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Matheus Peleteiro

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Coleテァテ」o TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Copyright © 2015 by Matheus Peleteiro Coordenação Editorial Nair Ferraz Diagramação Luís Pereira Capa Dimitry Uziel Preparação de texto Ana Lúcia Neiva Revisão Luiz Alberto Galdini

Texto adequado às normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Peleteiro, Matheus Mundo cão / Matheus Peleteiro. ‑­ ­‑ Barueri, SP: Novo Século Editora, 2015. ­‑­‑ (Talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 15­‑00050

CDD­‑869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2015 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. Alameda Araguaia, 2190 – 11º andar – CJ 1111 CEP 06455­‑000 – Barueri – SP Tel. (11) 3699­‑7107 – Fax (11) 3699­‑7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Dedicatória Dedicado à memória do meu pai, que não pôde conviver comigo por muito tempo, mas sei que, se tivesse convivido, teria feito seu melhor, e a minha mãe, que exerceu o papel de mãe-pai de forma divina.

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Agradecimentos É extensa a lista de agradecimentos para meu primeiro livro. Primeiramente, gostaria de agradecer a minha mãe, Leonildes Peleteiro, por me proporcionar tudo de melhor da melhor forma para minha formação, através de apoios e ideais, e por ser para mim um exemplo de batalha. A minha namorada, Amanda Quaresma, por estar sempre ao meu lado, me incentivando e poetizando meus dias. Ao meu tio, Renato Peleteiro; e a minhas tias, Ivone Peleteiro, Maria da Paixao, Luzi e Deise Rocha por terem desempenhado papel importante na minha formação, também sempre me apoiando. Gostaria de agradecer ao meu amigo, Rodrigo Santos, pelas boas discussões sobre existencialismo. Ao João Regis pela força, sempre; e ao Aleff Ribeiro, por manter em mim a esperança de não ser o último escritor deste genêro da nossa geração e a fé de que seremos grandes, ou ao menos, morreremos tentando. As minhas amigas,Vanessa e Marianna Miranda, Thaís Farias e Clara Terencio, por terem dito “Vá, siga em frente” nos momentos de dúvida.

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Gostaria de agradecer também, pessoas de vitais importâncias nas minhas ideias e na minha escrita; o Pedro Pondé e o Gabriel O Pensador, ou melhor, Gabriel Contino, por me provocarem reflexões sobre tudo, desde pequeno, sempre questionando e evocando pensamentos positivos para romper os tabus e o preconceito que nos cerca, por me levarem ao mundo da lua, e me fazerem provar a carne dos deuses; Ao velho Bukowski, por ter deixado ao mundo a oportunidade de ler quase toda sua obra, e com isso, me fomentando a vontade de tentar deixar minha marca também. E por fim, gostaria também, de agradecer ao selo Novos Talentos da Literatura por ter me apoiado, e levado em frente a ideia.

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“Se você for tentar, vá até o fim. Caso contrário, nem comece.” Charles Bukowski

“Eu vejo um horizonte trêmulo Tenho os olhos úmidos, Eu posso estar completamente enganado, Posso estar correndo pro lado errado Mas ‘A dúvida é o preço da pureza’ E é inútil ter certeza Eu vejo as placas dizendo ‘Não corra’ ‘Não morra’, ‘Não fume’ Eu vejo as placas cortando o horizonte, Elas parecem facas, de dois gumes…” Humberto Gessinger

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“Eu teria que fazer o que acredito. Eu teria que viver o que sou. Eu teria que fazer o melhor que posso com tudo que tenho. (…) Para que as pessoas soubessem que eu fiz, apesar da minha deficiência. (…) O resultado, eu conseguiria. (…) Porque eles entenderiam que tudo que fiz veio da pura vontade de viver. (…) Mesmo que eu moresse tentando. Sou apenas um ser humano como você, tentando encontrar uma saída. Sou apenas um homem com uma incerteza do tamanho do universo tentando encontrar um motivo para continuar vivendo. E o meu direito, o meu único direito, será tentar. Isso, nunca, ninguém poderia tirar de mim.” Nick Farewell

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Prólogo Era uma noite qualquer, ou ao menos era para ser. Passarinhos dormiam, a lua iluminava a cidade com seu brilho e eu estava no quarto, deitado na minha doce cama. Aquela noite tinha tudo para ser mais uma, mas se tornou a mais marcante na minha vida por conta desse inusitado inconveniente que ocorrera. Convenhamos, como é desagradável estar num sono profundo, quase numa hibernação, e de repente acordar. Acordar com balas invadindo sua janela às três e meia da madrugada. Imagine só! Eu? Estava dormindo, tentando sonhar.1 Os filhos da puta não sabem mais respeitar o sono de um cidadão possuidor de seus direitos? Jesus Cristo! Acordo aos pulos, ainda grogue de sono. Sigo me esforçando para não tropeçar nos meus passos e, ainda assim, cambaleio. Estava tão assustado quanto qualquer homem quando o zumbido de um pernilongo lhe interrompe o sono, penetrando em seu ouvido numa madrugada silenciosa. Retiro bruscamente minha cabeça do meu confortável travesseiro e troco pela segurança da parede da sala e seus ti1. Referência à música Palavras Repetidas, do rapper Gabriel O Pensador.

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jolos não rebocados. Mais uma vez estufo o peito, cheio de orgulho da minha querida pátria. Não, não sou nenhum ufanista. Um tanto irônico, talvez. E, embora muitos não saibam, ou fingem não saber, ou não queiram ver, Salvador é, há algum tempo, uma das mais violentas cidades do Brasil. E é aqui onde vivo. O que não quer dizer que o resto das capitais também não seja. Mas aqui a segurança está ameaçada e amedrontada. A polícia teme a bandidagem que ataca com unhas e dentes. A partir das vinte e duas a cidade se transforma numa terra de ninguém e, em alguns casos, em determinados locais, acontece até mais cedo. Tudo isso pode parecer um grande clichê, mas me parece relevante para que essa história seja contada. Afinal, preciso mostrar o porquê da minha impressão, a qual grande parte da população me parece deplorável. Muitas vezes é difícil distinguir o que sai das bocas das pessoas do que sai do rabo de um cavalo. As atitudes têm um odor característico, que se podem confundir com o de um grande saco de merda. Enfim, enquanto dormia, sonhava que vivia uma digníssima vida, detentora de luxo e tranquilidade. Sendo eu, um escritor de razoável prestígio na sociedade. Morava sozinho numa casa pequena e sossegada, em frente à praia. Era uma rotina mesmo de se encontrar em sonhos, uma rotina nada estressante. No meu sonho podia facilmente sustentar cem vadias, loiras, ruivas ou negras. Podia lotar a casa de strippers para assistir a um jogo do Barcelona com amigos, ou até imitar um belo episódio de Californication. Essas eram minhas tão sonhadas fantasias que foram interrompidas quando aquele maldito estrondo infernal provocou a retirada do meu precioso rabo da minha confortável

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cama. Porra, que ato mais desumano! Nunca digeri aquele incidente. Ainda nem era meio-dia e estampidos já me faziam levantar atordoado. Sim, atordoado! Afinal, ainda nem era segunda-feira. Chega de descrições sobre esse fato. Já não me restam adjetivos para classificá-lo, e vocês já devem estar cansados. Eu também estaria. Mas preciso confessar a grande importância desse ocorrido em minha vida. Pois foi nesse dia que o caos foi manifestado nela. Quer dizer, quando nasci ele já era presente. Deixe-me explicar-me melhor. Foi nesse dia que minha alma rugiu, dia que ganhei um pouco de valentia. Foi nesse dia que a minha vida se manifestou diante do caos. Fui conferir como meus avós estavam. Felizmente estavam bem, ainda que escondidos debaixo do colchão. Choravam e tremiam. Ainda estavam quase petrificados do susto que haviam levado. Depois fui para cozinha. Enfim, despertei. Após acordar, me peguei com uma vontade estranha de escrever um romance, mas não queria que fosse mais um daqueles romances melosos, melancólicos e sonhadores, como sonhava no momento em que fui acordado. Queria escrever um romance que pudesse fugir de utopias, ou ao menos que me parecesse real. Um romance com relações profundas e efêmeras ao mesmo tempo. Sem ocultar a parte sórdida disso tudo. Um romance que eu pudesse mergulhar e me sentir imerso, sendo ele objetivo, cru e sem lenga-lenga. Afinal, o mundo não é uma maravilha. O mundo é muito pior. Ele não é uma caixinha de surpresas. O mundo é ação, reação e lógica. Ele não vai pegar leve na hora de reagir, afinal, não é completamente belo, devemos saber disso. O mundo é um cão raivoso prestes a lhe devorar.

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E vocĂŞ deve conquistar uma parte dele antes que seja tarde demais e ele lhe tenha engolido por inteiro.

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1 Passaram-se algumas horas e os sonidos provocados pelo tiroteio finalmente cessaram. Saí para ver o que ocorrera. Havia dois homens baleados. Dois jovens; sonhos despedaçados, corações que não batem mais1, como queira chamar. Um deles era o Feijó, tão magro que seria possível estudar a complexidade óssea do corpo humano apenas analisando-o. Ainda assim, pelo que me lembro dele, não deixava de ser sorridente por um momento sequer. Era mesmo alegre, independentemente das circunstâncias. Como todo brasileiro, o Feijó sonhava em se tornar um grande jogador de futebol. Morava numa rua atrás da minha. O que eu tenho em comum com ele? Estudamos no mesmo colégio. Porém, ele tinha repetido a sétima série duas vezes e acabou não sendo da minha turma durante todo o colegial. O outro falecido provavelmente era algum “x9” inimigo do tráfico da região. Morador de outro bairro, outra favela, eu nunca soube dizer com precisão. Era negro, magro, usava 1. Referência à música Pra onde vai?, do rapper Gabriel O Pensador.

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longas correntes de prata, um boné florescente e uma soqueira na mão direita. Não importa. Para nós, só morreu o Feijó. E, se mesmo o Feijó, morador do bairro, não nos representou uma grande perda, imagina só o outro coitado. Ele foi apenas mais um número. Para nós, um bônus na estatística. Coisas assim acontecem todos os dias. Na televisão chamam de chacina. Aqui, faxina. Logo, uma senhora com óculos bifocais quebrados, com prováveis cinquenta e cinco anos, mas que poderia facilmente passar por setenta por conta da proximidade entre seios e umbigo, apareceu. – O que aconteceu? Meu neto está bem? Quero ver meu neto! – Quem é seu neto, senhora? – eu disse, tentando ser simpático. – É o Ricardo, ele ainda não voltou. – Que Ricardo? – Vocês o chamam de Feijó! Quero ver meu neto, cadê meu neto? – Feijó? – não soube o que falar. Apenas balancei a cabeça negativamente. Eu me peguei com uma leve tristeza naquele momento. – Sinto muito, senhora. Acho melhor que volte para casa, as notícias não são boas – disse um amigo do Feijó, abraçando-a. Ela se desesperou de repente, começou a soluçar, depois a tremer, e então parecia estar prestes a infartar. Então, em apenas um minuto que me virei para olhar o céu, apareceram muitos outros velhos para consolá-la. Velhos que antes estavam a espiar o ocorrido, curiosos nas suas janelas. Aproveitei e saí discretamente daquele ambiente angustiante.

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Segui perambulando. O destino não me importava. Só queria andar sem direção, eu nunca fui um cara de sorte2. Estava mesmo preocupado, mas não com a morte do Feijó – com isso tive de me conformar rapidamente. O problema em questão era estar desempregado. A situação estava cada vez mais preocupante no meu talvez querido, pobre e rico Nordeste. Oh, Deus, por que tive de nascer na pior parte? Como ascender na sociedade estando do lado de baixo? Gostaria de ter nascido já com posse de uma propriedade digna, ou talvez de um apartamento num arranha-céu. Mas, como de praxe, a cidade não para, a cidade só cresce, o de cima sobe e o debaixo desce3. Se ao menos o dinheiro fosse bem distribuído não estaríamos tão fodidos assim. Ao menos na teoria, pois na prática manda quem pode, obedece quem tem juízo4. E quem pode nunca está do lado certo. Juízo? Não é muito comum por aqui. Caminhei pelas redondezas e voltei para casa. Estava esgotado. Buscava reencontrar a calma. Liguei o som do meu avô e ouvi um pouco de Engenheiros do Hawaii para tentar esfriar a cabeça. Eles me fazem ver outro lado da existência, com uma vida bela, uma vida ‘real’. Fazem-me trocar de canal.5 Mas preciso voltar para realidade, não se vive de fantasia nem de canções, ou talvez se viva, quem sabe. Aqui na Bahia normalmente não predomina nas favelas a existência de casas construídas em morros bem definidos. Pelo contrário! A maioria delas são levantadas em buracos causados pela erosão que acabam sendo “bem” aproveitados. 2. Referência à música Um Cara de Sorte, da banda Detonautas Roque Clube. 3. Referência à música A Cidade, da banda Nação Zumbi. 4. Ditado popular. 5. Referência à música Vida Real, da banda Engenheiros do Hawaii.

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Vivo na favela Roda Viva, que recebeu esse nome por podermos, daqui de dentro, avistar uma velha roda gigante enferrujada num parque antigo e abandonado. Roda que, às vezes, por algum motivo desconhecido emite um ruído esquisito. Não se sabe se é por conta de algum defeito, ferrugem, ou até por alguma possível assombração. Provavelmente algum bêbado deve tê-la chamado assim e todos acabaram aceitando. A ideia de assombração é a que mais me provoca, sempre desejei que existissem fantasmas. A Roda Viva é como um submundo. Grosseiramente, nós, que nela vivemos, podemos dizer que pertencemos a outra civilização, precária e mais forte. Batizada com os anticorpos da vida. Aqui existe uma diferente manifestação do direito, se é que se pode dizer que temos direitos. Na Roda Viva existem outros costumes, outros ideais (ou talvez exista apenas a ausência deles), outros anseios e lamentavelmente também temos, na nossa juventude, sonhos transviados. Rumo ao fracasso. Sendo a principal meta para os jovens o sonho do tráfico de drogas e armas. Os moleques daqui não almejam ser doutores como o padrão social induz. Os moleques daqui trocam de pentes antes de trocar os dentes6. É majoritária a vontade de se tornar traficante de drogas. São vidrados nisso. Acreditam que com isso irão obter dinheiro fácil e levar uma vida burguesa no habitat da plebe, com roupas de grifes que estejam na mídia. Grife moldada por conta de algum ídolo momentâneo do futebol, da música, do tráfico ou da novela (o que é um prato cheio para publicitários). Eles acreditam que assim poderão comer as mulheres que quiserem em seu meio. Alguns poucos se livram

6. Referência à música Munição na Mamadeira, da banda Medulla.

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desse pensamento. Mas, infelizmente, para cada cabeça plantada, existem mil ervas daninhas7. Ainda que alguns se livrem, todos os moleques da Roda Viva têm ou já tiveram esse sonho. Felizes e vitoriosos os pais que conseguiram desvirtuar os filhos dessa meta. Vendo o Marcola adquirir poder e o bairro inteiro aos seus pés, chegaram à conclusão de que ser o dono da boca é sinônimo de ser bem-sucedido e respeitado. Ah, sim, perdoem-me por não mencionar. No momento quem manda na Roda Viva é o Marcola, (muitos o chamam assim apenas para puxar o saco. Para mim, ele é só o Marcos). Marcos, caucasiano, barbudo e possuidor de uma barriga saliente, ajuda muito meus avós e me trata estranhamente muito bem. Nunca entendi essa diferenciação. Talvez ele só trate mal quem não lhe for conveniente. Melhor não abusar da sorte. Que seja, não quero essa vida para mim, nunca quis. Sempre me senti o ignorante contra a maré. O que não quer dizer que nunca tenha cogitado entrar para essa vida. Até pensei. Mas os pontos negativos me pareceram mais fortes. Afinal, comumente, quando segue-se esse caminho, não se passa dos vinte e cinco. O Marcos deve agradecer por ter chegado aos quarenta. Alguns devem mesmo carregar a sorte no peito, nunca entenderei como essas coisas funcionam. Deus, por que confundir o homem? Por que nos dar poder? Mas não é isso que procuro entender. Na verdade, estou procurando me entender. E, enquanto procuro me entender, temo que esteja tornando minha história chata e monótona. Mas a real é que acho que nem sei quem sou. Não procuraria me descrever

7. Referência à poesia musicada Um Grito, do artista Pedro Pondé.

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caso não fosse essencial para que a história seguisse um rumo. O perpétuo rumo para encontrar o lugar ao qual pertenço. Enfim, já é hora de me apresentar. Eu me chamo Pedro Contino. Deus não parece ter simpatizado comigo. Acho que fui entregue a uma escrota cegonha que, mesmo tendo o mundo inteiro para me presentear, justamente teve de me enviar para a Roda Viva. Queria encontrá-la de novo para depená-la inteirinha e depois jogá-la em algum rio para piranhas a comerem regada a algum molho saboroso. Bem, ao menos não foi num local de guerrilha na África. Sei que o Brasil é repleto de maravilhas. Maravilhas essas que infelizmente ainda não tive a oportunidade de conhecer. Talvez nunca terei, mas torço por isso. Ah, realmente torço. A esperança é a última que morre. Também sei que quem explora essas maravilhas brasileiras fode com tudo.Vide a Amazônia e os filhos da puta que a destroem. Fodem as plantas, fodem os recursos, fodem os velhos, fodem o ar, as velhas, fodem os índios, fodem os animais, fodem o mundo! Fodem as esposas de seus colegas e até as próprias esposas acabam fodidas, sem pretensões e sem sorrisos. Ou talvez suas mulheres sejam demasiadas frias para que isso interfira em seus sentimentos. Assim como a maioria dos brasileiros, nasci sendo ninguém, definitivamente na merda. Para completar, não almejo nada, não sei o que quero, nem do que gosto. Eu realmente só sei do que não gosto8. O que é um problema, pois quem nasce sendo ninguém, sabe muito bem que o medo de nunca se tornar alguém irá acompanhá-lo pelo resto da vida.

8. Referência à música Teatro dos Vampiros, da banda Legião Urbana.

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Talvez tudo isso possa parecer uma tremenda autodevoção. Temo que pensem isso. Logo, gostaria de ressaltar que tenho plena consciência que, de fato, no final tudo se resume a minhas escolhas – essa é minha única certeza. Enquanto tiver escolhas, poderei tentar. Mas ter escolhas não é assim tão simples como parece. Gostaria de oportunidades e instrução, mas como almejar algo? Como irei esperar ter prestígio, futuro e espaço se não foi me dado acesso a uma educação pública de qualidade? Ao menos queria uma concorrência leal. Afinal, não sou beneficiado por nada. Não sei quem é meu pai, e meus avós dizem que é melhor nem saber. Minha mãe faleceu no parto. Desde então moro com meus avós Maria e Raimundo. Eles me criaram e me sustentam. Não tenho plano de saúde nem cartão de vacina. Na verdade, onde vivemos não temos nem certeza se somos gente de verdade. O que me faz questionar. Por que mesmo vivendo no País que arrecada o maior número de tributações do mundo, o Estado não cumpre suas obrigações? Nem a educação e muito menos a segurança. Quando digo segurança me refiro à segurança pública. Pois segurança o bairro tem até demais. Aliás, podemos nos dar ao luxo de chamar de segurança particular, ainda que não legalizada e com suas artimanhas. Eu tinha tudo para ser mais um babaca, ignorante e acomodado, como grande parte da população do Brasil (pelo que me parece). Bem, talvez até seja um babaca acomodado. Mas, para minha sorte, tive a felicidade de ter um vizinho que todos deveriam ter: Luís Guilherme. O cara que veio a ser meu mestre. Um homem de quarenta e dois anos, alto, de cabelo curto (quase máquina zero) e uma grande barba. O que podia facil-

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mente relacioná-lo com a imagem padrão que passavam sobre os comunistas na época da ditadura. Alto, branco, barbudo, horripilante. Só não me parecia ser um comedor de criancinhas9. O Luís era professor de Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Financeiramente fracassado, tem problemas pulmonares e bebe a maior parte do tempo para afogar suas mágoas. A outra parte do tempo que lhe resta dedica a tocar guitarra e a ler livros. Sua afinidade com a leitura me ajudou bastante, me abrindo um grande horizonte. E, com isso, também podemos dizer que salvou minha vida. Por ser vizinho, ele era um dos que tinha mais contato comigo. Ele parecia ser o mais diferente do bairro. Eu o achava interessante – era-me comum ter interesse por estranhos e loucos, gostava de personalidades mais que tudo. Poderia passar horas apenas analisando pessoas em ônibus, ruas, praias ou até no Pelourinho. Era divertido. Existem diversos loucos fantásticos e poucos homens comuns fantásticos. É daí que surgem os melhores quadros, as melhores poesias, as melhores ideias, dos loucos. Eles focam em algo com tanta facilidade que fica difícil não surgir algo extraordinário depois disso. Devido a sua grande relevância em minha formação, acho válido narrar nossa história desde o primeiro contato. Nunca tinha lhe dirigido a palavra, nada mais que cumprimentos. Até que um dia em que não havia bebido o suficiente para perder a alegria, enquanto saía de casa, ele gritou: – Pedro! – Opa! E aí, vizinho? – E aí, moleque. Já está sabendo ler legal? 9. Boato surgido na época da ditadura para reprimir comunismo.

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– Claro, não sou tão burro assim – respondi imaginando estar aparentando ser mais velho e maduro, sem perceber minha arrogância juvenil. – Vou lhe emprestar uns livros. Vão ajudá-lo a formar algumas ideias legais, entra aí! – Tudo bem. – Me pareceu uma boa ideia. Ao entrar me deparo com uma estante cheia de discos e livros. – Caralho, quantos livros! Você tem uma biblioteca em casa! – constatei. – Quando era professor tinha acesso a livros com facilidades e descontos. Acabei acumulando isso. É o único benefício que o professor tem. – Ah, parece legal. – Você não imagina quanto. Mas, para mim, não. Eu não dei sorte na vida. Dava para perceber que isso o deixava frustrado. Deve ter tido muitas decepções. Tomamos um café. Depois daquele café nunca mais fui o mesmo. Luís me emprestou dois livros: um deles era o clássico Dom Quixote, do Miguel de Cervantes, mostrando-me que sonhos podem ser lindos e perfeitos, mas são apenas sonhos, e depois você percebe que tudo não passa do mesmo saco de bosta. Afinal, tudo acaba uma hora e, quando a casa cai, fraquejar pode ser fatal. Também me emprestou um livro do Charles Bukowski, que veio a se tornar a minha grande inspiração. Autor este que passa a mesma mensagem. Porém, descrevendo uma humanidade fracassada, vivendo uma vida que não nos leva a nada10, cheia de sonhos irreais, homens ralando para serem 10. Referência à música Muros e Grades, da banda Engenheiros do Hawaii.

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belos cidadãos e terem os tão valorizados diplomas, para depois se encaixarem na sociedade e, assim, serem iguais a quase todos os outros. Acarretando suicídios decorrentes de depressões geradas por terem vivido de forma infeliz na maioria das vezes. Fiquei fascinado após a leitura. A verdade nua e crua aos dezoito anos era no mínimo fantástico. Aquele universo aparentava ser dramático e frio demais para mim, um jovem. Mas também parecia perfeito. O choque era necessário. Queria ficar só. Devorar todos os livros que o Luís tinha em casa – principalmente os do Bukowski. Passava dias inteiros lendo página por página. Tão concentrado que me esquecia até de comer. Claro que alguns escritores publicaram um monte de baboseira para otários. Mas precisamos deles para lembrar que nem todo escritor é um merecedor de sua fama, alguns escritores de autoajuda que o digam. Alguns, às vezes, faziam com que eu me sentisse um louco depressivo querendo voltar para minha rédea. Inúmeras vezes questionei se alguns desses escritores não seriam a reencarnação do Rousseau com pouco embasamento. Restando-lhes apenas a sua inocente fé na humanidade, imaginando uma sociedade que não existe, onde não há maldade. Onde há apenas uma sociedade carente, supergentil e caridosa. Escritores escrevem para si, não para os outros. Essa é uma das lições do meu querido e predileto Bukowski. De acordo com ele (ou com o que constatei pelas suas obras), escrever é um prazer individual. Escrever é transcrever em letras e frases sensações, prazeres e desgostos que o mundo lhe passa, devolvendo ao papel na mesma moeda.

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Ele dizia que escrever é se lamentar, e alguns simplesmente se lamentavam melhor que outros. Isso é literatura, não autodevoção! Muitos desses utópicos escritores de autoajuda têm seu fiel público. O que supostamente os torna merecedores de prestígio. Admiro-lhes a paciência, a força de vontade e sobretudo a dedicação – é uma coisa rara no mundo moderno. Estava começando a ter força de vontade. Só me faltava dom e dedicação.

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