, V. B. O painel “Os caminhos da Liberdade” e a obra de Jandira Lorenz. Revista Valise, v. 3, p. 175-189, 2013. 4) MAKOWIECKY, S.; OLIVEIRA, V. B. de. O conhecimento secreto de David 37 Hockney e as múltiplas janelas de tempo nos desenhos de Jandira Lorenz. Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 37-60, abril. 2015. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/ gearte. Acesso em: 22 mar. 2023. 5) OLIVEIRA, V. B. Jandira Lorenz: o mundo como desenho. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Licenciatura em Artes Visuais). Universidade do Estado de Santa Catarina. Orientadora: Sandra Makowiecky. 2012. 6) OLIVEIRA, V. B. A sobrevivência das imagens em Jandira Lorenz: uma poética da montagem. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Orientadora: Sandra Makowiecky. 2014. 7) OLIVEIRA, V. B. O repertório cinematográfico nos desenhos de Jandira Lorenz: as imagens fantasmas. 2014. In: MAKOWIECKY, S.; FAZZOLARI, C. (org.) Seminário Regional Sul 2014 - Teoria e crítica de arte no Brasil: diálogos e situações. 1. ed. São Paulo: ABCA Editora, 2017. pp. 56-88. 8) OLIVEIRA, V. B.; MAKOWIECKY, S. Reminiscências da memória em Jandira Lorenz. In: II CICPG- Congresso de Iniciação científica e pós-graduação. Anais... São Leopoldo: Unisinos, v. 1. p. 2911-2912, 2012. 9) OLIVEIRA, V. B.; MAKOWIECKY, S. A menina nas obras de Jandira Lorenz. In: CSO’ 2012 Congresso Internacional - Criadores sobre Outras Obras, 2012, Lisboa. Artes em torno do Atlântico: Atas ... Lisboa: FBA-Faculdade de Belas Artes, v. 1. p. 644-651, 2012.

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JANDIRA LORENZ: O MUNDO COMO DESENHO3 SANDRA MAKOWIECKY E VANESSA BORTUCAN DE OLIVEIRA

Transfiguro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria. E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas, eu obra anônima de uma realidade anônima só justificável enquanto dura a minha vida... Por enquanto o tempo dura quanto dura um pensamento. E de uma pureza tal esse contato com o invisível núcleo da realidade (Lispector,1980, p. 22). Nascida em Dom Feliciano – uma aldeia polonesa no interior do Rio Grande do Sul, em 5 de março de 1947, a reservada menina Jandira Lorenz Bieszczad descobre, ainda criança, o prazer de passar o tempo colorindo desenhos que pedia para o pai fazer ou desenhando imagens que via nos livros e revistas. Jandira lia muito e, logo, se apaixona pelas ilustrações dos livros e começa a desenhá-las. Copiava-as para dominar o objeto a ser desenhado. Queria desenhar e reproduzir o que via, era o modo de ter para si aquela imagem que a encantava. A premiada ilustradora tcheca Kveta Pacovská (Pacovská apud Romeu, 2011, p. E1), famosa por suas experimentações plásticas, afirmou certa vez que “[...] as imagens de um livro infantil são as primeiras galerias que as crianças visitam”. O autor-ilustrador Odilon Moraes (Moraes apud Romeu, 2011, p. E1), curador de uma mostra de livros infantis em 2011, lembra: “[...] o livro ilustrado não é necessariamente um livro para crianças, é um livro que não exclui a criança”, afirmando, dessa forma, que é um livro para todos. Parece que essa foi uma das formas de aprendizado para Jandira, que confessou que desde criança gostava muito das ilustrações de bailarinas, mesmo antes de saber o que era balé4. Até hoje guarda desenhos de quando era criança em uma pasta ainda não posta à público, e que só atiça nossa curiosidade. Quando criança, na tentativa de desenhar, representar os quintais de sua aldeia, surgiu o processo de dominar o segredo de representar as coisas, de modo que isso a permitiu treinar inconscientemente o olho para ver as relações de dimensão, de proporção, de encaixe de uma forma com a outra. Jandira desenvolveu a capacidade de desenhar porque treinou inconscientemente como olhar as coisas do modo que elas

3 Artigo publicado como: MAKOWIECKY, S.; OLIVEIRA, V. B. Jandira Lorenz: o mundo como desenho. DAPesquisa, v. 8, p. 334354, 2011. 4 Entrevista concedida a Vanessa Bortucan, realizada em 7 de julho de 2011, na casa da artista, em Florianópolis. 89


realmente se colocam. Não olhar somente a figura, e sim o avesso da figura, “[...] sentir que aquele vazio confina com aquela forma [...], de repente o vazio é uma forma ao avesso” (Makowiecky; Melin; Ramme, 1997). Em videodocumentário realizado sobre a artista (Makowiecky; Melin; Ramme, 1997), fica evidente que o desenho e a gravura constituem grande parte de seu trabalho. É por meio dos desenhos que o documentário expõe a forma sensível, sutil e acurada do olhar de Jandira sobre o universo que a cerca, bem como a maneira que ela os utiliza para expressar suas viagens subjetivas e a capacidade de transcender o cotidiano. Aí já é possível notar que a ênfase da visualidade recai sobre a luz, a linha, os contornos, as nuances de valores e as texturas que ela cria. Em seus desenhos, geralmente feitos a nanquim sobre papel, a luz, a linha e a textura em preto são os recursos de busca pela trama do grafismo. As imagens também vão mostrando resquícios de sua memória e do contato bem próximo com a história da arte nas xilogravuras e gravuras em metal, linguagens expressivas das quais a artista se serve concomitantemente ao desenho. Jandira apurou seu conhecimento para criar coisas novas, não se prendendo a ver as coisas como elas são, mas, sim, como linhas, texturas. “Hoje olho as coisas como se fosse desenho, já não vejo mais as coisas como coisas, vejo as linhas o tempo todo, as texturas o tempo todo” (Makowiecky; Melin; Ramme, 1997). Onde se vê a forma, lá está o conteúdo. Kandinsky (1991, p. 118) discute essa questão de modo certeiro. Para ele, “[...] a forma é a expressão exterior do conteúdo interior”. A forma visual – linhas, volumes, cores e suas relações compositivas – é o meio pelo qual o artista dá ressonância à sua ideia/pensamento e à emoção que quer expressar. A forma conjuga-se com a matéria, por meio da qual se exprime, ligada aos significados que imprime cada artista, período ou época. Forma e conteúdo são assim, intimamente conectados, inseparáveis, imantados. Nesta abordagem escolhida de forma-conteúdo, os elementos da visualidade como constitutivos da forma, especialmente a luz (claro-escuro), a linha, a textura, e do conteúdo aliam-se às temáticas que abordam o fantástico, o onírico, a mitologia pessoal, a memória, a sensibilidade feminina, as fábulas e lendas. Essa manifestação artística inseparável, segundo Jandira (LORENZ, 1995, p. 6-7), “[...] fala de si e de suas relações com o mundo”. As formas artísticas são objetivas, só que os conteúdos são valores, conteúdos

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figura 1 - jandira lorenz, sem título, 1982, nanquim e bico-de-pena sobre papel, 62 x 43 cm. coleção da artista.

existenciais, vivências subjetivas do mundo e de nós. Referindo-se à forma, Fayga Ostrower (1990, p. 44) afirma que: [...] certos ritmos e certas direções espaciais afloram intuitivamente na imaginação do artista – depois serão elaborados artesanalmente, conscientemente –, determinando a estrutura básica da composição e, com isso, o enfoque expressivo de suas imagens. Sua tamanha dedicação à arte fez com que seu irmão mais velho a ajudasse, custeando seus estudos, permitindo assim que fosse estudar Belas Artes na UFRGS em 1966 e 1967 e, posteriormente, Arte na Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, em São Paulo, entre 1968 e 1971. Em 1975, concluiu mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-USP. Ao escolher fazer um mestrado nos anos 1970, Jandira já demonstrava um apreço pela academia e por estudos mais aprofundados, pois aos 28 anos era mestre, ou seja, terminou a graduação e já iniciou seu mestrado, algo pouco comum à época. Artista, educadora e pesquisadora, Jandira iniciou sua carreira como professora quando se mudou para Florianópolis, em 1976, e ingressou como professora de História da Arte no Centro de Artes da Univer-

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sidade do Estado de Santa Catarina – Udesc, posteriormente assumindo a cadeira de Desenho Artístico, vindo a se aposentar por tempo de serviço em 13 de agosto de 1997. Foi a primeira artista de Santa Catarina a se dedicar às artes, ao ensino e à pesquisa, pois foi a primeira professora do centro de Artes da Udesc a ter diploma de pós-graduação (mestrado). Sua dissertação versava sobre a obra da artista plástica Eli Heil, e o trabalho foi publicado pela Fundação Catarinense de Cultura em 1985. Devemos ressaltar em Jandira o fato de que ser ar- figura 2 - jandira lorenz, sem título, 1995. tista e professora de História da Arte, com reper- bico-de-pena s/ papel, 41 x 60 cm. coleção tânia piacentini. tório muito qualificado em arte e nos fundamentos da linguagem visual, a distingue de muitos outros artistas. Jandira é uma mulher culta e erudita, que alia seus conhecimentos teóricos com profunda noção de cor, forma, linha, plano, texturas, entre outros ensinamentos e conhecimentos técnicos que foram abandonados na trilha da contemporaneidade das artes. Afinal, o que é desenho hoje? Quem ainda sabe desenhar? A academia parece que abandonou o desenho tal como concebido por Jandira e mestres como Rembrandt, Goya, Leonardo da Vinci, Marcelo Grassmann e tantos outros. As apostilas que Jandira preparava para suas aulas de desenho na Udesc mencionavam conceitos como volume, plano, cor local, cor, linha fugidia, linha de planos, linha tangente, anatomia, plano piloto, textura, conteúdo, forma, plano de nascença, tinta, cores complementares, linha pontilhada, plano básico, luz e suas dimensões, a estrutura do campo visual, a intensidade das cores, qualidades tonais, percepção e luz, relação figura-fundo, controle de intensidade, controle de valor, controle de pigmento e de tom, relações de cores primárias e secundárias, relações de cores quentes e frias, relações de cores complementares, qualidades das sensações visuais. Esse rol serve apenas para exemplificar e ilustrar o que mencionamos antes. Não à toa seu desenho é arrebatador.

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Cada desenho de Jandira Lorenz é uma obra acabada, na qual não cabe sequer o acréscimo de um novo traço. A fabulação imaginada vai se transmitindo do pensamento à ação manual e, quando discretamente a assinatura se impõe, é porque nada mais existe para ser dito. Como num soneto, em que qualquer palavra supérflua quebraria o ritmo e o sentido, Jandira sabe parar no momento exato (Laus apud Bay, 2005). Nos desenhos de Jandira, encontramos sombras e luzes que revelam e ocultam cenas múltiplas, nas figura 3 - jandira lorenz, sem título, s/d, quais os sonhos e a realidade se confundem sem nanquim sobre papel, 42 x 62 cm. acervo do que haja qualquer limite espaço-temporal. Aspecmuseu de arte de santa catarina (masc). tos formais que provocam e tornam visível a imaginação da artista, povoada de vestígios de civilizações arcaicas, cavalos alados e animais fantásticos no mesmo contexto de meninas sonhadoras que brincam tranquilamente com arcos e rodas, ou de torres, escadarias e templos. O ponto, a linha, a superfície, o volume, a textura e a luz se presentificam, descortinando significados e interconexões, que fazem do desenho um grande texto à espera de leitura. Jandira é uma pessoa extremamente humilde e delicada. Lemos um artigo de Hamilton Alves, que relata o seguinte: Quem a vê, caminhando na rua, sempre de olhos voltados para o chão, sem dar muita atenção ao que se passa em volta, não faz a menor ideia do valor que tem essa mulher. Ao tratar comigo da venda de seu trabalho, deu-lhe tão pouca importância, como se lhe espantasse um pouco que alguém tivesse mostrado interesse por ela. Todos os artistas são assim meio estranhos. Nunca, na verdade, se dão conta de sua grandeza – é o caso de Jandira Lorenz (Alves, 2005). Conta Jandira (Lorenz, 1995) que foi durante suas caminhadas que se avolumou no seu pensamento a 93


ideia da importância do olhar na bagagem humana. Difícil explicá-lo e, no entanto, saber olhar é uma questão vital não só para o artista, mas para que a vida se torne mais intensamente sentida, mais ampla de significados. Completa dizendo que o olho seleciona, recorta, pinça do conjunto o que lhe interessa, confere-lhe um significado especial e o devolve à natureza transformado pelo cadinho de referências humanas e culturais. Quanto mais consciente é essa prática do olhar, mais densa se torna a viagem. Ao desenhista é imprescindível o olhar atento, que, ultrapassando a sua condição de registrador passivo, permite ao homem celebrar a existência até mesmo na simples visão de uma gota prateada de chuva repousando no bojo da folha. [...] O desenho – ainda que frágil – tem por natureza ser o receptáculo desse olhar que vem carregado de lampejos da alma, permitindo ao artista configurar, pela primeira vez aquilo de que sua consciência até então não tomara posse. Tem espírito de desenhista aquele que acompanhou infinitas vezes com o olho as formas da natureza e soube canalizar, por meio da mão, esse poder de penetração na realidade vital das coisas, concretizando a possibilidade de elas se revelarem ao homem e enriquecendo assim o patrimônio do olhar, dos possíveis olhares que a humanidade acumulou através dos milênios (Lorenz, 1995, p. 6). Na década de 1970, trabalhou na Editora Abril, em São Paulo, como assistente de arte, onde fazia muitas ilustrações para revistas, livros e folders. Paralelamente a esse trabalho, Jandira começa a descobrir o universo de coisas que podiam ser ditas por meio do desenho, e assim começam a aparecer em seus desenhos os monstrinhos como meio de exteriorizar a força da sua própria poética, entendendo poética como a expressão de um gosto e um ideal específico de arte. A poética de um artista é sua maneira individual de expressão, conforme Pareyson (1984, p. 24-26). A pequena fase de monstrinhos bastante assustadores era como se fosse um grito, segundo a artista. “Eu tinha vontade, naquela época, de gritar alguma coisa muito forte, e não conseguia gritar, então eles gritaram por mim bastante; quando pararam de gritar, começaram a dar espaço para aparecerem outros” (Makowiecky; Melin; Ramme, 1997). Os elementos simbólicos foram aparecendo nos desenhos com uma grande regularidade e potência. “Estavam fazendo parte de alguma coisa que eu estava dizendo senão para os outros, para mim mesma” (Ma94


figura 4 - jandira lorenz. sem título, 1984, 63 x 28 cm. acervo do masc.

kowiecky; Melin; Ramme, 1997). A artista associa esses elementos dos desenhos – escada, a menina, o cavalo, o arlequim – a uma transcendência das coisas. Evidente que podemos associar também a um repertório muito rico, fruto de muitas leituras. É possível identificar duas linhas principais na obra da artista. Uma primeira calcada no fantástico e no onírico, tendência que estará sempre presente na arte, uma vez que o sonhar e o fantasiar são condições constantes e inerentes à humanidade5. A segunda relacionada ao cotidiano, à cumplicidade do viver diário, que é a outra parte da condição humana. Nesses dois segmentos, que não se separam completamente, podemos identificar formas e elementos simbólicos recorrentes, como meninas, arlequins, cavalos, centauros, escadas, círculos, rodas, arcos, construções geométricas, escadas, folhas, ramos, árvores, conchas e caramujos. Os trabalhos de Jandira testemunham as intrínsecas relações entre forma e conteúdo. Os aspectos formais, especialmente o valor, isto é, o claro e o escuro, a sombra e a luz, o ocultamento e o visível, dão suporte aos significados relacionados ao sonho, à fantasia, carregados de sentidos. Através de sua obra, Jandira tenta nos dizer que a fantasia e a realidade se conjugam em seu imaginário, pois, para além da simples percepção da realidade, é necessário fantasiar, empreender um mergulho profundo na memória, olhar para dentro. Dessa forma, seu desenho passa a ser uma reflexão sobre o próprio ato de desenhar, desenhando a vida. (Bay, 2005).

5 Material instrucional disponível em: http://www.artenaescola.org.br/dvdteca/pdf/arq_pdf_125.pdf. Acesso em: 28 jun. 2011. 95


figura 5 - jandira lorenz, centauro, 1986, nanquim e bico-de-pena sobre papel. 82 x 65 cm. acervo de sandra makowiecky.

Quanto ao valor formal de um símbolo, para a artista é o aspecto de maior relevância durante o ato de desenhar. Afirma Jandira que a primeira vez em que viu um centauro foi em um livro de Monteiro Lobato, e, indiferente ao significado simbólico do centauro, o que a interessou foi a forma. O que a interessa, primeiramente, é que os elementos (centauro, caramujo, por exemplo) contribuam com a forma plástica. O que sempre lhe chama a atenção é a forma e como ela contribuirá plasticamente no desenho. Ressaltou em entrevista já mencionada que um elemento diferencial nesse conjunto de símbolos é a escada. Talvez esteja associada a algo como uma nova etapa, a passagem para outro plano. Nesse caso específico, a artista lhe dá um sentido além da questão formal. A impressão que temos é que queremos ver nos símbolos que Jandira usa mais do que ela mesma quer dizer, como podemos perceber abaixo: Embora Jandira não tenha suas origens ligadas à tradição ilhoa, seu trabalho trata igualmente de um universo simbólico e onírico, no qual surgem elementos incorporados de seu novo habitat, como conchas, vegetação e outros. No contexto da arte catarinense, Jandira representa a vertente de cosmovisão mítica, meditativa, cujo universo poético reflete espiritualidade e transcende o cotidiano (Bay, 2005). A alguns elementos Jandira atribui sentido. A presença constante da menina em seus desenhos, por exemplo, possui diversas conotações a depender do contexto de cada trabalho, porém, sempre se remete à vida, a uma etapa, a um novo plano, à alma que se presentifica em uma forma (Makowiecky; Melin; Ram96


figuras 6 e 7 - jandira lorenz, sem título, s/d. imagens da artista.

me, 1997). Nas obras de Jandira Lorenz, uma menina brincando com um aro metálico marca sua inquietante e episódica presença. Ela surge, de repente de misteriosos espaços oníricos construídos em planos sobrepostos. A obra de arte é um referencial da própria alma, nos fala dos próprios sentimentos humanos, ela nos remete a nós, não como pequenos indivíduos, da nossa própria condição de criança divina, que nos remete a nossa própria essência anterior, a essa pequena trajetória que a gente passa por aqui. (Lorenz apud Makowiecky; Melin; Ramme, 1997) Falar sobre os elementos simbólicos em suas obras seria tirar a fantasia que neles estão presentes e que nos entrega profundamente a nós mesmos. Os desenhos de Jandira nos colocam frente ao enigmático, imagens que possuem uma existência espiritual. Enigma, já nos dizia Heródoto, é o que foi lido de uma forma, mas que pode também ser lido de outra, o que coloca o leitor diante da responsabilidade de escolha que faz naquele momento, pois sabe que não há certeza. Para Mario Perniola (2009, p. 1731), o caráter enigmático da arte e da filosofia está assentado na realidade, que é também enigmática e “[...] tem a capacidade de se explicar simultaneamente sobre inúmeros registros de sentido, todos igual97


figura 8 – jandira lorenz. fonte: jornal a notícia, 9 ago. 1998.

mente válidos, e abre um espaço suspensivo intermediário que não é destinado a ser preenchido”. São formas que vão surgindo do inconsciente da artista, segundo ela. A forma não tem significado para além de si própria. Segundo Henri Focillon (1988, p. 14): “No momento em que o signo adquire um valor formal iminente, este valor passa a agir diretamente sobre o valor do signo enquanto tal, podendo esvaziá-lo ou desviá-lo, dirigi-lo para uma nova existência”. O signo pode tornar-se forma e não mais ter relação com sua origem. Por isso a forma pode ter leituras diversas, tentar explicá-la seria uma tentativa errante, pois são como sonhos, têm mais de um ou vários significados. Através dessa fissura que é a imagem, podemos entrar num mundo incerto, no mundo do imaginário, num horizonte rico de sentidos onde já não existe limite. Essa ambiguidade dos símbolos vincula-se à característica dos sonhos de admitirem uma “superinterpretação” – de representarem em um único conteúdo pensamentos e desejos que são, muitas vezes, de natureza amplamente divergente. Os sonhos se servem de quaisquer simbolizações que já estejam presentes no pensamento inconsciente, por se ajustarem melhor aos requisitos da formação do sonho, em virtude de sua representabilidade, e também, em geral por escaparem da censura. (Freud, 2006, p. 381) Esse inextricável dessa mistura é característico dos sonhos. As obras de Jandira são como os sonhos, onde aparecem símbolos inconscientes que se adaptam e confinam com a construção formal do desenho. Suas obras traduzem um devaneio exercido com total liberdade. A arte de Jandira se exterioriza por meio de uma necessidade interior, é um universo de símbolos internos – símbolos que fazem parte de um mundo que está pulsando em algum lugar, na mente da artista, como em frenesi.

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figura 9 - jandira lorenz. ilustração para o livro

o perseverante soldadinho de chumbo, 2010.

Para mim, a arte é um instrumento do qual o homem se serve para expressar suas emoções frente às suas experiências, e assim resta estabelecer o equilíbrio entre seu interior e o exterior que o cerca. Fazer arte seria, pois, expressar isso através de símbolos, fazendo-nos conhecer melhor nossas próprias emoções, e confrontá-las com as dos outros homens. (Lorenz apud Makowiecky; Melin; Ramme, 1997) Jandira quase sempre trabalha sentada no chão, com a prancheta e os papéis sobre o colo. Perto de si, a artista tece suas imagens guiando a mão no ato de desenhar. Mantém uma relação íntima com seu trabalho, pois a obra é seu diálogo interno. No ato “convulsivo” de desenhar está a busca pelo equilíbrio que acalma, mas, ao mesmo tempo, não se sacia, pois “[...] quanto mais se desenha, mais se descobre” e são as descobertas íntimas que guiam a artista em direção à obra. Sobre a obra de Jandira, conta Mattos (2005, p. 76-79) que ela vai se solidificando aos poucos, à medida que a artista aprofunda um diálogo com seu universo interior, que se revela a cada passo, no qual ela mergulha cada vez mais fundo para extrair uma nova composição que coloca no papel. Seus desenhos são essencialmente realizados com bico-de-pena, sempre preto e branco. Jandira afirma reiteradamente que não é pintora, é desenhista. Esporadicamente usa cores, somente em ilustrações de livros e gravuras, como recentemente fez em uma série de ilustrações coloridas para uma nova versão do livro O perseverante Soldadinho de Chumbo, escrito por Hans Christian Andersen (2010). O que interessa a ela é a composição dos objetos no jogo de luz e sombra. Jandira ilustrou também um livro de poemas sobre animais chamado História natural dos sonhos, de Fritz Muller (2004). A edição é bilíngue, português-alemão, e tem um projeto gráfico extremamente cuidadoso. 99


figura 10 - jandira lorenz. sem título, 2005, nanquim e bicode-pena s/papel, 60 x 39 cm. coleção da artista.

Sua paixão pelo claro e o escuro vem dos seus grandes mestres, Francisco Goya, Rembrandt e Marcelo Grassmann. O domínio dramático de luz e sombra e a expressão do sobrenatural presente nesses artistas motivam Jandira a trilhar o mesmo caminho, pois nas obras deles há uma força gritante da razão, onde existe uma clareza do obscuro, clareza que remete a um pensamento ligado ao caráter da condição humana. Jandira nunca se aproximou da pintura porque as cores significam uma expressão muito emocional. Ela preferiu o desenho para poder trabalhar mais com a razão e conduzir o público a uma reflexão intelectual. Seus desenhos resultam numa construção formal racional que conduz a um universo particular onde a razão se perde. Afirma ter muito a revelar com essa técnica e só poderá partir para outra quando exaurir todas as possibilidades. Quando se trabalha o desenho, tu tens que extrair muito mais coisas daquilo ali que é mais singelo ou mais severo. O que vai extrair: vai trabalhar com as texturas, claro e escuro, com a própria forma, com os ritmos, vai estabelecer entre as formas uma certa unidade rítmica [...], mas também vai provocar um contraste que determina que haja tensão entre as formas. Se os elementos no nível simbólico acabam se ajustando numa leitura só, no nível formal tens mais preocupação é de ajustar os elementos para que eles desempenhem em seu desenho um papel plasticamente satisfatório. (Lorenz apud Makowiecky; Melin; Ramme, 1997) Jandira deixa o desenho afluir do inconsciente. A sua maior preocupação é a construção das leituras de tensões e equilíbrio, o que na verdade é uma preocupação automática de construir de modo que resulte em uma figura mais clara ou mais escura. É o desenho que sempre norteia e suscita suas buscas enquanto artista e ser humano. É algo que surge, que tem vida própria, que é intrínseco a ela, que se desprende na forma de fantasia, de irreal, mas que existe em seu interior, porque é o si e o ser, o dentro e o fora, o 100


que está a sua volta e a inquieta, e assim conduz ao inexplicável, inimaginável. São inventários de experiências íntimas. Jandira alcança o estado poético, onírico, o estado da criação. Deixa-se ser norteada pelo desenho, ele acontece como consequência de um diálogo interno, uma busca por algo transcendente, que sai do espaço real e se realiza no espaço simbólico do inconsciente. A artista e desenhista Edith Derdik (2001, p. 45) descreve um processo similar: Cada sensação, cada sentimento, cada gesto, cada imagem quer agarrar, fixar, inventar sua forma. Cada impulso do corpo é enlaçamento de si na exterioridade do mundo [...]. O ato criador se desembaraça, resvala, discorda, desmonta, acorda outros mananciais para a inteligibilidade dos sentidos, toca outros acordes, escuta outros timbres, observa outras linhagens que possam dar conta de sonhos nunca navegados, imagens nunca sonhadas. Paul Valéry, em Estudos e fragmentos sobre o sonho, propõe que no sonho tudo é real, não há inconsistência na irrealidade, há sensações que são reais mesmo que nada tenha de sentido. “No sonho, o pensamento não se distingue do viver e não perde tempo com ele. Adere ao viver; adere inteiramente à simplicidade do viver, à flutuação do ser sob os rostos e as imagens do conhecer” (Valéry, 1991, p. 94). As obras de Jandira são como esses sonhos, são irreais, mas consistentes. São seres que vivem sob rostos do conhecer (razão). São seres que saltaram para o plano da representação onde tomam forma por meio de um simbolismo fantástico, de espaços sem espaço e de tempo sem tempo, mas que vivem na beleza dessa realidade, uma “realidade desenhada com desenhos vivos”, segundo Derdik (2001, p. 47): Parece que não basta o esforço, a vontade, o desejo e a determinação do ser em querer alcançar um estado onírico, poético e criador; parece muito distante vivenciarmos estes estados no cotidiano com a mesma qualidade e intensidade de uma experiência originária. Estar no estado de poesia exige de nós uma lapidação no tempo e para no tempo permanecer, oscilando nas conjugações do querer, do poder, do saber, do fazer e do ser. Permanecer no estado de criação desvela uma situação paradoxal para aquele que não se desprega de si mesmo e, simultaneamente, de sua própria condição. Ser um e ser mil positiviza a transiti101


vidade e a disponibilidade de nosso espírito em tatear tempos sem tempos, percorrer espaços sem espaço, tonalizando o ser e o mundo com pigmentos vivos. Nesse espaço paradoxal do sonho, sem tempo e sem referência, está uma mistura de elementos históricos e arquitetônicos, nivelam-se uns sobre os outros sem se prenderem à necessidade de representação. Suas cenas múltiplas fundem tempo e espaço, fazendo o espectador perder as noções de começo, meio e fim. Sem qualquer tentativa de racionalismo, como num sonho, sempre possível ao subconsciente humano, o sincretismo visual fascina e incomoda por sua aparente incongruência. Jandira parece lembrar a todos que a fantasia e a realidade caminham lado a lado. Por que limitar a existência às narrativas formais se é possível incrementar os percursos da memória com a descontrolada ficção? Imaginar é um exercício de liberdade em plenitude. No mínimo, uma ação catártica. Então, na percepção de uma realidade quase sempre monótona, fantasiar é sempre preciso (Narloch, 2002, p. x). As interpretações permitem diversas direções; lendas e mitos parecem estar dissolvidos pelo imaginário da artista. Livre ao fluxo de expressividade, a fluência do realismo fantástico de Jandira não é espontânea, é fruto de adversidades domesticadas pela razão, em que aparece um realismo da irrealidade. A fantasia surge como possibilidade de extravasar a realidade e se pôr como possível realidade. “A potência da imagem que imagina catalisa um repertório de tudo quanto ainda não é, de tudo que pode ser que nem seja e que nunca tenha sido, e ainda assim contendo em si a possibilidade de ser” (Bachelard, 1990, p. 6). No reino da imaginação, o infinito é a região em que a imaginação se afirma como imaginação pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa, orgulhosa e trêmula. Então as imagens irrompem e se perdem, elevam-se e aniquilam-se em sua própria altura. Então se impõe o realismo da irrealidade (Bachelard, 1990, p. 6). Essa busca do autoconhecimento, da temática interior pela via das imagens dos signos do inconsciente se revela e se oculta na luz e na sombra do bico-de-pena de Jandira. Segundo Lindolf Bell “Simultaneamente, a obra de Jandira Lorenz se caracteriza pela vivência do caráter de mutação”; porque a alinearidade é seu recurso linguístico mais forte; porque nessa alinearidade os aspectos complementares sempre acabam 102


figura 11 - jandira lorenz, sem título, 1995, aguada de nanquim e bico-de-pena s/papel, 42 x 65 cm. coleção da artista.

se batendo: onirismo e cotidiano, signo e objeto, humanismo e bestiário, luz e sombra, mito e história (Andrade Filho, s/d, p. 63). [...] as imagens não são fatos [...] já não se debatem formas senão forças. Essas forças, a que chamamos também de imagens, são enigmas, em que, da superposição de elementos dissímeis, tais como o arcaico e o atual, a tradição e a ruptura, o trágico e o farsesco, o arquipassado e o ainda por vir, surge, com todo seu magma, com toda sua complexidade, o contemporâneo (Antelo, 2008, p. 15). Para existir, a obra deve renunciar ao raciocínio, deve entrar no domínio da extensão, onde a forma meça e qualifique o espaço. Se existem forma e conteúdo ao mesmo tempo, existe arte, pois não há forma sem conteúdo e nem conteúdo sem forma. Sobre o processo de criação, Clarice Lispector nos faz refletir sobre o aparecimento e inseparabilidade da forma e conteúdo: Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta para se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem do conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar e o escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se de conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única. (Lispector, 1999. p. 254-255) 103


O conteúdo farto nos trabalhos de Jandira e a maneira como estão constituídos fazem com que os universos ali representados sejam tão vastos que transcendam qualquer tentativa de leitura. A mente no corpo pensa, e o corpo na mente deseja, e os dois, em contato com as matérias do mundo, vão esboçando um amplo leque de possibilidades impensadas. Essas possibilidades subjetivas criam no papel desenhos que provêm dos compartimentos da alma, abrindo as portas para um mundo fantástico onde correspondem outras formas de ordem e desordem. Jandira (1995) nos afirma que a linha do desenho é, antes de mais nada, ferramenta do nosso cotidiano graças a seus múltiplos recursos, mas, de todas as linhas possíveis, algumas configuram no papel a visão do artista: universo de posse e de entrega, pois o artista, por mais que sonhe tratar de outras coisas, fala de si e de suas relações com o mundo. Conta Jandira: Fui comentar a linha e tratei do homem. Talvez porque, do modo como vejo o desenho, tudo parece indissoluvelmente entrelaçado: sendo invenção humana, a linha pertence ao criador, mas como negar que, em última essência, ambos pertençam à natureza? (Lorenz, 1995, p. 6-7). Este mundo da fantasia é um mundo de potencialidades no qual a artista se deixa entrar, germinando criações que refletem sua alma, como um extravasamento e reflexo do seu interior. É o mundo que reside em nós, porque em nós o mundo reside. O ato criador vive nos limites do encontro entre as profundezas de fora e as profundezas de dentro. O inconsciente, peculiar e singular, como artista e mulher, capta e registra suas vivências no mundo, transpõe a vida das formas no espírito para a vida das formas no mundo, em forma de arte. “Íntima é a imagem, porque ela faz de nossa intimidade uma potência exterior a que nos submetemos passivamente: fora de nós, no recuo do mundo que ela provoca, situa-se, desgarrada e brilhante, a profundidade de nossas paixões” (Blanchot, 1987, p. 263). A potência da obra de Jandira está no espaço do imaginário. É o retirar de si mesmo, das realidades para arrastá-las, fazendo-as participar dessa interioridade onde se perdem os limites. Jandira transforma o visível em invisível, aquilo que é visto por todos como aquilo que pode ser interpretado como algo a mais, algo que a arte dá como incremento ao real, o invisível é o que está além do mundo ordinário das coisas, 104


e nesse intenso trabalho de transmutação reside a potência do seu trabalho. O desenho partilha do gesto primordial do homem de situar-se no mundo, de demarcar seu espaço existencial, de demarcar o dentro e o fora, de tornar dóceis as forças do mundo visível e mesmo do invisível, conjurando-as; [...]. A arte, sob todas as formas, torna-se a testemunha mais eloquente da presença do ser humano no mundo e de sua incansável luta pela construção de um significado existencial [...] sendo, pois, meio tanto de análise e conhecimento como de informação e invenção poética, o desenho soube se adaptar muito bem às múltiplas necessidades materiais e espirituais da humanidade. (Lorenz, 1995, p. 6) Retomando a citação de Clarice Lispector (1980, p. 22), é esse transfigurar da realidade em outra realidade (invisível núcleo da realidade) que cria e concede vida à obra. Talvez possamos dizer que transforma o dizível em indizível, pois muito ainda deverá ser dito sobre sentimentos, impressões, terrenos íntimos que parecemos incapazes de expressar, para os quais as palavras fracassam, as frases revelam-se ineficazes e, por maior que seja nosso repertório e esforço, somos levados a crer que podemos tão somente tangenciar, sem talvez ter alcançado nenhum deles. O indizível tem prestígio. Alimenta versos, desorienta escritores, atormenta filósofos da linguagem e estetas do sublime. Tenta agarrar uma intensidade pelo pé ou descrever um estado de coisas, sem sucesso (PEREIRA JUNIOR, 2007). O que fizemos foi uma tentativa de aproximação com a obra de Jandira Lorenz. O indizível, o não abordável, a não palavra denuncia que o mundo é, mais que tudo, não verbal – transborda cada tentativa de enunciá-lo, contém sempre alguma coisa que não conseguimos abordar ou dizer.

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SOBRE A EXPOSIÇÃO O FABULOSO EM JANDIRA LORENZ E O LANÇAMENTO DO LIVRO PALAVRAS MÁGICAS, DE BEBEL OROFINO SANDRA MAKOWIECKY 1

O Movimento Baile Místico, em mais uma de suas ações, fez um convite. CIRANDA MÍSTICA COLÓQUIO, EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DE LIVROS Dia 4 de maio de 2023 (terça-feira) Local: Museu da Escola Catarinense – MESC No Colóquio, Jandira Lorenz foi homenageada, mas também ocorreu o lançamento do livro “Palavras Mágicas”, de Bebel Orofino, e a exposição abaixo denominada. A exposição recebeu um banner com texto de Sandra Ramalho e Oliveira retirado do livro, o qual também explicava a exposição, que expunha ao público as gravuras e ilustrações da obra.

hall do museu da escola catarinense e obras de jandira lorenz em exposição.

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC e Diretora do Museus da Escola Catarinense, MESC/UDESC. 108


hall do museu da escola catarinense e obras de jandira lorenz na parede. na foto, sandra makowiecky (costas), jandira lorenz e luana wedekin. fotografia: letícia damázio.

EXPOSIÇÃO O FABULOSO EM JANDIRA LORENZ Ilustrações e gravuras A grandeza do trabalho de Jandira é proporcional à sua modéstia. Como gente, ainda é aquela ingênua menina do interior do Rio Grande do Sul que gostava de desenhar, foi para São Paulo estudar – o que fez muito –, sem deixar nunca de desenhar. Por paixão veio para Florianópolis, onde continuou desenhando, então passou também a ensinar, na Udesc, história da arte, gravura e desenho, vivendo seu cotidiano povoado de gatos, jardins e sonhos. O lirismo dessa trajetória está registrado em suas obras, seus desenhos em gravuras, grafites e nanquins, boa parte da obra escondida, dada a citada modéstia. Agora, neste livro, Bebel Orofino traz à tona uma amostra da poética minuciosa e precisa de Jandira Lorenz, numa linguagem a que hoje poucos artistas se dedicam, até porque raros teriam condições de fazê-lo. Daí que a ilustração da literatura é mais produtiva quando a linguagem visual não apenas ilustra a linguagem verbal, mas quando aquela amplia esta. Ou quando ambas dialogam, se entrelaçam e se complementam. Dessa interação entre duas criadoras e suas criaturas, que são as suas respectivas obras, nasceu Palavras Mágicas: aventuras e mistérios na Ilha de Santa Catarina. Sandra Ramalho e Oliveira Professora Doutora Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Centro de Artes - Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV/Ceart/Udesc)

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jandira lorenz em casa. foto de nilva damian (2023).

no lançamento do livro, jandira lorenz, ana luísa luz da silveira (filha de clarissa medeiros da luz, professora da udesc) e a autora bebel orofino. fotografia: letícia damázio.

Antes de mostrar a exposição, vamos escrever breves palavras sobre a artista. Jandira Lorenz, nascida em 1947 em Dom Feliciano, Rio Grande do Sul, formou-se na FAAP/SP e fez mestrado em Artes na ECA/ USP, formando-se em 1975. Desde a década de 1970, paralelamente à sua produção artística, realizou outros projetos gráficos ao criar logotipos, ilustrações para jornais, revistas e livros. Entre eles, ilustrações para as editoras Círculo do Livro e Ática, além de ilustrações para livros infantis, entre eles O soldadinho de chumbo (Editora Peirópolis) e História Natural de Sonhos (Editora Nave). Igualmente, desde a década de 1970 participou de diversos salões e coletivas de arte com desenhos e gravuras. Realizou várias exposições individuais, entre elas, em 1986, também em 1995, no Museu e Arte de Santa Catarina (Masc). Em 2002, teve sala na exposição Prestígio do papel, no Masc. Em 2012, teve individual promovido pelo Sesc, que percorreu o estado de Santa Catarina. Em sua dissertação de mestrado, escreveu sobre a obra de Eli Heil, publicada com o título A obra plástica de Eli Heil, em 1985. Foi a primeira docente do Centro de Artes da Udesc a ostentar diploma de mestrado. No ano de 2022, a Galeria do Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da Udesc, que leva o seu nome, realizou exposição virtual da artista. Para conhecer, acesse: https://bit.ly/3qnDKmE; https://galeriajandiralorenz.wixsite.com/galeriajandiralorenz/quimera; ou https://www.instagram.com/ galeriajandiralorenz/. O público compareceu ao evento e, entre muitos registros, uma panorâmica do hall do Museu, mostrando as gravuras e ilustrações na parede, revela a dinâmica do momento. A exposição foi concebida de modo a evidenciar a gravura principal e os desenhos que ilustram cada uma das oito histórias do livro de Bebel Orofino. As falas e os trabalhos de Jandira expressam a certeza de que não faltam convites e estímulos para o artista 110


criar em consonância à sua poética, e enfatiza a naturalidade do movimento da ação de fazer, de acordo com uma visita às suas memórias. Escreveu a artista ao responder a uma entrevista: Inventar, figurar (mentalmente) e realizar ou produzir são processos interconectados, uma sequência natural. O mesmo com o termo “descobrir”, pois é fazendo que se antevê novas possibilidade, novos enfoques. Assim, também no que faço isso ocorre naturalmente, uma ideia leva a outra, uma forma desdobra-se em novas possibilidades, com deslocamentos espaciais buscando interesse visual, tratamento gráfico muitas vezes partindo de uma textura sugestiva, ideias colhidas aqui e ali, reinventando a partir de um pedaço de desenho anterior. Tudo se junta, se agrega quase espontaneamente (passando pelo “crivo” da escolha consciente final) no desenho, estão os elementos mais básicos para a expressão em arte. Ali estão as texturas, as formas, o recurso do claro-escuro, os ritmos, os grafismos, e isso o artista pode encontrar sugestivamente nas folhas dos coqueiros, no tronco rugoso das árvores, na cestaria, no rendado das folhas etc. Tudo é convite para o uso no desenho [...]. (LORENZ, 2014)2.

Relação dos títulos das ilustrações de Jandira Lorenz, que são também os títulos dos contos do livro. 1. Tudo começa no esconderijo 2. O anzol do céu 3. O louco local 4. Tavico e a mula-sem-cabeça 5. Menina-bruxa é safada, sim senhora 6. A ondina da Lagoa da Conceição 7. Bela e os pássaros 8. Menino lobisomem Assim, a exposição foi montada obedecendo a essa ordem. Alguns registros da exposição, que contou ainda com cinco obras do acervo pessoal de Jandira em uma das paredes do MESC, em lado oposto à parede das ilustrações e gravuras. Essas obras Jandira Lorenz reluta em se desfazer, como o trabalho “Sem título”, de 1995 (Figura 16).

2 Fonte: Entrevista concedida por Jandira Lorenz à entrevistadora Vanessa Bortucan. Florianópolis, mar. 2014. 111


jandira lorenz. conto 1 do livro: “tudo começa no esconderijo”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, de cima para baixo, 8 x 10 cm e 9,5 x 12 cm. fotografia: nilva damian.

jandira lorenz. conto 2 do livro: “o anzol do céu”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, de cima para baixo, 12 x 14 cm e 9 x 11 cm. fotografia: nilva damian.

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jandira lorenz. conto 3 do livro: “o louco local”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, de cima para baixo, 7 x 8 cm e 11,5 x 11,5 cm. fotografia: nilva damian.

jandira lorenz. conto 4 do livro: “tavico e a mula-sem-cabeça”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, de cima para baixo, 8 x 9 cm e 15 x 12 cm. fotografia: nilva damian.

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jandira lorenz. conto 5 do livro: “menina-bruxa é safada, sim senhora”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, de cima para baixo, 10 x 10 cm e 10,5 x 10,5 cm. fotografia: nilva damian.

jandira lorenz. conto 6 do livro: “a ondina da lagoa da conceição”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, de cima para baixo, 8 x 8,5 cm e 9 x 13 cm. fotografia: nilva damian.

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jandira lorenz. conto 7 do livro: “bela e os pássaros”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, da esquerda para a direita, de 10 x 10 cm;18,5 x 14,5 e 11 x 11,5 cm. fotografia: nilva damian.

jandira lorenz. conto 8 do livro: “menino lobisomem”, 2022. colagem com desenho e pintura de 25 x 31 cm e vinhetas, da esquerda para a direita, de 7,5 x 8 cm; 10,5 x 12 cm e 11 x 11 cm. fotografia: nilva damian.

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jandira lorenz. sem título, 1995. aguada de nanquim e bico-de-pena s/ papel, 42 x 65 cm. coleção da artista.

Se o estado contemplativo de Jandira, desde menina, expandiu suas percepções evocando lembranças diferentes é porque houve uma dilatação de sua consciência, expandindo-se numa superfície vasta de imagens que é capaz de levar mais longe o inventário detalhado da riqueza dos olhares da humanidade, convertendo-se em um número crescente de criações (obras de arte), como estrelas brilhantes em um céu nebuloso. É ou não é simplesmente fabuloso, em todos os sentidos, o mundo de Jandira Lorenz?

ficha técnica

Ilustrações e desenhos: Jandira Lorenz Curadoria: Sandra Makowiecky Expografia: Juliana Crispe Montagem: Cassiano Reinaldin Produção: Bebel Orofino Fotografia: Nilva Damian Molduras: Ricardo Ramos/Artca Molduras Realização: Museu da Escola Catarinense (MESC/UDESC) Movimento Baile Místico Ondina Editora

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RESENHA

SANDRA RAMALHO E OLIVEIRA6

PALAVRAS MÁGICAS: MAIS UMA PRODUÇÃO COM A MARCA BEBEL OROFINO Tenho nas minhas mãos o livro intitulado Palavras Mágicas. Na capa, predomina um elegante azul-escuro de fundo, uma referência ao céu, mensagem sugerida pela sua ilustração que, também conservando o mesmo tom de azul, recebe nele estrelas, linhas nebulosas que atravessam a imagem e circundam as estrelas e imagens femininas voadoras, carregando cestos cheios de pequenas estrelas. Isso gera efeitos de sentido de leveza, onirismo, fluidez gasosa, ausência de gravidade, movimento, liberdade. Idêntica elegância é encontrada nas fontes escolhidas para as informações verbais, título e autoras, a do texto e a das imagens. Além de ilustrar o frontispício e o conto ao qual a imagem faz referência, essa imagem predomina e domina a visão da capa que, como todo envoltório competente, sintetiza o livro. É preciso atenção para identificar o que está, poeticamente, dito ali. Comecemos pela autora, Bebel Orofino, como é mais conhecida a Maria Isabel Rodrigues Orofino. A marca que ela imprime a tudo que faz também se amalgama nesta obra, decorrente de seu modo de ser, onde a vivacidade, a inteligência, a curiosidade, a perspicácia, a sensibilidade, a gentileza, a simpatia, a dedicação e o compromisso com o que faz estão sempre presentes. Em síntese, seu nome já recomenda o livro. No rodapé, com fundo vermelho contrastando com o azul, nos é informado que as ilustrações são de Jandira Lorenz. Costurando e integrando os dois planos há uma espécie de cobra desenhada – em um dos contos, saberemos que se trata do mítico Boitatá – ali acompanhada de duas meninas, que serão igualmente personagens de “O anzol do céu”, um dos contos do livro. Jandira, a exímia artista do desenho, cujos traços jamais nosso estado e, talvez, o País tiveram notícia, esmerou-se com a grande destreza e a infinita paciência que lhe são atributos, permitindo a criação de um mundo incrível de imagens apenas com linhas. Um observador menos atento pode não perceber que mesmo o colorido e os volumes são construídos com a sucessão de linhas justapostas. Verdadeiras obras de arte dessa artista permeiam todo o livro, nos brindando com surpresas visuais de uma delicadeza sem igual.

6 Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC.. 117


bebel orofino, marli henicka e jandira lorenz, e capa do livro.

Para mim, fazer uma resenha desse feliz encontro entre Bebel e Jandira é, além de honroso, um prazer sem igual, pois fora a amizade, o respeito e a consideração que nutro por ambas, Jandira Lorenz foi minha professora na licenciatura em Artes Visuais da Udesc, e Bebel, então menina, foi minha aluna no Colégio Catarinense na disciplina que na época se chamava Educação Artística. Voltando à leitura da capa, vê-se, em destaque, dado o tamanho escolhido para as letras, o título da obra, Palavras Mágicas. Os sete contos que a compõe trazem palavras mágicas em diversos sentidos. Umas são mágicas porque recuperam o nome ou mesmo a descrição de artefatos que, se ainda hoje existem, ficam restritos aos espaços onde trabalham os pescadores, mas na nossa infância estavam muito presentes, mesmo nas nossas casas, para pescarias amadoras e brincadeira de crianças, como puçá, tarrafa e jereré. Outras nos trazem à memória pássaros que hoje não vemos mais na cidade, mas há anos víamos comendo frutas diretamente nos pés das nossas casas ou nas de nossos avós, como nas árvores da casa dos avós da narradora, a qual introduz cada conto. São eles o sabiá, o bem-te-vi, o coleirinha, a saíra-de-sete-cores, o curió, o canarinho. As palavras de Bebel também são mágicas ao dar vida a personagens do nosso universo mágico fantástico, como a mula-sem-cabeça, o boitatá e a ondina, e ao dar liberdade para crianças voarem ou se transformarem em lobisomem. Incrível, tudo isso, nos dois sentidos, e ainda mais: ela atualiza as lendas que cria, por exemplo, quando suas bruxas têm telefones celulares. Neste livro, escrito com tantas palavras mágicas que costuram a estrutura de sete (observe-se: sete, número mágico) contos, nos quais seus personagens são ambientados nas nossas praias e quintais, Bebel mistura, com ingredientes bem dosados, nossa cultura popular, nossos cenários, nossos costumes, nosso imaginário, nossa memória, tudo entrelaçado. 118


Ao longo dessa tecitura, ainda podemos perceber, embutidos oportunamente, sutis princípios morais, como a crítica às guerras. Isto é, o livro lembra certas questões morais universais, mas sem ser moralista. Também se encontram questões colocadas pela autora ao leitor, buscando interagir, assim: você também conhece isto? Você já viu aquilo? A postura da autora, ao instigar o leitor a pensar sobre sua concordância ou não com o que ela trata ou com suas experiências sobre a questão, divide a autoridade unilateral tradicional da autoria e dá espaço para o leitor discordar ou acrescentar sua visão sobre o que está posto no livro. Enfim, ao conceber este trabalho, Bebel credencia-se publicamente a o que ela já era de fato, ou seja, a grande herdeira dos conhecimentos e da paixão pelo nosso imaginário bruxólico e fantástico do mestre Peninha, Gelci José Coelho, que nos deixou recentemente, e de quem Bebel foi grande parceira na produção cultural. Enfim, filhos, sobrinhos, afilhados e netos que lerem ou ouvirem a leitura dessas palavras mágicas adorarão o enfoque e o conteúdo diferente dos castelos e princesas que, quando ainda hoje persistem na vida “real”, não são mais as criaturas ingênuas e bondosas de outrora. Personagens de Bebel, mesmo não sendo reais, são realistas e poderiam morar ao lado da nossa casa. Assim, Palavras Mágicas não se trata apenas de um livro cujo destinatário é a criança, mas é prazeroso tanto ou mais para adultos que viveram em sua infância experiências semelhantes e as reencontram aqui. E, em especial, para as pessoas que vieram de fora e adotaram nossa terra como sua, para que se aquerenciem ainda mais confortavelmente na nossa cidade. São palavras mágicas, delicadas, etéreas, tão deliciosas para se interagir quanto a narrativa visual de Jandira Lorenz, que acompanha e dialoga com as palavras de Bebel Orofino.

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AÇÃO 4 OUTUBRO MÍSTICO 2023

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A CRIAÇÃO E A RESISTÊNCIA DO OUTUBRO MÍSTICO: O MÊS DA MAGIA NA ILHA BEBEL OROFINO1

Os eventos culturais no dia 4 de outubro de 2019, com aula-performance, debates, mostra de vídeo, feira de artesanato e gastronômica e o cortejo alegórico Grande Baile Místico, foram organizados muito rapidamente e em cooperação ao longo de dois meses apenas. Era o desejo de marcar os 125 anos de mudança do nome da nossa cidade, que de Nossa Senhora do Desterro passou a se chamar Florianópolis após o tumultuado e sangrento episódio da Revolução Federalista. Naquela ocasião, reuniram-se semanalmente os seguintes colaboradores do projeto: Gelci José Coelho (Peninha), Sandra Makowiecky, Sandra Ramalho, Vera Collaço, Sílvia Lenzi, Sandra Meyer Nunes, Laudelino Sardá, Roberto Costa, Carlos Damião, Rodolfo Kowalsky, Rodrigo Rosa, Zena Becker e Roseli Pereira. Foi quando, no auge da empolgação, o arauto Laudelino Sardá sugeriu: “Vamos criar o Outubro Místico!”. O qual foi acompanhado por Roberto Costa que sugeriu um slogan na hora: “o mês da magia na Ilha”. Os demais olharam-se e entreolharam-se, e todos concordaram. E assim surgiu a proposta para a criação de um mês em que o tema da mitologia local recebesse atenção e cuidado, justamente por causa do avanço das festas de Halloween que vêm se consolidando em todo o Brasil. Porém, mesmo que no Brasil o 31 de outubro seja, hoje, o Dia do Saci, enquanto alternativa de resistência, nós, moradores da Ilha de Santa Catarina (maior colônia açoriana do Brasil), temos bruxas! E um enorme acervo de lendas, causos e memórias de muitos seres fantásticos em nossas narrativas populares. Nós queremos as nossas bruxas! E acompanhadas do nosso enorme elenco de personagens mito-mágicos. O reconhecimento desse acervo de patrimônio cultural imaterial mobilizou o grupo a criar um desfile alegórico, um baile à fantasia em que – inspirados no conto Baile de Bruxas em Itaguaçu, de autoria de Gelci Coelho, o Peninha – as bruxas são as anfitriãs e convidam todos os seres mágicos das redondezas, menos o tinhoso. Portanto, aqui na Ilha não precisamos substituir as bruxas pelo Saci pois, para nós, as narrativas sobre as bruxas e tantos outros seres mágicos revelam um acervo de patrimônio imaterial maravilhoso, literalmente! E dele o Saci também faz parte. E esse patrimônio local precisa continuar a ser mapeado, registrado, 1 Coordenadora de Produção do Movimento Baile Místico (2019-2023). 122


estudado, no rastro do que nos mostrou nosso grande mestre Franklin Joaquim Cascaes. O que temos é uma potência em termos de realismo mágico. Naquele momento, surgiu então a primeira programação do Outubro Místico com: (i) os eventos do dia 4/10/2019; (ii) o espetáculo de dança O Pequeno Príncipe no planeta de Cascaes;de Alessandra Gutierrez; e (iii) o show musical A vida é uma festa, do menestrel Valdir Agostinho. Com a Ale Gutierrez e o Valdir Agostinho, só podia ser ação de magia! Esses dois viraram tradição no projeto! No ano seguinte, a Presidente da Fundação Municipal de Cultura, Roseli Pereira, tomou a iniciativa de propor a criação de uma lei municipal que sustentasse a proposta, consolidando a intenção de haver um momento do ano em que se dedique atenção ao rico e prolífico tema do mito e da magia na arte da Ilha de Santa Catarina. Assim, no dia 5 de julho de 2021, o prefeito municipal Gean Loureiro assinou a Lei Municipal n. 10.790, que institui o Outubro Místico. Desde lá, a proposta vem resistindo heroicamente e aprendemos a lição de que uma lei pode significar muito, na verdade! Outra lição que aprendemos também é que, como já havia sido alertado muitas vezes, o mês de outubro não é adequado para eventos externos aqui em Floripa. Pois, quem conhece a natureza da nossa Ilha, a sua verdadeira magia, sabe que este é o mês com o maior volume de chuvas. Chove, em todos os anos, praticamente durante todo o mês de outubro. Assim, a data do cortejo deveria ser transferida para meses mais secos como final de abril, início de maio, maio mágico!

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O Outubro Místico pode e deve realizar uma centena ou mais eventos internos. Aliás, o mês é perfeito para isso, pois com tanta chuva não dá praia mesmo –a nossa maior rival na organização de eventos na Ilha. Já a realização do desfile em outubro, sinceramente fica o depoimento a partir da experiência: produtor cultural algum merece cancelar e transferir três vezes um evento grandioso. O cortejo deve ser em mês seco. Vamos relatar aqui, brevemente, as impressões sobre cada uma dessas ações culturais realizadas. Veja o cartaz:

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13 OUT 23 • SEXTA-FEIRA

ISTEPORAS BRUXÓLICO: CHANCHADA COM GOSTO DE MAGIA BEBEL OROFINO2

A primeira apresentação de Isteporas aconteceu em 7 de dezembro de 2022 como espetáculo de final de ano do Studio da Ale Gutierrez. Quem esteve naquela noite no Teatro da União Operária – chamado Teatro da UBRO –, em Floripa, soltou o riso farto em gargalhadas, daquele jeito de doer a barriga, movido pela atuação de um grupo de atrizes muito descontraídas, sensuais e carismáticas. Com liberdade poética para até chamar o célebre historiador catarinense Oswaldo Rodrigues Cabral de Oswaldão, elas levantaram risos na plateia pela ousadia, brincadeira e escracho. Isteporas (que traz um trabalho com forte referência à pesquisa da nossa decana Vera Collaço) nos transporta para um tempo em que a pacata Cidade do Desterro, nos idos do século XIX, guardava pequenos palcos para as suas vedetes em teatro de revista, com variedades e chanchadas. Ale Gutierrez – coreógrafa e diretora – traz um elenco com mulheres “de verdade”, corpos com contornos volumosos, carnudas, picantes. Ela explica que: “No vocabulário manezinho, Istepô é quem atrapalha, incomoda, é do contra. E Isteporas são artistas de um cabaré, que, para a sociedade de Florianópolis de outrora, era um empecilho para a moral e os bons costumes da Ilha”. Após o sucesso retumbante de Isteporas e com mais uma apresentação no TAC em 17 de junho de 2023, Ale Gutierrez e as atrizes do Studio, um grupo amador de dança de Florianópolis, decidiram levar ao palco, desta vez do misterioso Teatrinho Armação (uma joia rara da Ilha), o espetáculo Isteporas Bruxólico! Muito belo, engraçado, bem-arranjado, bem-resolvido e de poderosa visualidade frankliniana. Com divertido jogo e brincadeiras, e em um inédito cabaré bruxólico, Alessandra Gutierrez Gomes, Mercedes Mendes, Joice Silva, Jaqueline Cavalheiro, Dani Khnis, Flávia Furlaneto, Merlim Malacoski, Patricia Gerent e Douglas Gonçalves fazem pantomimas primorosas, utilizando o recurso de dublagem de canções populares. As trilhas sonoras de Ale Gutierrez têm sido sempre impecáveis e um dos pontos al-

2 Coordenadora de Produção do Movimento Baile Místico (2019-2023). 125


isteporas bruxólico é um divertido elogio à força feminina com a mais consistente gargalhada ao machismo que já vimos por essas bandas da terra.

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espetáculo em cabaré bruxólico na antiga desterro.

tos de seus trabalhos. De modo que a dublagem se insere bem na construção cênica, em uma espécie de show de calouros, um desfile de bruxas de todos os tipos, cada qual com sua canção-tema, em dança e drama. O streap tease da vacatatá foi ousadia total. E o “coisa ruim” delicado e mimoso foi a grande quebra de expectativa. O RISO, ESSE PODEROSO RECURSO LIBERTÁRIO, CRÍTICO E PROVOCADOR Isteporas Bruxólico é um show de originalidade. Com pesquisa densa, oferece uma tradução muito fina, muito fiel à estética do realismo mágico local. O figurino é primoroso. O texto nos faz rir de nós mesmos. E volta a questão de como a misoginia sempre foi um fardo para a mulherada. A piada da “loura burra”, da “barbeira no trânsito”, da “faladeira”, da “desequilibradamente emotiva”, da “desejante sem controle”, e tantos e tantos insultos com os quais convivemos. Ale Gutierrez traz o avesso disso tudo. Ela traz a misandria. Eu confesso que fui pesquisar como algo inédito para mim. Encontrei que a misandria é o direito de rir e debochar dos homens. Dos machos, machistas, machões e machos alfa. De todos os tipos com total liberdade e sarcasmo. Está certo que nossas mães nos ensinaram a nunca rir ou debochar de alguém. Mas, nesse caso, nós, mulheres, bem que merecemos dar umas boas gargalhadas de vez em quando, como espaço de resistência e expressão da consciência histórica em relação a esse longo processo de domesticação dos corpos femininos. Por tudo isso que considero a Ale Gutierrez simplesmente genial. Além de trazer a chanchada de volta aos palcos e quase nos matar de tanto rir, ela apresenta as bruxas e os seres fantásticos mais sensuais e originais que a Ilha de Santa Catarina já viu! Isteporas Bruxólico traz um divertido elogio à força feminina com a mais consistente gargalhada ao machismo que já vimos por essas bandas da Terra. Em um cabaré bruxólico na antiga Desterro. Absolutamente inédito! É o Outubro Místico! Parabéns!

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14 OUT 23 • SÁBADO

A 22a MOSTRA DE CINEMA INFANTIL DE FLORIANÓPOLIS RECEBE O BAILINHO MÍSTICO BEBEL OROFINO1

Ah, as crianças.... O projeto Grande Baile Místico sempre sonhou alcançar a audiência infantil e dialogar com ela. Mas como, se as crianças têm medo de bruxa, lobisomem e boitatá? Que desafio! E por que esses personagens deveriam interessar às crianças? Pois bem, ao contrário do que pensam os adultos, muitas – não todas, é claro! – crianças gostam de histórias assombradas! Incrível, não é? Essas crianças aprontam muito conosco, adultos adultocêntricos. Desde a primeira vez, quando estive na sala de aula do meu segundo filho, o Rafael, e fui chamada para contar histórias de bruxas para seus colegas, fiquei surpresa com os pedidos: “Conta uma bem horripilante!”; “Fecha as cortinas!”; “Uma bem assustadora!”. Ali percebi que as crianças gostam de histórias assustadoras. Muito interessante, pois é preciso saber o ponto, a dose, para não incorrer em susto desencadeador de medo ou trauma. Qual a dose? É a pergunta que fica diante de qualquer trabalho que brinque com seres sobrenaturais. Um desafio gostoso, afinal, estar com as crianças é um privilégio que exige o nosso maior cuidado sempre! Com relação à pergunta “por que esses personagens interessariam às crianças?”, hoje nos parece claro também que somos nós, os adultos, que recorremos ao pensamento lúdico, tão lugar-comum para as crianças. Esse modo de ver o mundo que é tão precioso e que fomos abandonando rumo à fase adulta, cada vez mais racionalizada. Assim, o universo fantástico é próprio da infância. Querer enveredar por esse caminho é como manter acesa a chama da magia no pensamento, a chama da infância e do modo lúdico de ver as coisas quando as aventuras vão além da imaginação. Para nós foi uma honra levar um Bailinho Místico para as crianças da Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis – 2023, um evento que agora completa 22 anos e é coordenado pela incrível e maravilhosa Luiza Lins. E, novamente, houve a mesma surpresa! As crianças dançavam com as nossas bruxas, coordenadas pela coreógrafa Ale Gutierrez, muito belas e bem-vestidas e originalmente bruxas! As crianças gostaram muito! E o show musical do nosso bruxo maior, o Menestrel Valdir Agostinho! Ele sendo acolhedor e comprometido com a criançada, dialogando com o seu público, encantando por onde passava. O Bailinho 1 Coordenadora de Produção do Movimento Baile Místico (2019-2023). 128


o menestrel bruxo valdir agostinho abraçado à bruxa urubu de ale gutierrez e a vacatatá vaidosa.

Místico contou também com a participação da atriz e contadora de histórias Andréa Rihl Gomes com Frankolino, o lindo boneco que nos faz lembrar o Mestre Franklin Joaquim Cascaes, com apoio de Roseane Panini e Márcio Sodré. Tudo indica que o Bailinho Místico veio para ficar e encantar a criançada da Ilha com as histórias assombradas e divertidas sobre os incríveis personagens mito-mágicos das misteriosas lendas daqui. Porém, esse projeto quer ainda alcançar alguns objetivos, oferecendo ações criativas junto à audiência infantil. Queremos valorizar as narrativas locais, tendo como meta refletir sobre a natureza, a cultura e a história do lugar, pensando que a ação e a consciência política começam pelo nosso quintal. As lendas da Ilha têm como protagonistas as entidades da água (ondinas e sereias); terra (lobisomem, flora e fauna local); fogo (boitatá e família tatarina) e ar (bruxas e bruxos). Assim, é possível trabalhar a cultura em conjunto com o tema do meio ambiente. Outra dica seria o trabalho do próprio Valdir Agostinho, que pode inspirar educadores a reutilizar embalagens e outros materiais multicoloridos, ensinando a separação do lixo e de resíduos sólidos que possam ser utilizados na confecção de alegorias para a realização de bailinhos místicos na Ilha, em suas escolas e centros culturais, evitando os zumbis estadunidenses e pensando na originalidade da nossa história e cultura, trazendo as bruxas locais como as anfitriãs de um baile em que todos os personagens da mitologia local são os convidados, e os estrangeiros também são bem-vindos. Pobres zumbis, são desprovidos de consciência, o que não acontece com os personagens locais, todos muito atentos e alertas. Assim, o Bailinho Místico quer cooperar com iniciativas que busquem conhecer o local como espaço de in129


tervenção, criação e realização de sonhos e metas, como o espaço do possível! E isso está ao nosso alcance, pois, afinal, tem que estar, a cidade tem que estar ao alcance da participação política criativa e cidadã. Com os bailinhos místicos podemos propor uma reflexão que conecte a natureza aos mitos e lendas, lembrando os elementos água, terra, fogo e ar. Assim, nossos mitos podem, sim, ser pensados como guardiões da Ilha e da sua natureza: as bruxas cuidam dos ventos e da qualidade do elemento ar; os boitatás são as nossas entidades do fogo; os lobisomens, guardiões das matas, flora e fauna; e as ondinas, as protetoras das nossas águas. Há um longo caminho a percorrer, sabemos disso. Mas não desistimos do sonho de valorizar a cultura e a natureza. A partir do conhecimento das narrativas populares junto à reflexão sobre a proteção à natureza (que é a verdadeira magia da Ilha), podemos oferecer oficinas criativas com a reutilização de materiais descartados, ressignificando o lixo e transformando-o em luxo, no requinte de fantasias absolutamente maravilhosas e originais para os bailinhos místicos com as crianças, como propõe o nosso grande artista Valdir Agostinho. Que assim seja!

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17 OUT 23 • TERÇA-FEIRA

LIVROS MÁGICOS: UMA VIAGEM MÍSTICA BEBEL OROFINO1

13 RAIOS TEM O SOL, 13 RAIOS TEM A LUA, 13 MULHERES FORMAM A GRUPA Livros mágicos: uma viagem mística é o título da 10ª edição do Projeto Livro de Artista, que reúne um coletivo de mulheres que trabalham na fronteira entre as artes visuais e a literatura com a prática de traduzir para a expressão visual construtiva a narrativa imagética gerada pelo texto literário em tom libertariamente subjetivo. Comemorando o aniversário de dez anos, A Grupa, como se autodefine essa “caterva de mulheres bruxas” (Cascaes, 2015) faz as suas “saudações ao povo encantado!”, como diz o cartaz da mostra! Nesta edição, o projeto se integra ao Movimento Baile Místico, um coletivo cultural colaborativo que atua em Florianópolis desde 2019 com várias ações ligadas ao tema do universo fantástico local. No ano de 2023, a obra escolhida como objeto de referência foi o livro infantil Palavras Mágicas: aventuras e mistérios na Ilha de Santa Catarina para crianças, que lançamos neste mesmo ano, eu (Bebel Orofino) com a honra de ter ilustrações realmente mágicas – para gastar ainda mais essa palavra! – da maravilhosa Jandira Lorenz (homenageada do Grande Baile Místico 2023), e a incrível participação da Marli Henicka na programação visual e design do livro. Nos sentimos muito honradas e agra1 Coordenadora de produção do Movimento Baile Místico (2019-2023). 131


decidas! E que surpresa ao ver os trabalhos! E, nossa, Livro de Artista d’A Grupa é um trabalho incrível! Digno e merecedor de toda a nossa gratidão! Patrícia Amante, curadora e coordenadora do projeto, se integrou ao movimento ao criar, inclusive, o Bloco Místico, com Ale Gutierrez, que desfilou junto ao Bloco do Berbigão do Boca no Carnaval 2023. E assim cresce um movimento que se propõe a colaborar com buscas, estudos, pesquisas e muitas reflexões criativas sobre o tema do mito e da magia na arte catarinense (Araujo, 1973). As obras de arte produzidas pel’A Grupa nos levam a uma sensacional viagem no tempo-espaço da Ilha, sendo elas um elogio ao tema e uma declaração de amor e resistência.

Idílica Ilha Quem conhece a Ilha de Santa Catarina sabe de sua paisagem maravilhosa, provocadora de todo delírio telúrico presente nas artes, em suas várias formas, no cenário local. Pulsante e vibrante, a linguagem mito-mágica é expressão frequente, presente, fluente, tanto quanto os folguedos populares do boi de mamão e religiosos, como os cortejos do Divino Espírito Santo, cada vez mais numerosos e bem-acabados em uma linda resistência e retomada da cultura local. Hoje, as lendas sobre bruxas e seres sobrenaturais ocupam um espaço crescente nas produções culturais locais. Em certa medida, contrapondo-se à preocupante entrada do Halloween, de matriz estadunidense. O mito da bruxa, enquanto narrativa popular fantástica, lidera em número de referências nas pesquisas e

levantamentos locais. São sempre as mais citadas e, até que se comprove o contrário, estão presentes quase exclusivamente no litoral do estado de Santa Catarina, sobretudo na Ilha que acolhe a capital. Além das bruxas e benzedeiras, há referência a um grande número de outros personagens, como boitatá, vacatatá, cabratatá, lobisomem (também muito frequentes), mula sem cabeça, fantasmas e almas penadas, ondinas e sereias, marcianos e luzes misteriosas, gigantes, tesouros escondidos e piratas. Um repertório de fenômenos mágicos e estranhos digno de registro e salvaguarda, e que foi traduzido por um grande número de artistas locais que se encantam com nossa tradição mitomágica!

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A Grupa Livro de Artista de Florianópolis escolheu, nesta edição, o livro infantil Palavras mágicas: aventuras e mistérios na Ilha de Santa Catarina, de Bebel Orofino, com ilustrações de Jandira Lorenz. A abertura dessa exposição é motivada pela temática cultural o Grande Baile Místico. Bem -vindo às aventuras da Ilha da Magia, ilha de Ondina. Saudações ao povo encantado.

a grupa: à frente: laïs krücken, elaine maritsa franzon, suélen avelleda, virgínia alves, rosane gonçalves, maria esmênia ribeiro, zulma borges, eneida soares de macedo, sônia brida e sônia albuquerque. atrás: helena werner, patrícia amante e gilma mello.

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LAÍS KRÜCKEN A obra foi inspirada pela história “Comida de passarinho na prateleira do esconderijo”, contada por Bebel Orofino no livro Palavras Mágicas: aventuras e mistérios na Ilha de Santa Catarina para crianças. Bela era uma menina que amava os pássaros e todos os dias madrugava para alimentá-los com comidas que seu pai guardava no rancho. Numa manhã, ela jogou tanta comida no ar que esparramou pelos seus cabelos e camisola, o que chamou muitos pássaros que, batendo as asas em volta dela, fizeram um vento forte que a carregou pelo ar em meio ao redemoinho de penas das asas em movimento. A obra remete à imagem do voo de Bela entre as penas que se soltaram das aves e se entranharam em sua camisola durante os rodopios que ela fez no ar. Nela, ecoam as ideias de Cascaes sobre o simbolismo das asas em suas criações, de que voar é “ser capaz de elevar-se acima do peso desta vida”, é “transcender a condição humana”, e de que “é através da ficção a gente pode voar”. SÔNIA BRIDA O trabalho Cosi è se vi pare – Assim é se lhe Parece trata das possibilidades de percepções possíveis ao observarmos uma imagem, das aparentes realidades que se apresentam ao nos depararmos com imagens não realistas, mas que o olhar busca identificar, a todo custo, uma referência para criar uma história possível, mesmo que fantástica e mágica. Em suas páginas, poderemos encontrar o boitatá, a mula-semcabeça, estrelas e até mesmo alguma bruxa de nome Luzia. É preciso apenas procurar. Título inspirado no livro Palavras Mágicas, de Bebel Orofino, e na peça de teatro do autor italiano Luigi Pirandello. A linguagem técnica é a gravura. Xilo e metal com colagens. Sônia Brida, Desterro, inverno 2023. VIRGINIA ALVES Confecção de um livro de artista, tendo como referência o livro, Palavras Mágicas, de Bebel Orofino. Utilização de papel Canson A4, colorido. Alguns desenhos com giz pastel oleoso e colagens com tecido; costurado com linha para bordado, manualmente.

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MARIA ESMÊNIA RIBEIRO O livro de artista Isabella, a bruxinha que queria ser estrelinha conta a aventura da bruxinha Isabella, que mora na galáxia Andrômeda, mas queria ser uma estrelinha na Via Láctea. Decidida, ela voou na sua vassoura mágica para a Barra da Lagoa, na Via Láctea, e chegou à casa dos seus avós que a transformaram em estrelinha. À noite foi passear pelo espaço sideral e conhecer seus habitantes. Conheceu a Constelação do Cruzeiro do Sul e ficou amiga das estrelas que a compõem, e conheceu também a Estrela D’Alva ou Planeta Vênus, ficando deslumbrada com o seu brilho ao amanhecer. Cansada do passeio, voltou para a casa dos avós e dormiu. Pela manhã, o astro-rei – o Sol - acordou-a, beijando-lhe a face. Isabella então tomou a poção mágica que a alimenta e despediu-se dos avós queridos. Voltou para Andrômeda, continuando a ser uma bruxinha. Aliás, uma bruxinha curiosa e feliz!

PATRÍCIA AMANTE Este livro-objeto tem como referencial teórico a obra Palavras mágicas, escrita por Bebel Orofino e ilustrada por Jandira Lorenz. Meu livro foi inspirado no conto “O anzol do Céu”, em que as duas meninas, Ana e Flora, ficam penduradas pelos anzóis da pipa do espinhel. Rajadas de vento Sul as carregam pelos ares; sentiram um “tremendo frio na barriga”, rodopiando, e lá de cima enxergaram tudo bem pequeno. Esquecendo do medo, sentiram um vento quente: eis que surgiu o boitatá, uma espécie de dragão, chamado Deolindo. Subiram no lombo dele, que levou as duas meninas mundo afora, mais alto do que os satélites e sondas conseguem alcançar. Além da Lua, nessa narrativa visual foram colocados mapa do Brasil e da Ilha de Santa Catarina. Também foi sobreposto um tule com pontos brilhantes, remetendo às estrelas. Surge um diálogo entre imagem, tecido e boitatá, um jogo semântico entre palavras e imagens, bem como uma tessitura entre a narrativa e a imaginação. Um dos aspectos fundamentais que norteiam o Livro de Artista consiste no processo criativo, na visualidade e materialidade da execução, compreendidas como elementos de aproximações poéticas de compreensão do trabalho por meio da abordagem artística. “Uma coisa é uma coisa; outra coisa, bem diferente!”

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GILMA MELLO O Anzol do Céu, ilustração gráfica produzida a partir do livro Palavras Mágicas, de autoria da escritora Bebel Orofino, com ilustrações da artista visual Jandira Lorenz e editado pela Ondina Editora.Usei neste projeto algumas ilustrações do próprio livro, colagem pop-arte, papel cartão, papel metalizado, papel couchê, xerox, tecido, lã e linha, arame de cobre, além de carimbos e pequenas estrelas. SÔNIA ALBUQUERQUE Magia e movimento: materiais reciclados (retalhos de tela, fios de lã e botões) recriam a magia da ilha de Florianópolis em bordado, forma e movimento.

SUÉLEN AVELLEDA Obra criada como uma releitura do livro Palavras Mágicas, de Bebel Orofino, A Ilha dos Astros Místicos inspira-se no mito e na magia da ilha de Florianópolis, lugar místico junto a astros e estrelas. Salve todos os encantados da floresta! Técnica em matriz perdida, xilogravura em cordel. Tamanho: 1,20 m x 30 cm.

ELAINE MARITSA FRANZON Sobre o novo trabalho de livro do artista, inspirado no livro Palavras Mágicas, de Bebel com ilustrações de Jandira, construí uma pequena história sobre a flor zabumba. Contaram-me, ao conhecer essa flor pessoalmente, como ela faz as bruxas voarem em suas vassouras. Usei papel hahnemühle 190g/m² no tamanho 14,8 cm x 21 cm, fiz costura simples e capa de tecido preparado Acqua/Block Karsten Decor. Utilizei canetinhas coloridas e aquareláveis, aquarela, nanquim e canetas com tinta metálica para a produção dos desenhos. Título: Voar com as zabumbas.

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ZULMA BORGES O Livro de artista Ritual de amor e cura trata sobre rezas, amor e cura por meio de benzeduras com a benzedeira Dona Valéria. O livro é confeccionado artesanalmente, com encadernação manual, texto em nanquim e pinturas em aquarela. A autora traz para esta obra o universo de rezas e plantas, a figura meio santa e meio bruxa da benzedeira, que, em um ritual de amor e cura, pronuncia, como num murmúrio, palavras mágicas que aprendeu com seus ancestrais e vai compartilhando com todos que a procuram para alívio dos males do corpo e da alma. Com uma escrita simbólica, a autora reporta-se ao universo vivido na infância, quando escrevia as receitas dadas às pessoas por uma tia benzedeira. HELENA WERNER Neste Livro de Artista, assumo o papel da bruxa que acredita num mundo espiritual, nos quatro elementos da natureza, nas fases da Lua associadas aos três estágios da vida feminina (donzela, mãe, anciã), e crio uma página num Livro das Sombras, onde preparo um ritual mágico com plantas e flores para jogar de um barco no mar, em noite de Lua cheia, no bairro Ribeirão da Ilha. ENEIDA SOARES DE MACEDO Título: Acredite se quiser. Confeccionado em papel, formato de livro concertina. Ilustrações feitas com desenho, colagem e bordado. Texto ingênuo, escrito em forma de quadras relacionadas às histórias do livro Palavras Mágicas. ROSANE GONÇALVES Epidascópio – Faz alusão às lanternas mágicas, desenvolvidas no século XVIII e antecessoras dos modernos aparelhos de projeção. Por meio da projeção de luz e sombras, criei verdadeiras “pinturas de luz”, dando corpo a seres e mundos lumínicos, como os que habitam nosso imaginário. Colocados em caixas, uma pintura que dá lugar à invenção na busca de um novo corpo de cor. Esse modo de chegar à pintura é também uma forma de dialogar com a cor e falar da dicotomia entre extremos, como na representação das figuras criadas através da luz e das sombras.

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28 OUT 23 • SÁBADO

BAILINHO MÍSTICO NO ARMAZÉM RITA MARIA

Os armazéns das empresas Hoepcke, a qual tem longa tradição na história da cidade, abrigavam diferentes frentes de produção como um estaleiro, uma fábrica de gelo, outra de pregos e pontas. Uma linda fábrica de bordados e rendas com uma coleção sensacional de teares. Uma pequena vila operária. Hoje, todo esse complexo restaurado é, sem sombra de dúvidas, um dos lugares mais incríveis na cidade. Esses prédios históricos do conjunto arquitetônico industrial da família Hoepcke acolhem hoje um ambiente gastronômico e de moda amplo, arejado, agradável, aprazível. Estão de parabéns! Todo o nosso patrimônio histórico deveria ser preservado assim! E foi uma honra para o Bailinho Místico receber o convite para animar as festas do Armazém na semana de 31 de outubro, o dia internacional das bruxas. Além de honrados ficamos também felizes com a sensibilidade da equipe, em especial Sara Baasch Miroski e Marina Botelho que substituíram o conceito de halloween para investir em um Bailinho de Bruxas da Ilha de Santa Catarina com seus convidados especiais. Por isso, esse estabelecimento comercial merece aqui um destaque! Foi o primeiro, em nosso projeto, a evitar estrangeirismos e valorizar a cultura local! Merecem todo o nosso reconhecimento e gratidão pelo apoio.

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CARNAVAL DE PRIMAVERA E TEATRO DE E NA RUA: FESTAS NOS ESPAÇOS PÚBLICOS VERA COLLAÇO17

O historiador Jacques Le Goff, em sua imprescindível obra Por amor às cidades, editada pela UNESP, em 1998, realiza aproximações entre a cidade medieval e a cidade contemporânea. Comenta o autor: “A cidade inovadora, palco de igualdade e festa de troca, aponta o processo no século X e, em especial, no século XI, nos quais se verifica o início e a intensificação da urbanização europeia”. E nesse processo ressalta algo que nos é muito familiar: as relações de interdependência entre a cidade e seu subúrbio, relação que data da Idade Média. Essa condição de trocas e dependências é importante para este escrito na medida que lendas, mitos, histórias imaginárias e reais, na sua grande maioria, são gestadas nos subúrbios e depois reelaboradas na cidade, entre os letrados, e mais tarde volta a circular nos subúrbios. E esse foi, em certo sentido, o percurso que refizemos no Baile Místico I, II e III. Trouxemos para a cidade muito do que foi gestado no Ribeirão da Ilha, na Lagoa da Conceição, no Sambaqui, em Santo Antônio de Lisboa, entre outros subúrbios de Florianópolis. E trouxemos para onde? Para a praça pública e para as ruas do coração da cidade. Mas vamos com mais calma. Precisamos primeiro situar melhor a cidade como espaço de festa. Para avançar na discussão acima colocada, nos valemos ainda da citada obra de Le Goff, no interessante capítulo denominado “A cidade inovadora, palco de igualdade e festa de troca”. O historiador, neste tópico, adentra as questões políticas, econômicas e sociais da cidade, aspectos de extrema importância, mas que, para este texto, não se faz dominante. Destacamos seu escrito quando afirma que “[...] a cidade concentra também os prazeres, os da festa, os dos diálogos na rua [...]” (Le Goff, 1998, p. 25), e acrescenta: “[...] as funções essenciais de uma cidade são a troca, a informação, a vida cultural e o poder” (Le Goff, 1998, p. 29). Para nosso texto, o que interessa destacar é a cidade como local de prazer, de alegria e de festa, independentemente de milhares outras variáveis que também a compõem. A urbe como esse local do prazer também é algo que nos chegou da Grécia e da Roma Clássicas, e foi reassumida na Idade Média, transformando-se até chegar aos nossos tempos, ainda mantendo-se, com todas as dificuldades, espaço de festa/ alegria/prazer. Mas é preciso pensar qual o local da cidade que foi e ainda é destinado às festas populares, entre as quais colocamos o teatro e o carnaval.

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do CEART/UDESC. 142


CORTEJO ALEGÓRICO GRANDE BAILE MÍSTICO 2023

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O teatro também, enquanto festa popular, nasceu na urbe, seja na Grécia Clássica ou depois, na Idade Média, quando renasceu na praça pública. Como afirma Le Goff (1998, p. 58), a “[...] grande praça das cidades [foi o] lugar de renascimento do teatro, de fato um verdadeiro nascimento”. Além do teatro, o carnaval é a grande festa que se faz nas praças e vias públicas, sendo ele a festa que mais tempo permanece na condição de festividade nas ruas centrais das cidades, e que até os dias de hoje toma, em fevereiro, as principais ruas dos centros urbanos brasileiros. O carnaval, na Alta Idade Média, era uma festa rústica, como afirma Le Goff (1998, p. 59) [...] camponesa, com forte conotação pagã, invade a cidade, urbaniza-se, e aí se introduz uma contestação ideológica. O carnaval transforma-se em algo que se opõe à quaresma, combate a mentalidade penitencial e ascética da religião cristã, faz triunfar o riso, que volta a ser, como na Antiguidade, algo próprio do homem, contra o pranto, expressão da contrição e do arrependimento que devem caracterizar o pecador. Essa situação de modificação contextual, apontada por Le Goff, foi também, em outro sentido, o elemento motivacional da equipe organizadora dos Bailes Místicos I, II e III. A nossa festa urbana introduzia com muita ênfase a contestação ideológica. Desejamos introduzir no mês de outubro, na cidade de Florianópolis e em seus subúrbios, uma festa com mitos, lendas e histórias mágicas e bruxólicas oriundas de nossa história, e com isso criar uma alternativa à festa invasora e estadunidense do Halloween. Com isso, trouxemos para a Praça XV de Novembro e para as ruas do Centro Histórico de Florianópolis uma grande festa carnavalesca, performática e teatral denominada Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina. E temos muitas bruxas e muitos bruxos, boitatá, lobisomem, e muitas outras figuras lendárias e mágicas em nossa Ilha. Sandra Makowiecky (2000, p. 8) sintetizou bem essa contestação e festa promovida no primeiro Baile Místico, realizado em 2019: Foi uma agitação cultural e, acima de tudo, foi uma grande surpresa pela adesão popular e pela quantidade de gente que chegou para cantar junto, em alto e bom som, o orgulho de ser e estar ilhéu e o amor pelas riquezas singulares da história e da mitologia do litoral catarinense. Com o cortejo das figuras míticas, lendárias e carnavalescas da Ilha, trouxemos às ruas e à praça pública 144


o carnaval, mas não para purgar pecadores, e sim para reintroduzir na urbe o que é parte de nosso legado histórico, na tentativa de contrapor-se à invasão de algo que não tem raiz em nossa cultura. O teatro se fez presente na festa do Baile Místico, em especial no primeiro, em que foi realizada uma encenação, uma aula-performance com o título: Berro pelo Desterro: fantasmas de Ilhatomirim. O trabalho percorreu, em ação performática, as ruas da cidade onde ocorreram os momentos finais dos revolucionários de 1894, que se debateram contra os ditames do governo de Floriano Peixoto. O teatro de rua também está nas suas origens gregas, depois retomado na Idade Média. As praças e ruas eram o espaço onde se fazia presente a população em seus momentos de lazer e descanso. E foi com esse intuito que o teatro, enquanto ação performática, se fez presente nos três Bailes Místicos. No primeiro, com uma ação mais performática, na qual se narrava uma história ocorrida na cidade de Florianópolis; nos dois bailes seguintes, o cortejo de lendas, mitos e música dominaram a performance de rua, sendo que este momento carnavalesco de desfile de nossas figuras míticas e lendárias se fizerem presentes desde o 1º Baile Místico, em 2019. As festividades realizadas nas ruas e praças das cidades possibilita um espaço simbólico de restauro de uma convivência entre iguais, de pessoas que partilham um momento de encontro e de troca. Por isso, nossa narrativa foi construída a partir da urbanização medieval, na qual as lendas e figuras míticas emergiram, e algumas dessas personagens, transformadas e reelaboradas, ainda habitam nosso imaginário popular. As bruxas e bruxos medievais, mortas ou mortos em fogueiras, transformaram-se, nos nossos tempos, em mulheres e homens capazes de vivenciar sua história e suas festas em busca de cidadania e igualdade, um espaço de troca e vivências, alegres ou não, espaço de sonho e de construção de um outro mundo, mais humanizado e feliz. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. MAKOWIECKY, S. Apresentação – De Baile a Outubro Místico da Ilha da Magia. In: COLLAÇO, V.; OROFINO, M. I. (org.) 1º Grande Baile Místico da Ilha de Santa Catarina: a cidade reconta a sua história e as suas lendas. Florianópolis: Udesc, 2000.

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29 OUT 23 • DOMINGO

ENFIM, O CORTEJO ALEGÓRICO GRANDE BAILE MÍSTICO 2023 BEBEL OROFINO13

Outubro Místico de 2023: a primavera deságua sobre a Ilha. E só chove! E o mês seguiu assim, todos os dias, trazendo consequências cada vez mais drásticas. No Rio Grande do Sul, as chuvas de setembro deixaram um rastro chocante de destruição. Em Santa Catarina, foi em outubro. Em Blumenau, o rio Itajaí-Açu subiu/desceu cinco vezes. E, além das águas, agora temos também os ventos acima de 100 km/h. Para a equipe de produção do cortejo, após quatro anos de espera, a tensão chegou ao limite máximo. E no último dia possível, em 29 de outubro, um lindo sol se abriu — e, aqui para os íntimos: pareceu um milagre, não foi? Para nós, foi um lindo sinal de que as bruxas realmente nos protegem. Pode ter sido também um milagre do Peninha, que limpou o céu com pá e enxada para a gente passar e mostrar o cortejo! O dia amanheceu seco, um presente para todos nós, esse novo coletivo cultural bonito, grande, alegre, multicolorido. Um dia de sol, um sinal dos céus. Assim, as bruxas da Ilha, enquanto charmosas anfitriãs, fizeram a festa e convidaram todos os seres mágicos da região: os bruxos, a turma do boi-de-mamão, o boitatá de Cascaes, o Galo de Meyer Filho, o “Bruxomanéagostinho”, o bloco 25 Bichos do Jogo, o lobisomem da Lagoa, os fantasmas de Anhatomirim, a bruxa do mangue, a ondina da Barra da Lagoa, os bonecos do bloco Berbigão do Boca, Dona Bilica, Mané Darci e muito mais. A música estava ótima, com a participação de três bandas: Amor à Arte, Bateria do Baiacu e Bloco Cores de Aidê. Neste ano, as artistas homenageadas foram Vera Sabino e Jandira Lorenz. A volta do grande cortejo alegórico fez parte da programação da Feira da Cascaes - Outubro Místico (Fundação Franklin Cascaes/Setur/PMF) - que contou com gastronomia, feira de artesanato e o desfile dos seres encantados que habitam a capital. Houve também programação especial para o Dia das Crianças. Toda a programação foi gratuita e aberta ao público. O Cortejo Baile Místico teve início às 15h30, no Largo da Catedral, e percorreu as ruas da cidade, saindo da Rua Tenente Silveira até a Rua Deodoro, e dali em direção ao Mercado Público, encerrando com o show de Valdir Agostinho no Largo da Alfândega.

1 Coordenadora de Produção do Movimento Baile Místico (2019-2023). 146


lúcia prazeres e patrícia amante na ala dos estandartes.

Apenas para relembrar, a proposta se inspira na lenda Baile de Bruxas em Itaguaçu, de autoria de Gelci José Coelho - Peninha (amado por todos da cidade e arredores, discípulo de Franklin Cascaes, que deixou os foliões e seguidores órfãos com a sua partida em 16 de março de 2023). No conto, certa madrugada, após o sabá, umas bruxas estavam jogando conversa fora e comentaram a respeito dos lindos bailes do Clube 12 de Agosto. Então, decidiram promover uma festa ainda melhor e convidaram todos os seres sobrenaturais, menos o diabo, porque ele fedia a enxofre e era muito inconveniente. Chamaram, então, o boitatá e sua família, lobisomens, sereias e ondinas, fantasmas, gigantes, curupiras, caiporas, cucas, sacis e outros. Uma bruxa fofoqueira contou tudo ao tinhoso, que, sentindo-se traído por ter ficado de fora, castigou todas as bruxas, transformando-as em pedras. Segundo Peninha: “o feitiço virou contra o feiticeiro pois a paisagem, de bela que era, tornou-se um cenário idílico, mágico, encantador”. O projeto homenageia todos os artistas locais que se dedicaram ao tema do mito e da magia na arte catarinense. A lista, até agora, alcançou os seguintes: Franklin Cascaes, Gelci Coelho (Peninha), Meyer Filho, Vera Sabino e Jandira Lorenz. Em 2024 serão Eli Heil (expoente feminino do Movimento Mito-mágico) e Hassis (bruxo maior, no ano de seu centenário). O número de artistas locais que se dedicaram ao tema é grande, e as homenagens deverão continuar por muitos anos. Assim esperamos.

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ALAS E DESTAQUES QUE COMPÕEM O CORTEJO ALEGÓRICO

COMISSÃO DE FRENTE: BRUXAS DA BIKE ALA DAS BENZEDEIRAS E BENZEDORES ESTANDARTES: (1) BAILE MÍSTICO; (2) SANTA CATARINA; (3) CASCAES; (4) PENINHA; (5) MEYER FILHO; (6) VERA SABINO; (7) JANDIRA LORENZ ALA DAS BRUXAS DE ITAGUAÇU ALA DAS BRUXAS LUNARES DESTAQUE 1: BOITATÁ DE CASCAES DESTAQUE 2: BRUXOMANÉAGOSTINHO DESTAQUE 3: LOBISOMEM DA LAGOA DESTAQUE 4: BRUXA URUBU DESTAQUE 5: GALO BRUXÓLICO DESTAQUE 6: DONA BILICA DESTAQUE 7: FRANKOLINO DESTAQUE 8: ONDINA DO CANAL DA BARRA DESTAQUE 9: BOITATÁ MARCIANO DESTAQUE 10: BOI MISTERIOSO DESTAQUE 11: BOI FANTASMA DESTAQUE 12: MANÉ DARCI DESTAQUE 13: BRUXA DO MANGUE CONSELHO MÍSTICO ALA 25 BICHOS DO JOGO - COM ESTANDARTE ALA FANTASMAS E ALMAS PENADAS DO DESTERRO ALA BONECOS DO BERBIGÃO DO BOCA CARRO DE SOM PUXADORES BANDA AMOR À ARTE BATERIA DO BLOCO BAIACU DE ALGUÉM ALA ELEIÇÃO BRUXÓLICA – GRUPO FOLCLÓRICO RAÍZES AÇORIANAS ALA DO BOI DE MAMÃO ALA DAS RENDEIRAS E PESCADORES BLOCO CORES DE AIDÊ BLOCO MÍSTICO 148


domingo: 29 de outubro de 2023. a chuva foi parando de mansinho por volta das 6h da manhã... e depois de dois meses de chuva o sol raiou forte. e o céu se abriu, de uma vez só, em azul de anil. essa era a nossa terceira tentativa! veio o: sim! vamos desfilar! um milagre!

a poderosa caterva da bruxa urubu foi a primeira a chegar. e uma das bruxas-chefes do movimento grande baile místico conduz o estandarte do bloco. uma sílfide, elemental do ar. uma poderosa vidente que lê o espírito do lugar.

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a alegria contagiante das bruxas da bike, a comissão de frente. os bonecos do berbigão do boca, aqui vera rosa, nega tide e aldírio simões.

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o boitatá de cascaes. tudo junto e misturado deixou o mané darci zonzo, embasbacado! “é um presente para a cidade!”, ele dizia.

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todo o poder da chefe bruxa-lunar!

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as bruxas locais são belíssimas e muito bem-vestidas, inspiradas pelo poder feminino da ilha de santa catarina. a presença de uma famosa benzedeira da armação do pântano do sul. acima o destaque bruxomanéagostinho com todo o seu poder.

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a ala dos fantasmas e almas penadas do desterro encantou as ruas do centro histórico. balançou a cidade com sua originalidade. uma grande surpresa para todos.

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a vacatatá esbanjando fogo. a bruxa do mangue sedutora acompanhada de uma poderosa benzedeira da lagoa. a grande novidade do desfile, o galo de meyer filho encantou a multidão.

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o maravilhoso galo galático conduz o estandarte de meyer filho. o lobisomem da lagoa. e o boi de mamão do petinho. e todo o charme da bruxa urubu.

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dona bilica encantada com a lindeza dos bonecos do berbigão do boca e a alegria das benzedeiras.

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o sol abriu os caminhos para o grande cortejo alegórico que celebra a cultura da ilha de santa catarina em um de seus traços mais ricos e divertidos: o universo fantástico, o mito e a magia.

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o destaque para a linda ondina do canal da barra da lagoa. uma bruxa da caterva de itaguaçu e a bruxa do mangue que sinceramente, arrasou! almas penadas, boitatás, bruxas produzidíssimas! credo em cruz, ave maria.

o mané darci era só alegria, ao lado do boitatá marciano. e uma bruxa vovó amorosíssima com duas meninas aprendizes de feiticeira.

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a ala dos estandartes homenageia os grandes artistas do universo mito-mágico local. até o momento: franklin cascaes, meyer filho, vera sabino, jandira lorenz e gelci josé coelho, peninha. a lista a cumprir é grande. muitos outros bailes virão.

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espetáculo espontâneo. cultura popular original. imaginário. universo fantástico. nossas raízes. nossas matrizes. é o grande baile místico, a linda festa da ilha da magia.

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uma linda e doce bruxa do desterro conduz o estandarte de peninha em meio à revoada de bruxas lunares. o galo galático. uma benzedeira conduz o estandarte de santa catarina de alexandria, padroeira da ilha e do baile, junto a uma menina bailarina, aprendiz de feiticeira. bruxa metamorfoseada em coruja.

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uma bruxa surfista conversa com o boi misterioso. e todos os seres encantados e sobrenaturais exigem um museu para a monumental e importante obra de franklin cascaes. o galo de meyer filho. um lobisomem e o boitatá de cascaes.

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seres sobrenaturais de todos os quadrantes chegam para o grande encontro maravilhoso. como canta o hino do baile místico: “ondina vai chamar, as filhas e os filhos do nosso lugar, hoje tem música, dança e festa iemanjá, no pedacinho de terra perdido no mar!”.

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e o bruxaredo unido pede um museu para que todos possam conhecer, apreciar, aprender e amar a importante obra do mestre franklin joaquim cascaes. um trabalho monumental e magnífico que até hoje está escondido em uma reserva técnica da ufsc. sequestrado do seu povo. uma ofensa! um crime!

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um baile animado por três bandas: amor à arte, bateria do bloco baiacu de alguém e o bloco cores de aidê! um luxo absoluto! nos vocais três bruxas da ilha com um pescador embruxado lá de santo antônio de lisboa.

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poder feminino absoluto, o bloco cores de aidê abençoa o baile com a força dos tambores.

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“santa catarina de alexandria, protegei o baile místico, a linda festa da ilha da magia!”. o bloco dos 25 bichos do jogo, o boi de mamão do petinho e centenas de outros seres encantados celebram a identidade cultural e os artistas locais. nossos ancestrais e nossos mestres que nos mostraram a potência da magia, o lugar do sonho, da fantasia, da brincadeira, do absurdo, do realismo mágico. um traço marcante na cultura local, que explica o porquê de ilha da magia e que revela um acervo maravilhoso de narrativas e personagens. ao final uma bruxa-chefe dando entrevista. e no alto do trio elétrico a benzedeira com duas das bruxas safadas que coordenaram o cortejo alegórico 3º grande baile místico da ilha de santa catarina, um dos desfiles mais divertidos, alegres, multicoloridos da ilha.

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ficha técnica

Título: Cortejo Alegórico Grande Baile Místico 2023 CONSELHO MÍSTICO (2019-2023) Conselho Curador: Sandra Makowiecky, Gelci José Coelho (Peninha - em memória), Sílvia Lenzi, Vera Collaço, Sandra Ramalho e Oliveira, Sandra Meyer Nunes, Zena Becker, Maria Isabel Orofino (Bebel), Roseli Pereira, Laudelino José Sardá e Roberto Costa. Coordenação geral: Bebel Orofino Coordenação de produção: Patrícia Amante, Alessandra Gutierrez Produção: Sandra Espíndola, Roseane Paninni e Carolina Borges de Andrade Arte e diagramação: Marli Henicka Produção executiva: Zena Becker e Sandra Makowiecky Direção do cortejo: Bebel Orofino e Vera Collaço Com a colaboração de: Sandra Meyer Nunes e Sílvia Lenzi Maestro: Jackson Cardoso Cantoras: Denise de Castro, Raquel Barreto e Maria Cláudia Barbosa Cavalheiro Carro de som: Mazinho Som (Vilmar Martins Sonorização) Banda Amor à Arte: Jonathas Barcelos de Simas Bateria do bloco Baiacu de Alguém: Daniela Tibério Schneider Bloco Cores de Aidê: Carmem Vera Gonçalves Vieira Ramos Produção do som: Rafael da Costa (Xalalá) Harmonia: Nado Garofallis, Rodolfo Kowalsky, Dionísio Damiani Filho, Titina Romariz, Simone Borges, Soraia Flores, Mena Wendhausen, Sérgio Ferreira e Guilherme Luiz Cardozo Coordenações de Alas: Bruxas da Bike: Flora Neves Benzedeiras: Bebel Orofino Estandartes: Lúcia Prazeres e Magali Schneider Conduz estandarte de Santa Catarina de Alexandria: Maria Esmênia Ribeiro

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Conduz estandarte do Grande Baile Místico: Sílvia Lenzi Conduz estandarte de Franklin Cascaes: Alessandra Gutierrez Conduz estandarte de Gelci José Coelho (Peninha): Betinha Pires Conduz estandarte de Meyer Filho: Márcia Konder Conduz estandarte de Vera Sabino: Lúcia Prazeres Conduz estandarte de Jandira Lorenz: Patrícia Amante Bruxas de Itaguaçu: Alessandra Gutierrez Bruxas lunares: Patrícia Amante Bruxomanéagostinho: Valdir Agostinho Dona Bilica: Vanderléia Will Mané Darci: Moriel Costa Boitatá de Cascaes: Rodrigo do Amaral – autor: Jone Cesar de Araujo Galo de Meyer Filho: Jone Cesar de Araujo Boitatá Marciano: Laércio Luiz Frankolino: Andréa Rihl Lobisomem da Lagoa: Irga Shas Boi misterioso: Eloi Egídio Pereira Boi fantasma: Paulo Andrés Bruxa do Mangue: Nani Eskelsin Ondina do Canal da Barra: Tharcilla Richard Bayer – autora: Denise Richard Bloco 25 Bichos do Jogo: Nei Batista de Souza e Adelaide Caldas Ala Fantasmas e Almas penadas do Desterro: Caroline Costa de Mattos, Fernando José Caldeira de Andrada, Edinho Cunha, Antônio Carlos Xavier (Xá) e Ricardo Cirimbelli Búrigo. Grupo Folclórico Raízes Açorianas – Casa dos Açores de Santa Catarina: Douglas Ferreira Gonçalves Boi-de-mamão do Petinho Bonecos do Bloco Berbigão do Boca: Nado Garofallis, Rodolfo Kowasky, Dionísio Damiani Filho e Alan Cardoso Rendeiras e rendeiros: Roseli Pereira Bloco Místico: Patrícia Amante, Alessandra Gutierrez e Bebel Orofino 183


Assessoria de imprensa: Scarduelli Comunicação Colaboração de: Laudelino Sardá e Roberto Costa Fotografia: Luiza Filippo, 2 CKS fotografias (Nilva Damian, Sandra Puente, Liliane Giordano) e Antônio Carlos Mafalda Coordenação de Camarim: Maria Lúcia Alves Nascimento Eickstaedt e Renata Nascimento de Souza Vídeo: Dual Filmes (Samuel Santos) Drone: Leandrone (Leandro do Amaral) Teaser: 30 por Segundo (Nando Pereira Oliveira) Tesouraria: Sérgio Ferreira (apoio Casa dos Açores de Santa Catarina) Sesc SC: Valdemir Klamt e Kamila Debortoli

EQUIPE FEIRA DE CASCAES Coordenação Geral: Roseli Pereira Direção: Jota B – João Batista Costa Produção: Cris Villar e Chico Abreu Assessoria de comunicação: Fernando Guedert Técnica e apoio transporte: Landa Schurhaus Técnica e apoio com a Guarda Municipal: Almerinda Leoneta Nunes Motoristas: Rubens Rangel e Michel Cabral Guarda Municipal: Comandante Andrey de Souza Vieira Casa da Memória: Ana Falcão (diretora) e equipe Galeria do Mercado Público: Sandra Nunes e Edinéia Vagner

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Patrocínio: ENGIE LOJAS KOERICH Apoio: SESC SC FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA FRANKLIN CASCAES – FFC/SETUR/PMF PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS - PMF MUSEU DA ESCOLA CATARINENSE – MESC/UDESC CASA DOS AÇORES DE SANTA CATARINA BLOCO BERBIGÃO DO BOCA CASA DA MEMÓRIA – FFC/SETUR/PMF GALERIA DE ARTE DO MERCADO PÚBLICO – FFC/SETUR/PMF 30 POR SEGUNDO

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29 OUT • DOMINGO

SHOW CALDEIRÃO DO BRUXO, COM O MENESTREL VALDIR AGOSTINHO

E o grande cortejo de seres mágicos da Ilha de Santa Catarina encerrou o seu percurso em frente ao palco do Mercado Público para prestigiar o show Caldeirão do Bruxo, do multiartista Valdir Agostinho, também conhecido como Grande Menestrel da Ilha, atração especial para o encerramento da Feira de Cascaes – Outubro Místico no dia 29 de outubro de 2023 – domingo – às 17h, no Largo da Alfândega. Valdir Agostinho nasceu na Fortaleza da Barra da Lagoa, onde vive desde a sua infância, o que o torna um profundo conhecedor da magia da Ilha e de seu universo fantástico. Filho de José Agostinho, famoso músico, animador dos bailes de outros tempos, e sobrinho de José Agostinho que, além de músico, foi também um dos maiores benzedores dessa Ilha. Valdir cresceu imerso na poesia e na magia do nosso lugar. Após desfilar como destaque, com a fantasia Bruxomanéagostinho, no Cortejo Alegórico Grande Baile Místico – Valdir comandou a festa de cima do palco com os músicos Nani Lobo, no baixo; Alexandre Linhares, na guitarra; Rafael Linhares (Faeca), na bateria; Roseane Paninni, no vocal de fundo; Márcio Sodré, na zabumba e vocal; e Elói Egídio, nas alegorias. O repertório incluiu sucessos como: Vida de pescador, Sereia Manezinha, Menina que mexe-mexe, entre outros.

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Luiza Filippo e Sandra Puente (2 CKS)

o bruxo maior valdir agostinho, grande menestrel da ilha santa catarina.

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HOMENAGEADAS DO ANO 2023

VERA SABINO nasceu no ano de 1949

em Florianópolis, onde atualmente vive e trabalha. A artista tem preferência pelo folclore catarinense, além de contextualizar sua obra na cidade de Florianópolis. Autodidata, teve o primeiro contato com as tintas aos oito anos de idade. Aos 14 anos, ganhou o 1º lugar no prêmio desenho do Salão de Artes Plásticas para Novos, em Curitiba. Sua primeira exposição individual foi na Ilha de Santa Catarina, aos 18 anos. é reconhecida nacionalmente, com participação em mais de 60 exposições, sendo duas na França e uma nos Estados Unidos. A temática de seus quadros sempre foi voltada para as histórias que ouviu quando criança: as bruxas de Cascaes, as histórias da Ilha, os santos, as igrejas, as flores e as figuras femininas. para Vera, sua marca registrada é a técnica que utiliza, com tinta acrílica e eucatex. foi uma das fundadoras da Acap e participa da associação até os dias atuais.1 Contatos: verasabino@websabino.com; vera@verasabino.com; arteversabino@gmail.com.

1 FONTE: https://www.acap-art-sc.com/pequenos-curr%C3%ADculos 190


Fotografias de Nilva Damian/ 2 CKS Fotografias

JANDIRA LORENZ. Nascida em 1947, em Dom Feliciano, Rio Grande do Sul, foi professora de artes na

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) por mais de duas décadas. Desde jovem dedicou-se às artes gráficas, em especial ao desenho, realizando várias exposições. A par disso, realizou ilustrações para livros, revistas e jornais. Entre elas, destacam-se O soldadinho de chumbo (Editora Peirópolis) e História Natural de Sonhos (Editora Nave). No ano de 2022, a Galeria do Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC, que leva o seu nome, realizou exposição virtual da artista. Para conhecer, acesse: https://galeriajandiralorenz.wixsite.com/galeriajandiralorenz/quimera @casaacorianaartesoficial

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A FORÇA DA UNIÃO – 2023

O Movimento Baile Místico só foi possível com a colaboração de muita gente apaixonada pela Ilha de Santa Catarina, filhos naturais e adotivos, a quem Ondina foi chamar. Aqui fica o registro da maior quantidade de nomes de colaboradores que pudemos alcançar até a data de entrega deste texto para publicação. Queremos agradecer a tantas pessoas que não constam dessas fichas técnicas, mas que igualmente se entregaram ao projeto. Esperamos que, em um futuro breve, possamos registrar todos os colaboradores do projeto, agora, Bloco Místico, devidamente adotado pela cidade. Valorizar o patrimônio natural, histórico e cultural - no viés mito-mágico - da nossa linda Ilha de Santa Catarina. Essa é a nossa causa! Nossos agradecimentos a todos e todas que colaboraram para os eventos do projeto Grande Baile Místico 2023: Às maravilhosas Vera Sabino e Jandira Lorenz, artistas homenageadas. Ao Conselho Místico (2019-2023): Sandra Makowiecky, Gelci José Coelho (Peninha - em memória), Sílvia Lenzi, Vera Collaço, Sandra Ramalho e Oliveira, Sandra Meyer Nunes, Zena Becker, Maria Isabel Orofino (Bebel), Roseli Pereira, Laudelino José Sardá e Roberto Costa. À equipe de produção do bloco de carnaval: Patrícia Amante e Ale Gutierrez. À equipe de produção do evento Ciranda Mística e Equipe do Museu da Escola Catarinense (MESC/UDESC): professora Sandra Makowiecky e toda a sua equipe, da base de apoio às coordenações: Jucélia Borges (nossa guardiã na portaria), Cassiano Reinaldin, Trika Guimarães, Seu Adriano de Andrade, Dona Eliane Fernandes, Fernanda Barbosa, Beatriz Goudard, Cristina Roschel Pires e Patrícia Anselmo Lisowski e Juliana Crispe, como curadora. À equipe de produção do Mural o Baile Místico de Vera Sabino: Tuane Ferreira, Victor Moraes e Paula Borges Lins – Harmônica Arte e Entretenimento A todos os envolvidos no cortejo alegórico Grande Baile Místico 2023: Coordenação geral: Bebel Orofino Coordenação de produção: Patrícia Amante, Alessandra Gutierrez Produção: Sandra Espíndola, Roseane Paninni e Carol Borges Arte e diagramação: Marli Henicka Produção executiva: Zena Becker e Sandra Makowiecky Direção do Cortejo: Bebel Orofino e Vera Collaço

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Colaboração de: Sandra Meyer Nunes e Sílvia Lenzi Harmonia: Nado Garofallis, Rodolfo Kowalsky, Dionísio Damiani Filho, Titina Romariz, Simone Borges, Soraia Flores, Mena Wendhausen, Sérgio Ferreira e Guilherme Luiz Cardozo Maestro: Jackson Cardoso Produção do som: Rafael da Costa (Xalalá) Bruxas da Bike: Flora Neves Benzedeiras: Bebel Orofino Estandartes: Lúcia Prazeres e Magali Schneider Conduz estandarte de Santa Catarina de Alexandria: Maria Esmênia Ribeiro Conduz estandarte do Grande Baile Místico: Sílvia Lenzi Conduz estandarte de Franklin Cascaes: Alessandra Gutierrez Conduz estandarte de Gelci José Coelho (Peninha): Betinha Pires Conduz estandarte de Meyer Filho: Márcia Konder Conduz estandarte de Vera Sabino: Lúcia Prazeres Conduz estandarte de Jandira Lorenz: Patrícia Amante Bruxas de Itaguaçu: Alessandra Gutierrez Bruxas lunares: Patrícia Amante Bruxomanéagostinho: Valdir Agostinho Dona Bilica: Vanderléia Will Mané Darci: Moriel Costa Boitatá de Cascaes: Rodrigo do Amaral – autor: Jone Cesar de Araujo Galo de Meyer Filho: Jone Cesar de Araujo Boitatá marciano: Laércio Luiz Frankolino: Andréa Rihl Lobisomem da Lagoa: Irga Shas Boi Misterioso: Elói Egídio Pereira Boi Fantasma: Paulo Andrés Bruxa do Mangue: Nani Eskelsin Ondina do Canal da Barra: Tharcilla Richard Bayer – autora: Denise Richard Bloco 25 Bichos do Jogo: Nei Batista de Souza e Adelaide Caldas Ala Fantasmas e Almas Penadas do Desterro: Caroline Costa de Mattos, Fernando José Caldeira de Andrada, Edinho Cunha, Antônio Carlos Xavier (Xá) e Ricardo Cirimbelli Búrigo 194


Grupo Folclórico Raízes Açorianas – Casa dos Açores de SC: Douglas Ferreira Gonçalves Boi-de-mamão do Petinho Bonecos do bloco Berbigão do Boca: coordenação de Nado Garofallis, Rodolfo Kowasky, Dionísio Damiani Filho e Alan Cardoso Rendeiras e rendeiros: Roseli Pereira Cantoras: Denise de Castro, Raquel Barreto e Maria Cláudia Barbosa Cavalheiro Carro de som: Mazinho Som (Vilmar Martins Sonorização) Banda Amor à Arte: Jonathas Barcelos de Simas Bateria do bloco Baiacu de Alguém: Daniela Tibério Schneider Bloco Cores de Aidê: Carmem Vera Gonçalves Vieira Ramos Bloco Místico: Patrícia Amante, Alessandra Gutierrez e Bebel Orofino Assessoria de imprensa: Scarduelli Comunicação Colaboração de: Laudelino Sardá e Roberto Costa Fotografia: Luiza Filippo e 2 CKS fotografias (Nilva Damian, Sandra Puente, Liliane Giordano) Coordenação de Camarim: Maria Lúcia Alves Nascimento Eickstaedt e Renata Nascimento de Souza Vídeo: Dual Filmes (Samuel Santos) Drone: Leandrone (Leandro do Amaral) Teaser: 30 por Segundo (Nando Pereira Oliveira) Tesouraria: Sérgio Ferreira (apoio Casa dos Açores de Santa Catarina) Aos amigos SESC SC: Valdemir Klamt e Kamila Debortoli REVISTA MURAL: Marco Cézar e Lu Zuê GALERIA JANGA NEVES FILHO: Adriana Dorê À Equipe da Feira de Cascaes: Coordenação Geral: Roseli Pereira; Direção: Jota B – João Batista Costa; Produção: Cris Villar e Chico Abreu; Assessoria de comunicação: Jornalista Fernando Guedert; Técnica e apoio transporte: Landa Schurhaus; Técnica e apoio com a Guarda Municipal: Almerinda Leoneta Nunes; Motorista: Rubens Rangel e Michel Cabral; Guarda Municipal: Comandante Andrey de Souza Vieira. Casa da Memória: Ana Falcão (diretora) e equipe Galeria do Mercado Público: Sandra Nunes e Edinéia Vagner

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Aos patrocinadores: ENGIE KOERICH – Gente boa, gente nossa Aos apoiadores: SESC SC FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA FRANKLIN CASCAES – FFC/SETUR/PMF PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS – PMF MUSEU DA ESCOLA CATARINENSE – MESC/UDESC CASA DOS AÇORES DE SANTA CATARINA BLOCO BERBIGÃO DO BOCA CASA DA MEMÓRIA – FFC/SETUR/PMF GALERIA DE ARTE DO MERCADO PÚBLICO – FFC/SETUR/PMF 30 POR SEGUNDO

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HOMENAGEM ESPECIAL O PENINHA NOS DEIXOU. E AGORA?

“Espantado, percebo o voo do tempo, pouco longo curto, que permitiu toda a vivência marcada por imagens e sons. Como em um filme: projetando lembranças, causos, contos e toda a sorte de emoções. De repente, percebo também que quase toda a minha periferia de gente amiga, conhecida, querida, já desencarnou. Então preparo-me e de dedico às almas dos personagens, na tentativa de marcar suas existências”1

Gelci José Elias Silveira Coelho, Peninha (* 10 de agosto de 1949 – † 16 de março de 2023) Luiza Filippo

ao mentor do baile místico, peninha, a nossa eterna admiração, gratidão, amor e respeito

1 COELHO, Gelci. Narrativas absurdas, verdades contadas por um mentiroso. Santa Editora: Ilha de Santa Catarina, 2019).

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