Presas – A Dádiva da Escuridão

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Marco de Moraes

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Livro Um

Capa

4º Capa coleção novos talentos da literatura brasileira

São Paulo 2013

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Copyright © 2013 by Marco de Moraes

Coordenação Editorial Diagramação Capa Preparação Revisão

Dados

Nair Ferraz Célia Rosa Monalisa Morato Rafael Cal Richard Sanches

Internacionais de Catalogação na Publicação (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

(CIP)

Moraes, Marco A dádiva da escuridão : presas : livro um / Marco Moraes. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira)

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série.

13-03339

CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira

869.93

2013 Impresso no BrasiL Printed in brazil Direitos cedidos para esta edição à Novo Século Editora Ltda. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Este livro é dedicado a todos aqueles que fizeram este sonho tomar forma em palavras. Agradeço a todos que escolheram se aventurar pelas próximas páginas e, principalmente, a meus familiares e amigos.

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“A verdade repousa no fundo, e não é qualquer um que consegue chegar até ela.” Goethe

“Não poucas vezes esbarramos com o nosso destino pelos caminhos que escolhemos para fugir dele.” Jean de La Fontaine

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Sumario ´

I Nascer sombrio........................................................................................ 13

II O abrigo nebuloso e o silencio desigual.............................. 15 ˆ

˜ mais que isso: W isewood. ....................... 19 III Distante, nao

V Devidas vidas entre metais. ....................................................... 39

IV A construcao ˜ ............................................................................................. 27 ´

VI Marcas........................................................................................................... 49

VII Coroa, espadas e um remo prateado................................... 57 VIII Crias das trevas..................................................................................... 63

IX Do passaro ´ faminto a` sede por castigo. ............................ 71

XI O povoado livre de nome.............................................................. 97

X Errante pelo caminho rumo ao grato adeus................ 83

XII Surge o guerreiro nato................................................................ 115

XIII O cavaleiro das magoas perpetuas ´ ´ ..................................... 141 XIV Luz tropega . ............................................................................................. 165 ˆ

˜ .....................................................169 XV Uma vez mais a` construcao ´

XVI Gwyneth, a rainha solitaria ´ ......................................................195 XVII Um tanto mais adiante ao passo revelador................ 213 XVIII A verdade do salao ˜ real.............................................................. 237 XVX Desfeito o veu ˜ . ......................................................261 ´ de protecao ´

XX Presas..........................................................................................................281 9

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´ Prologo A perda da memória num tempo desmedido fez de mim um andarilho obediente a uma sina, um amanhã que me impelia a seguir por caminhos perante a escuridão tão densa que tomou o lugar do dia à força. As tenebrosas manhãs eram de tal intensidade que a dúvida habitante em mim tomava forma assustadora, ludibriando meu jeito de pensar. Onde me sentiria mais seguro: na escuridão do mundo no qual mal enxergo ou na escuridão da minha alma? Havia a vontade, a força, a perseverança de chegar a um fim sem nem ter caminho, sozinho a perambular, travando batalhas contra as incertezas do meu ser e os imprevistos que me tornaram curioso a ponto de identificar verdades que muito busquei e alcancei. Reconheço a dificuldade de crer em tudo dito aqui, mas compus estas lembranças durante longa jornada, cheia de gritos de dor e pavor. Abandonando medos, paguei com desgraças inevitáveis; eram escolhas. Fui o errante que, por vezes decidido, por vezes acanhado, seguia convencido de ser um repudiado por, no doloroso decorrer do tempo, sofrer por ser caça dos filhos da noite. Naquelas noites sem-fim, descobri o quão árduo é enfrentar medos em plena escuridão. 11

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I

Nascer sombrio Tudo era bruma cinza quando eles se abriram a piscar, mal enxergando minhas mãos cobertas por algo viscoso e fétido que dificultava juntá-las em toque. O ar pútrido carregado e o som como de ossos remexidos incomodavam cada movimento. As pernas estavam perdidas em algo denso como lama e quase não mexiam, retardando a fuga, mesmo em tentativas bruscas. Sopros fracos saíam desta boca, quando pude ver que estava envolto por árvores de folhas escuras, com a roupa suja de sangue em um pântano rodeado de esqueletos esquecidos. As margens daquela água viscosa seriam alcançadas quando eu atravessasse alguns metros. Havia uns poucos corpos desanimados, jogados ao relento e em decomposição. Um deles tinha olhos castanhos apavorados bem abertos, como de alguém recém-chegado. Não sei por quê, mas não senti asco nem desespero. Sequer sabia como fora parar lá. Em raízes grossas e robustas pude me apoiar e levantar meu corpo pesado, revelando à vista um caminho guardado por galhos secos caídos. O ruído de algum animal entre as copas das árvores causava estranheza. O som era grave, e me fez pensar que ele deve13

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ria ser grande e pesado. Acordado eu estava, mas não havia tempo nem lugar: tudo era a noção não constrangida da vontade de explorar naquele ambiente sombrio em que tudo era morte. Consegui andar generosos metros tortos. Ouvia ao longe diversas vozes gritando e gargalhando. Caminhei seguindo os sons até chegar a uma cabana com palhas no topo e luz amarela no interior. Aproximei-me, porém não entrei, limitando-me a observar, afastado, a pequena janela de madeira em que não se enxergava bem e através da qual nem a porta da cabana. Era a primeira de duas daquele lado da cabana. Os homens barbados que lá estavam saboreavam carnes caprinas e suínas avermelhadas, banhadas em molho fervente; a bebida estava nos canecos, nas barbas, no chão amadeirado onde poucas mesas estavam postas com quase todas as cadeiras ocupadas. Apesar daquele deleite e do vazio que eu sentia, não tinha vontade de desfrutar daquela abundância. Ouvi alguém dizer que já era madrugada antes de adormecer em cima do próprio braço recostado na mesa de madeira espessa. Engraçado não sentir o tempo passar, não havia sono. Eu lia Taverna do Philip na plaqueta muito mal pendurada daquele lugar. De onde conhecia o tal Philip?

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II

O abrigo nebuloso e o silencio desigual ˆ

Apalpei a roupa em busca da minha bolsa de moedas, mas acreditei tê-la perdido, submersa na lama. Não tinha abrigo para passar a noite e era um pouco assustador voltar a toda aquela escuridão fria. Algo sussurrava: havia um tanto de mim naquele pântano. O silêncio da floresta era confortavelmente apavorante. Eu sentia que teria de sair de perto da taverna e caminhar para qualquer lugar que não fosse ali. Algo dizia que estava sendo observado. Olhei pelos cantos daquela construção e para cima dela, e vi um vulto se movimentando muito rápido no alto das árvores. Uma forte repulsa me fez correr para dentro da floresta, quando ouvia meus próprios passos e passos mais rápidos que os meus. Não podia parar. Corri em uma direção qualquer e me dei conta de que estava perto daquele nevoeiro cinza. Assim que o toquei, vi rapidamente o chão e mais nada em seguida. Tudo era cinza-escuro quando minha vista tentava identificar onde eu estava mais uma vez. Estava perdido e pegajoso, sentin15

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do-me fraco para levantar. Após algum tempo, pus-me de pé e percebi os corpos violentados desfeitos e muitos ossos naquele pântano que tocava bruscamente um lago triste. Caminhei com a leve sensação de que já havia passado por ali. Apesar do caminho ser bastante falso, eu não errava os passos. De longe pude avistar uma cabana que me pareceu um tanto insensata. Aproximei-me até entender ser uma taverna. Não poderia entrar para saber onde estava ou aonde queria ir porque minha roupa continha sangue demais para passar despercebido por quem me visse. Num momento de distração minha, um dos homens fora expulso, procurando então direção com o rosto arrastado no chão em meio àquele rol de gargalhadas pela cena recém-ocorrida. Decidi de ímpeto entrar quando pude notar por completo, mesmo que rapidamente, as costas daquele jovem que parecia ser o dono do casebre. As bocas se mexiam em silêncio e discordavam de todo o som que antes se ouvia do lado de fora. Eu ouvia um nada, enquanto o todo era torcido feito um sono maldito. Não me atentei tanto, corri, sentei-me à mesa solitária do canto mais escuro. As indagações e os olhares de soslaio me faziam alvo de desprazeres. Eu, o estranho que podia sentir o cheiro do álcool sem ser acometido por náuseas; que tinha a pele e a carne tensas e secas, talvez pelo frio; que não pedi licença para entrar e exigia, pelo olhar, não querer ser abordado. Percorrendo o local com os olhos fui pego de susto pela servente do lugar. Seus modos brutos condiziam com sua aparência: cabelos desgrenhados por cima do decote nada atrativo do seu vestido. Com uma voz esganiçada, perguntou: – Vai querer o quê? A surpresa me levou a resposta embora. 16

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– Você é mudo? Perguntei o que vai querer! Continuar calado a fez me dar as costas. Devia reagir para desviar as atenções para um estranho. – Eu quero o que aqueles homens ali comem. Impaciente, tornou à mesa em que permaneci. – Eles quem? Apontei discreto para a primeira mesa onde os restos de carne ainda eram repartidos entre homens apoiados nos seus canecos de vinho. – Criações de cabras ficam longe daqui. Comer aquela carne ali é caro. Você tem dinheiro? Pensei “não”; respondi “sim”. – Com certeza tenho! – Então, pague a metade agora e o resto quando acabar de comer. Mal me vestia, como pagaria? – De onde venho, os viajantes são servidos de outra forma. Traga a cabra que ainda pagarei em dobro. Ela desconfiou, fitou-me de cima a baixo antes de responder: – Assim é melhor, você me convenceu. Foi-se resmungando para que eu ouvisse. – Os que não pagam saem daqui debaixo de surra... Demorou um tanto, serviu outros, estapeou um atrevido, esqueceu-se de mim. Chamá-la seria bom se tivesse fome para aquela comida, mas não. Quieto me mantive, conforme queria. Tempo sobrou para procurar o homem que expulsara o outro antes que eu entrasse. Sua posição atrás do balcão e seu mau humor explicavam minha suspeita em ser ele o dono da taverna. Percebi um pequeno corpo vultoso deitado ao pé de uma das mesas e um homem caminhando em minha direção com passos 17

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mancos. Se eu pude ouvir alguém além da servente, era ele: – Tu... Naquele súbito momento, todos corriam em pavor, por certo buscando um lugar mais seguro que aquele. Eu, sendo um dos que correram, saí dali e assim consegui ouvir berros sobre bestas e demônios da noite. Não tinha direção e, mais uma vez, sem pensar, fui em direção à floresta. Corria apressado, em desespero, afoito entre as folhas e galhos em cuja lembrança estava imerso. Podia sentir que eu era uma presa, mesmo sem saber de quê. Por fim, avistei novamente aquele cinza no meio de toda a treva. Parei por momento curto, mas logo caminhei porque algo me chamava para lá. Era estranho como eu podia, naquele momento, ver por entre a névoa. Havia alguém numa embarcação que segurava o que parecia um grande remo brilhante, mexendo-se muito devagar sobre as águas funestas. Quando esbocei um primeiro passo, houve um estrondo atrás de mim, fazendo com que me virasse, mas não vi nada. Tornei a virar em seguida e aquele alguém não estava mais lá.

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III

Distante, nao˜ mais que isso: W isewood

A noite se despedia enquanto se ensaiava a fraca luz matutina, coadjuvante do que parecia ser um dia de outono. Durante o desconhecimento do tempo até então corrido, era estranho olhar para o lugar daquele nevoeiro enganador, vivo, e não vê-lo se dissipar. O clima fora dali ficava ligeiramente mais quente, com incômodos raios solares de prata leve, pois nublava. A vida que coexistia lá dentro era algo de tom fúnebre, inebriante, ímpar e que não me fugia nem com um piscar. Árvores era tudo o que via e os sons que me chegavam aos ouvidos me remetiam a elas. Eu tinha de sair para descobrir o que estava acontecendo e lembrar o que fazia ali naquele estado de corpo e alma doloridos. Enfim, saí. Encontrei uma estrada de terra que era larga e parecia ter seu fim perdido no horizonte margeado pelo verde monótono das árvores de aparência tristonha. Uma carruagem grande era puxada por dois cavalos e espalhava terra úmida para todos os lados. Era conduzida por um homem troncudo, de barba e cabelos 19

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longos, mais um passageiro, não menos forte, ainda que um tanto mais baixo. A carruagem vinha na minha direção, desviando de um pequeno transeunte no meio do caminho. O veículo era um tanto acabado na aparência, embora servisse para levar seus passageiros. Rasguei minha bata e a escondi, abraçando, assim, meu corpo na tentativa de enganar o frio. – Quem vem lá? – perguntei em voz alta. O rude condutor chicoteava os cavalos abatidos para que parassem onde eu estava. Eles obedeceram, relinchando inquietos. – Meu nome é Ewan, este débil é Finlay. Somos transportadores de vinho, apenas representantes de mercadores. E você, como se chama? Uma pergunta cuja resposta ainda não encontrara. Na verdade, eu mesmo a teria feito àqueles homens. – Estou perdido nesta estrada e venho de muito longe. Gostaria de saber para onde vai esta estrada e se ela é longa. Os homens riram sem pudor, tendo em vista a estranheza dos fatos. – Como pode não saber se esta estrada é longa? Nela já estávamos antes mesmo do sol se levantar. Não vê o rubor das tochas que acabaram por se apagar? – Fiquei assustado com a aparência dos dois homens e seu veículo bambo a ponto de não me dar conta do detalhe das tochas. O cheiro de vinho era forte e vinha dos barris descuidados que quase caíam tortos, mesmo inanimados e amarrados juntos à carruagem descoberta e magra. Não entendia por que o tom sinistro que ouvia do vento durante todo esse tempo estivera tão latente quando os encontrei. Eu precisava de mais informações. Tudo o que ocorrera desde a noite anterior até aquele momento soava como explicações infun20

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dadas. Não me contive: – Creio que os senhores vão aonde quero ir. – E aonde você quer ir? – Desejo ir aonde há muitas pessoas. – Vejo que está mais perdido do que se possa pensar. Parei meu olhar, concordando pela expressão do rosto. – Não temos lugar para mais um passageiro nesta carruagem, mas creio que pode viajar entre os barris. Suba e ajeite-se ali. Aja como uma carga até chegarmos ao condado maior, o de Braose. Vamos parar logo depois dele. Mal havia lugar também entre os barris; todavia, pude apoiar-me no espaço estreito entre eles, segurando-me em suas amarras. Pela estrada de terra, o caminho era bastante irregular. A paisagem era muito monótona, pois, para mim, as árvores eram idênticas, e a estrada, um traço reto sem-fim. A velocidade da carruagem também não mudava, a poeira que levantava pelo caminho nos trechos secos era sempre de altura idêntica. Mesmo na estrada sem curvas, estava tão curioso quanto temente para saber em que momento um dos barris se abriria para me banhar com vinho ou cairia pelo caminho quando passássemos por mais algum buraco. Contudo, nada disso aconteceu. Ewan, que até o momento fora de poucas palavras, parecia bem adaptado a viagem. Finlay, apesar de sempre agitado, também aparentava estar confortável sentado na madeira do carro, cantarolando desafinado enquanto batia palmas descompassadas para sua, e apenas sua, distração. As árvores posicionavam-se mais distantes umas das outras a certa altura, dando-me a impressão que estávamos alcançando o fim da estrada. Sim, aproximávamo-nos de um grande condado que, pelo pouco visto, realmente atenderia às minhas expectativas expressas a Ewan. Bem que poderíamos parar ali, pois o descon21

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forto da minha posição me obrigava a me retorcer e me levantar. O condutor reclamava do meu comportamento. – Sente-se aí para manter a carroça equilibrada. Ainda estamos em Braose. Quanta demora para sairmos do primeiro condado... As dores foram recompensadas com estalos de alívio. Enfim pararíamos. Pelas conversas dos dois, ouvi termos chegado a Wisewood. Ainda que ouvisse queixas de Ewan, fiquei em pé para observar o local. Os limites do lugar não eram alcançados pelos meus olhos. Via casebres espalhados ocupando boa parte daquele terreno bastante irregular, tanto que alguns homens tinham dificuldade de retirar da lama a roda de uma carroça puxada por um cavalo. A entrada do condado era de pedras, bem como outros caminhos, além das vias de terra escura que levavam para lugares entre pequenos montes. Pelo que pude ver, a quantidade de gente povoava razoavelmente bem as terras do condado. Lá, as pessoas pareciam concordar com os dias tão noturnos que pintavam o cenário com a pouca luz aparente. Todos eram singulares entre si, convivendo naquela harmonia enfadonha: as mulheres sofriam de olheiras fundas a verem os homens trabalhando com o desânimo dos ombros caídos; as crianças apertavam as saias das mães, em idas e vindas, zombando do caminhar entediado dos senhores de costas curvas e barbas esbranquiçadas pelo tempo. Esperei chegarmos ao centro do condado rodeado por dezenas de choupanas, depois daquele outro tido como maior. Achei curioso: Ewan e seu bastardo não cumprimentavam as pessoas. Na verdade, as ignoravam, mesmo enquanto reduziam cada vez mais a velocidade do transporte. Isso quando não xingavam os que estivessem no caminho. Pelo que lembrava, a estrada de terra ia margeando seu fim, chegando a um lugar com pedras fincadas 22

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no chão. Era tempo de parar a carruagem. – Desça logo! Agora os cavalos descansam enquanto levamos o vinho para dentro. Venha, Finlay! Pus os pés sobre as pedras, sentindo-as frias. O calçado estava úmido havia horas. Minhas pernas aborrecidas tremiam como que por dias de caminhada, mas, mesmo assim, pude dar passos miseráveis até poucos metros. Avistei tudo à minha volta em busca de algum vestígio vago sobre o não saber, mas a sorte não me ofereceu. Pronto. Desencontro. Meus olhos bem abertos buscavam em lembranças vazias reconhecer toda aquela gente. Eu apenas sabia que o local se chamava condado, que o ferreiro era ferreiro, que o mendigo, um fadado, e que eu não estava inteiro. Ewan e Finlay aproximaram-se após a terceira entrega numa pequena adega, pouco frequentada naquelas horas do dia. Percebi estar sendo observado por um alguém desconfiado, cujo olhar estava fixo em mim. Questionei Ewan: – Alguém sabe quem é o homem trajando hábito? – É um homem de Deus. Seu nome é Gillies, um frade louco que não sabe o que fala. Dizem que ele vê coisas que não existem, como homens excomungados rendidos à perdição e cães que nos são semelhantes. Ele vive por aqui há tanto tempo que já não me lembro da primeira vez que o vi. Pelo menos eu não acredito nas coisas que ele fala. – Ele parece ser tratado como um alguém solitário. Se é um homem de Deus, não há como estar só. – Até Deus se esqueceu destas terras, frouxo. Olhe o céu e veja as nuvens desgraçadas que o cobriram de escuridão. – Isso de nada importa para Ele. – Você conseguiria abençoar aquilo que não enxerga? 23

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Mas que pergunta incomum ele fez! – Elas podem ofuscar os meus olhos, Ewan, que sou um homem comum... Ele nem me ouvira e já ignorava o que dizia. Calei-me. Concluí que ele, e apenas ele, tinha razão. – Nem a morada Dele na terra cobra mais impostos aqui. Se um qualquer deve a vida a alguém, esse alguém é o rei. O tempo em que o clero ordenava cordeiros aqui acabou. – Gillies faz o quê aqui? – Apenas fala asneiras. Desisti de me opor àquele tonto teimoso. Observando os movimentos perturbados de Gillies, pude perceber um terço de madeira grande firmado entre seus dedos medrosos. O hábito sujo delatava desleixo e suas sandálias estavam gastas, perceptíveis à vista de qualquer um. Repentinamente, Gillies demonstrou medo, correndo aos tropeços para longe. Eu sentia o vento bater vagarosamente, suficiente para me proporcionar calafrios. Meus braços não bastavam para me esconder do clima. Tratei de falar com Ewan: – Como posso conseguir vestes? – Trabalhando, frouxo. – Sim, mas nada conheço nestas terras. – Olhando bem para você, duvido que já tenha trabalhado. Não parece aguentar barris grandes de madeira. Mas como trabalhar aqui em Wisewood com pessoas é difícil, creio que poderá me ajudar com algumas entregas. Basta trabalhar calado. O Finlay fala demais. – Finlay não parece tão falante. – Quando não fala com a boca, fala com as mãos. Vai defender o imbecil ou vai querer moedas para sua roupa? 24

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– Decerto, as moedas. O tom rude de Ewan era intimidador. Durante o trabalho, vi que não apenas entregavam barris, como também serviam em outros ofícios pesados, necessários no condado. Os trabalhos não me agradavam. Nem bem acabamos e tive pobres recompensas. Logo no momento em que houve distração por parte de Ewan, saí à procura de alguma alfaiataria e, com celeridade, consegui encontrar uma que afortunadamente cobrava barato. Com o número tão limitado de moedas, comprei uma túnica escura qualquer que atendia às minhas necessidades. Meu até então mandante se juntou a Finlay para comer algo. Entraram numa pequena taverna e lá se acomodaram. Caminhei com calma para poder observá-los, já que não confiava nos dois. Lá dentro comiam feito porcos lambuzados e bebiam mesmo sem sede. As conversas demoradas, junto às risadas altas, distraíam e ajudavam a passar o tempo. Após a refeição, foram à porta de entrada. Discutiram outros assuntos, ameaçaram partir, mas voltaram, para minha agonia. Por fim, cansaram de conversar. Foi quando me encontraram às rodas da carruagem. Ewan me ofereceu um caneco de vinho gelado, imundo pelo ambiente guardado. Minha aceitação foi vista com desconfiança, porém a secura que sentia na garganta me fez esquecer. Degustei a bebida sem parar para respirar, até poder ver o fundo do caneco e sentir uma dor intensa na cabeça, como se a tivesse batido no chão. Cambaleando e confundindo as pernas, tentava me apoiar na carruagem e nos barris. Contudo, fui derrotado na luta contra um sono repentino.

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