TERRAS METÁLICAS

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Renato Nonato

Terras Metálicas

COLEÇÃO NOVOS TaLENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Pau l o 2 0 1 2



Prólogo

Saturno

– Tome cuidado para não desmaiar, viu? – É, a gente não está a fim de carregar você para casa. – Ah, calem a boca, vocês dois! – gemeu Raquel, em resposta. – Tudo pronto para começar – anunciou uma quarta voz, em quatro alto-falantes presos ao teto. – Quando você quiser. Raquel Onero fechou os olhos, desaparecendo com a sala oval. Respirou fundo, pois a adrenalina já pegava carona no sangue, acelerando seu batimento cardíaco. Não queria batimentos elevados logo no começo, ou acabaria desmaiando mesmo, como dissera Tales. – Comece! Assim que gritou, Raquel saltou sobre a estrutura de metal trançado. O vento imediatamente chocou-se contra seu corpo magrelo, com velocidade suficiente para fazer suas bochechas subirem, deixando-as iguais às de um buldogue. Os dentes brancos foram expostos, bem como a gengiva, e os cabelos dourados se espalharam no ar como espaguete. Foi nesse momento que Raquel abriu os olhos. A sala oval de antes tinha um teto baixo, quase claustrofóbico, onde os alto-falantes ficavam pendurados, um em cada ponto cardeal. Luzes de neon cuspiam uma claridade cegante nas paredes quase inteiramente prateadas, salvo um ou outro ponto onde janelas ovais, as mesmas que os amigos usavam para vê-la, foram colocadas. Raquel estivera de pé sobre uma estrutura de metal trançado que afundava consideráveis centímetros por conta de seu peso. Logo abaixo dela, apenas a completa escuridão era vista, estendendo-se até o infinito. Aquela sala havia desaparecido. Agora o que a rodeava era o mais puro azul celeste. Uma vastidão imensa, propagando-se para cima e para o horizonte, tão longe quanto pudesse ser


imaginado; abaixo, tons variados de verde coloriam a superfície do planeta esquecido com precisão de pinceladas. Prestando atenção, era quase possível ver a curva que esse planeta fazia no espaço, uma esfera gigante a ponto de ser confundida com um disco. O sol brilhava no alto, recobrindo de luz os pontos onde tocava. Raquel atravessou uma cortina de nuvens e quase pôde sentir a maciez descrita nos livros – um algodão úmido que vagaria pela atmosfera até concentrar-se o bastante para despejar toneladas de água em alguma região azarada. Ela estava atônita diante da visão, o corpo em queda livre em Saturno, o parque temático da Esfera. Raquel rodou e rodou, dando mortais e piruetas sem sair do lugar, graças à grande corrente de ar na direção contrária. A sensação dava frio na barriga, atiçava a liberdade, e mais... Sentia-se voando naquele céu artificial, como um peixe num oceano de pouca densidade. Era fácil entender por que voar foi uma coisa tão cobiçada por povos de eras passadas. E era algo que poderia experimentar a qualquer momento, pelo resto da vida, se a sorte estivesse a seu lado amanhã. A sensação não durou muito, e, após giros e giros – que não embrulharam seu estômago –, a potência do vento diminuiu. Raquel fez um bico quando o vento deixou de ter força para transformá-la num buldogue. – Já acabou? – ela reclamou em direção aos alto-falantes; seus joelhos dobrados pelo vento. – Não durou quase nada! Nenhuma resposta veio, o vento continuou diminuindo e o céu sofreu um espasmo, fazendo o ambiente voltar a ser a sala oval. A garota pousou de barriga sobre o gradeado, tendo dificuldade para se recompor. No fim, uma porta circular se abriu quando as múltiplas camadas de metal se sobrepuseram, expondo a saída que deveria ser usada. Mesmo com a experiência, Raquel vinha com o semblante sério. Caminhou desajeitada pelo gradil e saltou até a parte firme, do outro lado. Ignorando os dois amigos e o tashi, tratou de concentrar sua raiva numa janelinha ali perto. – Não durou nada! – reclamou para o vidro fumê. – E eu estava chegando à melhor parte! Uma gaveta se abriu abaixo da janela. – Mas a melhor parte dos seus créditos já acabou. 8


Ela pegou o pequeno cartão, virando-o. – Eu ainda tenho nove partes! – Só que é preciso um crédito e meio para continuar. – Isso é um roubo! A gaveta se fechou, indicando que a discussão estava terminada. – Vamos, Raquel, você já queimou todos os seus créditos aí. Chega. Ela virou-se para Ângelo e Tales. – Não venha com essa, eu ainda não terminei! Tales abraçou sua cintura, puxando-a. – Mas seus créditos já acabaram. Vamos, você não quer ser expulsa daqui de novo... Raquel se desvencilhou com certa dificuldade, eles já estavam com doze anos e de uns tempos para cá disputas físicas começaram a se tornar um problema. – Vamos embora, Raquel. Vamos! Vamos! Vamos! – pedia o tashi, com sua voz metálica; os circuitos azuis em suas costas reluzindo nos objetos conforme voava. – Amanhã é a cerimônia de implante, vocês têm de estar descansados! O tashi era uma pequena esfera, um pouco maior que as extintas bolas de tênis. Metade de sua superfície era recoberta por metal e microcircuitos, com minúsculos pontos e linhas azuis, a outra parte era um visor côncavo capaz de reproduzir imagens, dar notícias ou acessar a televisão local, mas que na maior parte do tempo apresentava um fundo branco com dois pontos robustos e um risco, numa imitação simplória do rosto humano. Havia também as variações, faces tristes e felizes, e até o tremer da boca quando falava com sua dona, Raquel. Naquele momento o tashi reproduzia olhos estreitos, boca pequena e o voo agitado, sua forma de demonstrar nervosismo. – Sossegue, Tashi! Eu sei muito bem o que vai acontecer amanhã! Tashi era o modo genérico como aqueles companheiros eram chamados. Porém, quando Raquel o ganhou, era pequena demais para lhe dar um nome mais criativo, tashi passou a ser Tashi desde então. – A tricentésima cerimônia de implante – disse Tales, enquanto o grupo seguia para fora do parque. – Falaram que o próprio Vitor vai vir para fazer as honras. Vocês não ficam animados? 9


I

Um futuro que se prepara

Ela passeava por um vasto pasto, o céu azul sobre a cabeça. A luz cegante do sol forçando-a a apertar um pouco os olhos, tão verdes quanto a grama. O vento a acariava e balançava seu cabelo dourado, esticando as mechas até se tornarem fios de espaguete. No entanto, havia algo psicodélico na paisagem. O verde sobre o qual caminhava tinha textura de piso, isso sem falar nas grandes colunas cobertas por lençóis verde-escuros, como lonas de circo, que surgiam aqui e ali. Ela caminhava pelo piso, atravessando as colunas, sem destino; a mente vazia e distante, a paz preenchendo-a dos dedos dos pés aos cabelos de espaguete... Pelo menos até ela sentir batidas na cabeça. Uma, duas, três... Olhou para cima e, para sua surpresa, havia uma nuvem sobre ela, um punhado de algodão que cabia na palma de sua mão. A nuvem voou rumo à sua cabeça, atingindo-a com a mesma potência de uma raquetada. A garota então correu pelo piso verde. Sua fuga teria sido bem-sucedida se uma corrente de ar mais forte, potente como a onda de choque de uma bomba H, não tivesse vindo em sua direção. A garota fechou os olhos nesse instante, e nesse mesmo instante ela também começou a voar. Rodopiando sobre o céu azul, com a nuvem esmurrando sua cabeça, seu estômago embrulhou perigosamente. A menina se contraiu em uma bolinha, buscando uma proteção que se mostrou vã. A nuvem continuava a atingi-la, atravessando seus braços como se fossem hologramas e acertando em cheio seu crânio. Quando a garota abriu os olhos, estava a quilômetros do chão, os giros cada vez mais rápidos, o estômago cada vez mais embrulhado, os braços se agitando para a frente, incapazes de conter tanto os giros quanto a nuvem... 10


Houve um baque seco quando Raquel caiu da cama. – Ai, ai – ela gemeu, levando a mão à cabeça. – Mas que droga! – Você tem que acordar cedo. Cedo! Cedo! Cedo! – gritou Tashi, com sua potente voz metálica. A pequena esfera voava agitada ao redor de Raquel, como um elétron circundando seu núcleo. A menina estava caída, ainda com o lençol térmico enrolado como uma víbora em seu corpo, as mãos massageando tanto os olhos sujos de sono quanto o lado da cabeça onde Tashi batera. – Você não pode apenas me chamar? – resmungou a menina. – Isso machuca, sabia? – Não posso apenas chamá-la porque você me desautorizou a isso! Raquel fez um bico; era verdade. – Tá, então a partir de amanhã me chame, tá legal? – Autorizado – disse a máquina, e seus circuitos emitiram um clique. Raquel levantou-se, jogando o lençol térmico sobre a cama. Em geral não o usava, pois a temperatura na Esfera se mantinha quase sempre agradável, entretanto havia períodos em que o mainframe cuspia frio ou calor intensos, e ela precisava do acessório para se manter confortável. A noite anterior fora fria demais para seus padrões, um clima que vinha se repetindo com frequência e que Raquel detestava. Talvez fosse hora de fazer uma reclamação formal a alguém. Foi então que, enquanto caminhava até a janela, lembrou-se de que aquele era o grande dia, e sua irritação com o frio desapareceu. O quarto de Raquel era como a maioria na Esfera, todo tingido na cor prata, com móveis retráteis perfeitamente camuflados. Em um dos cantos, a cama repousava perpendicular à parede, dois fios ajudando na sustentação. No outro, uma superfície também se projetava a prumo, e um assento cilíndrico brotava próximo. Ali era o santuário onde Raquel fazia os deveres, cada vez maiores e mais complexos, de sua vida acadêmica. Toda a decoração fora projetada para desaparecer com um simples toque. Raquel enfiou a mão em um orifício da parede e, com um puxão, um círculo de metal se afastou. Um movimento com o cotovelo e o círculo deslizou noventa graus sobre uma dobradiça, passando a apontar para baixo. Ela se debruçou sobre o orifício que se formou ali, deixando a luz do bloco 3-C da Esfera inundar seu quarto. 11


A visão era similar à das áreas residenciais nos cinco demais blocos e oito sub-blocos. Edifícios de quatro andares formavam ilhas entre as ruelas que ligavam as casas, a estrutura vista de cima era como a união de inúmeros jogos da velha. No alto, a iluminação era produzida por milhares de chapas de metal com células fotossensíveis acopladas nelas. A imagem era a representação do céu, onde se via nuvens e até um sol com ponteiros, que indicavam as horas. Raquel suspirou com a visão e, como fazia toda manhã, pensou que seria muito bom viver em um mundo onde aquelas representações fossem desnecessárias. Mas isso era impossível. Para aqueles na Esfera, o céu não existia mais. – Vamos, Raquel, você vai se atrasar! – seu pai gritou arrastando-a para a realidade. A menina se apressou em chegar ao banheiro, onde arrumou rápido os cabelos e jogou o limpa-dentes na boca, sacudindo as bochechas para que o líquido percorresse todo o espaço. Ao término, cuspiu tudo na pia e se apressou em jogar água no rosto. Algumas batidas para espantar de vez o sono e Raquel estava mais desperta do que nunca. – Tricentésima cerimônia de implante... – disse para o reflexo que sorria junto com ela. – Eu vou ser uma Túnel! A menina saiu caminhando pelo corredor, um tapete peludo acariciava os pés descalços. Entrou em outro cômodo, onde as roupas dela e dos pais estavam separadas em três grandes compartimentos. Pegou a camiseta da escola – branca, com um cristal de neve em seis cores impresso na altura do peito – e a calça azul. Calçou um par de tênis surrado e colocou a mochila, já com todos os aparatos necessários para a cerimônia, nas costas. Era a primeira vez que arrumava o material do ano letivo com tanta antecedência, jamais se perdoaria se isso a atrasasse. Com um sorriso, Raquel partiu para o glorioso café da manhã. – Como se sente neste grande dia? – perguntou Tashi, que surgiu ao lado dela. – Eu vou ser uma Túnel, Tashi. Você vai ver! – Você devia ser uma Bio, combina mais com você. Raquel esticou a mão num gesto rápido, mas o tashi esperto se livrou voando mais alto. 12


– Viu o que eu disse? Viu o que eu disse? Viu o que eu disse? – E a pequena esfera voou contente, abrindo a porta automática que ligava o corredor à cozinha. – Você vai se atrasar – bufou o pai, olhando através das folhas transparentes do jornal. – Francamente, você não tem jeito... Ele se chamava Heitor e tinha o cargo de terceiro encarregado no Setor de Memórias. Embora falasse com pompa de sua posição, nada fazia além de passar horas e horas investigando as informações que chegavam das antenas ainda intactas na superfície, sobreviventes da Última Guerra. Devido a esse cargo, Heitor ostentava uma gorda barriga, que lhe servia de apoio para o jornal lido todas as manhãs. Seus olhinhos miúdos eram castanhos e adquiriram, com o passar do tempo, a incrível habilidade de não perder informação alguma. Era quase como se cada olho tivesse por trás um cérebro próprio, para colher as informações. – Não seja tão implicante, querido – a voz de Cíntia soou próxima, fazendo Raquel virar a cabeça. – Aqui, querida, tome seu café. A mãe de Raquel voltou aos afazeres logo após servir a filha. A mulher era a versão mais velha da garota: olhos verdes, cabelo loiro, pele clara. Mas não era isso que importava para Raquel. Se a mãe era a sua própria imagem, porém adulta, então tudo acabaria bem. Tanto a mãe quanto o pai eram Túneis. – Você tem de ficar consciente de suas responsabilidades agora. A vida adulta vai estar um passo mais perto de você – disse o pai, com imponência e sem tirar os olhos do jornal. – Eu ainda lembro da minha cerimônia de implante... cerimônia número duzentos e setenta e sete... – ele deu uma risada que fez Raquel se encolher, já antevendo o que viria. – Sabia que eu fui o primeiro a dar parabéns à sua mãe depois que ela recebeu o chip? Ela estava linda vestida de negro. Raquel soltou um “hã” enquanto engolia a cápsula do café. – Acho que eu só me tornei um Túnel por causa dela – confessou ele, talvez pela sexagésima vez. – Ela era uma das melhores da turma, acho que eu me espelhava nela de alguma forma. – Ah, querido – suspirou Cíntia, corando também pela sexagésima vez. 13


Raquel ouviu, sem escutar, a repetição do diálogo. Desde que mostrara o convite da cerimônia aos pais, vinha tendo de tolerar a cena. Segundo Tales, Ângelo e Camila, o mesmo acontecia em suas casas. O fenômeno devia ser uma constante para todas as famílias de formandos. – Você já separou seu material, filha? As certidões, o uniforme? A vovó me mata se você não estiver impecável. – Já peguei tudo, mãe – respondeu ela, mal-humorada. – Ei, pai, posso ver os quadrinhos? Heitor voltou o olhar, rabugento. Em outras ocasiões Raquel não perturbaria o sagrado momento do pai ler as baboseiras esportivas, mas, já que era uma formanda, achava ter direito a essa regalia. O pai concordou, mas só após tomar uma faiscada da esposa por cima da cabeça da filha. – Não perca a minha página... Raquel pegou o fino papel-digital entre as mãos e o estendeu diante do rosto, precisando de alguns movimentos mais bruscos para a tela não se dobrar sobre ela mesma. Com tudo em ordem, rolou uma pequena barra, à direita, até um quadrado que marcava a sessão de entretenimento, acessando-o com um toque. O pequeno quadrado cresceu pela tela até sobrepujar os esportes do pai, enchendo a vista da menina com as histórias do coelho robótico Ralfe, de que ela tanto gostava. – Eu detesto ser o estraga-prazeres – disse Tashi, dois minutos depois. – Detesto! Detesto! Detesto! Mas você vai se atrasar se não sair a-go-ra! Raquel olhou por sobre o jornal, mirando Tashi mortalmente. – E ele tem toda a razão! – exclamou o pai, após conferir o relógio na parede. – É uma pena, mas é hora de ir para a escola, mocinha. Ela sentiu o jornal vibrar sobre suas mãos e imediatamente o largou, não adiantava resistir, ela ainda não era páreo para o pai. Ao soltar o jornal, este permaneceu pairando no ar, em uma afronta direta à gravidade. Heitor, próximo dali, permanecia com a mão estendida em direção a ele. Quando o homem ergueu o braço, o jornal o acompanhou, flutuando suavemente pela atmosfera. Um virar de pulso e um dobrar de dedo foram os comandos para que a tela se aproximasse e parasse, obediente, em suas mãos, que já vasculhavam o menu, prontas para colocar a sessão de esportes novamente em evidência. 14


Raquel sorriu, segurando seu copo de vitamina. – Amanhã quem vai tirar esse jornal das suas mãos vai ser eu, pai. Heitor gargalhou, espalhafatoso. – Vai precisar de muita prática antes de fazer uma coisa assim, filha. Explorar as capacidades dos chips não é algo que se faz da noite para o dia. – E não fique tão certa sobre ser uma Túnel – a mãe completou. – Isso nem sempre tem a ver com hereditariedade. Cada habilidade é única, não fique frustrada se acabar se tornando outra coisa. Raquel não deu ouvidos – a certeza de que teria as mesmas habilidades dos pais já corria em suas veias –, e foi traçando planos para surpreender os dois na manhã seguinte que ela partiu para o dia mais importante de sua vida. – Tente não ficar muito nervosa – disse a mãe, após beijá-la. – Nos vemos no Auditório durante a cerimônia. Raquel assentiu e partiu, desaparecendo da vista dos pais. Só quando estava na sala deu-se conta de que, naquele dia em especial, podia ter uma companhia a mais na Academia. – Ei, Tashi, vamos! Ou você quer ficar? A pequena máquina apitou, atravessando a sala como uma bala e sobrevoando a cabeça de Raquel como um elétron. A felicidade estampada no visor côncavo. – Cuide dela, Tashi! – gritou Heitor, enquanto a porta se fechava. – Acho que vai ser a primeira vez que terei certeza de que ela não vai causar nenhum problema – confessou, voltando em seguida para o jornal. Raquel atravessou o pequeno saguão entrando com Tashi no elevador, a máquina já indicando que o destino da dupla seria o térreo. – É a primeira vez que você vai à Academia, não é, Tashi? Você vai adorar! – Pelo tanto que você fala, parece até que eu já a conheço – respondeu a pequena máquina, arrancando um sorriso da dona. Tashis não eram permitidos na Academia. Sua entrada era liberada pouquíssimas vezes em toda a vida acadêmica do estudante, e uma delas era justamente no dia da cerimônia de implante. O elevador apitou ao chegar ao térreo e suas portas se abriram. Logo no primeiro passo houve indícios de que Raquel se lembraria daquele dia pelo resto da vida. 15


Os saguões dos apartamentos nos blocos residenciais eram formados por pequenos grupamentos de lojas dos mais variados tipos. Raquel atravessou sem ver a Nos Trinques, com seus manequins exibindo os últimos modelos da coleção de inverno, e a Reparos e Consertos, onde o senhor Juliano apertava o parafuso de alguma coisa que lembrava muito uma máquina de lavar com braços. A menina parou somente ao se aproximar da drogaria local, propriedade de Sofia, amiga de sua mãe, e do salão de cabeleireiros de dona Clarice. Quando sua presença foi finalmente notada, os vendedores largaram seus afazeres e posicionaram-se diante de suas vitrines. Todos encaravam a garota com um sorriso. – Ora, ora, ora, quem diria? – disse Tashi, voando até parar em frente à dona, permitindo que ela visse os microcircuitos azuis em suas costas. – À nossa formanda... – leu Raquel, sentindo as bochechas corarem a cada palavra. – Parabéns por mais essa etapa. Raquel estava acostumada a ser o centro das atenções devido a suas palavras rápidas e a algumas ideias, digamos, pouco convencionais. Por isso aprendera a lidar com broncas por suas traquinagens, e não com homenagens, principalmente as feitas pelas pessoas que mais importunava. – Por essa você não esperava, hein, diabinha? Raquel virou para ver dona Clarice se aproximar, com um sorriso de quem está tendo exatamente o que deseja. A mulher andava meio desajeitada, culpa dos mais de cem quilos sustentados em seu um metro e sessenta e cinco. O rosto vinha como de costume, as rugas encobertas por uma camada branca de maquiagem que beirava o mórbido, ainda mais com o contraste de seus olhos negros e os cabelos encaracolados no mesmo tom. Havia batom vermelho borrado por sobre os lábios e brincos em forma de cristal nas orelhas caídas. A mulher trajava um avental amarelo com diversos bolsos, onde carregava as escovas e os pentes usados em seu salão. Mas, apesar do conjunto, havia nela um ar diferente, algo maternal, que Raquel jamais vira. – A formatura é um momento muito importante, e todos nós entramos em um consenso de que, apesar dos pesares, você merece algo especial nessa data. 16


A mulher enfiou a mão no bolso retirando um pequeno estojo. – Não é nada muito magnifíco... – e continuou, após um suspiro – mas é de coração. – Ela chorou duas vezes para comprar isso – disse alto Sofia, arrancando gargalhadas de Juliano. Raquel estendeu as mãos, tocando o pequeno estojo. Ao abri-lo, seus olhos captaram o brilho de dois cristais em formato de brinco, praticamente idênticos aos que dona Clarice usava. A formanda trouxe para si o presente sem saber o que dizer. – Eu... – começou ela, gaguejando; as palavras recusando-se a sair. – Este é um momento realmente histórico – disse dona Clarice, ainda sorridente. – Deixamos a diabinha sem palavras. Certamente Raquel não era capaz de lidar com uma homenagem, e, frustrada por não conseguir falar, tratou logo de transformar aquela celebração em algo a que estivesse mais acostumada. Num gesto rápido, avançou sobre a cabeleireira, e, com um habilidoso movimento, removeu a pressão que sustentava os brincos de dona Clarice em suas orelhas. A mulher, atônita, viu Raquel recuar dois passos. Novos brincos, agora em seus dedos. – Eu prefiro esses – Raquel sorriu, aliviada pela voz ter voltado. A face de dona Clarice avermelhou, o tom maternal substituído pelo austero já conhecido. Ao longe, o senhor Juliano engoliu as risadas e berrou que aquilo era uma afronta aos bons costumes e que Raquel deveria ser punida. Dona Clarice ainda tentou reaver os brincos, mas Raquel esquivou bem a tempo, fugindo para a rua. Antes que qualquer outra coisa pudesse acontecer, Raquel partiu em disparada pela calçada, olhando para trás somente após vencer o primeiro quarteirão. – Não se preocupe, eu vou cuidar bem deles! – gritou, acenando. – Depois da cerimônia eu devolvo! E obrigada pelo presente! Eu adorei! E foi tirando um sorriso, embora a contragosto, de dona Clarice, que Raquel partiu em direção à Academia, com Tashi voando apressado – e amedrontado – atrás dela.

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