Boletim do Observatório da Diversidade Cultural - Junho 2017

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BOLETIM

DIVERSIDADE CULTURAL E EDUCAÇÃO V69, N.05.2017 - Junho 2017 ISSN 2526-7442


REALIZAÇÃO

Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural

PARCEIROS Programa de Pós-Graduação em Artes

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

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BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL DIVERSIDADE CULTURAL E EDUCAÇÃO 3



SUMÁRIO

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REFORMAR A EDUCAÇÃO PARA VALORIZAR A DIVERSIDADE E TORNAR O PENSAMENTO CRIATIVO Jorge Edson Garcia

POLÍTICA CULTURAL NA UNIVERSIDADE

Jocastra Holanda

ARTE, LOUCURA E EDUCAÇÃO NO MUSEU: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Pompea Auter Tavares

O ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA E O HORIZONTE DE EXPECTATIVA: DUAS CATEGORIAS HISTÓRICAS A SEREM CONSIDERADAS EM PROCESSOS DE APRENDIZAGEM Alison Rosa

SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL


REFORMAR A EDUCAÇÃO PARA VALORIZAR A DIVERSIDADE E TORNAR O PENSAMENTO CRIATIVO Jorge Edson Garcia

Dizia Chacrinha, o Velho Guerreiro, que “Na televisão nada se cria, tudo se copia”, uma alusão a falta de criatividade (ou de coragem?) de redatores e produtores artísticos que não ousavam renovar o repertório televiso que alcançava sucesso popular. Durante décadas, o pernambucano José Abelardo Barbosa de Medeiros (Chacrinha)1 animou programas de auditório nas principais emissoras de rádio e de televisão, com seus bordões que debochavam dos calouros, zombava dos seus conterrâneos nordestinos, iniciavam artistas em carreiras de sucesso, impulsionavam a venda de discos, realçavam os atributos físicos de suas chacretes ou convidadas. Essa fórmula esdrúxula lhe rendeu fama, dinheiro e lugar de destaque entre os maiores comunicadores brasileiros.

Biografia disponível em <https://www.letras.com. br/biografia/chacrinha>. Acesso em 22 jun 2017. 1

Chacrinha, que completaria 100 anos de nascimento em setembro, nunca se preocupou em educar ninguém com seus programas, tampouco formar cidadãos críticos e conscientes, mesmo sendo um dos campeões de audiência no maior meio de comunicação da sua épo6


ca, a televisão. Ao contrário, afirmava: “Eu vim para confundir, não para explicar!”, como que explicando porque seus programas não possuíam nenhum compromisso com a educação2 do seu público 2 No Brasil, de acordo com que alcançava pessoas de todas as classes sociais e idades, inclusi- a Lei de Diretrizes e Bases, a educação divide-se em ve crianças e adolescentes. Derivada do Latin educare, educação significa a ação de formar, instruir ou guiar, “cuidados” que o Velho Guerreiro promovia sem a preocupação de suas consequências, pois bastava-lhe entreter o povão e manter a audiência, não sendo sua responsabilidade educar ninguém. No entanto, etimologicamente, a educação compreende educar, criar, nutrir, alimentar, levar, extrair. Ações nas quais um emissor transmite ao receptor, por distintos meios, técnicas ou suportes, informações para o desenvolvimento pessoal do outro. Considerada como direito coletivo e um fenômeno universal, a educação favorece o crescimento individual, a produção e a reprodução social e cultural, forja as garantias de sobrevivência, coíbe a exclusão e a injustiça social, política, econômica e cultural.

dois níveis, a educação básica e o ensino superior. A educação básica compreende a educação Infantil, o ensino fundamental e o ensino médio.

Entendida como ferramenta de formação do indivíduo, a educação pode ser consciente ou inconsciente, sistemática ou planejada; com objetivos precisos, normas e regras; ou pode não ser sistemática; espontânea e difusa. Pode, ainda, ser distinguida como heteroeducação - de fora para dentro, ou autoeducação - de dentro para fora. Qualquer que seja a perspectiva adotada, sua função primordial é o desenvolvimento das capacidades e habilidades humanas, oportunizando a melhoria da condição de vida. Compreendida como um processo contínuo de crescimento das faculdades físicas, intelectuais e 7


morais das pessoas, a educação é a incorporação de conhecimentos, costumes e hábitos. Analisando a epistemologia do conceito de Habitus, a professora Maria da Graça Jacintho Setton deduz que ele concilia “a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais, expressa o diálogo, a troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades” (2002, p.63). Para essa autora, Habitus é, “um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano” (2002, p. 63).

Dessa maneira, a educação deve valorizar a diversidade de conhecimentos, favorecendo o pensamento livre e criativo, sem enclausurar as pessoas em espaços concebidos para encapsular informações em demasia e estranhas ao seu modo de vida ou concepção de mundo. Frequentemente, o usual modelo de escolas ignora e rechaça a diversidade de hábitos, enaltece a adoção (consciente) de práticas e costumes padronizados que prejudicam a natural condição humana de criatura criativa. Conduta muito diversa da schola da Grécia Antiga, onde se cultivava o amadurecimento da mente, a liberdade mental, como motor da razão. Em escolas ao ar livre, mestres e alunos gregos3 discorriam sobre variados assuntos sem a necessidade de

Grego é toda pessoa nascida na Grécia, não sendo admitida essa caracterização para os naturalizados. 3

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experimentos objetivos, da urgência de resultados ou a pressão de alcançar níveis escolares mais elevados. Algo parecido com as ideias preconizadas pelo sociólogo italiano Domenico De Masi , A principal característica da atividade criativa é que ela praticamente não se distingue do jogo e do aprendizado, ficando cada vez mais difícil separar estas três dimensões que antes, em nossa vida, tinham sido separadas de uma maneira clara e artificial. Quando trabalho, estudo e jogo coincidem, estamos diante daquela síntese exaltante que eu chamo de “ócio criativo” (DE MASI, 2000, p. 16).

No entanto, os estatutos da educação brasileira pouco estimulam a criticidade e a criatividade em sala de aula ou espaços formativos. Segundo o Censo Escolar da Educação Básica 20164, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a biblioteca ou sala de leitura está presente em 49,2% das escolas de anos iniciais do ensino fundamental e o computador para uso dos alunos em 54,4%; das escolas pesquisadas 26,5% possuem parque infantil; e o pior Indicador de Adequação da Formação Docente ocorre para a disciplina Artes nas turmas de anos finais, apenas 32% são ministradas por professores com a formação mais adequada.

Disponível em < http:// download.inep.gov. br/educacao_basica/ censo_escolar/notas_estatisticas/2017/ notas_estatisticas_censo_ escolar_da_educacao_basica_2016.pdf.>. Acesso em 24 jun 2017. 4

Esse cenário é agravado com o descumprimento da Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Além disso, o ambiente escolar insiste em abordar as culturas indígenas, 9


populares, dos ribeiros e das comunidades tradicionais como alegórica. Essas circunstâncias limitam o contato dos alunos com as manifestações culturais e os hábitos de diferentes povos, dificultando a compreensão da diversidade brasileira em suas múltiplas dimensões. Ademais, estão em desacordo com a Lei 13.005/2014, que instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE)5, especialmente no artigo 2º, Inciso X, que estabelece a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.

Disponível em <http:// pne.mec.gov.br/>. Acesso em 24 jun 2017. 5

Com essas condições, o estágio pedagógico de crianças, adolescentes e jovens os coloca em desvantagem com os desafios da sociedade moderna, gerando lacunas na sua trajetória de evolução pessoal. Desvirtua o sentido de educação universal que pressupõe a aquisição de conhecimentos que ampliem as capacidades cognitivas, conferindo uma percepção mais apurada e sensível de significar o mundo com liberdade. Essa situação pode ser revertida caso o Estado se interesse em liderar um programa de formação cidadã que valorize a diversidade, com o apoio dos grupos sociais onde essas crianças, jovens e adolescentes estão inseridos. São os processos educativos e formativos que constituem suas habilidades e valores, expandem seu intelecto e emoções, podendo conservar e transmitir o que apreendeu a outras gerações. Nessa perspectiva, a diversidade é um componente essencial à formação humana. Aliada aos métodos pedagógicos e mobilizada por uma didática apropriada, possui a capacidade de converter as pessoas em agentes transformadores da realidade onde habitam, contribuindo para tornar o mundo mais justo, harmonioso e sustentável. 10


Relacionada às questões práticas das metodologias e das estratégias de aprendizagem, a didática é parte substancial desse percurso, tal como é possível observar entre os griôs e os povos de culturas libertas das formalidades do positivismo científico. Cada qual ao seu modo, esses grupos empreendem modelos de desenvolvimento social, político, cultural e econômico que lhes permitem subsistir, com o mínimo de impacto ambiental. Como afirma Morin , a palavra educação comporta um excesso e uma carência. No seu entendimento, o ensino educativo é a forma mais adequada de “transmitir não o mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre” (2003, p. 11). Para esse sociólogo francês, o saber aprisiona, enquanto a “educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas” (Idem). Talvez por discordar de tudo isso, os atuais programas televisivos e outros propagados nas mídias sociais (inclusive nos canais do YouTube)6 continuem copiando o velho ensinamento do Guerreiro Chacrinha, qual seja, deseducar para dominar. Uma questão que ocupa teóricos e especialistas em longos debates sobre os novos usos da comunicação como ferramenta de educação, onde a diversidade de ideias e de culturas nem sempre favorece a formação de bons cidadãos. Hoje, as pegadinhas e os achincalhamentos exibidos nas tardes de sábado pelo televisor da sala, anunciadas pelo animador espalhafatoso e politicamente incorreto, poluem a aldeia global com

Sobre esse assunto, veja a reportagem “Quem são os jovens que hipnotizam milhões de adolescentes na internet”. Disponível em <https://oglobo. globo.com/sociedade/ quem-sao-os-jovens-que-hipnotizam-milhoes-de-adolescentes-na-internet-16726790#ixzz4l1z3CyqO>. Acesso em 24 jun 2017 6

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“atrações” disponíveis durante 24 horas nos smartfones que a audiência carrega para todos os lugares. Com a popularização da tecnologia portátil, a “Buzina do Chacrinha” receberia muitas visualizações, likes e retwwets chegando ao top ten, enquanto a Terezinha ia viralizar como popstar e ser stalkeada por vários fãs. Ambiente que favorece a troca de informações em tempo real e a interação entre emissor e receptor de mensagens, a internet ampliou a visibilidade das diversidades, potencializando seus usos, para o bem e para o mal.   REFERÊNCIAS DE MASI, Domenico. Ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextane, 2000. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 8º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 128 p. SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. In: Revista Brasileira de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago 2002, nº 20. P. 60-70.

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POLÍTICA CULTURAL NA UNIVERSIDADE Jocastra Holanda

A universidade é um lugar cultural por excelência. Contudo, vive-se o paradoxo de um lugar de produção e difusão artístico-cultural e de expressão da diversidade por excelência, como a universidade, conviver com a ausência de políticas culturais que potencializem essa dimensão cultural. Esse tensionamento torna imprescindível o debate acerca do papel da universidade no campo da cultura e da importância da institucionalização de políticas culturais para a promoção da diversidade cultural nas instituições de ensino superior. Tal debate coloca algumas questões para nossa reflexão: Qual o lugar da cultura na universidade? Qual a intervenção cultural produzida e realizada pela universidade? Como se dá a dinâmica de interlocução da universidade com seu entorno social e a comunidade? Qual política cultural poderia ser implementada para potencializar a dimensão cultural e promover a diversidade cultural no âmbito das instituições de ensino superior? O desenvolvimento de políticas articuladas entre educação e cultura, campos do saber e componentes indissociáveis da formação huma-

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na, sempre foi uma demanda histórica no plano das políticas públicas brasileiras. Entretanto, educação e cultura historicamente foram divididas e sempre houve pouca sinergia entre os ministérios da Educação (MEC) e da Cultura (MinC) ou mesmo entre esses dois componentes quando havia um único Ministério de Educação e Cultura. Contudo, nas últimas décadas, com o aprofundamento do caráter democrático a partir da universalização do ensino, da expansão das universidades públicas e do desenvolvimento de “políticas de diversidade” (políticas sociais, política de cotas, educação superior indígena, etc.) esse cenário passa por mudanças. Além da crescente atuação da universidade no campo artístico-cultural, da exigência cada vez maior da profissionalização qualificada dos agentes culturais, tanto na gestão e produção, como no avanço do pensamento criado na academia acerca da avaliação, construção e aperfeiçoamento de políticas públicas de cultura, todos esses fatores e iniciativas tem reafirmado a importância do papel das políticas culturais no ensino superior. O debate acerca do lugar da cultura na universidade tem ocupado uma centralidade importante, processo que vem sendo acompanhado de uma crescente expansão da institucionalização em diversas experiências exitosas, tanto no Brasil como em outros países. Na Colômbia, a Universidade de Antioquia, entre 2004 e 2006, formulou o primeiro plano de cultura institucional estratégico em uma instituição de educação superior colombiana, por meio do qual vem potencializando o desenvolvimento cultural e a interação da universidade com a comunidade. No Brasil, a mais atual e emblemática experiên14


cia é representada pela Universidade Federal do Cariri (UFCA, no Ceará), que criou, em 2013, uma Pró-reitora específica para a cultura, a PROCULT, elegendo, portanto, a cultura como quarto pilar das atividades-fim da instituição (ensino, pesquisa, extensão e cultura). Essas experiências são emblemáticas para ilustrar o crescente tensionamento sobre o papel da cultura na universidade. O cenário atual converge, assim, para que a cultura, que sempre esteve articulada entre o tripé “pesquisa, ensino e extensão”, sendo este último o seu domínio por excelência, seja compreendida não somente como ações complementares, restrita a promoção de eventos ou como domínio da extensão, mas compreendida como algo central no âmbito da educação superior, tanto na formação dos sujeitos como elo fundamental de interlocução com a sociedade. Um marco importante no recente processo de institucionalização das políticas públicas da área cultural voltadas para o ensino superior no Brasil foi o Programa Mais Cultura nas Universidades (PMCU), instituído pela Portaria Interministerial Nº 18, de 18 de dezembro de 2013. Lançado em forma de chamada pública no ano de 2014, pelos ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC), com recurso de R$ 20 milhões para contemplar até 18 instituições, o programa recebeu a adesão de todas as universidades federais e da quase totalidade dos institutos federais do país. O PMCU teve como perspectiva estabelecer diretrizes para a elaboração de Planos de Cultura pelas instituições de ensino superior, para a garantia dos direitos culturais e promoção da diversidade cultural brasileira, sobretudo, aquela produzida e realizada nas universidades. 15


O debate em torno de uma política cultural para a universidade, porém, não é novo. Isaura Botelho (2011), no artigo “Cultura e universidade: reconstituindo as trajetórias dos diálogos institucionais”, traz a experiência do governo federal no diálogo entre a área da cultura e a da educação na década de 1980. Botelho (2011) salienta a atuação da Funarte no apoio às atividades culturais das instituições de ensino superior, para as quais o MEC não designava recursos, por meio do Projeto Universidade. Como tentativa de institucionalização de uma política cultural, o Projeto Universidade trabalhava com a área de extensão cultural e no apoio aos Festivais de Arte, com o objetivo de auxiliar as universidades a se tornarem polos irradiadores de cultura para a comunidade e a população local. O programa consistia, basicamente, no pagamento de bolsas a estudantes universitários para a realização de atividades na área de artes. Contudo, a evolução do debate em torno da realização do Projeto Universidade levou à conclusão de que havia a necessidade de as universidades criarem um Plano Diretor de Cultura, com o objetivo de “refletir sobre suas respectivas estratégias para a área, tornar mais coerentes suas propostas, em diálogo com as áreas e os institutos afins” (BOTELHO, 2011, p.98). Segundo Botelho (2011, p.99) “esse plano deveria explicitar metas a ser alcançadas, etapas a ser conquistadas e, sobretudo, deveria integrar ensino e extensão, não só na área de artes como também na de ciências humanas em geral”. A proposta recente do PMCU de institucionalização de Planos de Cultura nas universidades é, portanto, certa continuidade dessa proposição dos Planos Diretores de Cultura. Como destacam Camila Cerreti e José Márcio Barros (2015), o PMCU teve como grande mérito o 16


estímulo ao pensamento crítico sobre o papel das políticas culturais no ensino superior e a reflexão sobre o impacto de sua abrangência. Contudo, uma crítica ao Plano de Cultura orientado pelo PMCU é que ele traça um plano de trabalho de ações culturais para um curto prazo, contemplando objetivos, ações e metas para um período de 12 a 24 meses, e num formato pré-estabelecido segundo as regras e eixos do Edital, o que não necessariamente dá conta das singularidades e dinâmicas específicas de cada universidade.

Programa de Extensão da Universidade Federal do Ceará Reisado Brincantes Cordão do Caroá. Foto: Jr. Panela

É necessário, portanto, que as instituições de ensino superior avancem nesse debate de pensar e propor um Plano de Cultura orientador da política cultural da universidade, de forma a traçar perspectivas de 17


longo prazo, definir e implementar uma política permanente, criativa, inovadora e robusta para articular e potencializar o desenvolvimento artístico e cultural na universidade. O campo cultural das universidades – aqui entendido não somente como o espaço da formação, produção, pesquisa e difusão em artes, mas abarcando uma dimensão ampla de Cultura, como parte fundamental da formação integral dos sujeitos – parece convergir para uma necessária definição e implementação de uma política cultural que possa articular e potencializar a atuação da universidade no seu campo educativo e artístico-cultural. Outra questão importante é a ampliação da reflexão sobre o lugar da cultura na universidade, sendo esta não apenas como domínio da extensão ou como o campo das artes, mas como eixo fundamental na formação integral dos sujeitos e no desenvolvimento do campo cultural na universidade. Como defendem os professores fundadores da PROCULT (UFCA), Salmito e Azevedo Júnior (2015, p.7) “a dimensão da Cultura não deve ser encarada apenas como a ‘cereja do bolo’ da Universidade, mas que se constitui como um fim fundamental de um processo amplo de Educação”. Nessa perspectiva, Albino Rubim, no texto “Dilemas culturais da universidade na atualidade”, que integra o livro “A ousadia da Criação - Universidade e Cultura” (2016), também traz algumas proposições importantes para este debate. Ao refletir sobre o histórico de ousadia da atuação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) no campo da 18


cultura, Rubim (2016) aponta algumas intervenções a serem abraçadas institucionalmente por toda a universidade para realizar uma política cultural que incorpore a dimensão cultural como fundamento essencial de seus fins acadêmicos. A saber: ● Formação de criadores, difusores e organizadores culturais. A formação de pessoal especializado no campo cultural para além dos cursos de artes, mas igualmente em cursos que podem ter incidência sobre o campo cultural, tais como: as humanidades (criadores e difusores), as ciências “duras” (criadores), a educação e o jornalismo (difusores) e a produção cultural, a administração, a museologia e a arquitetura (organizadores). ● Formação cultural comum a todos os estudantes. Tornar a formação cultural – considerada a cultura em um sentido amplo – comum a toda comunidade universitária, independente das áreas específicas de formação dos estudantes e, portanto, não restrita aos profissionais especializados do campo cultural. ● Formação cultural para além da comunidade acadêmica. A universidade deve investir na interlocução e em serviços culturais destinados a seu entorno social visando à formação de públicos culturais para além dos muros universitários. Essa formação de públicos deve ser assumida em plenitude pela universidade, com a plena consciência das ricas repercussões que esta intervenção pode gerar na sociedade e em seu campo cultural.

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● Criação e difusão de conhecimentos. A universidade deve colaborar com a expansão e consolidação das reflexões, estudos, pesquisas, conhecimento e o debate crítico acerca de temáticas e problemas relevantes do campo cultural na contemporaneidade. ● Abertura à pesquisa experimental. A atividade da pesquisa não deve se restringir à tonalidade acadêmica, mas ter abertura para o tipo de pesquisa experimental pertinente às linguagens, técnicas e tecnologias permitindo vitalidade e renovação para um ativo e criativo campo cultural. O debate sobre política cultural na universidade não se encerra no quadro brevemente esboçado neste texto, mas se abre como temática cada vez mais necessária para a reflexão, desenvolvimento e implementação de uma política articulada entre cultura e educação nas instituições de ensino superior. A instituição universitária deve, portanto, pensar sua política educacional em sinergia com uma política cultural capaz de integrar as diversas formas de produção de conhecimento, ciência, tecnologia, arte e cultura, para potencializar o desenvolvimento do seu campo artístico-cultural e sua atuação na promoção da diversidade cultural.

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REFERÊNCIAS BOTELHO, Isaura. Cultura e universidade: reconstituindo as trajetórias dos diálogos institucionais. In: Políticas Culturais: Teorias e Práxis. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. P.97-103 CERRETI, Camila; BARROS, José Márcio. Cultura, educação e políticas públicas para o ensino superior: uma análise propositiva do programa Mais Cultura nas Universidades. Salvador: Anais XI Enecult, 2015. RUBIM, Albino. Dilemas Culturais da universidade na atualidade. In: A ousadia da Criação – Universidade e Cultura (Coordenação: Albino Canelas Rubim) – 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2016. Vários autores. P.147-162 SALMITO, Ricardo. AZEVEDO JÚNIOR, Ivânio L. Cultura na Universidade: criação e início de trabalho da Pró-Reitoria de Cultura da Universidade Federal do Cariri. Salvador: XI Enecult: 2015.

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ARTE, LOUCURA E EDUCAÇÃO NO MUSEU: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Pompea Auter Tavares

Os museus têm demonstrado seus esforços pela diversidade cultural, tanto na dinamização do uso de seus espaços para manifestações culturais, quanto para o debate sobre a temática. Os programas de educação e as programações culturais são os principais responsáveis por garantir o diálogo ativo nos museus e oferecer, ao público, experiências que busquem refletir sobre cristalizações dos modos de pensar e agir sociais ou de sua própria prática institucional. Um exemplo recente é a programação integrada “Arte e Loucura no Circuito Liberdade”, realizada nos meses de maio e junho de 2017, resultado de uma parceria entre o Circuito Liberdade, a Prefeitura de Belo Horizonte e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA). Na conjuntura do dia da luta antimanicomial (18 de maio) e da Semana Nacional de Museus, o evento foi organizado como uma grande mostra dos trabalhos artísticos produzidos pelos usuários da saúde mental que frequentam os Centros de Convivência de Belo Horizonte. Os Centros de Convivência são serviços da saúde mental que, segundo os princípios da reforma psiquiátrica antimanicomial, oferecem

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oficinas de arte e artesanato para portadores de sofrimento mental. As oficinas “privilegiam o contato dos participantes com sua potência criativa, propiciando laços, afetos, para que se empoderem, para que reconstruam sua vida, sua identidade – com e apesar do – sofrimento mental” 1. A proposta é que os usuários, a partir de sua produção cultural, possam circular pela cidade em apresentações, mostras, cinemas, teatros, museus e demais espaços de arte e cultura da cidade. No Circuito Liberdade, a programação contou com exposições de arte, exibição de vídeos, apresentações musicais, saraus, intervenções urbanas, rodas de conversa, palestras e oficinas artísticas que ocuparam sete instituições, com o protagonismo dos usuários. Nesse sentido, proponho um breve relato sobre as atividades realizadas no Museu Mineiro, que pode trazer algumas reflexões sobre o papel da educação no museu para a diversidade cultural.

Segundo informações da divulgação do evento, disponível em http://circuitoculturalliberdade.com. br/plus/modulos/noticias/ ler.php?cdnoticia=431&cdcategoria=2. Acesso 16 de junho de 2017. 1

O Museu Mineiro recebeu três atividades: a abertura oficial do evento, a exposição “De ter vivido por um fio ao redor do mundo” e uma série de oficinas temáticas ministradas pelos usuários, esta última sendo realizada em colaboração com a equipe de educadores da casa. A abertura oficial, realizada no dia 11 de maio juntamente com a abertura da exposição, reuniu cerca de 400 pessoas no gramado do museu, contando com a presença de autoridades, trabalhadores do Circuito Liberdade, usuários dos Centros de Convivência, familiares, colaboradores e visitantes. Os discursos institucionais da noite rememoraram a trajetória da luta antimanicomial e a importância da arte como recurso de visibilizar 23


Oficina de Estêncil com Nimai Samo, no Museu Mineiro. Foto: Karen Zacché

a potência da vida desses sujeitos. Todavia, o que mais chamou a atenção foi a presença ativa dos usuários. Na abertura da exposição, os artistas logo se posicionaram diante de suas obras. Alguns deles faziam questão de comentar sua produção ou explicá-la ao público, outros mais tímidos, tentavam escondê-las de alguma forma, ou desviar os olhares para outros trabalhos. A circulação dessa noite, seus modos de conversação, de brincadeira, de “entra-e-sai”, de riso alto e de euforia transformaram a experiência tradicional da vernissage. Os loucos, com sua espontaneidade, poderiam simplesmente estar ali fruindo a exposição ou pegando os visitantes pela mão para mostrar uma ou outra obra. Os educadores do museu observaram, entraram no jogo das conversações inusitadas e fluíram 24


com aquele grupo, se permitiram ser mediados pelos usuários, caminhar com eles e serem convidados a tocar ou manusear as obras. As oficinas de artes dos Centros de Referência, que são dispositivos de experimentação multidimensional de atendimento extraterapêutico, materializam-se no Museu Mineiro de uma forma diferente: foram pensadas como uma oportunidade de reverter estruturas de poder e de fala, um exercício para dar voz aos usuários que permanentemente são público das oficinas e que, dessa vez, passaram a ministrá-las. Foram oferecidas nove oficinas como estêncil, expressão corporal, poesia, bordado, pintura, desenho e quadrinhos, voltadas às crianças, jovens e adultos. Os usuários são convidados a compartilhar seus saberes e a demonstrar o passo-a-passo de cada ofício, sem mediadores, tradutores ou facilitadores. Os técnicos dos Centros de Convivência estavam presentes, contudo, deixavam que os facilitadores do dia caminhassem sozinhos, de forma a oferecer o mínimo suporte a eles, quando necessário. A proposta naturalmente gerou insegurança e ansiedade na equipe do Museu, que se questionou sobre os resultados possíveis, sobre o imprevisível, sobre a possibilidade de haver público ou não, dentre outras elucubrações. No entanto, a escolha de assumir o risco também proporcionou certa liberdade, traduzida pela possibilidade de gerar o inesperado. Somente a vivência da primeira oficina foi capaz de demonstrar a potência da experiência e suas possibilidades de aprendizado, “é preciso dar tempo a essa gestação que se confronta com a loucura, a essas tentativas, a essa construção e reconstrução, a esses fracassos, a esses acasos” (PELBART, 1993, p.32). 25


Dar autonomia é, também, libertar-se da opressão dos resultados e permitir que o outro assuma a responsabilidade sobre suas investidas e aprenda, performativamente, como tomar outras direções. Em uma sociedade em que se vivencia a urgência, a instantaneidade e a simultaneidade, a aventura temporal, nesse sentido, é “libertar o tempo, devolver-lhe a potência do começo, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente” (Ibidem, p.36). Assim, podemos aprender com seus gestos lentos ou rápidos, com a fala curta ou longa, com seus olhares além do tempo, ou com a desordem criadora, com o sentimento traduzido em reações e atos, num exercício de conviver e reaprender a ordem das coisas. Para Pelbart (1993, p.11) podemos “a partir das disrupções da loucura, repensar algumas das clausuras nossas (temporais, políticas, estéticas, existenciais).” A principal delas seria a hegemonia da normalidade, que se assusta ao lidar com os que estão fora de seus padrões. E mesmo com as conquistas dos 20 anos do movimento antimanicomial, os espaços de convivência das pessoas com sofrimento mental ainda são restritos aos seus ambientes familiares e pequenas rotas de circulação. O autor acredita que “não basta reconhecer o direito às diferenças identitárias, com essa tolerância neoliberal tão em voga” (Ibidem, p.23), a heterogeneidade deve ser produzida, as diferenciações devem ser intensificadas e criadas. A oportunidade das oficinas no museu demarca a presença dessas pessoas assumindo posições heterogêneas de visibilidade e ainda permite ao público visitante aprender a estar junto, a dialogar e, muitas vezes, a lidar com possíveis situações desconfortáveis e dissonantes. Clifford (2016) 26


reforça a necessidade dos museus funcionarem como zonas de contato, capazes de fazer circular saberes e sujeitos apartados de seu fazer cotidiano. O autor afirma: Enquanto os museus não forem além de uma consulta [...], enquanto eles não aportarem uma gama mais ampla de experiência históricas e agendas políticas ao plano concreto das exposições [...], eles serão percebidos como instituições meramente paternalistas por pessoas cuja história de contato com museus sempre foi de exclusão e condescendência (CLIFFORD, 2016, P.19).

A clausura pela qual os trabalhadores da saúde mental lutam contra, pode ser comparada à clausura na qual objetos históricos e artísticos estiveram submetidos nos museus por muito tempo. O desafio museal por libertar o patrimônio está ligado à necessidade de descolonizá-lo e desierarquizá-lo, de lançar novos olhares aos seus objetos e conteúdos, capazes de dialogar com a diversidade da nossa cultura, para que não se torne meramente um depositório de memórias parcas ou simplesmente modelos de consumo. Assim como os manicômios tentavam normalizar comportamentos, os museus por muito tempo desejaram homogeneizar a cultura, ao eleger determinadas manifestações culturais como exemplos de boas práticas. Seja pela clausura do corpo ou pela produção cultural, a disciplina imposta “prescreve a cada um seu lugar [...] por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, o do que lhe acontece” (FOUCAULT, 2013, P.188). 27


O objetivo aqui não é equiparar o sofrimento de pessoas com o que se passa no museu. Mas, sim, encontrar pontos comuns e trazer para o universo museal os diálogos relevantes à loucura que dizem respeito à construção da cidadania, tanto para sua subjetividade, quanto para a construção da sua história: jogar com as estruturas de poder e produzir heterogeneidades, pois “é ali (na loucura) que se dá o entroncamento impensável entre a subjetividade, a cultura, a ruína, certos conceitos insólitos e todas as insubordinações desarrazoadas” (PELBART, 1993, p.12). A experiência entre loucura e museu nos leva a outro ponto fundamental a ambos os campos: o de lidar com as invisibilidades. As oficinas realizadas no Museu Mineiro também suscitam questionar o que Pelbart (1993) traduz como regimes de invisibilidade. Para o autor, um desses regimes seria o invisível subjetivo, aquele engolido pela visibilidade da imagem, que não diz respeito a ela, mas que produz um lugar entre sujeitos, objetos, palavras, lugares, “como se esse invisível fosse essa camada que envolve e permeia as coisas, ou as duplica, ou que lhes dá espessura, ou leveza, ou peso, ou as torna relevantes, miraculosas, fantásticas [...]” (Ibidem, p.53). Para o autor, essa seria a esfera do invisível mais essencial para o trato com a loucura, pois é o lugar onde: As virtualidades estão presentes num estado de oferecimento, à espera de enganches, atualizações, proliferações, de onde cada um, indivíduo ou parte de um indivíduo em conexão com parte de um outro extrai e constrói sua terra natal, por mais imaterial que ela 28


seja, a partir da qual certos processos de subjetivação podem desdobrar-se e ganhar consistência (PELBART, 1993, p.53).

O invisível subjetivo faz parte das grandes máquinas técnicas e sociais, faz parte da cidade, do museu, não está restrito aos loucos, tem a ver com o coletivo e o singular, seria o “espaço reservado ao intempestivo” (Ibidem, p.56). O trabalho de mediação e educação em museus também lida com essa invisibilidade subjetiva, que seria o oposto à visibilidade total. O que está visível no museu, dado, organizado e nominado, pode ser acessado por todos, mas há algo que está entre os objetos, entre uma forma e outra, que adensa ou dá leveza, que se dá na relação e no contato, entre um visitante e uma obra, entre o visitante e o mediador. As oficinas foram um experimento para produzir o intempestivo, o imprevisível, o inconveniente, o fora da ordem. Uma tentativa singela de desorganizar o que está dado, de fugir dos consensos e reestabelecer novos paradigmas. Aceitar o incômodo, o não dito, o desconhecido e, com isso, revelar contradições e limitações, nos ajuda a enfrentá-las e aprender, juntos, sobre o inesperado. Seja como educadores ou como loucos, é preciso coragem para dar espaço à outras temporalidades e ao que está invisível.

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REFERÊNCIAS CLIFFORD, James. Museus como zonas de contato. Periódico Permanente #6, São Paulo, v. 4, n. 6, p. 1-37, jan. 2016. Tradução: Alexandre Barbosa de Souza e Valquíria Prates. Disponível em: <http:// www.forumpermanente.org/revista/numero-6-1/sumario>. Acesso em: 16 jun. 2017. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 41 ed. Petrópolis. RJ: Vozes, 2013. PELBART, Péter Pál. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. 1. ed. Rio de Janeiro: IMAGO, 1993. 132 p. v. Serie Logoteca.

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O ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA E O HORIZONTE DE EXPECTATIVA: DUAS CATEGORIAS HISTÓRICAS A SEREM CONSIDERADAS EM PROCESSOS DE APRENDIZAGEM Alison Rosa

1.

O tempo como questão

A presente nota apresenta uma proposta de investigação dos impactos do tempo nas práticas educativas, objetivando instaurar um panorama da temporalidade do processo ensino-aprendizagem. Estas reflexões partem da experiência da presente autora com a docência em uma escola pública de Belo Horizonte. Para isso, são operacionalizadas duas categorias históricas cunhadas pelo teórico Reinhart Koselleck , o espaço de experiência e o horizonte de expectativas, sendo aqui situadas enquanto possíveis limites, opostos, do processo ensino-aprendizagem. A estruturação deste quadro analítico pode nos permitir evidenciar como as práticas educativas são, muitas vezes, prejudicadas quando as expectativas de aprendizagem são norteadas pelo atendimento às demandas curriculares, que se sobrepõem ao espaço de experiência e à diversidade cultural dos alunos nos momentos de planejamento das estratégias de ensino e avaliação. A provocação aqui é de se pensar uma possível experimentação de equilíbrio dessa lógica, ao apostar no espaço de experiência dos alu-

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nos como ponto de partida para a elaboração de práticas de ensino mais eficazes na aquisição da aprendizagem, em que a grade curricular sirva como um parâmetro de modelagem, no sentido de que o currículo e a escola existam para o aluno e não o contrário. Quando considerada a processual reconfiguração dos papéis do professor, do educando e da instituição de ensino, em um momento no qual o acesso à informação é cada vez mais dinâmico e coletivo, nos compete esmiuçar o que, afinal, justifica as escolhas curriculares do quê, como e quando aprender, em um percurso que deveria objetivar (trans)formar a informação, matéria bruta, em conhecimento. Nesse sentido, a prática educativa formal, orientada para a reinvenção e aprendizagem, pode ser compreendida desde a emergência da questão, interpretação, ressignificação até a apreensão do conteúdo curricular. Miguel Arroyo discute a necessidade de rever estruturas curriculares solidificadas após décadas de afirmação e repetição, em que inúmeras transformações socioculturais ocorreram e não foram levadas em consideração, o que acaba por gerar rupturas em uma estrutura que se torna precária. A hipótese que pode nos guiar para o debate é que o ordenamento curricular não representa apenas uma determinada visão do conhecimento, mas representa também e, sobretudo, uma determinada visão dos alunos. Os educandos nunca foram esquecidos nas propostas curriculares, a questão é com que olhar foram e são vistos. Desse olhar dependerá a lógica estruturante do ordenamento curricular. O currículo parte de 32


protótipos de alunos, estrutura-se em função desses protótipos e os reproduz e legitima. (ARROYO, 2007, p.21-22.).

Os movimentos sociais, culturais, políticos e a própria formação de educandos e professores, constituintes da primeira categoria histórica, os espaços de experiência, um “passado-presente” destes sujeitos, mobiliza a construção das estruturas curriculares, nortes para a prática do ensino, paralela aos objetivos, desejos e demandas sociais aos quais a escola deve atender, em que a aprendizagem emerge enquanto segunda categoria histórica, o horizonte de expectativas. Observa-se que os conteúdos a serem ensinados, a cada estágio de formação, são selecionados, em maior grau, a partir do que se espera que o educando saiba ao final de cada ano letivo e dos papéis e demandas sociais que deve cumprir. Estes podem ser tomados como elementos constitutivos das expectativas de aprendizagem sob as quais o professor, através da escola, trabalha para cumprir dentro de um planejamento que considera, muitas vezes, somente a aquisição de conteúdos curriculares anteriores, passados, como requisito para o ensino de novas temáticas, futuras. Quando isso ocorre, não é observado que a bagagem de vivências de cada sujeito pode transbordar os limites dos conteúdos curriculares, destituindo de sentido a imagem do a-lumnus, um ser sem luz, destinado a ser a tábula rasa que é apagada e reescrita ao longo do tempo, continuadamente.

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Ainda segundo Arroyo, Qual a centralidade do tempo humano nos processos de ensinar, aprender, formar? O que as diversas ciências estão mostrando é a centralidade do tempo nos processos de formar-nos e de aprender. Reorganizar os currículos respeitando os tempos da vida é assumir essa centralidade do tempo no fazer educativo. Deveríamos começar por partir dos tempos dos educandos, de suas trajetórias temporais, da liberdade ou falta de liberdade para controlar seus tempos, de articular os tempos rígidos de sobrevivência e trabalho com os tempos inflexíveis de escola e de estudo (ARROYO, 2007, p.47).

Uma percepção que pode ser posta à prova, quando se entende o educando como sendo um ser constituído de seu espaço de experiência, composto por muitas camadas, em que a aprendizagem do conteúdo curricular é somente uma delas, é que estas não podem ser apagadas, e sim incorporadas ao processo de aprendizagem. Portanto, valorizar o contexto sociocultural vivido e ainda sendo integrado pelo educando, não o condicionando somente a este, pode delinear novos horizontes na construção de estruturas curriculares nas quais de fato coexistam de forma adequada a realidade dos desejos de relação com o mundo, por parte de educandos, e a necessidade de respostas às questões da sociedade contemporânea, por parte da escola. Freire (1997) suscita essa questão quando pensa na ontologia do ser enquanto sujeito protagonista de seu aprendizado. “Não há historicidade do gato... O homem existe no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica... Temporaliza-se” (FREIRE, 1997, p. 41). 34


2.

O tempo como resposta

Discute Reinhart Koselleck, na obra Futuro Passado: O espaço de experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento. O horizonte de expectativa também se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda – não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional fazem parte da expectativa e a constituem. (KO-

Crianças brasileiras são fotografadas durante a aula em uma escola municipal flutuante no Rio Amazonas, na zona rural de Manaus. Foto: Bruno Kelly/Reuters. 2015

SELECK, 2006, p. 78). 35


A temporalidade do panorama observado do processo de aprendizagem padrão, em que as metodologias de ensino são elaboradas, em grande medida (ou em sua maioria), priorizando a expectativa de aprendizagem dos conteúdos curriculares, distantes do espaço de experiência do educando, os distancia também do prazer em aprender. O que é aqui denominado como espaço de experiência do educando pode ser descrito como um universo bem mais amplo, que contempla desde características e fatos incorporados da ordem de gênero, raça, etnia, cultura regional, variáveis sócio-cognitivas, estilos cognitivos e, também, suas vontades e projetos de futuro. O olhar minucioso e crítico para esta bagagem pode ser o ponto de partida determinante para recortes e reinvenções curriculares mais horizontalizadas com um ensino que possivelmente efetive a aprendizagem mais adequada ao tempo da turma e dos educandos. Segundo Miguel Arroyo: Os educandos, sujeitos também centrais na ação educativa, são condicionados pelos conhecimentos a serem aprendidos e, sobretudo, pelas lógicas e tempos predefinidos em que terão de aprendê-los: preocupa-nos que tantos alunos tenham problemas de aprendizagem. Talvez muitos desses problemas sejam de aprendizagem nas lógicas temporais e nos recortes em que organizamos os conhecimentos nos currículos. Mas dado que essas lógicas e ordenamentos temporais se tornaram intocáveis, resulta mais fácil atribuir os problemas à falta de inteligência dos alunos e a seus ritmos lentos de aprendizagem. (ARROYO, 2007, p. 20-21)

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Cecília Azevedo Lima Collares, em sua tese de doutorado (1994), propõe a discussão sobre os espaços de preconceito e as práticas cristalizadas na cultura da patologização do processo ensino-aprendizagem, que culpabiliza, em caráter inequívoco e excludente, a família, a criança, o professor ou a realidade socioeconômica do aluno, como fatores causais do fracasso escolar, sem percebê-los como um conjunto de fatores integradores do espaço de experiência do educando, na maioria das vezes excetuando a responsabilidade da escola e do parâmetro curricular a que se encontra condicionada. Dentro deste cenário, “a escola aparenta uma instituição preparada para ensinar crianças ideais, que não existem. Frente à criança real, se coloca como vítima. Vítima de uma clientela inadequada” (COLLARES, 1994, p. 146). A pesquisadora ainda aponta para duas ausências na prática escolar, a de uma percepção clara, pelos próprios educadores e pela instituição de ensino, quanto ao papel que detêm no planejamento do ensino que medeie experiência e expectativa, e mais do que isso, como projetar estratégias de ensino que materializem a expectativa com base na experiência real do aluno. O discurso de diretoras e professoras poucas vezes se refere ao processo ensino–aprendizagem. A impressão é de que na escola ocorre um processo exclusivamente de aprendizagem. A criança aprende ou não aprende. Simplesmente. Esse processo de aprendizagem “autônoma” é apresentado como decorrente de mecanismos inatos à criança -- ou talvez como o próprio mecanismo inato – de caráter mágico, inacessível ao professor. Daí, pela não- posse de uma 37


chave que possibilite ao acesso a este mundo mágico, o professor nada pode fazer quando a criança não aprende (COLLARES, 1994, p.43).

Na decorrência deste trajeto que salta uma etapa fundamental - do método de ensino pensado a partir do espaço de experiência do aluno, provocador das necessárias revisões curriculares - a expectativa de aprendizagem não pode ser alcançada em sua completude. Segundo Koselleck (2006), é a tensão entre experiência e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, permitindo que o horizonte de expectativas sempre seja ampliado. O olhar atento e crítico do professor para esta tensão cotidiana, na prática educativa, tornaria a aprendizagem dos alunos mais concreta, pois não projetaria o inalcançável. O teórico ainda reflete sobre prognósticos e seus teores de verossimilhança, ao perceber que o nível de precisão ou acerto de uma previsão não pode partir de uma expectativa. O teor de verossimilhança de um prognóstico não se baseia em primeiro lugar naquilo que alguém espera. É possível se esperar também o inverossímil. A verossimilhança de um futuro previsto decorre, em primeiro lugar, dos dados anteriores do passado, cientificamente organizados ou não. O que antecede é o diagnóstico, no qual estão contidos os dados de experiência (KOSELLECK, 2006, p.313).

REFERÊNCIAS 38


ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. 8. Ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. ARROYO, Miguel G. In: “Educandos e educadores: seus direitos e o currículo”. Indagações sobre currículo. Organização do documento Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. COLLARES, Cecília Azevedo Lima. O cotidiano escolar patologizado: espaço de preconceitos e práticas cristalizadas. 1994. C 683 c. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, São Paulo, 1994. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006.

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SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Mestre em Desenvolvimento Regional, Especialista em Gestão Cultural e Bacharel em Ciências Sociais. Educador, com experiência na educação formal e não formal. Professor efetivo de História da rede estadual de ensino, também atua com projetos culturais de formação continuada. Pesquisador do Observatório da Diversidade Cultural e do Núcleo de Pesquisa em Teatro para Educadores do Grupo Galpão. É formado em História pela UFMG, com Especialização em Educação Inclusiva pela PUC-MG e está iniciando o Mestrado acadêmico em Artes pela UEMG. Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Produtora Cultural na Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora integrante do Observatório da Diversidade Cultural (ODC). E-mail: jocastrahb@gmail.com.

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes, Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG e pesquisadora integrante do Observatório da Diversidade Cultural (ODC). E-mail: pompeaa@gmail.com.

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SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL O O Observatório da Diversidade Cultural – ODC – está configurado em duas frentes complementares e dialógicas. A primeira diz respeito a sua atuação como organização não-governamental que desenvolve programas de ação colaborativa entre gestores culturais, artistas, arte-educadores, agentes culturais e pesquisadores, por meio do apoio dos Fundos Municipal de Cultura de BH e Estadual de Cultura de MG. A segunda é constituída por um grupo de pesquisa formado por uma rede de pesquisadores que desenvolve seus estudos em várias IES, a saber: PUC Minas, UEMG, UFBA, UFRB e USP, investigando a temática da diversidade cultural em diferentes linhas de pesquisa. O objetivo, tanto do grupo de pesquisa, quanto da ONG, é produzir informação e conhecimento, gerar experiências e experimentações, atuando sobre os desafios da proteção e promoção da diversidade cultural. O ODC busca, assim, incentivar e realizar pesquisas acadêmicas, construir competências pedagógicas, culturais e gerenciais; além de proporcionar experiências de mediação no campo da Diversidade Cultural – entendida como elemento estruturante de identidades coletivas abertas ao diálogo e respeito mútuos. Desenvolvimento, orientação e participação em pesquisas e mapeamentos sobre a Diversidade Cultural e aspectos da gestão cultural. Desenvolvimento do programa de trabalho “Pensar e Agir com a Cultura”, que forma e atualiza gestores culturais com especial ênfase na Diversidade Cultural. Desde 2003 são realizados seminários, oficinas e curso de especialização com o objetivo de capacitar os agentes que atuam em circuitos formais e informais da cultura, educação, comunicação e arte-educação para o trabalho efetivo, criativo e transformador com a cultura em sua diversidade. Produção e disponibilização de informações focadas em políticas, programas e projetos culturais, por meio de publicações e da atualização semanal do portal do ODC e da Rede da Diversidade Cultural – uma ação coletiva e colaborativa entre os participantes dos processos formativos nas áreas da Gestão e da Diversidade Cultural. Prestação de consultoria para instituições públicas, empresas e organizações não-governamentais no que se refere às áreas da cultura, da diversidade e da gestão cultural.com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes.

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SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL O Boletim do Observatório da Diversidade Cultural é uma publicação mensal em que pesquisadores envolvidos com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes. Para colaborar com o Boletim, envie textos para: info@observatoriodadiversidade.org.br.

Coordenação geral: José Márcio Barros Conselho Editorial: Giselle Dupin – MINC – http:// lattes.cnpq.br/ 2675191520238904 Giselle Lucena – UFAC – http:// lattes.cnpq.br/ 8232063923324175 Humberto Cunha – UNIFOR – http:// lattes.cnpq.br/ 8382182774417592 Luis A. Albornoz – Universidad Carlos III de Madrid – http:// portal.uc3m.es/ portal/ page/ portal/grupos_investigacion/ tecmerin/ tecmerin_investigadores/Albornoz_Luis Núbia Braga – UEMG – http:// lattes.cnpq.br/ 6021098997825091 Paulo Miguez – UFBA – http:// lattes.cnpq.br/ 3768235310676630 Comissão editorial: José Márcio Barros e Giuliana Kauark Revisão editorial: José Márcio Barros e Giuliana Kauark Revisão de texto: Camila Alvarenga, Carlos Vinícius Lacerda e Julia Roscoe Diagramação: Carlos Vinícius Lacerda

info@observatoriodadiversidade.org.br www.observatoriodadiversidadecultural.com.br 44


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