Meu conselheiro de luz

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Mila Wander

MEU CONSELHEIRO DE LUZ

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo 2012



Prólogo

A mentira Nunca pensei sobre o que poderia acontecer depois de minha morte. Para onde eu iria? Será que o nada realmente existia, ou será que viveríamos em outra dimensão? Quero dizer, sei que existem várias teorias que tentam explicar o que acontece depois que passamos para o outro lado, mas a verdade é que eu sempre achei tudo isso uma enorme perda de tempo. É difícil pensar em morte quando a vida pulsa vibrante, cheia de glamour e vitalidade. Tudo que é contrário à ideia de realização de planos e desejos parece inimaginável quando se tem muito a almejar e muito a perder. Minha vida, por exemplo, era perfeita demais e tudo que eu gostava de pensar resumia-se a que roupa eu iria vestir quando Kevin me convidasse para sair. Ao fim de cada situação, das mais fáceis às mais difíceis, eu sempre conquistava o que queria. Não que a vida de uma garota de dezessete anos tivesse tantos problemas assim. Na verdade, tudo era muito simples. Eu não era apenas a garota mais popular da escola, não era apenas a mais invejada. Era também a que tinha melhores roupas e lançava moda apenas em pentear meus cabelos de modo diferente em alguma manhã específica. Eu era a garota mais cobiçada entre os rapazes e, além de tudo isso, conseguia me dar bem em todas as disciplinas escolares. Eu não tinha motivo algum para reclamar da minha vida, mas mesmo assim uma simples unha quebrada parecia ser o fim do mundo. 13


De certo modo, eu não apenas era especial, mas sabia que era e, pior ainda, gostava de ser. Algumas pessoas ao meu redor tinham consciência disso e outras não, porém todas elas compactuavam para que este sentimento continuasse inabalável dentro de minhas concepções. Sendo assim, todo o poder que me era fornecido eu utilizava de acordo com as minhas vontades. Devo confessar que nem sempre elas eram nobres. Na realidade, a maioria delas era proveniente de atos egoístas e mesquinhos. A morte para mim era algo inatingível. Não que eu não pudesse alcançá-la, já que a vida me mostrava que nada estava fora do meu alcance, muito pelo contrário, eu acreditava que a morte não teria a coragem e muito menos a insensatez de me encontrar. Principalmente tão cedo. Eu estava enganada. Muito enganada. Em meus dezessete anos de vida, era rainha de mim mesma e de todos aqueles que tinham facilidade em me coroar. Dona de meu próprio nariz e do nariz de muitas garotas que me acompanhavam. Nada nem ninguém poderia me dizer o que eu deveria pensar ou como agir. Mesmo que isso significasse passar por cima das pessoas. E pode ter certeza de que isso foi algo que eu sempre fiz. Desde pequena eu transformava a vida da Carlla, uma garota da escola, em um verdadeiro inferno. Eu a humilhava por ela se vestir de um modo esquisito, por usar seus cabelos horríveis sempre despenteados, cobrindo metade de seu rosto como se ela fosse algum tipo de criatura maligna. Nós éramos tão diferentes! Era um absurdo e uma afronta estar na presença daquela garota digna de pena. Mesmo assim, tudo que eu não conseguia sentir por alguém era pena. Não tive nem um pouco de pena em destratá-la por mais de cinco anos em todos os dias do período letivo. E fosse quem fosse que ficasse do lado dela seria destratado também. 14


Em pouco tempo, muito menos do que se possa imaginar, quase ninguém a notava mais de tão insignificante que era a sua presença. E eu adorava fazer parte disso. Afinal, eu adorava ser eu, Rafaela Satto, a rainha de toda a escola. A pessoa que mandava e desmandava em tudo e em todos. Pode parecer loucura, mas eu achava isso muito importante. Para ser sincera, meu ego inteiro se equilibrava apenas nesse pequeno detalhe. A morte prematura não era algo para pessoas como eu. Com toda certeza, era para pessoas como Carlla. Suas roupas pretas e estranhas já eram referência para o clima fúnebre e azedo que a acompanhava para onde quer que ela fosse. Sua expressão cotidiana era de luto eterno. Eu duvidava que alguém em toda a escola fosse capaz de notar se ela simplesmente sumisse e nunca mais desse as caras. Apesar de tudo isso, muitas coisas me fizeram mudar de ideia de uns tempos para cá. Os acontecimentos podem nos surpreender de uma maneira sem igual. Descobri da pior maneira que ninguém está imune ao decorrer dos fatos. Ninguém passa despercebido pelas forças amargas do destino. Não tem como fugir, não tem para onde correr. Podemos ser donos do nosso hoje, mas não do amanhã. Como muitos costumam dizer e repetir, o mundo gira e tudo muda. E meu mundo realmente girou. Girou tanto que me levou a um lugar totalmente desconhecido. Tão desconhecido e impensado que rompeu todas as minhas estruturas, toda a base que mantinha meu ego elevado. Tudo o que eu conhecia sobre o mundo acabou e se transformou em dúvidas e confusão. Eu demorei, mas finalmente percebi que minha existência havia sido uma grande mentira. Uma mentira construída por mim mesma, que só me fez afundar ainda mais nas trevas e na escuridão. Minha vida foi tomada por erros seguidos de erros. 15


Quando eu finalmente entendi, tudo o que pude sentir se resumia à angústia, culpa e uma tristeza sem limites. Apesar de todos os meus atos errôneos, aprendi que entre a escuridão sempre existe a Luz e esta pode ser encontrada por qualquer um que a desejar profundamente. Eu acabei por encontrar a minha própria Luz, nunca consegui explicar como nem por que, mas a Luz que rege todo o meu ser surgiu clara e absoluta, traduzida em um par de olhos castanhos.

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Capítulo 1

O aviso – Eu não acredito, Rafa! – gritou Daniele. – Você não fez isso! – Ela olhou para mim como se eu tivesse perdido o juízo. Eu já me sentia convencida de que ela estava certa, mas claro que eu não ia deixar isso transparecer. Não era do meu feitio. – Fiz e faço de novo – expliquei, olhando-a como se não estivesse me importando com aquilo. – Se o Kevin acha que eu vou fazer o que ele quer, está muito enganado. – Mas acabar o namoro assim sem mais nem menos... – Daniele abriu bem os olhos. A notícia veio mais como um susto do que como uma fofoca entre amigas. Acho que ela não abriria tanto os olhos se eu dissesse que havia acabado a liquidação da Victoria’s Secret. – Já disse! Ele não vai me fazer ver todos os seus jogos de futebol. Tenho mais o que fazer. Além do mais, você e eu sabemos que nada disso iria dar certo – falei, tentando fingir que estava prestando atenção nas pessoas que passavam da cantina para o pátio da escola em que estudávamos. – Eu e ele somos muito diferentes. E de qualquer forma, eu já o conquistei. Agora irei partir para outra. Daniele apertou seus lábios com força. Eu sabia muito bem que ela estava acostumada a ouvir isso de mim. Afinal eu nunca estava satisfeita com nenhum namorado e nenhum ficante. Simplesmente depois de uma semana tudo ficava extremamente 17


tedioso. O namoro entre mim e Kevin já passava dos dois meses e eu não aguentava mais tanta mesmice. O bom de namorar alguém era a conquista. O desafio. Depois que eu ganhava todas as batalhas, nada mais me interessava. O sol queimava forte e o pátio da escola estava iluminado e lotado de alunos como em todos os intervalos. As pessoas nos cumprimentavam ao passar por nós e iam sentar-se no refeitório que com toda certeza estava servindo comida ruim. Eu sempre levava meu lanche, assim como Daniele, pois não estávamos afim de nos contaminar com tanta porcaria. O fato é que, na verdade, as pessoas só cumprimentavam Daniele porque ela estava comigo. Era o que sempre acontecia, não dava para evitar e sei que, no fundo, Daniele sabia disso. Em geral, ela não parecia achar ruim. Não me leve a mal, Daniele era realmente uma garota muito bonita. Seus cabelos castanhos meio avermelhados eram sensuais e combinavam perfeitamente com seus olhos muito claros. Além do mais, ela era a única garota da escola que tinha senso de moda, assim como eu. Não demorou muito para que nos tornássemos melhores amigas. Nós até jogávamos no mesmo time na escola. Depois de um tempo absorvendo o que eu havia dito, Daniele virou-se e abriu a boca como que para falar algo importante, mas desistiu. Pensou mais um pouco e lembrou-se de algo que eu obviamente havia esquecido. O Baile de Formatura do Ensino Médio. – Com quem você vai ao baile? Tipo assim, se você não vai com o Kevin e se nenhum dos garotos legais não te interessa mais... – falou, diminuindo sua voz gradativamente até que se transformasse num sussurro. – Daniele, você se esqueceu de um detalhe. – Eu disse, pegando em um dos ombros dela e encarando seus olhos felinos. 18


– Eu sou Rafaela Satto, esqueceu? Companhia para o baile não é problema. Qualquer um adoraria ir comigo. – Eu sorri, convicta, para ela e me levantei de nossa mesa. Caminhei tranquilamente em direção aos corredores, ignorando todos os olhares masculinos em minha direção. Um garoto estava sendo jogado numa lata de lixo perto do banheiro feminino. Otário! Enquanto eu andava, fiquei pensando sobre o que Daniele havia dito. Companhia para o baile não era mesmo problema, certo? Com certeza qualquer garoto que eu demonstrasse estar interessada me acompanharia para o baile, mesmo que isso significasse ter que desmarcar com alguma outra garota. E mais ainda, o cara vai achar que está sonhando. Mesmo assim, eu tinha que admitir que meu tempo era muito curto para conquistas elaboradas. O baile era já dali a duas semanas. Finalmente chegaria o dia do Baile de Formatura e eu estaria livre de uma vez por todas do Ensino Médio. O vestibular estava na porta e eu já tinha bolsa de estudos em duas faculdades particulares conceituadas. Porém, eu sabia que não poderia vacilar. Pessoas grandes são pessoas instruídas. Não queria ser um rostinho bonito pelo resto da vida, afinal as rugas um dia iriam aparecer. Eu tinha que estudar mais e levar isso a sério. Foi pensando no vestibular e no fim de semana que teria de passar estudando ao invés de ir às compras ou ir à praia, que a Carlla apareceu bem na minha frente. Sua expressão diante da minha presença era de completo espanto. Seus braços estavam em volta de seu corpo, abraçando a si mesma, como se o clima não estivesse quente o suficiente para aquecê-la. Pela primeira vez na vida, resolvi não fazer nenhum comentário maldoso sobre sua triste figura e fingir que nem estava ali. Assim que decidi sair do seu caminho, ela me fez mudar de ideia, aproximando-se perigosamente até quase beijar meu rosto. 19


O que essa anormal queria comigo? – Retardada! Sai da frente! – gritei, empurrando-a com força. Ela deu alguns passos para trás completamente desequilibrada, mas não chegou a cair. Uma das paredes do corredor serviu-lhe como ponto de apoio. – Sua hora está chegando – Carlla falou, olhando em meus olhos de um modo sinistro. Sua voz saiu rouca e baixinha, como uma bruxa velha e maldosa. Nunca a vi irradiar tanta repulsa daquele jeito. Seu olhar era tão penetrante e seu meio sorriso de sarcasmo me fez lembrar a face de um psicopata que eu havia visto na TV no dia anterior. Seu cabelo escorrido, comprido e extremamente negro jogado sem pudor sobre o seu rosto me fazia lembrar a personagem Samara do filme de terror O chamado. Era constrangedor e ao mesmo tempo horripilante. Olhei ao redor e percebi que estávamos sozinhas no corredor. O sinal para retornar às aulas já havia tocado e todos já deviam ter entrado em suas respectivas salas. – Você está ficando louca, garota. Por que seus pais não a internam num hospício de uma vez por todas? – falei, encarando-a com severidade. Como não obtive resposta e seu semblante não pareceu abalar-se com a minha provocação, dei-lhe as costas e segui até a sala de aula mais próxima. Não queria ficar na presença dela por mais nenhum segundo e aposto o que for que aquele sorrisinho besta ainda estava estampado em seu rosto, pois pude senti-lo queimando minha nuca assim que me virei. Mais tarde, ainda na escola, contei a Daniele o que tinha acontecido. Ela pareceu realmente ter levado a sério o que a idiota havia me dito. Não que eu não tenha ficado assustada, eu não pensei em outra coisa sequer na aula de Matemática inteirinha. Eu não conseguia tirar da minha memória a maneira esquisita 20


que Carlla tinha me olhado. Mas levar o que ela disse a sério era demais para mim! –Você tem que tomar cuidado com essa louca, Rafa. Qualquer dia ela pode fazer algo cruel tipo te sequestrar e te amordaçar com fita adesiva em algum galpão abandonado – disse Daniele, preocupada de verdade. Com certeza ela estava assistindo demais a filmes de ação. – Quero dizer – continuou –, olha as roupas dela, ela deve ser filha do Satã. – Sequestrar? Fala sério, Dan – suspirei. Eu estava ficando cansada dessa historinha. – Essa garota não é satânica. Ela é doida, sempre foi. Além do mais neste fim de semana vou apenas estudar, não tem chance alguma de ela me sequestrar em casa. Daniele pareceu convencida com aquela explicação. Na verdade, eu achava que ela sempre se convencia de tudo que eu dizia. Mas isso não importava naquele momento, o que interessava mesmo era que eu realmente tinha muito que estudar naquele fim de semana. Não ia ficar me preocupando com previsões sinistras de retardadas estilo “Samara”. O que ela podia fazer? Ligar para minha casa e avisar que eu só tinha sete dias de vida? Sair da minha TV e me perseguir? Fala sério!

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