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Copyright © 2014 by Rodrigo Kilzer

Coordenação Editorial

Silvia Segóvia

Preparação

Andrea Bassoto

Diagramação

Abreu‘s System

Capa

Monalisa Morato

Revisão

Rodolfo Santana

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kilzer, Rodrigo Orion: o filho das trevas / Rodrigo Kilzer. – Barueri, SP: Novo Século Editora, 2014. 1. Ficção brasileira I. Título. 14-03649

CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11º andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Dedicatória

Dedico esta obra a toda a minha família, que sempre me apoiou; à minha querida amiga Loyane, que também se tornou minha primeira fã e, é claro, à minha amada Vivi, que nunca deixou de acreditar em mim, nem nos momentos em que eu mesmo não acreditava.

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Prefácio

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urante as manhãs de inverno, quando ainda é bem cedinho, em um período de transição entre a noite e o dia, é muito comum surgir uma bruma envolvendo Niterói, principalmente na parte mais alta da cidade, onde ficam localizadas as estradas que dão acesso às conhecidas praias oceânicas de Itacoatiara, Piratininga, Itaipu e Camboinhas. Dizem que a combinação de um dia quente com uma noite fria e úmida faz aparecer esse nevoeiro matinal. Há pessoas que acreditam que essa névoa é sinal de que o dia será agradavelmente ensolarado. Há quem diga o contrário, e há, ainda, quem diga, como minha finada avó dizia, que toda bruma é perigosa. “Nevoeiro matutino é sinal de perigo, meu neto”, dizia-me ela. Lembro-me bem da última história que ela me contou. Eu estava com onze anos e vovó já estava com seus oitenta e poucos, e apesar de um corpo cansado, ainda estava completamente lúcida. Pelo menos era o que eu pensava. “Seu pai sempre achou que era invenção minha pra assustá-lo quando criança, mas é a mais pura verdade. Acredite ou não, sua avó Cândida um dia teve uma irmã gêmea idêntica!” – era sempre engraçado o jeito como vovó se referia a ela mesma na terceira pessoa. “Nós éramos muito unidas. Todos da família diziam que éramos como unha e carne, sempre compartilhando tudo: brinquedos, doces, travessuras e segredos. Até que um dia tivemos uma briga boba na vés9

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pera do nosso sétimo Natal. Era costume nosso... Sempre acordávamos cedo para abrir os presentes antes de todo mundo. Na verdade, era a Paulinha que sempre me chamava. Mas dessa vez ela acordou e não me chamou. Talvez ainda estivesse chateada comigo ou, ao menos uma vez, queria abrir os presentes sem ninguém por perto. Seja qual fosse o motivo, pela primeira vez não abriríamos os presentes juntas. Eu levantei pouco tempo depois e assim que notei que minha irmã não estava na cama, saí correndo em disparada, direto para a árvore. Ela não estava mais lá, mas havia papel de presente azul rasgado no chão, o que era um sinal claro de que ela havia estado ali há pouco tempo. Mas por que não estava mais lá? Talvez estivesse esperando eu abrir os presentes para me pregar uma peça. Isto era bem típico dela. Ou, então, ela podia estar no banheiro. Mas de que adiantava pensar nisso? Ela já tinha aberto um presente, então, nada mais justo do que eu abrir um. Com toda pressa do mundo fui correndo abrir o máximo de presentes possíveis antes que ela voltasse. Só que quando eu ainda estava rasgando um embrulho colorido, notei algo curioso: a porta da sala estava entreaberta. Naquele instante senti uma pontada em meu peito. Havia algo errado! Paulinha não sairia de casa enquanto não terminasse de abrir todos os presentes. Esse era o porquê de sempre abrirmos juntas. Nós competíamos para ver quem abriria o maior número de presentes. Aquela que ganhasse poderia escolher os presentes que queria primeiro. Claro que era mais pela brincadeira, afinal, como eu já disse antes, nós sempre dividíamos tudo. E os nossos pais compravam os brinquedos em duplicata para evitar qualquer tipo de confusão. O que mudava mesmo era a cor. As bonecas de Paulinha costumavam ser cor-de-rosa, que era sua cor predileta. Já as minhas eram azul bebê. Foi naquele momento que percebi que o embrulho que minha irmã havia aberto e largado no chão era azul claro. E isto não era típico dela, que sempre priorizava os cor-de-rosa. Foi quando eu parei de abrir os presentes e fui ver se ela estava lá fora. E eu nunca me esquecerei daquela cena... Minha irmã, ainda vestindo seu pijama de seda rosa e as pantufas de coelho, segurava a boneca nova na mão direita enquanto caminhava tranquilamente em direção ao nevoeiro. – Paula! – gritei. 10

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Ela se virou, olhou para trás e acenou para mim com a mão que segurava a boneca de vestido azul. Porém, infelizmente, ela seguiu em frente. Até hoje eu tenho quase certeza de ter escutado uma voz chamando por ela, vinda do meio do nevoeiro. Talvez tenha sido por causa dessa voz que ela continuou adentrando na bruma. E por mais que eu berrasse seu nome, ela não parava de andar. Parecia estar sendo levada por alguém. Quando eu corri até o quintal, a névoa já não estava tão densa e não havia nenhum sinal dela. Essa foi a última vez que vi minha irmãzinha.” Fabio nunca teve certeza se a história era real ou não, porque sua querida avó Candinha faleceu na noite seguinte após tê-la contado. Parecia que ela tinha guardado sua melhor e mais misteriosa história para ser a última de todas. Talvez ela apenas quisesse alertá-lo para os perigos do desconhecido. Ele sentia muitas saudades da avó. Olhando para trás, o rapaz tinha a sensação de que os momentos felizes do seu passado haviam ficado escondidos por uma bruma, e todas as lembranças boas pareciam estar desaparecendo, pouco a pouco ficando encobertas, deixando em seu lugar apenas a escuridão. Isso... Escuridão era exatamente a palavra que definia tudo. Era mais uma triste e fria noite de julho. O tempo estava muito úmido, pois havia chovido bastante durante toda a primeira quinzena, o que deixava aquela noite ainda mais gelada que as anteriores. E pensar que as férias escolares tinham começado havia apenas uma semana. Mas o que para a maioria dos estudantes era motivo de comemoração, para Fabio não fazia muita diferença. Na verdade, lembrar do último dia de aula o deixava completamente desolado. Tudo em que ele conseguia pensar era como a vida podia ter sido tão injusta com ele. Devido aos últimos acontecimentos, ele se encontrava agora encostado em uma das lápides do cemitério São Francisco Xavier. Qualquer pessoa que visitasse o local provavelmente diria tratar-se de mais um roqueiro ou gótico frequentador de cemitérios. O que eles não sabiam é que Fabio sofrera uma enorme perda. Ninguém poderia imaginar que aquele rapaz de dezoito anos era um morador não oficial do lugar.

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1 Lembranças

Um mês antes

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uando o ano letivo começara , suas perspectivas eram as melhores. Fabio sempre fora um bom aluno. Muito esforçado, fazia o máximo parar tirar as melhores notas. Não apenas pela obrigação de manter sua bolsa de estudos naquela que era considerada uma das melhores escolas da cidade, mas também porque ele acreditava que esse era o caminho mais direto para alcançar seus objetivos na vida. Ele havia passado para o último ano do ensino médio e já estava pensando nas universidades em que prestaria vestibular: UFF, UERJ e UFRJ. Com certeza, sua maior vontade era cursar Direito na Universidade Federal Fluminense. Desde o final do segundo ano, quando prestara vestibular para essas universidades apenas para testar seus conhecimentos, mas passando com tranquilidade em todas as três, ele conseguiu o reconhecimento que tanto merecia por parte do corpo docente. Agora que estava no último ano, ele sabia que se formaria no ensino médio. As expectativas eram altas em relação a ele, o que causava inveja em alguns de seus colegas. Todos sabiam que era só uma questão de tempo para que aquele dedicado rapaz se tornasse um respeitado homem de sucesso. Na escola era dado como certo que ele seria o responsável pelo discurso de formatura do terceiro ano, afinal, não havia nome melhor para servir de exemplo de superação de adversidades e dedicação aos estudos como o de Fabio Flores. 13

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Mas como em tudo na vida, para cada ação existe uma reação, e graças ao impressionante desempenho de Fabio e seu recente destaque escolar, logo vieram as pessoas que adoram criticar tudo. Infelizmente, sempre vão existir os invejosos, que ficam pondo defeitos no mérito alheio. Nesta vida, a felicidade de alguns atrai a inveja de outros, e a maior parte dessa negatividade vem de pessoas que não têm motivos para isso. Gente como Luciano Albuquerque, seu maior desafeto, um sujeito que sempre esteve disposto a qualquer coisa para tomar o lugar de Fabio no discurso de formatura. E, de fato, ele já tentara de tudo para conseguir seu objetivo: realizara inúmeros protestos, alegara diversos motivos para que o escolhido fosse ele. Mas, no fim das contas, a justiça prevaleceu. Para azar do mimado rapaz, o professor responsável pela escolha do aluno que iria discursar era diferente dos demais e não se deixava intimidar. Nem mesmo o fato de Luciano ser filho único do prestigiado desembargador de Justiça Antonio Carlos Augusto Albuquerque fazia com que aquele homem se sentisse intimidado. Alguns diziam que não havia nada na Terra que pudesse fazer o professor perder sua imparcialidade. Luciano tentou agradar, subornar e até ameaçar, mas foi tudo em vão. No final, só o que ele conseguiu foi decair cada vez mais no conceito do professor Jair. Esta era uma situação nova, algo que ele não conseguia entender, afinal, seu pai era um homem muito rico e extremamente poderoso, além de ser amigo pessoal do prefeito. No Instituto Abel ele era conhecido, acima de tudo, por seus generosos incentivos financeiros. Então, que pessoa poderia ser melhor do que ele para fazer o grande discurso de formatura? Por causa de todo o poder de sua família, Luciano sempre se considerou acima dos demais e estava acostumado a ter pessoas lhe fazendo favores e facilitando sua vida. O fato de um simples professor se opor aos seus privilégios era algo que não entrava na sua cabeça. Ele sempre fez questão de demonstrar sua “superioridade” em todos os sentidos. Fosse em competições atléticas ou em disputas de popularidade, ele fazia o impossível para vencer e provar que era o melhor. Tanto que havia conseguido facilmente ser eleito presidente do grêmio, além de ser também capitão do time de futebol do Celae (Centro Lassalista de Estudos). O Celae é um prédio anexo ao do Instituto Abel 14

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para os alunos do ensino médio, e fica numa rua atrás do colégio, ligado por uma passarela coberta. Luciano também era o último vencedor das olimpíadas escolares. Entretanto, havia algo em que ele não conseguia ser o melhor: seus graus acadêmicos não eram elevados o bastante. Por mais que tentasse, estudasse ou trapaceasse, ele nunca conseguia ter notas mais altas do que as de Fabio. Isto, para alguém como Luciano, era inadmissível. Na sua concepção, uma pessoa de boa família como ele, com as melhores oportunidades, não podia, de forma alguma, ter notas inferiores às de um bolsista pé-rapado. Se ao menos acontecesse algo que o impedisse de comparecer àquela cerimônia... E um sorriso macabro brotou no rosto de Luciano. Era difícil ser bolsista em uma das escolas mais disputadas da cidade. Quase todos que lá estudavam eram de famílias com boas condições financeiras. Fabio não era de família tradicional. Eram apenas seu pai e ele. Ao contrário da maioria de seus colegas, ele não morava perto da praia, nem em um bairro nobre ou em um belo condomínio, e muito menos possuía os luxos ou recursos deles. Longe dos demais, sua vida era muito corrida. Seu pai, Jorge, trabalhava incansavelmente e muitas vezes dobrava no serviço para poder aumentar um pouco a renda. Até podia se dizer que sua casa ficava em um bom bairro, o de São Francisco, não fosse pelo fato de ser um sobrado simples, localizado na região mais humilde do bairro, bem na entrada da favela da Grota. Por estas razões, muitas vezes Fabio não podia participar de certas atividades extras, pois muitas eram extremamente caras. Quase sempre, as melhores e mais caras excursões eram organizadas pela popular Marine Mesquita. Ela era o sonho de nove entre dez alunos do Abel. Certa vez, Fabio e seus dois amigos − Guilherme e Poubel − estavam debatendo sobre a beleza dela. – Tenho certeza que ela pesa 57,5 kg que, diga-se de passagem, são muito bem distribuídos em seus 1,70 m de altura – disse Poubel, cheio de orgulho por saber até os gramas que ela pesava. – Ah, Poubel, você pode até saber quanto ela mede ou pesa, mas eu não me importaria se ela fosse alta que nem uma girafa ou gorda como uma porca, desde que ela ainda tivesse aquele rostinho angelical, com 15

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seus lindos olhos amarelos, parecidos com os de uma gatinha. – Suspirava Guilherme, enquanto lembrava de sua inalcançável paixão. – É... Mas e você, Fabinho? O que você mais gosta na Marine? – indagou Guilherme. – Vocês sabem que eu só tenho olhos pra uma pessoa, não é? – esquivou-se Fabio. – Ah, cara! Fala sério! O fato de você achar algo bonito na Marine não significa que você vai estar traindo seu amor por Cecília! – retrucou Poubel. – É verdade, Fabinho! Deixa de ser bobo e desembucha logo. A gente sabe que é impossível uma pessoa normal não reparar nos generosos atributos dela – disse Guilherme, dando razão ao amigo. – Pô! Vocês são muito chatos, hein! Mas já que não tem jeito, que seja feita a vossa vontade – disse Fabio sorrindo. – Eu acho que ela tem os cabelos lindos. Eles são tão reluzentes! Loiros e de um liso invejável. Fora que eu sou louco por cabelos longos e os dela vão até quase a cintura. – Pra quem não tinha nada pra elogiar, até que você falou muito, hein! – implicou Poubel. – Aí! Tá vendo! Por isso que não dá pra falar com vocês! – brincou Fabio, dando um sorriso amarelo para, em seguida, os três caírem na gargalhada.

 Em uma agradável sala que media o comprimento de um quarto simples, sentado em uma confortável cadeira de escritório estava Luciano, olhando alguns documentos que estavam sobre sua mesa, tais como formulários de autorização, reunião com professores e solicitações de alunos. Alguém tentou abrir a porta de madeira com vidro. Pela silhueta, era uma garota. – Estamos fechados. Volte daqui a duas horas – disse Luciano com ar ocupado. – Abre logo, primo. Sou eu! – O que você quer, Marine? – perguntou Luciano enquanto destrancava a porta. 16

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– Ai, seu chato. Você fala direito comigo, hein! – reclamou a garota – Até parece que eu só venho aqui pra te pedir coisas! – Tá, Marine. Então, me diga... A que devo a honra de sua presença? – implicou o jovem. – Ih, Lu! O que cê tem hoje? Brigou com Cecília? – provocou Marine. – Que nada, prima. A Cê e eu nunca estivemos tão bem. Só tô um pouco bolado com um professorzinho aí. Mas diz aí! O que você quer? Algum formulário de autorização pra mais uma daquelas excursões? – Nossa! Parece até que leu meus pensamentos! – Sorriu a jovem – Vou organizar uma viagem pro Chile. Desta vez você vai? – Não sei. Não tô muito a fim de esquiar. Mas quem sabe? Se eu mudar de ideia, te falo – respondeu Luciano enquanto entregava os formulários de autorização. Tão logo recebeu o que queria, a jovem agradeceu ao primo e saiu apressada com os papéis. Ela queria deixar tudo pronto para a primeira semana de férias. Com certeza seria o assunto mais comentado na volta às aulas. Marine sempre adorou ser o centro das atenções. Desde criança ela gostava de chamar a atenção de todos. Fosse por sua beleza de bonequinha, fosse por suas atitudes ou por seu temperamento, a garota sempre fizera de tudo para receber elogios. Quando atingiu a adolescência, seu lado modelo aflorou e aos onze anos entrou em um curso de modelo. Todos diziam que ela levava jeito para a coisa, o que a enchia de orgulho. A jovem cresceu com o ego super inflado, até porque dificilmente ela ouvia um “não” como resposta, principalmente dos garotos, que concordavam com tudo o que ela dizia, sempre na expectativa de beijá-la. Mas Marine não era boba e usava isso a seu favor. Ela era de longe a pessoa com mais seguidores no twitter em toda a escola, e seu perfil do facebook recebia diversas visitas e comentários, tanto dos garotos que a bajulavam quanto das meninas, que buscavam sua amizade, na esperança de se tornarem tão populares quanto ela. Quase ninguém sabia dos sacrifícios que Marine fazia para manter-se bela e popular. Sua alimentação sempre fora acompanhada de perto por uma nutricionista, então, pode-se dizer que ela faz dieta desde os nove anos, mas, seu maior segredo era uma plástica para afinar o nariz, 17

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que sua mãe a obrigara a fazer com apenas onze anos. A mãe de Marine, Andréia Mesquita, era uma ex-miss Rio e sonhava que a filha tivesse uma carreira muito melhor do que a dela, por isso não media esforços para que sua menina fosse a mais linda de todas. Porém, muitas vezes ela acabava exagerando e isso tudo tinha deixado Marine um pouco superficial. Sua mãe trabalhava em uma ONG que ajudava jovens de comunidades carentes a se tornarem modelos. Ela também organizava desfiles beneficentes e, lógico, usava tais eventos para promover a carreira da filha. Marine adorava viajar. A verdade é que esses eram os momentos que ela tinha para se distrair de sua agitada vida. Junto dos amigos ela podia ser apenas mais uma garota sem obrigações, sem dietas, sem poses e fotos excessivas, que a deixavam de olhos vermelhos. A garota adorava a neve. Desde que visitara a Suíça, ainda criança, apaixonara-se pelos esportes de inverno. No ano anterior ela havia organizado uma viagem de férias para a Argentina, na qual muitos amigos puderam esquiar pela primeira vez. Este ano ela queria repetir a dose, porém em um país diferente. O local escolhido era o sul do Chile, mais precisamente Valle Nevado, considerado por muitos a maior e melhor estação de esqui de toda a Patagônia. Este era o slogan de seus panfletos: “Conheçam a maior e mais moderna estação de esqui da América do Sul”. Os alunos que tinham viajado no ano anterior estavam empolgados com essa nova oportunidade e tratavam de pegar as fichas de autorização o mais breve possível, afinal, ninguém queria correr o risco de ficar de fora.

 Fabio notou um certo alvoroço na hora do intervalo e ficou curioso para saber a razão. Ele já desconfiava qual era o motivo, mas este era o tipo de coisa que as pessoas fazem questão de conferir. Conforme se aproximava, suas suspeitas iam se confirmando. Só podia ser por causa dela. Marine se encontrava sentada em frente a uma mesa posta no canto do corredor. O móvel tinha uma pilha de autorizações em cima, e estava adornado com diversos pôsteres com fotos lindas de um lugar chamado Valle Nevado. Também havia panfletos devidamente empilhados. O ra18

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paz notou que a toda hora passava alguém e pegava um panfleto e um formulário. Por alguns instantes ele parou e imaginou como seria fantástico viajar para um lugar daqueles. A sensação de deslizar na neve, o clima, as pessoas, o lugar, devia ser algo incomparável. Mas logo caiu a ficha e o jovem se deu conta do quão longe aquela viagem estava de sua realidade. Por causa desses pensamentos, Fabio, sem perceber, acabou passando com a cara fechada pela mesa de Marine. Ao notar a expressão no rosto do jovem, a menina não se conteve. – Oi. Tá interessado em ir pro Chile? – perguntou Marine em tom de deboche. – Isso é um convite? Porque se você pagar pra mim eu vou! – respondeu Fabio sem titubear. – Por acaso eu tenho cara de Legião da Boa Vontade? – gargalhou a jovem. – Nem sei por que te perguntei se você queria ir. Só de olhar pra essas roupas dá pra ver que você não tem aonde cair morto. – Sua patricinha esnobe! Nunca te ensinaram que ninguém deve julgar as pessoas pelas roupas? – esbravejou Fabio e continuou: − Você se acha grande coisa porque seus pais bancam todos seus caprichos? Você é ridícula, garota! – Quem você pensa que é pra falar assim comigo? – disse Marine se colocando de pé com o indicador apontado pra Fabio. – Você não passa de um bolsista que estuda aqui de favor! – As palavras duras do rapaz fizeram com que ela perdesse a postura, gerando uma reação ainda mais agressiva por parte dela. A discussão acalorada começou a atrair espectadores no corredor, e antes que Fabio pudesse responder à altura e fizesse com que os ânimos se exaltassem ainda mais, o professor Jair chegou para intervir, afastando o garoto da confusão. – Fabinho, o que deu em você? Eu sei que você não é disso! – disse o professor. – Ah, professor! Tem coisas que a gente não aguenta! Essa garota tem tudo o que quer. Por que ela tinha que me provocar? Foi mal, mas não deu pra aguentar – justificou Fabio. – Eu até entendo a sua situação, mas o corredor principal não é lugar pra isso. 19

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Ao mesmo tempo, Marine estava sendo amparada por suas amigas, que haviam ficado horrorizadas com a situação. – Amiga, não tô acreditando que aquele abusado fez isso com você! – disse Luciana, colocando pilha. – Eu, no seu lugar, falava com a direção da escola. Alguém tem que pôr ele no seu devido lugar! – É verdade, Marine! – concordou Jéssica. – Mas acho que antes você devia falar com seu primo. Afinal, problemas entre estudantes é a praia dele. – Eu não sei, meninas... Eu tô muito abalada com tudo o que aconteceu. Quando estiver um pouco mais calma eu tomo uma decisão. – dramatizou a jovem. – Tudo bem, então. Você sabe que pode contar com a gente pra qualquer coisa – consolou Jéssica. – Ai... Brigada, amiga! As meninas acompanharam Marine até a mesa em que estavam os formulários. A jovem pegou todos os panfletos e as autorizações para guardá-los em seu fichário da Pucca. Logo ela se animou quando percebeu que já havia distribuído quase metade das autorizações. Com certeza, ela bateria o recorde do ano anterior, quando conseguira fechar a viagem em menos de uma semana.

 No dia seguinte, após uma cansativa aula de álgebra, tudo o que Fabio queria era jogar conversa fora com os amigos. – Claro que ele é capitão do time do Celae. O time é escolhido pelo grêmio. E quem por acaso é o presidente? – Ah, mas mesmo assim ele joga bem. – Fala sério, cara! Nosso time podia acabar com o dele se tivéssemos uma chance. – Será que eu ouvi direito? As duas mocinhas aí estão pensando que podem vencer o meu time? Foi isso mesmo que eu entendi? – disse Luciano em um tom tão debochado que era difícil não ficar nervoso. – Não, cara. A gente só estava jogando conversa fora, não é, Fabio? – falou Poubel querendo evitar confusão. 20

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– Claro que não! É isso mesmo que você escutou! Você se acha o tal, mas só faz parte do time do Celae porque coincidentemente você é o presidente do grêmio! Assim é fácil! Basta você escalar a si próprio! – Fabio só queria desabafar, e por isso falou em tom furioso. Ele já estava sufocado com toda arrogância de Luciano. Fazia anos que aturava isso. – Pois você acha que é fácil? Muito bem, pé-rapado. Aceito o desafio! Pode juntar seus amiguinhos porque na sexta-feira nós vamos jogar no campo principal. Aí eu quero ver essa tua pose – Luciano disse, com um sorriso nos lábios, enquanto cutucava o peito de Fabio com o indicador. – Não encosta a mão em mim, seu playboy! – falou Fabio furioso enquanto tirava o dedo de seu tórax. – Qual foi, cara? Tá maluco? Perdeu a noção do perigo? Quer apanhar aqui na frente da escola? – provocou Luciano em tom irônico e intimidador. – Não esquece! Sexta-feira, após a aula. Seu time contra o meu. Vai ser um bom jogo-treino pra gente! O rapaz já estava indo embora quando se lembrou do porquê de ter procurado Fabio: – Ah! Antes que eu me esqueça! Consegui uma reconciliação com minha prima. Aparece na minha sala depois da aula. Você só precisa se desculpar com ela. – Luciano sorriu ironicamente antes de ir embora. – Cara, o que você foi fazer? Ele vai acabar com a nossa raça no campo! – Poubel falou preocupado com sua integridade física, porque conhecia bem a fama de jogador violento de Luciano. – Amigo, eu já tô por aqui com ele. Não suporto esse cara! Não sei o que a Cecília viu nele! – Você quer dizer: não sabe o que ela viu nele fora o carrão, a mansão e toda a grana. – Poubel não devia ter dito isto. Ele sabia o quanto seu amigo era apaixonado por Cecília, mas agora era tarde para voltar atrás. – Ela não é mercenária! – esbravejou Fabio. – Não quero nem entrar nesse tipo de discussão com você. Vamos nos focar na sexta. Temos que formar nosso time. Até agora, certo mesmo, tem apenas eu, você e Guilherme. Precisamos de pelo menos mais quatro pessoas e uma delas tem que saber agarrar. 21

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– Acho que eu tenho o nosso goleiro, só que vai ser um pouco difícil de convencê-lo. – Se existe alguém capaz de convencer as pessoas, essa pessoa é você, Poubel – disse Fabio, apelando para a vaidade do amigo. – Tá maneiro. Eu vou ver o que posso fazer e te dou a resposta no final do dia. Os amigos se despediram tocando os punhos e cada um foi para um lado.

 Luciano estava possesso. Não podia dar a Fabio o gostinho de vê-lo com raiva, mas com certeza aquela ousadia não ficaria barata. Aquele moleque ia pagar muito caro! O arrogante presidente do grêmio estudantil já tinha uma ideia do que fazer para vingar o orgulho ferido. Ele foi atrás de Zacarias, o irmão mais velho de Ana Clara. – Fala, capetinha. Tranquilidade? – Tranquilo, parceiro! Já te disse pra não me chamar assim aqui. Você sabe que a Cecília fica bolada, não é? – Pô, cara... Foi mal. É a força do hábito. Sabe como é. – Eu tô ligado. Cara, eu te chamei aqui porque arranjei um jogo contra. – Ih! Show! E quem vai ser a vítima dessa vez? – Ah, vai ser contra o time daquele vacilão do Fabio. – Quem? – Aquele otário que vive cheio de gracinha pra cima da minha mulher, e que sempre perde pra mim em tudo – disse Luciano cheio de autoridade! – Ah, tá! E qual vai ser? Ganhar do time daquele mané vai ser molinho pra gente! O que cê tá armando? – Por enquanto, nada. Só quero machucar ele um pouquinho. – Luciano não conseguiu disfarçar o sorriso na voz. – Mas você sabe como a Cê é... Se ela vê o jogo, vai achar que eu estou sendo muito violento. – É verdade. Tua mina é muito certinha, cara. Como você aguenta? 22

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– Eu dou meu jeito. Mas isso não vem ao caso agora. A parada é a seguinte: sua irmã é a melhor amiga da Cê, certo? – Você sabe que é. – Então, Zac. Quero que você dê um jeito pra elas irem a algum lugar longe na hora do jogo. Assim Cecília não vai ver nossa partida e eu vou poder escorraçar aquele babaca. – Meu brother, considere feito! – disse Zacarias enquanto dava um sonoro aperto de mão em Luciano. Após a aula, o arrogante rapaz aguardava seu desafeto na sala do grêmio. Sua prima havia chegado há pouco tempo e já estava impaciente. Ela se encontrava sentada em uma cadeira de frente para ele. – Ai, primo... Já tô cansada de esperar – reclamou Marine com uma voz irritante. – Garota, não tem nem dez minutos que você chegou! – respondeu o rapaz rispidamente. Antes que a jovem pudesse resmungar algo, eles ouviram três batidas na porta. – Entre! – os dois falaram ao mesmo tempo. Para a surpresa de ambos, quem abriu a porta foi um outro desafeto dele, o professor Jair, o responsável pela indicação do aluno que discursaria na formatura. Fabio entrou logo atrás dele. Luciano logo fechou a cara. Pelo visto a “conciliação” não seria do jeito que ele planejava. – Por favor, sentem-se. Todos sabem por que estamos aqui. Este rapaz agrediu verbalmente esta inocente jovem. No intuito de evitarmos manchas em seu histórico escolar e envolver desnecessariamente a diretoria, vamos tentar esta conciliação, com um simples pedido de desculpas da parte acusada – explicou Luciano. – Meu caro aluno, eu devo discordar no que diz respeito à acusação – interferiu Jair. − Pelo que fiquei sabendo, ambos os jovens se agrediram verbalmente. Sendo assim, o pedido de desculpas tem que ser mútuo. Não concorda? – Bem, professor... Com todo respeito, não foi bem isso que aconteceu. Esta mocinha aqui foi insultada quando estava apenas divulgando uma viagem de férias pela qual ela é responsável por organizar. 23

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– Pois bem, acho melhor nós deixarmos que cada um deles conte sua versão dos fatos antes de tomarmos qualquer decisão – retrucou o professor. Após os dois contarem detalhadamente suas histórias, ficou claro que cada um puxava sardinha para o seu lado, fazendo-se de vítima e pintando o outro como vilão. Seguiu-se um curto período de silêncio, que logo foi quebrado: – Meus caros, eu acho que estamos perdendo nosso tempo aqui. É óbvio que ela não vai se desculpar comigo e vice-versa. Eu me recuso a pedir desculpas pela minha honestidade. Tudo o que fiz foi dizer o que penso. Eu prefiro ser odiado por ser sincero a cativar pessoas com mentiras! – defendeu-se Fabio para, logo em seguida, retirar-se do recinto. – Eu não tô acreditando no que acabei de ouvir! – exclamou Marine indignada. − Eu vou agora mesmo falar com o diretor! Isso foi um ultraje! Eu vim aqui pra receber um pedido de desculpas e fui ainda mais destratada! – Pro seu próprio bem, não envolva a direção. Do meu ponto de vista ambos estão errados. Porém, você foi mais cruel discriminando-o por ter uma situação financeira abaixo da sua. Diga-me, sinceramente, do lado de quem você acha que a instituição vai ficar? Do brilhante aluno a quem eles deram uma bolsa integral, ou da linda estudante que também é conhecida por um passado de desavenças? Agora, com licença, que vou me retirar, pois tenho coisas mais importantes pra fazer. Após Jair se retirar, o clima ficou extremamente pesado na pequena sala. Nada havia ocorrido como Luciano tramara. Sua intenção desde o começo era humilhar Fabio, fazendo-o implorar pelo perdão de Marine. Mas, ao contrário do que ele imaginara, o rapaz, além de não se desculpar, saiu de cabeça erguida. – Primo, eu não tô acreditando que isso vai ficar assim! – disse a jovem indignada. Aquela tinha sido uma das poucas vezes em que ela não havia conseguido impor sua “razão”. 24

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– Ganha-se umas, perde-se outras... Mas não se preocupe. Sugiro que você assista ao jogo de sexta. Garanto que até você, que não liga pra futebol, vai gostar. – Sorriu Luciano.

 Faltava apenas um dia para o jogo contra o time do grêmio. Fabio estava apreensivo porque Poubel ainda não tinha convencido Cássio a agarrar pelo seu time. Todos sabiam que o jogo seria uma covardia, afinal, além de ter um time forte, qualquer um que apitasse a partida acabaria favorecendo o time de Luciano. Para piorar a situação, seu melhor amigo, o Guilherme, tinha faltado, e Fabio já não tinha mais certeza se poderia contar com ele na sexta-feira. Mas ele não podia chamar outra pessoa para o lugar dele. Se o Gui aparecesse ficaria muito bolado. Foi quando o rapaz começou a se lembrar há quanto tempo eles se conheciam. Eles eram apenas crianças, que eram levadas à missa por suas famílias. Era um belo domingo e os dois tinham se comportado mal durante a cerimônia. Após seu término, foram repreendidos pelo padre Severino. Esta bronca conjunta fez com que os pais de ambos acabassem se conhecendo e surgiu uma amizade entre Jorge, o pai de Fabio, e Henrique, o pai de Guilherme. Os garotos não ficaram para trás e, a exemplo de seus pais, também ficaram amigos. A amizade dos dois foi se fortalecendo conforme o tempo passava. Os encontros foram acontecendo em outros locais, até porque eles moravam bem perto. Fabio passou a frequentar a casa de Guilherme e vice-versa. Jorge passava muito tempo trabalhando na empresa de ônibus e como sua mãe Cândida morava com deles, era ela quem cuidava de Fabio na maior parte do tempo. O que Fabio mais gostava quando estava na casa do amigo era do jeito atencioso de Sonia, sua mãe. Afinal, para quem cresceu a vida toda sem uma mãe, conhecer uma mãe como a de Guilherme era algo surreal. Tia Soninha, como ele a chamava, era uma supermãe: carinhosa, atenciosa, dedicada e criativa, ela sempre encontrava novas maneiras de divertir e agradar aos meninos. 25

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