Memórias da lua cheia

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ANDRESSA ANDRIÃO

MEMÓRIAS DA LUA CHEIA

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo 2012

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Capítulo 1

Vida Nova

Era noite, provavelmente madrugada, e a luz da esplendorosa lua cheia iluminava o topo das árvores da floresta. O chão estava úmido, cheio de poças d’água, tornando nítido que há pouco tempo desabou uma forte tempestade. No momento ela havia cessado, deixando apenas alguns últimos pingos gelados que despencavam das folhas sempre que um vento um pouco mais forte passava por ali. Trovões ribombavam não muito longe, demonstrando que a tempestade ainda não estava no fim, apenas havia parado. Era uma questão de tempo até que a lua desaparecesse por trás das espessas nuvens carregadas. Abri meus olhos preguiçosamente ao ser acordada por uma gota gelada. A primeira pergunta que passou pela minha cabeça, logo que minha visão se focalizou, foi: “O que estou fazendo aqui?”. Minha cabeça parecia estranhamente vazia... Tudo parecia também bastante confuso ali dentro, como se tivesse acabado de sair de um teste de oito horas de duração. Senti o chão molhado embaixo de mim e percebi que estava deitada sobre uma grande poça d’água que encharcava toda a roupa que usava — que por acaso não conseguia me lembrar qual era. Levantei devagar e olhei ao redor. A visão daquela floresta escura me trouxe um sentimento desconfortável. Por que será que havia ido parar em um lugar tão assustador no meio da noite? Eu não era tola para arriscar minha vida em uma floresta subtropical noturna. Sabia que nelas havia lobos e outras criaturas que adorariam jantar uma deliciosa carne humana. 8

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Tentei me lembrar do que eu fizera antes de ir parar lá, mas, por mais que vasculhasse a minha mente, não conseguia encontrar um mísero indício do motivo que me levara a dormir em uma poça d’água no meio de uma floresta escura e durante uma noite de lua cheia. Primeira conclusão: eu deveria ser maluca. Talvez gostasse de arriscar minha vida em uma floresta noturna durante uma noite de tempestade. Engraçado estar tentando tirar conclusões sobre mim... Deveria me conhecer muito bem, contudo meu sentimento era de que eu era a de que acabara de conhecer. Para ajudar a minha situação nada agradável, ouvi o uivo estridente de um lobo selvagem seguido de um trovão e uma rajada de vento que despejou um amontoado de água em cima de mim. Estremeci de frio e de medo e todos os pelos de minha pele começaram a se arrepiar. Espirrei alto e tossi algumas vezes, logo ficando com medo de que aquele lobo pudesse ter ouvido os sons. O lobo uivou outra vez e o som ecoou em meus ouvidos, seguido da batida de meu coração, que se acelerava como uma britadeira. Na minha cabeça, era como se aquele lobo estivesse pronto para me atacar. Tudo o que não queria era morrer, mas o que deveria fazer? Tentei me acalmar e comecei a tentativa por falar comigo mesma: — Não se preocupe. Você só está assustada, nada irá acontecer. Acalme-se e pense em como sair daqui e por qual lado você chegou. Engraçado, não conhecia aquela voz... Era uma moça que falara em meu lugar. Aliás, eu não me lembrava de minha voz... Deveria ser o medo. Em situações de pânico algumas pessoas tendem a esquecer informações básicas e eu deveria ser uma delas. Tentei continuar: — Tudo não passa de um complexo de perseguição, pois nenhum lobo está aqui para caçá-la, está me ouvindo? Sim, eu tinha razão: não devia passar de um complexo de perseguição, pois o uivo viera de um ponto remoto... Mas e se outro lobo estivesse ali perto? Levantei de um salto e olhei ao redor, respirando rápido. Agucei minha visão ao extremo para captar qualquer movi9

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mento, mas aparentemente era a única criatura viva daquele território em particular. Eu e um minúsculo inseto luminescente que se escondia em uma fenda no tronco de um pinheiro. Quando já começava a me acalmar pela ausência de barulho e de movimento, ouvi um terceiro uivo e percebi que estava um pouco mais próximo do local onde me encontrava. Concluí que talvez o complexo de perseguição não fosse tão profundo assim e que eu realmente estava em apuros. A melhor coisa que tinha a fazer agora era me lembrar de que floresta era aquela. Forçando um pouco a memória tinha certeza de que lembraria. O importante era me acalmar e pensar devagar. Se esquecesse o pânico, tudo fluiria, como era o costume com pessoas em situação parecida. Ainda assim tinha a ligeira impressão de que nunca havia estado naquele lugar em particular e, por mais que tentasse me lembrar, mais aquilo parecia absurdo. Se nunca estive ali como havia chegado? Segunda conclusão: eu cheguei a um paradoxo. As esperanças ainda não estavam perdidas, só precisava me lembrar que cidade era aquela, isso já ajudaria, mas, de repente, vi que não tinha ideia de nada. O desespero que estivera tentando conter me invadiu completamente. A situação era milhares de vezes pior do que parecia. Sempre que tentava pensar, voltava ao mesmo ponto e meu raciocínio não fluía de forma alguma. Aquele lugar era uma floresta, estava certa daquilo, mas não fazia ideia de que floresta era, ou em que cidade ou país ela ficava. Não tinha como achar uma saída! Uma floresta no meio do nada... Uma floresta perdida. Uma floresta... Fechei os olhos e tentei respirar, mas estava em pânico. — Qual o nome da última vila onde você esteve? — perguntei para mim com aquela voz desconhecida. — Não sei. — Qual o nome do último país no qual você esteve? — tentei novamente. — Não sei. Tudo aquilo parecia informações das quais nunca tivera conhecimento. Se sabia como falar e o nome de tudo o que me circundava, 10

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como não me lembrava em que país estava? Eu sabia inclusive que aquele inseto no tronco da árvore era um vaga-lume! Por que minha própria voz me parecia a de uma estranha? — Por favor, uma última pergunta... Essa você precisa saber, eu imploro — implorei a mim mesma, como se falasse com outra pessoa. — Qual o seu nome? Minha mente não encontrou a resposta. Era como um arquivo em branco. Enfim, percebi o que estava acontecendo. Quem era eu? Não podia acreditar que estava fazendo aquela pergunta sem que estivesse filosofando. Olhei para meus pés e me vi calçando botas pretas, sujas e arranhadas. Parecia que estava com aquele mesmo par de calçados há meses e sequer os lavara. Eu vestia uma saia comprida de tecido quente, mas confortável — apesar de rasgada e suja — até a altura do joelho e de uma cor que não conseguia distinguir muito bem no escuro, mas deveria ser roxa. Usava uma jaqueta preta muito quente, repleta de rasgos e cheia de bolsos; por baixo dela uma camisa de mesma cor e cheia de botões. Coloquei as mãos nos bolsos de minha jaqueta na esperança de encontrar algo interessante e fiquei decepcionada quando encontrei apenas um papel amassado. Para ajudar, ele estava meio úmido assim como todas as minhas roupas. Tirei-o do bolso e o desamassei, deparando-me com um sermão inteiro ilegível e manchado, onde, por sorte, as primeiras frases ainda podiam ser distinguidas. Li-as por baixo da luz do luar:

Sei que pode parecer confuso, mas se estiver lendo isso agora, é porque perdeu sua memória. Saiba que seu nome é Alissa e você... E o resto da mensagem não conseguia decifrar. Tentei entender os borrões pelo contorno das letras que outrora existiram, mas era inútil. Fui tomada por uma súbita onda de desespero e o lobo vol11

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tou a uivar. Por um pensamento positivo, talvez ele estivesse apenas fazendo alguma homenagem à lua cheia, mas não conseguia ser otimista, a hipótese mais aceita era que ele queria avisar toda a alcateia que havia encontrado comida: eu. Sinceramente desejava que fosse a primeira opção e... caso não fosse, pelo menos os lobos ficariam felizes por comer um amontoado de carne fresca. Pelo menos eu achava que era carne fresca, não sabia dizer minha idade, apesar de que pela elasticidade de minha pele era evidente de que era jovem. Por mais que acreditasse que iria morrer, não me deixaria ser uma presa tão fácil. Em meio ao meu medo, descarreguei toda a minha energia em minha perna e desatei a correr para qualquer lado, como se aquilo fosse capaz de me tirar de dentro daquela floresta e de me salvar de meu provável destino. Quem sabe a sorte estivesse ao meu lado na minha “primeira noite de vida”. A cada passo que dava, minha esperança diminuía e a fobia da morte me invadia. Os lobos não paravam de uivar. Os lobos... Em outro momento teria dito que eram criaturas divinas e majestosas, mas agora não se tratavam de nada diferente de criaturas carnívoras e assustadoras. Pelo efeito que aqueles uivos causavam em mim, pressupus que tinha uma grande admiração pelos lobos. A imagem de seus olhos azuis e de seu espírito solitário era perfeita e invejável, entretanto a imagem de seus dentes cheios de sangue e suas feições selvagens me causava o pior medo imaginável. Quanto mais corria, mais ficava ofegante, e mais sentia uma dor perfurando o canto direito de meu corpo. Que sensação estranha era aquela... Também não me lembrava do que era sentir dor assim como não me lembrava do que era feito aquele frio e aquele medo. E a alegria... Eu queria senti-la também, pelo menos uma única vez antes que pudesse morrer, mas ali estava eu, solitária, sem sequer minhas próprias memórias para me consolarem em uma floresta escura, vazia e assustadora. Estava tomada por emoções que nunca havia sentido, nenhuma delas boa. Meus olhos se encheram de lágrimas e decidi que 12

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já era hora de descansar. Fui reduzindo os passos até parar ofegante e me apoiei em uma árvore, olhando à minha volta não vendo nada mais que solidão. Eu seria o cardápio de ouro na mesa de alguma criatura evolutivamente inferior a mim. Talvez se eu pudesse escalar uma árvore... Olhei para todas que haviam por perto, mas eram altas demais e nenhum de seus galhos tornava possível uma escalada. As lágrimas escorreram pelos meus olhos e quis deitar ali e esperar a morte. Para que lutar? Não havia um motivo de verdade para isso... Um grito ecoou dentro de mim e uma força nova preencheu meu corpo. Era como se ela dissesse que havia sim um motivo para lutar e me salvar. Havia algo importante e especial em jogo ali. Respirei fundo, tentando segurar as lágrimas e ser forte. Eu não morreria, pois um sentimento nobre e estranho tomava conta de meu corpo da ponta de meus dedos do pé até o último fio de meu cabelo. Aquele sentimento era muito forte e me fazia sentir alegria, me fazia saber que valia a pena viver e que poderia sorrir... Sim, de repente, eu podia sorrir mesmo que estivesse correndo perigo de vida. Fui capaz de sorrir por um sentimento que não sabia de onde surgira. Talvez fosse louca, apenas isso e nada mais, mas me salvaria por causa daquele sentimento. Por ele, valia a pena viver. Demorou um pouco, mas minha respiração começou a se normalizar, embora minhas pernas estivessem fatigadas. Apesar das forças estarem renovadas, caí sentada no chão, sentindo como se naquele momento aquilo fosse o certo a fazer. Mantive os joelhos dobrados e dei leves socos nas coxas, tentando aliviar a dor. Além do medo e da tristeza, agora estava ainda com mais frio, algo que eu não sentia enquanto estava correndo. Um vento forte trazia uma tempestade e acreditei que talvez os lobos não me encontrassem... Então seria atingida por um raio ou morreria congelada. Fechei meus olhos e encostei a cabeça na árvore atrás de mim, atenta aos mínimos ruídos. A única coisa que ouvia eram as gotas que caíam do alto das copas das árvores, além do vento forte que as balançava e fazia meu ouvido 13

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zumbir. De alguma maneira muito estranha, aqueles barulhos pareciam me deixar mais calma, apesar de não ser nada agradável quando as gotas caíam em minha cabeça ou quando o vento gelado cortava minha pele. Alguns galhos se quebraram no chão, a poucos metros atrás de mim, e percebi instantaneamente que não eram causados pelo som harmonioso do vento. Ergui minha cabeça e dei um salto, levantando-me com rapidez para fitar o que se aproximava. Fora tão cauteloso que sequer notara sua presença até o momento, mesmo que meus ouvidos estivessem em intensa sintonia com a natureza. Não fui capaz de me mover, fiquei paralisada, emboscada contra uma árvore. A adrenalina fez minha frequência cardíaca atingir umas cento e vinte batidas por minuto e um alerta invadiu meu cérebro dizendo: “Fuja imediatamente!”. Apesar de tudo no meu corpo trabalhar para que eu fugisse, continuei parada como se os músculos tivessem sido petrificados. Não era um lobo, era pior... À minha frente vinha caminhando um rapaz que beirava seus dezenove anos, com a fisionomia meio adulta e, ao mesmo tempo, meio adolescente. Seu cabelo era castanho-avermelhado, cor de terra, e descia até o queixo, todo despenteado, repicado, e cheio de galhos e folhas. A franja cobria uma parte de seus olhos, mas ainda assim eles eram nítidos, brilhando assassinamente à luz do luar. Apesar do perigo, não conseguia vê-los diferentes de os olhos mais maravilhosos que havia visto algum dia em minha vida. Eram de um azul intenso que parecia faiscar e se assemelhavam aos olhos de um lobo pronto para atacar sua vítima. Olhando para ele, me parecia mais fácil ter encarado os lobos... Apesar do medo, não conseguia desviar meus olhos dos seus por um mísero instante. Seus olhos eram tão lindos... capazes de aquecer meu coração mesmo em um momento de medo como aquele. Eu o temia, mas não podia deixar de achá-lo maravilhoso.

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O rapaz se movia devagar e eu me espremia contra a árvore a cada passo que ele dava, como se aquilo pudesse adiar o momento em que ele iria me machucar. Quando dei por mim, ele havia dado um soco na árvore, passando o punho bem próximo ao meu rosto, chegando a raspar em minha orelha, que ardeu como se tivesse levado uma queimadura forte. A força foi tão sobrenatural que a árvore atrás de mim, mesmo com seu tronco horripilantemente espesso, bambeou e várias folhas despencaram da copa. — O que uma garotinha como você está fazendo nessa floresta? — perguntou ele ameaçadoramente. Sua voz era grave e fria, tão assassina quanto seus olhos, que agora olhavam para os meus com uma intensidade que perfurava os pensamentos. — Não sei, estava apenas passeando — tentei mentir, achando que aquela era a melhor saída. No momento em que terminei a frase, percebi que não era, e aquilo só trouxe uma expressão ainda mais feroz e inumana ao seu rosto. Eu tive a certeza de que ele iria me estrangular quando vi suas duas mãos chegarem perto de meu pescoço, mas fosse por meu desespero no olhar ou pelo gritinho assustado que soltei sem querer ao sentir o toque de sua pele quente como fogo na minha fria como gelo, ele desistiu e abaixou a mão, enfiando-a no bolso de sua calça toda rasgada. — Em uma noite de lua cheia? Quando os lobos estão ainda mais ferozes? — perguntou ele ainda ameaçadoramente, porém parecendo um pouco mais misericordioso. — Não me faça de idiota! — Me perdoe! Eu não... Não tinha a intenção! Juro! Eu não sei... o que faço aqui — respondi desesperadamente, falando tão rápido que não me admiraria se ele não tivesse entendido uma única palavra do que havia dito. Seus olhos intensos me observaram por um tempo, talvez tentando encontrar alguma mentira, e seus dentes rangiam por causa da raiva. Meu corpo todo tremia e, de alguma forma, esperava que aqueles olhos assustadores pudessem ler minha mente e assim, talvez, 15

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terem misericórdia de mim. Não conseguia respirar, fitava hipnoticamente seus olhos azuis cristalinos e sentia o ar quente que ele expirava aquecer minha face. Foi quando ele fechou os olhos que acordei de meu transe. Ele se afastou de mim relaxando os ombros. O rapaz respirou fundo e soltou o ar devagar. Parecia que estava tentando se acalmar. — Talvez... — disse ele, olhando-me com desdém. — Eu posso até acreditar em você. Diga-me qual o seu nome. — Acredito que seja... Alissa — respondi incerta, ainda espremida contra a árvore. — Acredita? — repetiu ele inconformado, mas pude ver um pequeno sorriso de divertimento se formar no canto de sua boca, como se acreditasse que eu fosse boba ou que tentava fazê-lo de bobo. Pelo modo como me olhava agora, deveria acreditar na primeira alternativa. — Como pode não ter certeza? A ideia de que ele pudesse acreditar em mim parecia maluca. Ali estava eu, conversando com ele, no seu mesmo idioma, sabendo o nome de tudo a minha volta, e caracterizar tudo que eu via, como se fosse uma enciclopédia, mas não conseguindo nomear a mim própria ou tudo que provavelmente algum dia eu havia conhecido. Talvez tivesse acabado de surgir naquela floresta! Não, parecia ridículo, eu não era um espírito da natureza, era corpórea e tinha carne e osso, sem contar que coisas assim não deveriam existir. — Perdi minha memória — acabei por responder com sinceridade, após alguns segundos de hesitação. — E como sabe seu nome? — ele indagou ainda desconfiado. — Achei um papel em meu bolso que dizia mais ou menos: “Se está lendo isso agora, é porque perdeu sua memória. Saiba que seu nome é Alissa”, ele está... — Olhei para minha mão, mas ela estava vazia. Fiquei assustada. Eu não queria perder aquele papel! Ele era a única informação que eu tinha sobre mim! Vasculhei todos os bolsos de minhas roupas desesperadamente, mas não estava ali. Eu o perdera 16

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na fuga... — Pelo visto deixei que ele caísse enquanto eu tentava fugir desse monte de lobos — murmurei verdadeiramente triste. — E como sabe falar e ler se perdeu a memória? — Também não sei. Tive pouco tempo para pensar sobre isso... — respondi com sinceridade. — Eu estava preocupada com o que aqueles lobos fariam se me achassem... Ou o que você faria comigo no momento que me viu... Ou o que você fará comigo. Estremeci conforme seus olhos voltavam a pousar nos meus. — Estranho — confessou ele, provavelmente pensando em voz alta. — Concordo. Dei de ombros e continuei a fitar seu rosto, notando uma rápida mudança naquela expressão enfurecida. Senti-me aliviada ao ver que talvez ele não fosse a criatura má que havia aparecido para me mandar para a cova. Percebi, de uma maneira estranha, que a primeira pessoa que “conheci” havia me tratado mal, mas ainda assim tinha olhos maravilhosos. Comprime-me e senti meu rosto esquentar apesar do frio. — O que há com você? — perguntou ele, colocando a mão sobre a minha testa. Prendi o ar quando senti sua mão quente. — Você corou de repente... Será que está com febre? — Não, eu me sinto bem — respondi, tentando mudar de assunto. — Espero que esteja falando a verdade... — sussurrou ele, pensativo. — Por que eu mentiria para você? — perguntei, olhando-o com medo. — Acho que você é a única chance que tenho de continuar viva por mais do que um dia. Logo uma segunda tempestade vai cair e poderei morrer de frio, ou aqueles lobos podem me encontrar e serei seu jantar. E você... Não parece ser uma pessoa má... Ele desviou os olhos dos meus e escondeu a boca e as bochechas com a mão direita. Pela curvatura de suas sobrancelhas podia dizer que ele não estava nervoso, mas por que agia assim? 17

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— Você tem olhos bonitos — eu disse involuntariamente. Tapei a boca ao perceber o que havia dito. — Como? — perguntou ele, mas não vi sua reação pois estava preocupada demais tentando manter meu rosto bem longe do seu raio de visão. Meu rosto agora estava ainda mais corado que antes e todo o meu corpo começara a tremer. Por que eu dissera que ele tinha olhos bonitos? Ele... O que eu estava pensando? Sequer o conhecia! — Desculpe-me! Eu falei sem pensar! Eu... Esqueça, por favor, esqueça isso que eu disse! Minha voz saiu aguda e desesperada. Nada muito diferente do que sentia naquele momento, com toda aquela sensação estranha de que queria me esconder em um abrigo subterrâneo apenas por ter dito que ele tinha olhos bonitos. Jamais teria imaginado que aquilo o levaria a rir. — Do que você está rindo? — gaguejei involuntariamente. — Desculpe-me, é que você ficou tão... envergonhada! — disse ele, afagando minha cabeça como se eu fosse um filhotinho. — Será que ainda tem jeito de me sacrificar virando comida de lobos? — sussurrei, escondendo o rosto entre as mãos. — Não diga isso! — disse ele desesperado. Eu jurava que qualquer pessoa comum teria sido incapaz de ouvir um sussurro daquela distância e com aquele vento, mas... Era bem claro que ele não era uma pessoa comum. — Até porque comida de lobo é um pouco improvável, já que esses animais não comem carne humana. Talvez até te ataquem se acreditarem que você pode se tornar uma ameaça, o que já vi acontecer algumas vezes em dadas circunstâncias, mas... Bem, isso não importa. Desculpe-me, Alissa, é que você... — Levantei-me para ver que ele escondia novamente uma parte da face com uma de suas mãos. Parecia até que ele fazia aquilo por vergonha. — Deixe para lá. Foi desapontador, mas tentei entender. — Sabe onde você mora? — perguntou ele. — Não, não sei em que país estamos, sequer imagino como chegar à minha casa... 18

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Ele olhou-me de forma compreensível e afagou meus cabelos, como se eu fosse um filhotinho perdido. — Nós moramos na Inglaterra — explicou. — A cidade não é das maiores, mas tem tudo de que uma pessoa precisa para ter uma vida agradável. Não se preocupe com muito mais do que isso, pois você ficará bem, prometo. — Saindo dessa floresta, acho que posso dar um jeito... — menti. — Dar um jeito... seria? — pressionou ele. — Hum... Posso passar em uma delegacia de polícia. Se eu implorar, talvez eles me arrumem um lugar para passar a noite — tentei sorrir para deixá-lo um pouco menos preocupado. Mesmo que ele tivesse aquele rosto sério, eu queria agradá-lo. Ele me deu um sorriso solidário. — E depois? Tentei arrumar uma resposta rápida, mas nada passou pela minha cabeça. Olhei-o com desespero, tentando fingir que não estava mais tão assustada, mas era impossível que não percebesse agora. — Eu não acredito que estou dizendo isso, mas... Acho que posso deixar que fique por um tempo em minha casa, pelo menos até achar outro lugar para morar. Senti medo. Todos sabem que não devemos confiar em pessoas estranhas, ainda mais alguém que tenta matá-lo no momento que o conhece, mas... Não conseguia encontrar maldade nele naquele momento. Era como se o rapaz que tentara me matar fosse alguém completamente diferente daquele que me oferecera moradia. Eu sorri. Queria confiar nele. — Não se preocupe, não causarei problemas. Ele deu um sorriso fraco e apagado, mas verdadeiro. — Sei que não causará — disse ele, segurando a minha mão. Acabei corando novamente e ele percebeu. — A cidade fica um pouco longe daqui, mas não se preocupe, estou habituado a esse lugar. Se aparecerem animais malvados no caminho, posso dar um jeito neles. 19

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— Está certo... — concordei incerta. Apesar de não entender como ele poderia dar um jeito neles, sem ao menos estar carregando uma arma consigo, decidi acreditar nele. O modo como falava era tão seguro que era difícil não acreditar... Ou talvez fosse porque ainda estava fascinada por seus olhos azuis. Ele seguiu em frente e me mantive ao seu lado o tempo inteiro. Os lobos voltaram a uivar pouco tempo depois e quanto mais andávamos mais parecia que nos aproximávamos deles. À minha frente, o rapaz andava destemido, como se nada no mundo pudesse assustá-lo. Ele parecia não temer inclusive a morte. Talvez fosse por isso, ou por ser maluca, mas me sentia segura ao seu lado, mesmo que ele fosse um estranho. Era um sentimento bastante interessante. Conforme andávamos não deixei de notar que era um pouco mais alta que seus ombros, ligeiramente largos. Ou ele era alto demais, ou eu era pequena demais... Imaginei que eu era pequena demais. Pequena e assustada. Ele também me parecia bastante misterioso... E eu havia me esquecido de lhe perguntar seu nome. Aquele silêncio me deixou constrangida e o curto momento, que imaginei ser fácil para falar com aquele desconhecido, se tornou nada mais do que uma mera e nítida lembrança na minha mente vazia. Tomei fôlego e coragem e perguntei, ainda temendo que ele pudesse voltar a ser agressivo: — Esqueci de lhe perguntar isso antes, então... Qual é o seu nome? — Seth Miller — respondeu ele sério. Não tão sério a ponto de ser rude, mas também não estava nem um pouco perto de ser gentil. O que acontecera com aquele rapaz que sorrira para mim? — Prazer em conhecê-lo — apresentei-me educadamente, ainda envergonhada e com medo de que ele pudesse ser agressivo novamente. Seth não respondeu nada. Ele não foi grosso como eu esperava, continuou nossa caminhada silenciosa. As árvores eram sempre iguais e me faziam imaginar que estávamos andando em círculos. Todas 20

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eram altas e no chão nunca havia nada muito diferente de arbustos, além da aparente ausência de seres vivos com exceção de nós dois e alguns insetos que surgiam de um lado ou de outro. Talvez porque a tempestade já estava se aproximando mais uma vez. Àquela altura, já havíamos caminhado por quase uma hora e eu começava a me tornar impaciente. Talvez ele tivesse se perdido... Mas ainda tinha outro medo. Será que poderia mesmo confiar naquele desconhecido? Estava com muito medo. Talvez eu fosse uma pessoa facilmente manipulável. Ele havia discutido comigo e dito que ninguém saía na noite de lua cheia, mas o que ele fazia lá? E por que ficou tão exaltado quando me vira? Também era algo que eu não conseguia encontrar uma explicação. Quem sabe as respostas fizessem sentido se eu tivesse memórias. Apesar de tudo, recusar sua ajuda seria uma loucura maior ainda. Ele era minha única chance de sair dali. Distraí-me tanto em meus pensamentos que não percebi quando ele parou de andar e acabei trombando com suas costas. Já ia dizer alguma coisa quando ouvi rosnados baixos e meus músculos tornaram a se enrijecer. Não havia percebido como eles ficaram relaxados enquanto eu andava com ele. Era como se meu subconsciente soubesse que eu podia confiar naquele rapaz. — Seth, os lobos — sussurrei cheia de medo, correndo meus olhos em um círculo à nossa volta, vendo que por trás de cada árvore que nos rodeava aparecia um deles. Todos tinham olhos ferozes, vermelhos e sanguinários. Os dentes brancos e brilhantes escorriam saliva, como se ansiassem por aquela refeição. Era difícil de acreditar naquela ideia de que lobos não comiam carne humana... Eles ainda assim estavam bem-dispostos a nos matar. Disso eu podia ter certeza. Não queria morrer ainda! Meus olhos se encheram de lágrimas e soltei um soluço baixo. Seth se virou para mim, levantou meu rosto e me olhou. Antes eu tivera medo de seus olhos assassinos, mas agora eles tinham um 21

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