Contos do vigário

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Copyright © 2014 by Denis Mattar

Coordenação Editorial

Silvia Segóvia

Preparação de texto

Gleice Couto

Diagramação Capa Revisão

Abreu‘s System Monalisa Morato Marcio Barbosa

Capa sobre a tela “Evening Landscape with Two Men” (1830-1835) de Caspar David Friedrich (1774-1840) exposta no Museu Hermitage de St. Petersburg Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mattar, Denis Contos do vigário: romance / Denis Mattar. – Barueri, SP: Novo Século Editora, 2014. – (Coleção talentos da literatura brasileira) 1. Contos brasileiros I. Título. II. Série. 14-06802

CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos: Literatura brasileira 869.93

2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11º andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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SUMÁRIO

LIVRO UM: OS CONTOS DO VIGÁRIO ENTREATO LIVRO DOIS: OS CANTOS DA VERDADE

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As máscaras se solidificam “Homem que vens de humanas desventuras, Que te prendes à vida e que namoras, Que tudo sabes e que tudo ignoras, Vencido herói de todas as loucuras, Que te debruças pálido nas horas Das tuas infinitas amarguras E na ambição das causas mais impuras És grande simplesmente quando choras. Que prometes cumprir e que te esqueces, E te dás à virtude e ao pecado Que te exaltas e canta e aborreces, Arquiteto do sonho e da ilusão, Ridículo palhaço articulado, Eu sou teu camarada e teu irmão”. António Tomaz Botto

Não como se lê aqui, mas como é dito por João Villaret.

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L I V RO UM

OS CONTOS DO VIGÁRIO

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1 – TAUS Puta que o pariu, caceta grega, cruz-credo, pé de pato, cocô de avestruz, mierda Chile, Katmandu, Antofagasta, Popocatépetl! Elas são como borboletas! Adejam no ar, dissipam-se em si mesmas, perdem-se em cores e pó, e tudo o que eu escrevo fica com consistência de nuvem e, se eu tento adensá-la, a massa efêmera e diáfana escurece, fica caliginosamente obscura, depois umedece, apodrece e cai sobre uma terra que tem a idade da menopausa, sendo então sugada, comida pelos vermes, cagada e jorrada sobre a cabeça dos condenados ao perpétuo deserto trancado onde se deu a inspiração do Dante, amaldiçoados réprobos que, de tanto estarem acostumados ao medo, da minha obra só se podem rir. As poucas evanescentes que consegui capturar com minha rede furada e pintar no papel do meu testamento, tenho que aprisionar na cela selada antes que um sopro as lance novamente no ar liberto das possibilidades inalcançáveis. Tenho que aguilhoá-las. Tenho que amarrá-las e atá-las em resmas com fortes cintas de couro! Trabalho danado, trabalho endiabrado! Amarro tudo, amasso os maços, meto dentro da gaveta, os pacotes entram apertados em si, apertados nela, e tenho que empurrá-las, forçá-las, espremê-las. Tranco a gaveta à chave, a madeira parece não resistir. Aferrolho com um forte cadeado e elas, enclausuradas lá dentro, imediatamente iniciam uma rebelião. Viro a mesa, prenso a gaveta contra a parede. Mas elas estapeiam a parede e do outro lado, lá do quarto, vem o protesto: – Ameiga tuas filhas, meu hiperbólico pateta, que aqui quer-se sossego! Afasto a mesa, abro a gaveta, envolvo os feixes de papéis em panos, camisetas velhas, torno a comprimir tudo na gaveta, tapo os interstícios com algodão, espremo tudo, volto a virar a mesa, empurro com os dois pés, lacro a escrivaninha contra a parede usando forte goma arábica e escoro tudo com o sofá antigo e pesado que roubei da minha avó quando ela se mudou desta cidade em busca de mais sossego e canteiros de flores, deixando-me sozinho com a Tia Velha. Esgotado, solto um

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fundo suspiro, seco as bagas de suor, levanto as antenas dos ouvidos, ouço. Elas parecem ter-se acalmado. Jogo-me no sofá que, desacostumado aos furiosos caprichos criativos, range em saudoso protesto, mas não adianta, sua dona mansa mora longe, capricha outras belezas. Aguardo algum tempo, nada, silêncio, talvez elas, exaustas da sedição, tenham dormido. E, pelo menos por hoje, posso repousar, as palavras não me escaparão. Popocatépetl! Puta bagaço! Uma dúzia de Duvel. Outra de Kastell. Hoje. Ontem também. E antes de ontem. Pé de pato! Garrafas vazias em volta de mim, o tinteiro cheio em frente de mim. Poucas palavras pude capturar e aprisionar, muitas ficaram dentro dele. É o cérebro que não supura ideias (só não ficam emperradas no hard disk do computador porque não tenho computador, tenho meu tinteiro, uma solene caneta de ouro Parker 51 – presente de infância agora esquecida, a caneta e a infância – e uma inesquecível Smith & Corona que, ela também, todo mundo já esqueceu, lembram-se dela?) e é agora também a boca que suspira pelo malte, deseja-o deslizando pelo cano da laringe. Ou acabo com essas noites doentes ou fico doente como elas. O álcool é o pior inimigo do homem. Mas a Bíblia ensina que devemos amar nossos inimigos. Acredito na Bíblia. Acredito na Palavra. Acredito na literatura. Desde que não seja a minha. Há vinte e cinco anos tento iniciar o primeiro dos dezessete volumes das minhas obras completas. Dá para acreditar numa coisa assim? Cocô de avestruz! Ainda bem que também não acredito no tempo. Mesmo consciente de que meus romances inéditos são velhos, sofro a mesma obsessão de Robbe-Grillet, anseio por anular o tempo e não acredito no porra do Cronos, caralho! Portanto, não vou permitir que ele entre na minha literatura, é bom que isto fique bem claro já neste primeiro capítulo! Cronos, o velho porco, o Deus da Putrefação, nojento símbolo da destruição antropofágica, crápula capaz de castrar o pai e comer os próprios filhos alicerçado na leniência dos Supremos Tribunais Federais que, naqueles tempos, estavam instalados não num Planalto, mas bem mais alto, no Monte Olimpo, ainda que seus julgadores usassem as mesmas togas e batas e escondessem as carantonhas medonhas debaixo das mesmas perucas cheias de piolhos e das mesmas cabeleiras inteiramente tomadas por insetos pré-históricos, tolas máscaras insuficientes para esconder os cérebros onde só não habitam aranhas porque não há como pendurar teias no vácuo. Deus do Caruncho, velho safado, que uma nova Tamar te engane! Eu, quanto a mim, fujo do presente que se dissolve no futuro, do palimpsesto que você me propõe, e me deixo tomar pelo pentimento, pelo passado que se materializa no presente. Pronto! Está feito e bem feito pra você! Vivo de ficção e, empinando meu peito, proclamo: “Madame Bovary sou eu!”. Sim, porque estou tão falido quanto ela, meu dinheiro é tão pouco que, como dizem os portugueses, “não dá para mandar tocar um cego”. Sou pobre, meu tempo não se conta em cobres, é qualitativo, não quan-

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titativo. Atirei o cronológico na lata de lixo que ficava no beco atrás do palco e assumi o tempo kairológico, o tempo feito de um único momento, o momento supremo tornado sempiterno. Presentifiquei tudo, dei aos gatos famintos a ordem sequencial como jantar e, trancando as portas do fundo, pude voltar ao meu palco de cortinas cerradas onde posso inventar o meu teatro, escrever o meu texto em que passado e futuro sofrem e amam com os pés fincados nas mesmas tábuas, sob o olhar desnorteado da plateia que sua e se molha toda de pasmo e pânico. Mas, atenção! Um olhar mais cuidadoso revela que, em poltronas de ouro perdidas na última fila, há quatro anjos cujos rostos também estão molhados, mas o que lhes umedece e aformoseia as faces belíssimas não são fluidos de terror, são lágrimas de alegria e amor. Acontece que meus olhos não tinham tal acuidade, não vi nem entendi os anjos e, quando meti as mãos nas teclas e senti a consistência de areias movediças, não pude crer que tudo corria bem. Olhei-me no espelho e, como Kafka, senti que não valeu a pena ter sido Kafka. Ele, acreditando-se bruxo também, e não querendo legar a sua miséria a ninguém, mandou destruir sua obra quando a obra já tinha destruído a sua vida. Mas foi traído – como todos os escritores são sempre traídos porque a literatura é uma traição à vida – e hoje está entregue às baratas, embarafustado na estante de madeira podre que fica ao lado do banheiro infecto das livrarias onde só se vendem bonecos de plástico e novelas de televisão. E não me venham os Wittgensteins a dizer que a língua é o único espelho do real e que, como os homens só acreditam no real, a literatura é a nossa religião. Idiotas! Nada substitui Deus e, se a língua é o meu pensamento, tenho o meu livre-arbítrio. Se não quiser não penso. Não penso, logo não sou. Olhei de novo meu teatro e os atores eram vigários, bonecos também de plástico que repetem minhas frases desesperadas com acostumadas inflexões treinadas para os ouvidos não-treinados de uma plateia composta de irmãos que eu não conheço nem entendo e, no entanto, amo. Sucede que minha mão estendida no escuro não é uma mão que estende comunhão. É uma mão trêmula, náufraga, que não dá nada, só pede e pede socorro, generosidade que eu sempre neguei porque, para estender a mão, eu tenho que continuar intrinsecamente egoísta. Peço e, mais que isto, exijo. Meus dedos batendo nestas teclas ensebadas reclamam e intimam retribuições ao nada que dou no exercício da minha criação, da minha literatura, o mais lindo dos dons e a mais terrível das maldições. Mas é uma maldição da qual eu posso me livrar, afinal sou maior que Prometeu, tenho forças para arrebentar as correntes, sou um deus! Pena que os deuses morreram, pobres arquétipos que foram da penúria humana! Criados para serem a transposição do desejo humano de se transcender, fracassaram, não conseguiram realizar nada. E é este o meu consolo. Eu não consigo, mas os deuses também não conseguem. Para me destruir, eles

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me enlouquecem; para enlouquecê-los, eu os construo. A meu modo. E o papel à minha frente continua em branco. Antofagasta! Kafka, que passou a vida buscando Deus, o impensável porque impronunciável, encheu páginas acreditando que, se você escreve, nada é impronunciável. Vamos ver se acabará conseguindo. Por enquanto está sozinho debaixo da ponte, sua sopa ainda está fria, não há convidados para a refeição da tarde. E o diabo nunca tem fome. Sim, é claro, o Demo, sempre ele! Disfarçado de serpente, ao aposentar a folha de parreira criou a primeira necessidade básica inútil do ser humano e, criando a Moda, determinou a moda. Anos depois o mundo continuava a ser invadido por bobagens como ternos de linho, blusas de seda, casacos de vison, calçados de cromo alemão, relógios de ouro, cardigans, blasers e essencialidades escatológicas que tais, além das inevitáveis passarelas em que anoréxicas como uma brasileira feíssima, com suas pernas de palito e cara de cavalo, encanta velhinhas aristocratas e vacuidades da mesma laia, ansiosas por fazerem escoar suas vastas heranças para os bolsos dos capitalistas disfarçados de defensores de uma Democracia cuja raiz etimológica revela, sob luz luciferina, a presença escondida da mesma divindade tutelar que convenceu os homens de que a nudez era feia. E eu aqui, escrevendo com a afiada ideia de machucar os outros para depois, inevitavelmente, encontrar as feridas em minha própria carne lanhada. Queria abandonar a literatura escapulindo pelos bolsos de trás das calças dela. Descer até as bainhas e, encapuzado e irreconhecível, escafeder-me sem deixar nem o fedor do meu perfume vaporoso e evaporado neste século cronológico em que sou obrigado a vender e comprar tendo por único produto a mim mesmo. Toda nossa civilização capitalista não foi mais do que o assentamento do homem quando conseguiu fazer o assentamento do boi como instrumento e alimento. A partir daí, comercializou. Nada mais. Quanto a mim, negocio e até dou pedaços de mim que ninguém quer e todos aceitam com repulsa, e isto não é dar, é pedir de volta. Sou um pedinte, eterno pedinte a quem é negada a bênção da generosidade. Como aquele judeu – ele de novo! – que viveu numa colônia estrangeira e escreveu em língua alemã numa cidade tcheca. E ainda pretendia ser entendido! Mierda Chile! Quanto a mim, desde aquele abraço no que era para ser um começo de conversa, não consigo começar conversa alguma. Perdi o instrumento. O gato comeu. Mas foi no meu estômago que ficou o peso da carne, mole e gordurosa. Temperada com café sujo e malte turvo. Já sei disso há tanto tempo que me fica a impressão de ter passado a vida inteira falando do assunto. Sozinho. Aliás, sozinho não. Comigo mesmo. Sem ter começado a conversa. E isso faz uma grande diferença. Não é um monólogo num palco escuro de um teatro vazio às duas da tarde. São onze da noite

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e vomito meus vitupérios infantis diante de um espelho, talvez aquele mesmo que Molière fez as Preciosas Ridículas chamarem de Conselheiro dos Encantos, apelido também ridículo, tão ridículo quanto meu discurso impresso, e o que vejo é apenas o espectro de dois mil espectadores numa première com muita gala e brilhos louváveis. Poderia me casar com a Debra Paget! Mas não acho que ela seja suficientemente gostosa. Quem acha é o Tales! Mas o Tales!... Katmandu! Já mudei de assunto. O que era mesmo? Ah, sim, o romance. Para satisfazer meu mefistotélico ego é preciso dá-lo à estampa e fico aqui tentando edificar o edificante, mas o que queria mesmo era receber o preço da obra antes de saber o endereço da loja de tijolos. Poderia fazer isso trabalhando com traduções, mas não consigo esquecer que traduções são como mulheres. As mais belas não são fiéis. E as mais fiéis não são belas. A literatura é uma arte monoglota, pobres de nós, nisto somos únicos. O que me consola é que sei que nas águas-furtadas das cidades onde ainda não trancafiaram todos os livros há uma ínfima minoria de grandes escritores. O que me desconsola é que eu talvez pertença à maioria dos ínfimos escritores que escrevem unicamente para encantar e comer a estudante de Letras ou, na evidente falta delas, até mesmo a mulher do vizinho. Depois que as fãs se revelam poucas e não tão gostosas assim, só lhes resta posar de idólatras da literatura – que julgam nascer de suas colunas vertebrais ontológicas – e, já sem mulheres e livros, escarram citações e cospem arcaísmos enquanto engolem toneladas de chás insípidos em suas tardes de fardão. Pode ser pior? Pode. E não demora. Pronto! O riff de guitarra do velho Page sai só do lado direito. Só do direito. Popocatépetl! O canal esquerdo pifou. Talvez, se eu conseguisse oxidar os cabos de conexão dos canais da porra da minha mente, pudesse não perceber e passar a noite ouvindo metafisicamente o mavioso canto do meu sofisticadíssimo aparelho de som tão tesudamente – foi uma punheta! – instalado no meu covil de amoitagem, um lupanar tão luxuriante que, para caracterizá-lo como tal, já cheguei a pensar em pendurar um cartaz na porta com a verdadeira cara do Dr. Phibes, mas esta foi outra ideia que o vento levou como o sopro que não é meu leva embora as minhas palavras sustentando suas asas de borboleta. Talvez todas estas minhas criações não passem de plágio, um plágio tão inteligível que seria inútil. Sabe como é, a toda ação corresponde uma reação igual e contrária. O que faz de qualquer ação uma coisa inútil, ainda que inteligível. Então, de que adianta escrever meu texto monofônico? É como a voz de soprano do Homem de Palha que também se ouve só do lado direito. Sem dialética, deve ser uma sacanagem capitalista. Ou a sacanagem não existe mais? Capitalismo, eu sei que existe. Claro que eu poderia cantar do lado esquerdo e compor um belo estéreo com o Robert Plant, mas isto incomodaria a deusa que dorme no quarto ao lado e que

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gosta das coisas puras. E o vizinho que agoniza no quarto do andar de cima e que gosta das coisas impuras. Não acreditam? Vocês vão ver. E escreva-se com uma falta de barulho dessas! Por que as porras das coisas não me obedecem? Ficaram as notas engasgadas na caixa de som, ficaram as letras entupidas na caixa de silêncio. Vamos, letrinhas, tenham pena de mim, tenham ao menos compostura e componham-se! Extravasem o que me corre na alma e anseia derramar pelos meus dedos. Saibam que, se refreio minha emoção, terei um enfarte – os médicos dizem isto. E, se solto minha emoção, terei um enfarte – os jornais dizem isto. Vamos, queridas letrinhas, cubram com seus férteis cocôs de mosca o branco da mortalha deste papel. Não me deixem desconsolado, achando que não estou equipado para o que vim fazer; que me foram dados o capacete e o motor, mas me falta a gasolina. Será possível? É possível. Bebamos, pois! Que o álcool, que gosta deste caminho, propulsione e faça com que o fracasso me suba à cabeça. Abro uma Duvel. Então, é isso! Que se fodam as coisas todas. O negócio é armar uma barra pesada. Já que temos o Led em volume crítico no lado direito, vamos ler as páginas esquerdas das críticas do esquecido Mikhail Vasilyevich Lomonósov, de quem ninguém mais se lembra, nem eu. Agora é que o negócio vai pesar... Dedos levíssimos desenham carícias nos cabelos do Taus. – Fazendo seus exercícios anaeróbicos de ódio, meu libidinoso peralvilho? – E segue-se um beijinho na orelha. – Assim você perde o fôlego, o ar... Oui, c’est elle! C’est la déesse! É a Tarsis, a deusa mais cobiçada dos pescadores de pérolas, a Carmen que o Bizet imaginou pelada e que emerge para fora do quarto com sua bundinha única. Tenho vontade de escancarar a janela já aberta da sala, botar a cara e a língua para fora e avisar a cidade inteira, mas não posso, estou de mau humor, tenho que manter uma certa coerência, e solto apenas borbulhas. – Que se foda! Eu... Agora é o beijinho na boca que sela a caverna do dragão e a deusa continua: – Acaba até perdendo o sopro. E o que seria de mim sem o teu sopro? Pois é, o tal do sopro, mas este é outro, um vento lúbrico, e muda-se o dragão em carneiro, o brado em sussurro, só o fogo não arrefece. – Eu estava... Não importa. Volta pra cama. Aliás, eu vou com você. Vamos... – Você não ia escrever? – Literatura é uma tolice. – Isto, saberemos oportunamente. Agora vá macular o papel com as suas bobagens e depois a gente emporcalha o lençol com as nossas besteiras. – Promete? – Prometo. Esfomeado, ainda tento:

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– Mas, olha, veja só, a gente bem que podia brincar de eu escrevo uma palavra, você me dá um abracinho; escrevo uma frase, você me mostra o peitinho; completo um parágrafo, você tira a calcinha; acabo o capítulo, você senta no meu colo; termino o romance e a gente se enrosca, entra dentro um do outro, descreve... – Escreve aí! Eu te espero lá na cama. – Jura que você... – Todinha. Mas só se você se comportar... Comportar? Para me aconchegar naquela bundinha, sou até capaz de escrever mesmo. E bem! Como os portugueses. Mais que isso. Como os antecessores deles, o povo que os portugueses descobriram no que chamaram de Boa Baía e que deu certo porque, ao contrário do Brasil, depois os ingleses inventaram um país para eles. Não antes que eles tivessem inventado a epopeia. E é assim que Taus, este pobre escriba, encarnando de forma contemporânea um extemporâneo deus hindu – “aquele que apazigua as discussões”, o deus do no problem – arranca sua presa direita e, usando-a como pena, escreve com a mão direita superior enquanto rebusca o dicionário com a mão esquerda superior, acaricia os seios da Tarsis com a mão direita inferior, afaga a inestimável bundinha com a esquerda inferior e sonha em, com a inevitável tromba, conhecer-lhe a intimidade mais recôndita. Tarsis e um tapinha nas costas do Taus. – Calminha, meu adorado Ganesha! Inventa tuas palavras insuspeitas enquanto eu imagino posições imprevisíveis. E lá vai a Cassandra indiana, se manda levando a mesma bundinha, a dela, aquela, para o mesmo quarto. Sabe que quando brinca com aquela mitologia hindu de séculos passados me põe doido. A mulher mais gostosa do século XX rodopia numa dança século X que os Chandela imortalizaram em pedra em Khajuraho, sem imaginar que a estátua se tornaria carne e se enfurnaria nos meus lençóis. Tanto tempo passado, mas as coxas são as mesmas. Sorte dela. Nasceu com o charme da época certa, a outra, na época certa, esta. Eu? Caí de paraquedas no século errado. E sou obrigado a viver aqui, numa porra de um tempo em que os homens, depois de se divertirem com duas guerras mundiais, só interromperam temporariamente a brincadeira pelo receio de que faltasse gente para fazer a terceira. Uma única coisa fizeram de bom: inventaram o rock ‘n’ roll. Caceta grega, como o mundo era chato antes do advento do rock ‘n’ roll! Tempo em que o amor era vivido em cartinhas, a malhação era pura retórica; a felação, um poema parnasiano, até a penetração era pura teoria e o sexo era aprendido em internatos, matéria como as outras, só não tinha nota no boletim. Sei de tudo isso porque li livros no tempo em que eles existiam. Comprei num antiquário parisiense a edição original do século XVII do “Manual dos Suspiros”, o livrinho de sacanagem da época, que ensinava as donze-

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las e mancebos como fazer o que não podiam fazer. Era a trepação abafada nos escaninhos amordaçados dos corredores, úmidos de outra coisa, dos palacetes imperiais. Tudo isto durou até que aquele outro Denis, o Diderot, em sua fase menos maçante e intelectual, inspirou-se no oriente dos serralhos e demais disponibilidades e perpetrou as suas “Jóias Indiscretas” em que o safado Cucufa dá ao Sultão Mangogul uma pedra preciosa que faz com que a deliciosa Mirzoza conte ao amante histórias eróticas, não com a boca, mas com os lábios de baixo, órgão mais apropriado para relatar o que o sultão realmente desejava ouvir. Tudo isso durou até que as cabeças rolaram, não para fora dos calções e sim para dentro das guilhotinas. Estão vendo o que vocês perderam por apoiarem a Revolução Francesa e derrubarem a Literatura? Nunca saberão como é que os caras conseguiam ficar de pau duro valsando voltas em volta de voltas e roçando levemente as costas de damas etéreas em salões descomunais de tamanho e luzes. E depois, na alcova, como era possível? Minha senhora, se me permite, gostaria de desfazer-lhe os laços e desvendar-lhe o corpo! Caso madame me conceda, teria imenso prazer em introduzir meu ereto pênis entre seus róseos lábios! Cara consorte, estás hoje verdadeiramente deliciosa! Permita-me fecundá-la! Ora, mas que grande porra! E dá-lhe a musiquinha saltitante do bobo alegre Mozart que talvez por isso, e não aguentando mais, morreu tão cedo. Criança. Virgem, talvez? Sei lá. Sei que de tudo isto nos salvou o rock ‘n’ roll! Já que estou cedendo – tudo por aquela bundinha! – abaixo a altura do Zeppelin. Concentro-me. Baixo os braços, toco as teclas. Não. Levanto-me, abro os braços. Penso em alguma coisa íntima. Compor um noturno. Trocar o teclado pelo teclado. Não. Melhor uma sinfonia, uma ópera, uma tetralogia enfática. Não! Katmandu! Vou é antecipar meu futuro e, sedicioso, invertê-lo e trocar o teclado pela guitarra. Assassinar o maldito Alberich e de agora em diante, só ouvir rock ‘n’ roll! Grande ideia! Mas antes é melhor escrever qualquer porra se pretendo derramar minha porra em lugar quente. E aumento o volume do Zeppelin. Não vá depois o espectro do anão wagneriano me aparecer na profundidade submersa dos meus lençóis e estragar a cavalgada que pretendo dar na minha valquíria. Taus senta-se, bota a Smith & Corona em posição, concentra-se. E começam os esgares. Autêntico festival de tradicionais GuiZhou Open-Air Opera DiXi, as carrancas retorcidas que espantam até velhos e criancinhas nas óperas chinesas, mesmo nas apresentações para plateias quase vazias de menos de sete milhões de pessoas. Taus, sozinho, não espanta ninguém a não ser a si mesmo que, de resto, nem precisava de novos pavores. Mas é incontrolável. A boca corre até a orelha esquerda, expondo dentes mais careados que os do Balzac ou da Rainha Sissi – ela, pelo menos usava dentadura; ele, a cara dura e com um bafo, apesar de mais recente, ainda pior. Uma sobrancelha engancha-se no topete provocando rugas na

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testa de dar inveja ao especialista e cuidadoso colecionador Keith Richards. O nariz achata-se de um lado, provocando um calombo do outro e permitindo que se veja até o fundo do poço craniano de onde vazam lavas vulcânicas mal lavadas e mais vermelhas que o magna de Gaia. A língua escorre como serpente nojenta, rasteja até o umbigo esparramando um rastro melado que compõe o desenho de uma gravata de enforcado. Os olhos arregalam e explodem, um para fora, desabrigando a cavidade oca e podre – um rombo num tronco de árvore imemorial devorado por cupins – outro para dentro, espremido como ovo novo, matéria gelatinosa e porca esparramada pelo rosto deformado que ri inteiro, gargalha sobre si mesmo e de si mesmo, parece divertir-se imenso, deleitando-se tanto com a maravilhosa plateia que inexiste quanto com o miserável ator que existe, mas esqueceu o texto. Malditas palavras! Maldição que, escrita ou pronunciada, impregna-se indelével e imperecivelmente na alma da vítima, fá-la escrava e de lá jamais descrava, a não ser para se propalar e propagar por toda a biografia, genealogia, geografia, bibliografia e até mesmo historiografia do coitado, esteja ele na Índia (que hoje não me sai da cabeça, culpa tua, sedosa Tarsis!) ou nas terras onde corre leite e mel. Exemplo clássico são as palavras que compõem o “Mahabharata”, epopeia da qual se diz que, caso não existisse, não haveria a Índia. O “Mahabharata” é a própria Índia. E é lá que Arjuna, quando conta à mãe que ganhou um prêmio num torneio, ouve que, seja o que for, terá que dividi-lo com os irmãos, o que faz com que a deliciosa Draupadi, troféu ganho por Arjuna, se transforme em repasto a ser degustado nas camas de toda a família. Maldição! É assim também na Bíblia. Em Juízes, 11.30-40, Jefté faz um voto a Deus, prometendo que se o Senhor entregasse seus inimigos, os filhos de Amon, em suas mãos, quando voltasse vitorioso, o primeiro que saísse da sua casa seria oferecido ao Senhor em holocausto. E foi a filha única quem saiu da casa, vindo ao seu encontro com adufes e danças, o que lhe selou o triste destino, tendo Jefté rasgado as vestes e a jovem pranteado sua virgindade por dois meses no alto dos montes. Maldição! Em todas as línguas, em todas as culturas, em todas as raças, em todos os cantos de todos os mundos, a palavra, uma vez escrita ou pronunciada, torna-se absoluta, não há fiandeira do destino que a possa destecer; não há feiticeira ensandecida dos confins da Escócia, como garante o misterioso bardo inglês em seu “MacBeth”, que a possa desmentir; não há iluminado da stupa de Sarnath, por mais que os monges lhe girem em volta, que a possa obscurecer; não há poder maléfico, nem mesmo o de Angra Mainyu, de que nos fala Zoroastro, que a possa desmantelar; não há pitonisa em qualquer templo de Apolo, seja ele no umbigo do mundo ou no cu do próprio, que a possa desmanchar – e nem seus patrões, nem mesmo os próprios deuses a podem apagar. Palavra, e não anatomia, é destino.

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E destino enche o saco. Quanto mais o meu que, como minhas palavras, é sempre barroco e beletrista. Porque minha literatura é beletrista. E barroca. Sou um homem barroco, insisto nisto, comigo é tudo muito. Taus toma mais um gole, toma coragem, decide lutar. Vai. E após mover todas as forças e remover todos os dados que tem em sua mente, em sua prateleira de livros, anotações de diários, cadernos escolares, apostilas de cursos estanques e até mesmo anotações nas paredes de seu banheiro, obtendo resultados mais inúteis e calados do que uma página em branco, Taus entrega-se. É preciso se conformar. O que foi criado antes? As palavras ou as coisas? Evidentemente, foram as palavras. No silêncio, nada pode ser criado. Qualquer Wittgenstein, mesmo que nunca tenha aberto uma Bíblia, sabe disso. Condenado, Taus volta sua atenção para a máquina de escrever, visão tão contumaz quanto a latrina para o encarcerado. Lá está, com toda sua empáfia, a eternamente estática Smith & Corona, aquela que ninguém nunca teve, só ele. Foi uma coisa boa do remoto século XX. Uma máquina de escrever muito rock ‘n’ roll. E a vítima se enche de orgulho besta. Só eu tenho. Só eu tenho uma porrada de coisas. Sou um merda de um colecionador de tudo quanto é coisa já esquecida. Coisas tão esquecidas que nem eu mesmo me lembro delas. Mas estão todas aqui, muito bem guardadas. Até o dia em que eu morrer e, se tivesse filhos, eles imediatamente chamariam o mercante do sebo para fazer o favor de jogar toda esta merda fora que eles, os rebentos, têm mais o que fazer na vida. Saem setecentos quilos de tralha e entram os Memory Stick deles. Contendo muito mais informação. Ora, pois. Antofagasta! Taus sente-se velho e senta-se. Mais uma cerveja. Bem forte, Kasteel, 11%. Relaxar. Não vai dar, tem um dragão vomitando azia dentro de mim. Melhor um uísque, mais forte, direto na veia, como o som do Zeppelin. E, como o Zeppelin, envelhecido precisamente há 25 anos. O tempo da minha ressaca. Engole três goles e descobre o que já sabia. Velhice só é boa quando vem engarrafada. Puta bagaço! Braços derramados no tapete,Taus começa a se fechar quando a porta do quarto se abre, os braços se abrem, a vida se abre. Promessa é dívida, ninguém duvida, e Taus saltita para lá deixando que seu mau humor pingue no tapete da sala, não faz mal, se embolorar que mofem as palavras, bem feito e bem trancadas na gaveta da posteridade. Além do horizonte azul e maior que ele, lá está ela, a Tarsis todinha. E como agora já pode e para que a cidade toda saiba que o velho bluseiro tinha razão, Taus abre a janela e, já menos envelhecido, proclama, mãos erguidas ao céu, “Let this girl Boogie-Woogie!”. E vai-se a valsa.

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