Sereias – o segredo das águas

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CAPÍTULO 1 Seu nome era Coral. E não poderia ser diferente. Coral, de longos cabelos da cor da areia, com mechas platinadas, acinzentadas, brincando em meio a tanto amarelo-dourado, solar. E os fios mais escondidos, aqueles que saem da nuca e só aparecem quando estão suspensos num rabo de cavalo, sustentavam um tom vermelho-acobreado, cor de ferrugem, cor de fogo. Era como se enxergássemos uma fogueira, no meio do deserto do Saara, coroada com estrelas prateadas. Sim, fogo... Como o de sua personalidade, da qual falarei mais tarde. Ela brincava com estes dois polos: uma pontinha de fogo em meio a tanta água. O cabelo era sua marca registrada, algo que a diferenciava das outras pessoas, tão normais. Quando seco, exibia uma cabeleira frondosa, com volume, tal qual a juba de um leão, mas cacheada. E seus cachos não eram certinhos como os de uma boneca retrô, tampouco redondos numa perfeita espiral. Não... Seu cabelo era como as ondas, sempre solto e selvagem. A cada dia estava de um jeito, algo diferente. Ora com cachinhos ao longo de toda sua enorme extensão, ora revolto e mais alisado, para no dia seguinte estar cheio e com os cachos alargados. A cada manhã desperta, havia uma surpresa, e ela então corria até o espelho, alimentando sua vaidade, mas principalmente sua curiosidade para ver como se encontrava naquele dia. Eu nunca soube se ele acompanhava o temperamento de Coral − temperamento este tão volúvel −, porque sempre que a via era como se eu já não enxergasse mais nada a não ser aquela luz... aquele sorriso... aqueles olhos negros... aquele cabelo em que − ah! − tanto desejei me afogar... 9

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A única exceção à regra era quando se encontrava em seu estado “normal”, em seu ambiente natural, respondendo aos anseios de sua alma, ou seja, na água. Ali o cabelo de Coral se transformava, formando um único bloco − uma grande massa de franjas lisas, louras, prateadas e levemente acobreadas. Sim, todos os seus cachos desapareciam na água, como se almejassem não ter mais nada com que se apegar à terra, à sua forma seca. Seu cabelo, que na água mais parecia inúmeras crinas de cavalos, gigantescas e independentes umas das outras, dançavam com seus movimentos. E quem conseguisse enxergar não veria apenas fios humanos, mas algo verdadeiramente sobrenatural. Que mais posso dizer para descrevê-la? Falar de seu sorriso maroto e levemente inclinado para cima no lado esquerdo? Falar de seus olhos tão negros quanto uma noite sem lua no meio do oceano? Tudo isso soaria apenas ilusório e piegas, vindo de uma alma presa à paixão, que é como me encontro. Então resolvi apenas seguir o curso, como um barco sem remo. Não dizem que a paixão é exatamente isso? Um marujo que, cansado da vida e da mesmice, se atira ao mar, tentando, talvez com as espumas marinhas com que tanto se identifica, descrever a magia que lhe falta enxergar. Às vezes é preciso mergulhar... Seguindo o curso, contarei desde o início essa história fantástica. Espero que quem a leia tenha sua mente e seu coração abertos para as possibilidades que, lhes garanto, são inúmeras e completamente passíveis de serem reais. Aconteceu comigo, e agora... o mundo irá saber.

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CAPÍTULO 2 A nossa história começa no ano de 1982. Um ano como outro qualquer, não fosse por dois acontecimentos: a Guerra das Malvinas, quando Argentina e Reino Unido entraram em combate por um arquipélago austral. E, um pouquinho mais ao norte, no caloroso Brasil, uma menina começava a se formar, sem que se tivesse ideia da magnitude que ela teria. Enquanto duas nações guerreavam por pedaços de terra em meio ao vasto oceano, a singela menininha a qual me refiro se preparava para nascer no ano seguinte e encampar uma guerra interna pelo vasto oceano que circunda todos os pedaços de terra do nosso planeta. E antes de ela poder dar seu primeiro respiro longe do ventre da mãe, sua genitora já sofria com o destino que a aguardava e que cedo lhe foi revelado. Marina sempre fora uma mulher guerreira, de sangue forte e um pouco avessa a expressões de sentimentos. Sua estatura era baixa, mas corria veneno em suas veias. Seu cabelo era fino, liso e de um castanho pálido, chegando logo abaixo dos ombros. Seu semblante era muito bonito, apesar de, na maioria das vezes, extremamente sério. O que mais se destacava em sua aparência eram os olhos acinzentados. Estava casada com Tom, rapaz gentil, doce e de coração tão grande quanto os sete mares, havia cinco anos, e se lamuriava por não poder gerar um filho. Muitas foram as tentativas, as idas aos médicos. Muitos foram os exames, doloridos e demorados, para mês a mês ver toda sua esperança se esvair junto com o sangue menstrual derramado. Mesmo assim Marina não era mulher de se deixar abater ou de perder tempo sendo infeliz. Jamais acreditara que seu ventre era 11

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seco, oco, vazio, mesmo quando ouvia as opiniões mais pessimistas dos doutores. Alguns chegaram a dizer-lhe que nem mesmo um milagre faria seu útero germinar. Ela sempre agradecia e saía dos consultórios com um sorriso no rosto e uma certeza interna de que eles de nada sabiam. Para mim, que agora observo de fora, Marina já pressentia o que estava para acontecer. Tom, cansado de presenciar toda a luta inglória da esposa, programara uma viagem, uma segunda lua de mel, para os dois. O destino escolhido fora a Bahia, mais precisamente o magnífico reduto de Itapuã: bairro de Salvador, cantado na música de Toquinho e Vinicius de Moraes, em que ressaltam suas belezas naturais e a tranquilidade oferecida. Sempre fora um sonho de Marina conhecer o Nordeste brasileiro. E aquele estado, onde praticamente nasceu o Brasil, sempre a fascinara. Era o começo do mês de maio, fora da temporada turística, portanto Tom sabia que a região estaria tranquila. Ouvira dizer que Itapuã representava um passeio idílico e calmo, e concluiu que seria o destino perfeito. Também se preocupava muito com a proximidade do Dia das Mães, pois sabia da profunda depressão que essa data sempre provocava em Marina. Resolveu agir rápido, para a felicidade dos dois, e logo embarcaram rumo à Bahia. Nesse começo de história eu ainda nem existia, mas se fosse possível presenciar toda a magia que ali se iniciou, eu não hesitaria. Magia essa que começou com as paisagens paradisíacas e sublimes de Itapuã, com toda sua orla recortada e composta por pequenas baías, arrecifes, areias claras e rochas vulcânicas. E, no ano em que para lá viajaram, suas praias ainda exibiam uma in12

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finidade de coqueirais que dançavam ao sabor do vento, criando poesias à beira-mar. Logo que chegaram à pequena pousada onde passariam suas férias encantadas, ficaram sabendo da existência de um belo e antigo farol, com mais de vinte metros de altura e que, com visibilidade a quatorze milhas, desde o século XIX auxiliava marujos e marinheiros perdidos no mar. Não tiveram dúvidas e souberam na mesma hora, talvez por um acaso do destino, que aquele seria o ponto de partida de suas aventuras. Hoje, gosto de pensar que talvez Marina chegara a ter um pressentimento, ou então, em meu devaneio, apenas se apegara à esperança de que o farol, que sempre ajuda quem está perdido e solitário em meio a tanta água, pudesse também ajudar quem estava perdido e solitário em meio a tanta aridez. Após uma caminhada tranquila, interrompida, a cada suspiro, apenas por uma nova e deslumbrante paisagem que surgia, ou pelos desvios das piscinas naturais formadas pelas rochas nas amarelas e finas areias, e onde Marina desfilava com destreza e leveza, pulando por sobre as rochas em meio aquele paraíso, finalmente chegaram ao seu destino. E ficaram boquiabertos diante de tamanha beleza. Um magnífico e imponente farol, listrado de branco e vermelho, como os faróis devem ser; como uma fotografia lúdica. Uma passarela branca, com dois arcos ornamentais por baixo dos quais os visitantes passavam, possibilitava a chegada até sua base. No começo da década de 1980, Itapuã ainda exibia ares de vila de pescador, com sua paisagem bucólica, algumas casas de veraneio e ruas estreitas. Tom e Marina aproveitaram esse cenário inspirador e permaneceram sentados na areia, somente a contemplar essa maravilha de lugar que lhes embebia o olhar. O mar estava calmo, como que a acompanhar o ritmo de seus corações. Cada 13

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instante que se apresentava perante seus olhos era como se um quadro fosse pintado. Para Marina, aquilo não poderia ser normal. Só poderia ser a obra de um magnífico artista. Poucas horas depois, num quiosque próximo, o casal foi conversar com um nativo de aparência humilde e com cheiro de peixe exalando das mãos. Não foi difícil perceber que se tratava de um pescador cuja labuta havia lhe trazido não apenas o odor característico, mas também, provavelmente, a maioria das rugas em seu rosto cansado. Ele explicou-lhes que a noite prometia mais agito e que Itapuã se transformava num alegre ponto turístico, com uma quantidade considerável de pessoas. Marina pôs-se a pensar como era possível que preferissem o agito da noite às belezas contemplativas que somente o sol nos proporciona ver e experimentar. Talvez nem todos estejam tão sensíveis quanto eu, pensou ela. Voltaram à pousada e, quando anoiteceu, arrumaram-se para o divertimento que os aguardava − sem sequer imaginar que aquela noite seria o marco inicial de uma história mágica e sobrenatural.

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