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Mรก Sorte TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

Sร o Paulo, 2017

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Má sorte Copyright © 2017 by Helena Ricardo Rosa Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.

editorial João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

coordenação editorial Vitor Donofrio aquisições Cleber Vasconcelos

preparação Mayara Leal (Lótus Traduções)

revisão Equipe Novo Século

diagramação e capa João Paulo Putini

ilustração de capa Alexandre Santos

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Ricardo, Helena Má Sorte Helena Ricardo. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. (Coleção Talentos da Literatura Brasileira) 1. Ficção brasileira 2. Alegoria I. Título 17­‑1633

cdd­‑869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Por Deus e para Deus, por ser o pilar de minha existência.

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Prefácio Má Sorte é poesia na melancolia da rebeldia. Má Sorte não tem medo do esmo da solidão. Essa é Má Sorte, como num pro‑ grama de televisão, na paixão da religião de não ter razão. Acor‑ dando sobre suas vestes, ela abre a janela e deixa o Sol entrar. Ele entra, cuidadoso, cabelos loiros, gritando sua prepotência, obrigando cada ser, divino ou não, a postar­‑se diante dele e se curvar, para agradecer por mais uma manhã. – Cansou­‑se disso, não? – Má Sorte questionou, enquanto o guiava para sua cama. Aquecê­‑la era o principal antes de o Gran‑ de Inverno chegar. – Disso o quê, querida? – rebateu Sol, deitando­‑se com ar so‑ nhador. Em que pensava? Talvez na Lua, talvez em Deus. – Ser o centro de tudo. Obrigar as cores a se levantarem e to‑ dos a te louvarem. Depois de milênios com essa rotina, parece meio avassaladora – explicou. – Qualquer rotina parece avassaladora para qualquer mortal. – Foi quem sempre era, escroto, proferindo sua frase com uma piscadela de galã, usual de seu comportamento. – E é claro que eu não sou um mortal. Rotina nenhuma me põe para baixo, que invejável sou! – Como eu ainda sou sua amiga? Eu acho que odeio você. Aliás, odeio comportamentos como o seu. – Má Sorte revirou os olhos. – Pergunta bem complexa para uma resposta muito simples – riu. – Você ainda é minha amiga porque eu sou seu único ami‑ go. Sem mim, estaria sozinha por este grande castelo, sem com‑ panhia e destinada à exclusão eterna.

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– É uma história muito triste – Má Sorte reconheceu, ironi‑ zando e revirando os olhos. Por parte, Sol estava certo. Fora ele, só tinha Princesa Loura, que vivia atarefada demais para notá­‑la. – Já esquentou? – O suficiente para o Grande Inverno! – Sol levantou­‑se, pas‑ sando as mãos pelo colchão de palha. – Não sou grandioso? – Não tanto quanto Deus – Sol esbravejou. Era claro que odia‑ va aquela comparação, e Má Sorte sabia disso. Como um bom servo e empregado de Cristo, não podia se ditar o maioral, dife‑ rentemente do que fazia. E lembrar­‑se de seu enorme erro ape‑ nas ajudava a criar uma autoestima com base em quem era, não em quem pretendia ser. Era horrível se sentir inferiorizado. Má Sorte abriu a porta gentilmente para ele passar, e ele foi, ainda fazendo caretas e mostrando a língua. Uma espécie de in‑ fantilidade, também. Sol era feito daquilo: um cadinho idiota, um cadinho vadio e o resto feito por ignorância. Sozinha de novo no quarto pequeno, pôs­‑se a fazer o que fa‑ zia todos os dias antes de trabalhar: vários nadas. Era uma men‑ sagem engraçada, um ótimo jeito de dizer que era entediante. Sentou­‑se no chão, a cama queimava, e olhou para a parede. O dia por trás de sua carapaça é tedioso como o Inferno. E tédio, pelo menos para ela, sempre a levava para a depressão, depois para o sentimento amargurado, e enfim para o ódio misturado à solidão. Mas, afinal, era aquilo mesmo. Má Sorte não passava de um destino ruim para uma pessoa boa. Pensou em sua história. No futuro, presente, passado. Pre‑ sente passado. É um passado que nos marca no presente. En‑ fim, vivia no Reino de Rainha Hipocrisia, mais conhecido como Reino Hipócrita. Não era descendente da realeza, como Princesa Loura, nem da periferia, como as criadas. Era apenas uma nin‑ guém que vivia a favor de trabalho. Nascera ali, num berço de algodão. De apenas um velho que dizia ser seu pai, embora ela

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duvidasse muito. Ele era assassino. Assassino é um nome poé‑ tico para caçador. Era isso que ele fazia, caçava vidas. Qualquer criatura, de onde quer que viesse ou qualquer que fosse seu nome, que se atrevesse a passar perto do feudo seria morta por seu pai. Ele mantinha consigo um velho facão e muitos segredos de como acertar a jugular sem errar. Morreu jovem, mas Má Sorte nunca sentiu sua falta. Não por ser ruim, longe disso, nem por ser muito bom, longe disso tam‑ bém. Era apenas porque não conseguia. Saudade, nunca sentira por ninguém. Assumira seu cargo logo quando seu corpo fora enterrado. Na areia do Vasto Deserto que circundava o Reino. No mesmo lugar que encerrou centenas de almas, a dele também fora en‑ cerrada. É uma maneira bela de descrever a amargura da morte. Má Sorte aprendeu que matar era uma tarefa executa‑ da sozinha. Enfrentou seus medos da escuridão e dos gritos, entregando­‑se ao dia a dia. Até que conheceu Princesa Loura. Filha da Rainha Hipocrisia, ninguém sabia seu nome. O povo e mídia sabiam só que nascera e era loura, fato que se com‑ provou quando cresceu e começou a andar pelo castelo, julgan‑ do todos e correndo desesperada pelos corredores. Era o retrato perfeito da loucura, ainda que seus pais discordassem e disses‑ sem que era apenas seu jeito de ser. Conforme os maios passa‑ ram, ela amadureceu, e já não se descabelava pelos quartos nem enfrentava os moradores. Apenas uma característica mantivera­ ‑se: o desespero. Continuava assim, gritando para tudo e falando para quem quisesse ouvir que ali não era seu lugar. Mas, ainda assim, conseguia se esbaforir logo depois dizendo que tudo ia ficar bem. Eram suas crises passageiras. Mandava todos calarem a boca para lembrá­‑los que ali era horrível, mas que um dia ia melhorar. Princesa Loura fora uma bela caricatura.

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E um dia, enquanto Má Sorte matava mais um ser azarado que chegara ao portão por acaso, a Princesa apareceu. – Já matou? – perguntara. – Já. Por quê? Queria conversar com ele? – Má Sorte não co‑ nhecia bons modos. Aliás, não conhecia modo algum. Não en‑ tendia por que alguns tratavam a Princesa na palma da mão se ela não fazia nada além de sugar o poder da mãe. – Eu não sugo o poder de minha mãe – disse, assustando Má Sorte, que colocou a mão sobre o coração, entregando­‑se. Como ela descobrira? – Nunca falei que sugava – deixou claro, caso precisasse tes‑ temunhar a favor ou contra si mesma, como forma de salvar a própria vida de Dona Guilhotina. – Mas pensou. – Sua voz não mudava segundo algum, parecia a voz do pensamento. Não tinha tons diferentes, não abaixava nem aumentava, muito menos mudava de timbre. Era como ou‑ vir o próprio subconsciente. – Pare com isso, eu posso pensar o que eu quiser – Má Sorte enfrentou­‑a, enquanto limpava o sangue da faca na areia ama‑ rela, que se sujava de vermelho e se entregava ao vento. De pro‑ pósito, deixou um pouco de líquido para lambuzar os dedos e os lamber, tentando assustar a Princesa Loura, como forma de dizer o quão horripilante e sem coração era. – Não está me assustando. Estou te assustando? Porque, olha, as pessoas só querem dar medo quando estão com medo de algo. – Por que não lê meus pensamentos para saber? – Princesa franziu as sobrancelhas, irritada. – Por que eu teria medo de al‑ guém como você? Alteza aproximou­‑se, perto demais. Mas que Purgatório, ela não percebia que em um movimento Má Sorte poderia enfiar a lâmina em seu estômago e ela nunca mais veria o céu? Embora

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tentada e adormecida nessa possibilidade, Má Sorte não o fez. E não fora por medo, era um sentimento indescritível de leve re‑ ceio misturado com proteção. Mais ainda. Princesa Loura estava mais perto ainda. O que ela estava fazendo? Só então reparara, era muito baixinha. Má Sorte se sentiu Deus perto dela. A Prin‑ cesa era um sentimento desesperado do amor preso na mente, pequeno, mas barulhento demais para não ser notado. – Você está assustada porque com uma palavra minha posso te matar. E porque… – olhou­‑a de cima a baixo – eu te dou sensa‑ ções novas. E parada, sentada apoiada na parede descascada do quarto, lembrava­‑se, como se estivesse acontecendo naquele momen‑ to, de como acabara namorando Princesa Loura. Como as duas construíram uma relação cada vez menos saudável, mas insepa‑ rável, em que cada uma necessitava do calor humano que a ou‑ tra trazia e nem o Sol em seu estilo de ser o poderia igualar. Agora sua vida se tornara aquela cansável rotina. Acordar. Aguentar os astros. Entediar­‑se. Matar. Sentir o amor. Dormir. Acordar. Era como as chamas misturadas às nuvens. Você se sente grato e sabe que poderia ser pior, mas ao mesmo tempo pensa: “Merda, por que não acontece nada em minha vida?”. Apenas para Deus te dar uma tragédia e você pensar: “Merda, por que minha vida não volta a ser como antes?”. É assim que o mundo funciona. Numa máquina de girar, no grandioso Reino de Rainha Hipocrisia. Bem, de qualquer forma, morrendo ou não, Má Sorte levantou­‑se e puxou sua faca de debaixo dos livros jogados no canto. Existia algo chamado trabalho. Que, mesmo quando é di‑ ferente, teima em ser igual. E é uma obrigação, Má Sorte enten‑ dia isso. É claro que entendia, são questões de Estado. Sua na‑ morada a ensinara. Só não aprendera para que servem questões de Estado. São como poesias inacabadas em documentos, para

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fazer serventia a seres castigados por Deus. Por que não falavam logo que somos inúteis, em vez de nos dar… trabalho? Afinal, to‑ dos nós sabemos o que se passa na cabeça de um rei. Abriu a porta de madeira. Era marrom. Fora feita com 34 tá‑ buas. A maçaneta viera dos artesãos. Existiam 249 iguais àquela. O tédio mata, mas ensina também do pior jeito. Passou os dedos pelas paredes de petúnia do corredor ao ir para fora. Seu quarto era perto dos muros, para que em qualquer emergência fosse a primeira a chegar. Era a melhor, a maioral, a mais temida assassina de todo o Vasto Deserto! Ou pelo menos era o que pensava. E pensamentos como aquele a mantinham sã, em sua área de conforto onde nenhuma crítica poderia che‑ gar. Mas é claro que, como uma boa fã de sua Rainha, sabia que pessoas metidas mereciam o linchamento. Também era o que a mantinha ocupada nas frias noites de lua cheia. – Boa tarde, senhor – ela cumprimentou Kaukokaipuu, um finlandês, sentimento esquecido que ficava por horas. Alguns acreditavam que ele não saía de sua torre. Era o responsável por abrir os portões e estava sempre cabisbaixo, falando palavras ao vento, e não era para tanto. Um dia, Má Sorte fora conversar com ele, e Kaukokaipuu não parava de falar sobre as grandiosas ter‑ ras da África, sobre quão belas eram, e seu povo, acima de tudo, carinhoso, feliz, esperançoso! Dizia com tanta convicção que Má Sorte desejou com todas as forças ter nascido lá. Era como uma solução para todos os seus problemas. Curiosa como só ela, perguntou­‑lhe sobre mais. O pobre porteiro não soube respon‑ der, nunca estivera lá. Um sentimento esquecido, era isso que Kaukokaipuu era. A melancolia e saudade de um lugar em que nunca esteve. Nunca mais se esqueceria de suas palavras, que só se reali‑ zaram por meio de fotografias. Naquela noite, curiosa debaixo das estrelas, na solidão que a alimentava, antes de voltar para

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sua humilde residência, deu ao velho uma caneta e papel. Ele es‑ creveu uns belos parágrafos sobre seu lar perdido. Nunca mais perdeu aquela folha, as palavras sábias se mantinham nas ma‑ drugadas entediantes. Era mais ou menos assim, a prosa:

África Quantos de seus sonhos a si própria conquistou? Por quanto de sua liberdade teu povo não lutou? Grite e amanheça num pôr do sol de suas tribos, com as peles que abominam, que nunca serão brancas. Como num vazio entristecido dos ocidentais, acorde como sempre faz, uma nova esperança vem surgindo para nós. Tuas raízes nos mantêm, e sua história de realeza nos deixa contentes. Num povo bravo e valente, que nunca se viu esconder. Quantas das mentiras engraçadas não te fizeram chorar? Disseram­‑te que nunca seria boa. Mas, mãe, suplico­‑lhe e imploro, nos teus braços dormirei tranquila, pois sei que vai me acolher, numa maravilhosidade que não cabe em ti. Então não se orgulhe pela tua natureza, embora também devesse, mas se sinta feliz pela sua história, e abrace seu hoje, pois lutou para ter. Porque sempre é assim, confesso, quantas dessas terras não foi tu quem fizeste? Quantos desses edifícios teu povo não ergueu? Quantas dessas guilhotinas não levantamos, e quantos mares não desbravamos? África, querida mãe, faça­‑se acreditar mais uma vez que teu rosto é lindo, tua casa é linda e teu sorriso é esplêndido. Não chore nem se mate. Continue como sempre, que tudo vai melhorar. Deus é justo, mas não o temos, é invenção de nossos pesadelos. África, África, levante a cabeça e encare o mar. Nosso povo outra vez o desbravará.

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A A A Naquele dia em especial, não fizera nada. Absolutamente nada. Nenhuma criatura se arriscou pela areia. Uma pena. Acor‑ dara tão sedenta por sangue pela manhã. Fora um dia, em qual‑ quer idioma e interpretação, estúpido. Comera carne com os outros empregados e os ouviu discutir política. Não fazia ideia do que era aquilo e também não queria saber. Gostava de notar a personalidade de quem falava sobre o assunto. Apenas idiotas que se criam sábios. Aliás, era um bom ponto, um ótimo assunto para desocupados: os idiotas criaram a palavra inteligente quan‑ do se cansaram de se denominar sábios. De noitinha, acabou o expediente. Nenhum movimento, apenas o som cruel da areia voando e a cor branca que ela tinha que imitava o Sol. Bela, porém triste. Uma melancolia que não foi feita para nós. Poética demais para que possamos descrever. Talvez algum gigante, talvez Deus, talvez Zeus, um dia consiga. Má Sorte ouviu o badalar das doze estações e saiu correndo, apressada, de seu serviço. Guardou a faca nas roupas mesmo, já sujas de sangue, uma mancha ou outra não faria mal, e se aligei‑ rou para chegar à Biblioteca de Todos os Anciões, onde Princesa Loura estava. Era apenas mais um de seus encontros proibidos noturnos, do qual se espantavam com passos, que apenas nas madrugadas podem ser de qualquer um. Mas, em especial, aquela colisão não fora como as outras. Primeiro que sua amada não a esperava eufórica na porta, se‑ gurando os panos do vestido e a incentivando a entrar. Ela es‑ tava séria, na poltrona aveludada, lendo mais um de seus livros do Estado. Expressões mínimas, não ouviu a porta abrir, o que para a Princesa era um grande milagre. Má Sorte notou a in‑ quietação ao contrário e foi sorrateira, pensando no que ia dar.

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Imaginou­‑se depois de algumas horas, se estaria feliz ou triste, e pensando: “Nunca pensei que isso aconteceria hoje”. – Eu estou aqui – pronunciara, sentando­‑se na poltrona à frente. Eram poucas as horas que sentia um tecido igual ao da realeza em sua pele, aquela mordomia não fora feita para si. Ti‑ nha coluna de ferro e dentes de titânio que a classe em que nas‑ ceu fez. – Eu sei, Má Sorte. Eu te vi – respondeu, curta e grossa, Prin‑ cesa Loura. Em nenhum momento tirara os olhos do livro, mas Má Sorte tinha a grande impressão de que não lia nada e, con‑ forme também, não entendia as palavras escritas. – Tenho algo para te dizer. – Você sempre tem – lembrou­‑a. Sua namorada realmente tinha, sempre, em todos os momentos, algo para dizer, rebater, ou apenas esclarecer mais um sentimento seu. – É diferente esta noite. Apenas esta noite é diferente. – Prin‑ cesa Loura abaixou a cabeça. Estava chorando? Não. Nunca cho‑ rava. Abalava­‑se às vezes, geralmente sempre, mas nunca se dei‑ xava ver chorar. – Você está aposentada, Má Sorte. – O quê?! Aposentada?! Está brincando, não é possível! – Má Sorte levou as mãos ao rosto, espantada. Queria ter uma pintura de seu rosto naquele momento. Lindamente triste, uma tristeza disfarçada de surpresa que se tornaria raiva. Era porque todos sabiam o que significava a palavra “aposentado”. Não é mais apto, não é mais a melhor opção, é descartável, seu trabalho é ruim e encontramos alguém melhor, o que está fazendo aqui ainda? – Eu sou a melhor assassina, sou temida por todo o De‑ serto. Estou aqui há anos e nunca decepcionei. Matei todos per‑ feitamente e nunca deixei de obedecer a uma ordem! Isso é uma blasfêmia, uma ofensa contra minha pessoa! – Aquiete­‑se! Está aqui há anos, por isso mesmo! O Duque de Agressividade, dono de um dos mais luxuosos castelos por este

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mundo, teve um filho com Duquesa de Mágoa, sócia do Reino de minha mãe. Ele está treinando para ser um assassino, o melhor de seu tempo! Tem tudo a ver, sua linhagem é nobre, sua feição é assustadora e segura a faca como ninguém. Agradeço por todo seu tempo aqui, querida, foi de toda a benevolência, mas te apo‑ sento – ditou como se ditasse um nomeamento de seus servos. Má Sorte só conseguia pensar em como ela parecia um mane‑ quim, debaixo daquelas luzes fracas de vela e de olhos fechados, como fazia para discursar. Ela parecia um manequim, uma re‑ gente de Rainha Hipocrisia. – Isso é ridículo. Eu vou embora. E tenha para sempre este Reino afundado na lama em que só loucos habitam. – Levantou­ ‑se, ajeitando suas roupas e não pensando direito. – Espere! – Princesa Loura levantou­‑se também, tocando seu braço e a olhando com piedade. Nobre de araque. Fantasia de seus pais. Moldada pelo governo. Filha da puta. – Como acon‑ tece aos aposentados, você será expulsa do Reino de Rainha Hi‑ pocrisia e viverá até o final de sua vida vagando pelo Vasto De‑ serto, a menos que encontre outro emprego, algo raro, cá entre nós. Mas, como a ti cabe ser minha amada e a amo muito, vou te dar um presente: o Palácio de Versalhes. Caminha em qual‑ quer direção pelo Vasto Deserto e chegará lá. Eu, como nobre, posso transitar livremente por aqui e acolá, mas você não, por isso caminhe e encontrará. No Palácio, terá abundância de tudo: alimentos, camas, criados, tudo. E o melhor: estarei te esperan‑ do. Viveremos nossas vidas juntas pelo resto da eternidade. É o Paraíso, eu sei, é mesmo. Pela primeira vez, seu nome tornou­‑se um trocadilho: boa sorte, Má Sorte. Até o Palácio de Versalhes, querida. E não se esqueça, eu te amo! Má Sorte a olhava abismada, não precisava falar mais nada. Saiu, batendo a porta com força. O corredor, por mais bonito que fosse, nunca pareceu tão feio, tão raivoso, tão conspiratório.

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Correu o suficiente para a Princesa a seguir, gritando atrás de si: “Parta amanhã de manhãzinha!”. Queria não ter ouvido. Como há muito tempo não fazia, não pensava em nada. Sua cabeça se tomou por nuvens enevoadas de desespero, ódio e um rancor que não sabia de onde viera.

Se me deixar sair, não faça isso, eu não voltarei. Eu não voltarei. Eu não voltarei. Tem uma saída aqui do lado do necrotério do lado do suicídio do lado. Se me deixar sair, eu não voltarei. Fora uma madrugada estranha, afinal. Pensava que o único jeito de se aliviar era fazer o que a enterrou. Matou. Abriu o por‑ tão, cautelosa, mais silenciosa que gatuno pela noite, e sentiu o vento gélido do Vasto Deserto. Basta! Tirou o facão de sua cin‑ tura e saiu à caça. Andou por um tempo, sem saber para onde ia, mas próximo o suficiente para não perder o castelo de vista. Assassinou pelo menos uns cinco. Cansada, após algumas ho‑ ras, voltou para seu quarto, calma e com uma podrida vontade de filosofar. Pensou em cada ser que matou. Por que não matou a si também?

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Eles prometeram. Eles prometeram que iria ser melhor. Que essa minha carcaça velha, suada e usada se transformaria numa bela moça, feito borboleta. Que belo desengano. E eu pensei que pudesse assim ser livre, ser livre, era livre, sê­‑lo­‑ia triste. E eu seria, eu faria, eu olharia a vida por outros olhos. Aprenderia tanto e riria tanto, que não teria do que me lamentar. Que belo desengano. E se você tiver a oportunidade de ser diferente, seja, porque minha morte em vida não desejo a ninguém. Minha cabeça frustrada é tudo que ninguém quer. Que belo desengano. Que belo desengano. Que belo desengano.

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Capítulo 1 Enquanto acordava fatigada pelas horas maldormidas, ten‑ tava se convencer, de modo automático, do que todos já sabiam. “É uma aventura, não o fim de sua vida.” Essa frase transbordava sua cabeça e ia até a ponta de seus pés. Acho engraçado como esse trecho, por menor e menos explicado que seja, contradizia o que pensou em toda a madrugada. Depressão, tristeza, asso‑ lação, era tudo que sua mente dizia. Pela manhã, não era mais. É que a Lua sempre influenciou o subconsciente de nós, meros mortais, e ela nunca gostou muito do senhor Sol, então sempre lutaram dentro de nossos corações para se sobrepor. Enfim, longe de toda aquela psicanálise, era tudo psico, psi‑ cológico, psicopatia, psicodrama, psicomoral, estava Má Sorte, desistente como sempre, arrumando suas malas. “Nem sonhei que este dia chegaria.” Pois deveria. Ter tido um plano A, um B e outro C para sobreviver. Não fizera, que culpa tinha? Vai dizer que a ti cabe ter um plano para quando morrer? Aliás, e se mor‑ resse? E se não existisse mais? Não, não! Precisava de uma carta de suicídio. Um adeus. Talvez esse novo filho do Duque Sei Lá Do Quê ocupasse seu quarto. Talvez seja poeta, escritor, caralho a quatro. Leia suas notas. “Não sei de quem é, mas é belo, vou escrever!”. Seria lembrada. Ou talvez sonhasse demais. De um modo ou de outro, puxou de dentro do vestido seu material de matar. Um bloco de anotações, sua velha faca e uma caneta azul.

Está escuro agora. Estou triste. Procurando algo que não existe. Existe. Não existo.

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Fora sua carta de suicídio. Procurara as palavras, as melho‑ res, e fora tudo que saíra. Deixou o papel debaixo do travesseiro, do qual roubou algu‑ mas palhas. Talvez um ricaço do deserto fosse querer comprar. Trocar por moedas. Foi tudo que resolveu levar: a arma afiada, suas escrituras e o que usaria para fazê­‑las, e enchimento de tra‑ vesseiro. Estava pateticamente pronta para o fim de sua vida, ou melhor, mais uma de suas aventuras. Saiu de seu chiqueirinho pensando em Sol. Não tivera tempo de se despedir. Princesa Loura aquém, mas por ela não quisera mesmo. Sabia que algum dia, quando encontrasse sua sombra, seu cheiro, seu sorriso no céu, sentiria sua falta. Esse dia não era hoje, então estamos bem. Aliás, sentia por ela uma falsa raiva. Por que essa vadia fizera isso com ela? Não falou que a amava? Não falava, de noite, ninguém ouvia, que a tinha? Então por que quer que eu vá embora? Idiota. Estúpida. Igual a sua mãe. Passando pelos salões que compu‑ nham sua ex­‑casa (isso existe? Casa é para sempre), pensava se valia a pena alguma vingança. Ainda não tinha ido. Ainda estava onde ela dormia.

A minha vingança são essas palavras claras, às vezes falhas, mas de sempre verdadeiras. A minha vingança é essa poesia, feira de melancolia, sofrimento à venda e olhos vazios do vazio da alma. D 20 D

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A minha vingança é uma promessa plena, nada serena, mas de coração. A minha vingança é contra você, é contra nós. Esse sentimento de malevolência e clarividência, da vida amarga, mas de vida, faz­‑me vingativa como o Diabo. Não, é balela. Vingança é uma tristeza a mais na forma de mostrar que ainda não se superou. É uma decepção para os de‑ mais. Pelo menos, era assim que pensava. Talvez estivesse er‑ rada, sempre estava, mas em maioria era erro seu, pensava de‑ mais. As palavras bagunçavam­‑se em sua mente e por lá ficavam. Que seja! Quem pediu para nascer assim? Que ordem aceita, malfeita, malpensada! E daí? Era só mais uma mesmo, na fila da desolação. Saiu às pressas, tomada por uma emoção inexplicável. De onde viera? Para onde iria? As criadas acordavam cedo todos os dias, desajeitadas, andavam para todos os lados com roupas velhas em mãos, ou ordens em papéis, algumas até frango fri‑ to seguravam. Diziam que eram filhas de Deus, também. Pois duvidava! Mas, se duvidasse, também seria. Má Sorte não deu tchau para elas, não se despediu de suas roupas pretas, assédio à moralidade. Apenas sorriu, enquanto imaginava no que pen‑ savam. Seriam burras? Seriam gênios? Seriam frutos das nossas

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cabeças? Mas se estivesse certa, eram burras, significava a pre‑ sença de sua inteligência? Uma superioridade que não lhe ca‑ bia. Talvez coubesse, se fosse tão intelectual, cabeça de vento, então ainda tinha muito espaço em sua cabeça. Enquanto andava, pensava em Kaukokaipuu e a vida que dei‑ xava para trás. A todos, desejava apenas a morte (não é uma for‑ ma de vingança?). Um dia lera na Bíblia, o único livro legalizado ao uso (que os anjos a tenham!), que não devia desejar ao outro algo que não desejaria para si. Então, que Deus me perdoe.

E que Deus me perdoe, e se perdoar, direi ainda mais. Direi palavras feias, sobre Inferno, sobre você, sobre morte. Brincarei com as almas como se fossem corpos. Não te amarei e ainda te amarrarei nas palavras eternas de minha confusa ira. E nenhuma entidade, de fé, para a fé, acabou­ ‑se a fé, poderá me deter. E que Deus me perdoe, e se perdoar, direi ainda mais. Juro que te amo todos os dias e noites, mas agora invadirei tua vida, vá embora! Não grite enquanto te torturo e chamo seu nome, não grite de novo! Sua dignidade caiu, foi arrancada, sua mente acabou­‑se, foi embora. E que você me perdoe, e se perdoar, direi ainda mais.

A A A A areia parecia pesada, era como chumbo. Talvez fosse o dra‑ ma por cima dela, talvez fosse seu real aspecto ao qual nunca dera muita relevância, afinal era só areia. Os portões atrás de si eram pesados. Abrira por si só, todos dormiam. Fora a última vez que fizera isso. Consegue sentir a tristeza? De ser a última vez que respira.

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O amarelado se confundia com o céu. Azul. Que, após tem‑ pos, era vermelho, roxo, verde. Azul. A faca pendia em seu corpo, de lá não saía nenhuma cor. Queria saber quantos segredos o Vasto Deserto não guardava para ser tão colorido. E seus seres, quantos já não confessaram, para serem todos iguais. Puf. Agora era um deles. Vestiria aquela farda, que, por si, era de uma cor divina. Uma nunca relatada em nosso mundo, diferente de to‑ das as primárias. Quem sabe Deus, Zeus, teus lábios um dia não farão uma poesia sobre ela, e enfim explicarão para o mundo toda a certeza de viver. Que certeza? Se você pudesse falar para o mundo, que certeza diria? Porque nossas mentes, afiliações, religiões, teorias, não passam de certezas. Mas se nossa única certeza é a morte, então qual é o sentido? O mesmo do Vasto De‑ serto. O mesmo deste livro. Poxa, aquelas terras me faziam, tam‑ bém Má Sorte, solitária, poética, budista. Andava catastrófica em busca de nada. Pois enfim fizera uma lista: o que procurar. Meu objetivo. Minhas metas. Que pesadelo na escuridão, metas existem para pessoas que não sabem o que procuram.

• Sobreviver. • Achar água. • Achar vida. • Achar carne. O principal: achar vida. Não era sobreviver, pasme! Era achar semelhante. Na pior das hipóteses, este viria como carne. Na melhor, como um amigo. E andando, andando, sem parar, atrás de alguém, anoiteceu. O sol se pôs, foi embora. O céu se vestiu com um manto negro, como sempre fazia, para indicar o luto de sua perda, o astro principal. As estrelas o consolavam, em vão. Nada o podia fazer melhor, apenas a sua volta. E piores ainda

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eram os dias, que chorava afim, naquela escuridão, a água caía como lágrimas. Tristes noites de depressão. Tristes. Má Sorte, relutante, deitou­ ‑se no grande gramado sem grama. Era o que fazia, na maioria dos dias, logo ao anoitecer. Punha­‑se a tentar dormir. Exceto nos dias de emergência de as‑ sassinato, ou quando via Princesa Loura. Passado. Que ainda não passou. Deixou a faca em suas mãos, para caso alguém vies‑ se. Não retirou nenhum pano para se cobrir, embora a friagem fosse insuportável. Apenas se virou e ficou lá, o ouvido direito tocando os grãos. E se alguém a apunhalasse por trás? Besteira… quem o faria? Fechou os olhos. O sono não veio. E agora, José? Precisava de algo que lhe trouxesse cansaço, além de sua lon‑ ga caminhada. Sua antiga vida não era viável, pois a estressaria, nem suas longas teorias sobre a depressão coberta pela areia. Então o quê? Suspirou e listou mentalmente todas as poesias que conhecia. Não eram muitas, mas mereciam seus lugares. Ficou pensando, recordando, até entrar no mundo da pura ima‑ ginação. Por um momento apenas, não quis voltar.

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