O CAVALEIRO DA SAÚDE

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Silvia Czapski e André Medici

O cavaleiro da Saúde criador da medicina de grupo e dos planos de saúde no Brasil

São Paulo 2011

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Copyright © 2011 by Silvia Gzapski e André Medici Envidamos todos os esforços para localizar eventuais detentores de direitos autorais sobre imagens e textos reproduzidos nesta publicação e agradecemos toda a informação a respeito

Produção editorial

Projeto Gráfico e Composição

Equipe Novo Século Claudio Tito Braghini Junior

Capa Equipe Novo Século

Imagem de capa

Célia Thomé

Preparação

Cintia da Silva Leitão

Revisão

Monica Kratzer e Hugo Almeida

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Czapski, Silvia O cavaleiro da saúde: a saga de Jujan Czapski, criador dos planos de saúde no Brasil / Silvia Czapski André Medici. -- Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011. 1. Médicos – Biografia 2. Czapski, Jujan, 1915-2009 I. Medici, André. II. Título 11-04020

CDD-610.92

Índices para catálogo sistemático: 1. Médicos: Biografia 610.92

2011 Impresso no Brasil Printed in Brazil Direitos cedidos para esta edição à Novo Século Editora Rua Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andar CEP 06023-010 – Osasco – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Para Juljan, cujo lema sempre foi fornecer à população um bom nível de serviços de saúde.

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Sumário

Prefácio – Adib Jatene............................................................................ 11 Apresentação .............................................................................................13

Primeira Parte - O Cavaleiro da Saúde......................................17 árvore genealógica................................................................................. 19 Tudo Outra Vez?........................................................................................ 21 Fazenda Obra, Poznan, Polônia........................................................25 Dias de guerra............................................................................................43 A França cai................................................................................................. 55 No lendário navio Alsina..................................................................... 61 Recomeço de vida ..................................................................................... 71 Polobraz vai à falência .......................................................................83 Querida avó................................................................................................. 91 Medicina e arte..........................................................................................99

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Vida nova, casa nova............................................................................. 107 Mudança de rota...................................................................................... 115 Nasce a Policlínica Central............................................................. 125 Alçando voo ............................................................................................. 133 Unindo forças........................................................................................... 143 Recomeçar outra vez............................................................................ 153 Ação global............................................................................................... 165 A luta continua....................................................................................... 179 Um novo hospital.....................................................................................191 A grande conferência de Alma Ata..............................................201 Vida hospitalar...................................................................................... 207 Conhecer para influir......................................................................... 217 Escrevendo o futuro.............................................................................225 Mobilização ecológica........................................................................233 Visão estratégica.................................................................................. 247 Saúde ambiental..................................................................................... 265 Conselheiro da saúde........................................................................... 271 Emoções . ..................................................................................................... 281 Epílogo......................................................................................................... 289 Palavras de Juljan....................................................................... 293

Segunda Parte - A história por trás da história.................. 297 Juljan Czapski e a saúde no Brasil (1941-1964)......................... 299

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Juljan Czapski e as origens da Medicina de Grupo no Brasil (1964-1976)................................................................339 Referências................................................................................................377

Posfácio - Mensagens dos parceiros.........................................383 Pioneiro da saúde - Reinaldo Scheibe .........................................385 Uma contribuição extraordinária – Waleska Santos . .......387 Saúde por inteiro – Paulo Barbanti ........................................... 389 Um exemplo de vida – Diretoria da ABRAMGE ...................... 391 Do sonho para a realidade – Dante Montagnana ...............395 Uma trajetória de inspiração – Dante Montagnana ........ 397

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Prefácio

É um prazer escrever algo sobre a extraordinária figura de Juljan Czapski, com quem convivi por décadas. Fomos contemporâneos na Faculdade de Medicina da USP. Ele foi, sem dúvida, uma das lideranças mais atuantes na formulação e na execução de medidas que resultaram em nosso sistema de saúde atual. Encontrei-o inúmeras vezes, sempre na linha de frente, defendendo posições, organizando entidades e fiscalizando a execução das tarefas. Ele foi pioneiro do sistema de pré-pagamento, organizando a primeira empresa de medicina de grupo do país. Esteve presente, com atuação destacada, nas Conferências Nacionais de Saúde, sendo a sétima edição realizada, em 1980, sob o impacto deste slogan da Organização Mundial da Saúde – OMS: “Saúde para todos no ano 2000”. 11

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Aliás, foi o único brasileiro a participar da Assembleia-Geral da OMS, realizada em 1978, em Alma Ata, no Casaquistão. Na oitava edição da conferência, em 1986, promovida no Estádio de Esporte de Brasília, ele acompanhou a distância as discussões que serviram de base ao capítulo de saúde da Constituinte, em cujo período de elaboração participou com entusiasmo. Também esteve presente, em 1992 e 1996, na 9ª e na 10ª Conferência Nacional de Saúde que – respectivamente, consolidou o SUS com a sua descentralização em âmbito municipal e consagrou a atenção básica de saúde, estabelecendo o Piso de Atenção Básica (PAB) –, bem como nas demais conferências, que se seguiram. Teve atuação marcante no Conselho Estadual de Saúde como representante na Comissão de Avaliação dos Hospitais administrados pelas Organizações Sociais no Estado de São Paulo. Sua participação junto da Federação dos Hospitais do Estado de São Paulo (Fehoesp) e em outras entidades do setor da saúde foi relevante. Sempre o vi em todos os fóruns defendendo com lucidez e perseverança aquilo que acreditava ser o melhor para a população. Foi, sem dúvida, um líder que criava, inventava, combatia e vencia. Tem a maior conquista que um lutador pode almejar: o respeito de todos os que conviveram com ele.

Adib D. Jatene

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Apresentação

Ótimo contador de histórias que encantava seus interlocutores ao relatar passagens de sua própria vida, uma verdadeira saga, o doutor Juljan nunca se animou a redigir suas próprias memórias. Daí a ideia de produzir um livro, a partir da gravação dessas lembranças. Seria um presente para ele — pelos 85 anos que teria comemorado em 2010 —, além de cumprir o papel de resgate histórico, dada sua memória aguçada reforçada pelo hábito de guardar documentos de época, e seu papel de protagonista na segunda metade do século 20 e início do século 21. A doença tomou todos de surpresa enquanto o projeto já estava em andamento. Tínhamos poucas horas de entrevista quando ele faleceu, deixando, porém, um precioso acervo de mais de 1,5 mil documentos inéditos, essenciais para a finalização do texto. Uma corrente 13

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de apoio se criou na forma de depoimentos e cessão de materiais que enriqueceram o conteúdo. Como resultado, este livro traz dois textos complementares. Silvia, sua filha jornalista e autora de livros, optou pelo tom de romance para relatar os 84 bem vividos anos de Juljan, pontuando aqui ou acolá com informações que situassem sua trajetória. Para tanto, em adição aos relatos gravados, apoiou-se nas correspondências pessoais, nos certificados, nos textos que ele produziu e em cerca de setenta depoimentos de pessoas que conviveram com ele. André Medici, historiador e economista em saúde, que se tornou amigo e admirador de Juljan nos anos 1980, somou a essa matéria-prima o profundo conhecimento setorial para oferecer um retrato contextualizado de sua atuação, revelando o papel do Cavaleiro da Saúde no período em que suas iniciativas foram mais inovadoras, dos anos 1940 aos anos 1970. Entre tantas pessoas que conviveram com Juljan, eis aqui, em ordem alfabética, as que concederam para este projeto depoimentos por telefone, pessoalmente ou em diálogos eletrônicos: Alan André Dunin Borkowsky, Ana Paula Barbulho, Ana Trotta Yaryd, Antonio Bacca, Arlindo de Almeida, Bárbara Czapski, Bárbara Myers, Cícero Sinisgalli, Claudio Czapski, Claudio di Lascio, Conceição Aparecida de Mattos Segre, Dante Montagnana, Décio Mion, Eliana Faro, Eloisa Matsuda, Eriete Ramos Dias Teixeira, Erik Von Eye, Ermengarda Coelho (Menga), Estêvão Scaglione, Eurico Coelho, Eva Lieblich Fernandes, Fatima Pires, Fátima Santos, Flávio Heleno Poppe de Figueiredo, Gabriela Czapski, Genésio Körbes, Gudron Czapska (a Guenia, em memória), Guillermo Fajardo-Ortiz, Haydée Guersoni, Hebe Carvalho, Humberto Gomes de Mello, Ieraldo Rubo, Inge von Koss, Ivan Schwarz, Jamil Murad, Jan Czapski, Jarbas Karman, José Ludovici, Juergen Koch, Klauss Maria Ranke, Lise Forell, Luz Maria Loo, Marcelo Mattiuci, Marcio Mascaretti Ortiz, Margot Cohn, Marcos Segre, Maria Adenilda Mastelaro, Maria Célia Bombana, Maria 14

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Tereza Zuanetti Sumyioshi, Mauro Fernandes, Moacir Zaduchliver, Monika von Koss, Naelson Correia Guimarães, Neusa Isabel Lopes Nakata, Padre Niversindo Cherubin, Paulo Altenfelder, Paulo Barbanti, Paulo Eduardo Mangeon Elias, Paulo Frange, Paulo Kassab, Paulo Nogueira-Neto, Paulo Roberto Segatelli Câmara, Pedrina Odali Frigerio Ribeiro, Pedro Wongtschowski, Regina Pedrosa Vieira, Rinaldo Orlandi, Maria Rosa Xavier de Souza (em memória), Sergio Marques da Cruz Filho, Waleska Santos. Somando à memória viva, alguns textos inéditos, escritos por parentes próximos de Juljan, como as memórias de seus pais, Ilza e Fryderyk Czapski, e do irmão Jan, atento leitor dos originais. Daniela Alarcon, Marlen Eckl, Pauline Herbach, Ronaldo Bianchi e Tatiana Fecchio cederam entrevistas dadas por Juljan para fins acadêmicos e os resultados de seus estudos. Materiais guardados por ele, bem como os fornecidos pelas entidades parceiras do projeto, foram as principais âncoras da primeira parte do livro, na qual, pelo caráter de um romance, sacrificaram-se as citações bibliográficas. Na fase de pesquisa e entrevistas, alguns profissionais atuaram em vários momentos: Angela Pappiani, Inimá Lacerda e Maira Lacerda (Ikore – administração do projeto e pesquisa); Ricardo Bergamo e Danilo Rezende (reportagens); Elaine Rocha e Luzia A. de Oliveira (apoio administrativo). Também colaboraram para o melhor conteúdo: Fabio Koifmann e Alberto Dines (Casa Stefan Zweig), David Braga, Margarete Conde (responsável pela exposição em homenagem ao doutor Juljan em 2010), Mariângela Guanaes Bortolo Cruz (Conselho Estadual de Saúde/SP) e, sobretudo, as equipes dos parceiros que apostaram no projeto, como revela o posfácio deste livro. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Ao lado das fotos pinçadas do arquivo de família, este livro foi enriquecido por outras, cedidas pelas entidades parceiras e pelo Instituto Moreira Salles, que detém a coleção de fotografias de Alice Brill, esposa de Juljan, feitas sobretudo nos anos 1950. A solidariedade também ficou clara pela 15

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autorização dada ao uso das imagens. Não foram poucos os esforços para localizar as pessoas, que imediatamente apoiaram a proposta. A editora Novo Século acreditou neste projeto, viabilizando a produção de um livro mais completo e com melhor distribuição. Os autores

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Primeira Parte O Cavaleiro da SaĂşde Silvia Czapski

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INES CZAPSKI *1950 Médica, casada com Francisco Ubiratan Dellape

ALICE BRILL *1920 Filha única, artista plástica, escritora, filósofa

CLAUDIO CZAPSKI *1952 Administrador, casado c/ Aurelia Lizete de Barros / Filhos: Claudia e Fernando SILVIA CZAPSKI *1955 Jornalista e escritora GABRIELA CZAPSKI *1959 Médica

SONIA CZAPSKI *1961 +1963 LUCIANO CZAPSKI *1963 Casado c/ Alessadra S. Silva Filhos: Bárbara e Gabriel DENISE CZAPSKI *1965 Casada c/ Egberto T. Simoni Filhos: Lucas e Sarah

JULJAN CZAPSKI *1925 +2010 Médico, agricultor Cavaleiro da Saúde

ERICH BRILL *1896 +1942 Primogênito de 4 irmãos, artista plástico

FRYDERYK CZAPSKI *1892 +1980 Filho único, proprietário de Obra, migra para o Brasil com esposa e filhos

ILZA DYRENFURTH *1896 +1984 (Ilse, Matka) Irmãos - Hertha e Werner

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JUL *18 Pri pro tor

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FEL *18 Pro Bre

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BARBARA PFEIFFER *1943 Professora e tradutora

RICARDO F. CZAPSKI *1968 Casado c/ Fernanda G. de Freitas, Filha: Helena

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Co

MARTE LEISER *1895 +1969 Jornalista e escritora migra para o Brasil

GUDRON CZAPSKA *1926 +2010 (Guenia) Secretária

JAN CZAPSKI *1936 Administrador de empresas, agricultor

W

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os,

I

árvore genealógica WOLF BRILL +1927 Comerciante SOPHIE MORGENSTERN +1949

JULIAN CZAPSKI *1852 +1912 Primogênito de 5 irmãos, proprietário de Obra (que se torna Morgadio)

io

os

H

SZYMON CZAPSKI *1826 +1908 Caçula de 13 irmãos proprietário de Obra

SALOMON CZAPSKI Comerciante, comprador de Obra

ROSALIE GOLDENRING *1830 +1916

VALESKA FRIEDLANDER *1869 +1953 (Vally Czapska, Ó-ó)

FELIX DYRENFURTH *1864 +1937 Proprietário Petersdorf, em Breslau

ner ELLA ALEXANDER *1870 +1942 Tem a irmã Wally Ollendorf

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Moradores em Obra, com papel importante na história => Roma (prima de Fryderyk) e a filhinha Evunja => Antoni Dyba (motorista,) => Família Tschersich e “Papa” Marwitz (gerência da fazenda) => Robert Falkenburg (secretário) e Senhora Dybizbanska Stara Wies, durante a guerra => Família Durray (funcionário da estação ferroviária)

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Tudo Outra Vez?

Domingo, fim de tarde. Recém-chegado da fazenda em Itu, doutor Juljan já tinha ajudado a guardar os produtos do sítio que acabara de trazer: um queijo tipo mineiro, dois potes de geleia de jabuticaba cuja receita ele mesmo ensinara a caseira a fazer, verduras orgânicas e algumas frutas do pomar para o consumo na semana. Descansou um pouco e passou os olhos pelas principais notícias de economia e política no jornal do dia. Muitas delas ele já ouvira no rádio, fiel companheiro de todas as manhãs. Pensou em escolher um livro para começar a ler enquanto esperava a pesquisadora. Conhecia bem os das estantes que cobriam três paredes da sala de formato em “L”. Mas alguns deles ele gostava de reler. Por exemplo, a biografia de Madame Marie Curie, nascida na Polônia, assim como ele, e a primeira pessoa a ser laureada duas vezes 21

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com um Prêmio Nobel pelas descobertas no campo da radioatividade. Ou as memórias do alemão Albert Schweitzer, que foi ganhador do Prêmio Nobel da Paz e já era teólogo, músico e filósofo quando optou pela medicina para dedicar o resto de sua vida à população da cidade de Lambaréné, no Gabão. Ou, ainda, os textos sobre medicina e ética do alemão Hans Jonas, tão importante, mas pouco conhecido no Brasil. Tudo em ordem na sala para receber as visitas. Um ambiente sóbrio que, em cada detalhe, lembrava algum período de sua vida. Com ar de modernidade, o conjunto de sofás fora comprado pelos idos de 1959, ano em que nasceu Gabriela, a caçula, e ele já tinha condições de buscar uma casa mais espaçosa para a família. O conjunto ganhara nova roupagem antes de ser trazido para o tranquilo apartamento num antigo prédio do mesmo bairro, Sumaré, para onde se mudou com Alice depois que os filhos cresceram e tomaram seus próprios rumos. No chão, o belo tapete artesanal em lã grossa também era da residência anterior, localizada na Rua Guaçu. Fora confeccionado nos anos 1960 por mulheres de um sítio nos arredores de São Paulo, participantes de um projeto social que ele ajudara a divulgar junto a diretores da Volkswagen do Brasil. Lembrou-se dos almoços semanais com a diretoria da indústria quando sua Policlínica Central cuidava do atendimento médico por lá. Também recordou de alguns companheiros de Policlínica, primeira empresa de medicina de grupo do país, a qual ele idealizara, nos anos 1950, sem conhecer similares estrangeiros, apenas observando deficiências dos serviços prestados aos trabalhadores. Refletiu em como o sistema crescera e ganhara variantes, pensando no significado de ser considerado o criador dos planos de saúde no país. Sentia satisfação em ter sido pioneiro, admitiu para si próprio, mesmo que os momentos de prestígio tenham se mesclado aos de perseguições. Uma coisa era certa: ainda havia muito por fazer. Duas almofadas bordadas à mão enfeitavam o sofá. Alice, sua companheira desde 1942, oferecera os desenhos como moldes mais 22

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modernos para ajudar as artesãs tapeceiras. Na parede ficava a maior marca profissional da esposa, uma artista plástica de renome internacional: o tríptico que ela pintara como lembrança da viagem de três meses a países orientais, que os dois haviam feito em 1969. O médico observou o quadro mais uma vez, relembrando-se do congresso de medicina do trabalho em que participara no Japão e pensando em sua Alice, agora doente. Continuava a acompanhá-lo, mas estava muito mais carente de sua atenção. Levantou-se para alimentar os peixes. O grande aquário, que manteve por todo esse tempo, servia agora como divisória entre a sala de estar e a de jantar. Gulosos, os peixes aproximaram-se do vidro, à espera da ração. Preciso comprar mais plantas para repor as que eles devoraram, pensou. O interfone tocou, era seu filho, Claudio, com um casal de amigos. O rapaz era um executivo e moça era estudante de psicologia e buscava alguém da terceira idade e de bem com a vida para entrevistar. Juljan tinha perdido a conta de quantas entrevistas deu em sua vida. Mas, com esse caráter, era a primeira vez. Com a habitual sinceridade, e não sem uma ponta de orgulho, foi respondendo o questionário trazido pela estudante. Contou sobre sua origem, sua família, suas atividades profissionais e associativas no campo da saúde, as inserções nas áreas cultural e ambiental. Foi quando ela chegou ao ponto central: — Caso pudesse voltar no tempo, faria algo diferente? — Não — retrucou com simplicidade, mas firmeza. Ela insistiu. E ele reafirmou que viveria de novo todos os obstáculos e dificuldades, sem modificar nada. Ela fez, então, perguntas sobre o peso da idade. Ele confessou que logicamente isso impunha restrições físicas e era preciso se adaptar. Descreveu sérios problemas de saúde que enfrentara no correr dos anos, mas que jamais o impediram de seguir em frente. Devido à idade, exemplificou, já não viajava 23

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com a frequência do passado. Mas continuava circulando e atuando pelas políticas públicas de saúde. Ao se despedir, a moça admitiu sua admiração pelo homem que acabara de conhecer. Tinha sido a única pessoa, até então, a responder-lhe de um modo tão positivo. Depois de fechar a porta e checar se tudo estava bem com Alice, que esteve ao seu lado durante toda a entrevista, o médico preparou-se para deitar. Como sempre, queria dormir cedo, para também acordar cedo. Não imaginava que a conversa com a pesquisadora direcionasse seu sonho noturno. Como um filme, reviu sua vida com detalhes até então não lembrados, a começar pelas primeiras recordações na imponente fazenda Obra, na província de Poznan, na Polônia, onde nascera em 14 de julho de 1925.

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Fazenda Obra, Poznan, Polônia

— Tente de novo, Julek! Força! Alta e insistente, a voz do professor de ginástica arranhou o ouvido do menino como um desafio indesejado, imposto pelos adultos. Sabia-se mais rechonchudo que as crianças de sua idade; desajeitado, até. E não era de seu feitio recusar-se a fazer o que lhe pediam. Tentaria, sim, esticar de novo aquela mola. Afinal, era uma ordem dada Muitas cidades da região em que nasceu Juljan Czapski (pronuncia-se Júlian Txápski), mudaram de nome durante o século 20, na medida em que voltaram a ser polonesas. Poznan, onde fica a fazenda Obra chamava-se Posen até 1918. A mãe de Juljan, Ilza Dyrenfurth (pronuncia-se direnfur), vem de Breslau, atual Wroklaw. Uma curiosidade: nascidos sob domínio Austro-Húngaro, os pais de Juljan foram batizados com nomes germânicos, Ilse e Fritz, mas resolveram adaptar para o equivalente polonês, usado neste livro: Ilza e Fryderyk (sobre quem é quem, conferir a árvore genealógica).

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com as boas justificativas de tornar mais fortes os seus braços e ajudálo a emagrecer. Só que Julek — diminutivo carinhoso para seu nome, Juljan — não queria a imposição. Tomou então uma decisão em segredo. Como o professor prometera um prêmio caso superasse a marca anterior, ele resolveu que, a cada aula, esticaria a mola só um pouquinho a mais. Assim, o professor ficaria satisfeito e o menino ganharia um mimo a cada vez. Sem perceber o truque, Gudron — ou Guenia, como todos a chamavam — observava a cena, com aquele riso contido, típico de uma menininha ante a dificuldade vivida pelo irmão um ano mais velho. Adotada pela família quando bebê, ela fazia quase tudo com ele. Naquele dia, tinham acordado na mesma hora e, como sempre, já tinham corrido com os pés descalços no gramado úmido de orvalho que embelezava a sede da fazenda. Um hábito matinal que as crianças interpretavam como mania da mãe, adquirida no tempo em que ela estudou no Instituto de Serviço Social de Hamburgo com Maria Braun e a famosa líder feminista Gertrud Bäumer. De repente, ouviram a voz do pai, Fryderyk, conversando com um desses hóspedes que, de tempos em tempos, se instalavam na fazenda, sempre cheia de visitas. Ele contava sobre como Ilza prometera a si própria não se casar com um homem que fosse estrangeiro, rico e patrão. Pois bem, vivendo em Breslau (hoje Wroclaw), que pertencia à Alemanha, ela encontrara nele, polonês, financeiramente bem posicionado e proprietário de terras, o companheiro para a vida toda. Para o garoto, essa história soava como disfarce de um amor ancestral. Afinal, seus pais começaram a namorar antes mesmo da Primeira Guerra Mundial, quando Fryderyk foi estagiar na suntuosa fazenda da família de Ilza, Petersdorf, que o menino adorava visitar nas férias. Do alto de sua pouca idade, “antes da guerra” era sinônimo de outra era, muito antiga. 26

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O conflito mundial desfez quaisquer planos conjuntos. Fryderyk, que se alistara voluntariamente no exército prussiano um ano antes, foi convocado para lutar. Permaneceu nas tropas por quase cinco anos. Enquanto isso, Ilza fundou e dirigiu um jardim de infância na própria fazenda Petersdorf, para acolher os filhos das mulheres requisitadas para trabalhar no lugar de seus maridos recrutados para a guerra. Seguindo o conselho paterno, mais tarde, ela ingressou na faculdade de economia. Mas logo a trocou pela formação em serviço social, sendo a primeira de sua turma a tomar a iniciativa de residir num bairro operário de Hamburgo; um reflexo de sua opção pela causa dos mais pobres. No final de 1918, terminada a guerra, Fryderyk reencontrou sua Obra transformada. A Polônia conquistara a independência, mas estava econômica e administrativamente arrasada. Posen, que por três séculos pertencera ao Império Austro-Húngaro, voltava a ser Poznan, polonesa. O clima era de desconfiança entre poloneses, até então oprimidos, e os alemães que lá permaneceram. Moderna para os padrões da época, a fazenda não fora poupada da deterioração de equipamentos e das perdas nas atividades agropecuárias. Os melhores cavalos haviam sido requisitados pelo exército prussiano. Obviamente, nunca mais voltaram. Até que a mãe de Fryderyk, Wally Czapska , conseguira algumas melhorias incríveis para os duros tempos de luta armada. Ainda mais considerando que uma mulher estava à frente de um empreendimento complexo como Obra. Mas tratava-se de uma decisão testamentária do marido, e o filho só poderia assumir o controle aos 26 anos. Wally, que sempre fora uma dona de casa, buscou apoio do irmão, o carismático tio Konrad Friedlander, e do senhor Tschersich, há muitos anos administrador da fazenda, para desempenhar a função.

Na Polônia, certos sobrenomes ganham a forma feminina, quando se trata de mulheres.

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Depois de tantos anos longe da Obra, o que mais surpreendeu o jovem Fryderyk foi a instalação de uma pequena termoelétrica. Agora, todas as casas da fazenda e o estábulo dos animais contavam com energia elétrica. Mas havia muito a recuperar. Orgulhoso pelas duas condecorações recebidas no exército e então com idade prevista no testamento para cuidar da fazenda, ele recebeu Obra seguro de que poderia torná-la novamente uma referência de qualidade. Estava cônscio de sua pouca prática em agricultura, pois seu treinamento tinha sido atrapalhado pela guerra e a repentina morte do pai. Mas confiava em seu senso de organização e num princípio que aprendera durante a vivência com as tropas: valorizar a obrigação do chefe em relação aos subordinados, servindo de exemplo e demonstrando sua dedicação aos que estão sob sua responsabilidade. Enquanto isso, Ilza completou seu curso em Hamburgo, voltou para sua Petersdorf, seguiu os trâmites para revalidar o diploma e sentiu saudades de sua “tia” Wally Czapska. Programou a visita à Obra, supondo que Fryderyk estivesse fora, em viagem. Mas não. O improvável reencontro foi fulminante. Num misto de espanto e alegria, Felix e Ella Dyrenfurth, pais de Ilza, receberam um telegrama dos jovens comunicando o noivado. O casamento, em 1922, marcou a vida de Petersdorf como um evento inesquecível. — Já estou com fome! — reclamou Guenia, que continuava à espera do irmão para o café da manhã. A mesa estava posta na cozinha da grande casa de 20 cômodos. Pão preto, queijo, geleias, patê de fígado. Tudo feito lá mesmo, na fazenda. Também o leite, as frutas, o açúcar de beterraba. Comprados, só as matérias-primas para o chocolate quente, preferido pela menina, e para o café, que o pequeno Juljan usava para temperar o leite. Depois da refeição matinal, como sempre, os dois se juntaram à molecada da 28

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fazenda para irem a pé até a escola primária, que ficava em Stara Obra (“Velha Obra”), a aldeia mais próxima. Julek gostava daquele sistema de todos estudarem juntos em uma única sala de aula. Quando chegavam, cada um tinha seu lugar, de acordo com a fase escolar. Duas professoras dividiam-se entre ensinar e cobrar resultados, propondo atividades específicas para cada faixa etária. Depois, deixavam muita lição de casa. Mais rápido que Guenia, que ainda dedicava algum tempo ao aprendizado de “tarefas femininas”, como o bordado, ele sempre aproveitava o tempo livre à tarde para acompanhar a vida da fazenda. Será que, se o pai lhe mostrasse novamente aquela carta escrita pelo Kaiser Guilherme I em 1905, ele já conseguiria ler o que o imperador austro-húngaro escrevera à mão para seu avô, Julian Czapski? Pois foi esse o documento que transformou Obra num morgadio. Por causa disso a fazenda não poderia ser dividida entre herdeiros e, no futuro, Julek, por ser o primogênito, teria de assumir sozinho a responsabilidade de cuidar da propriedade rural. Ao mesmo tempo, como dono, teria o direito de votar e ser votado para a Assembleia Distrital, com status de deputado. Sempre que pensava nisso, o pequeno Julek também se perguntava se conseguiria adquirir a sabedoria do pai para responder às perguntas cruciais que os funcionários faziam, como: — Senhor Fryderyk, minha filha começou a namorar um rapaz da outra paróquia. O senhor acha que isso está certo? Se a resposta fosse negativa, o namoro era desfeito. E como reagiria diante de respostas inesperadas, como aquela que ouviu numa conversa a respeito do falecimento de uma pessoa da região? Quando o pai de Julek perguntou se tinha sido morte natural, o camponês retrucara: — Foi natural, sim, senhor. Ele não foi ao médico, não! 29

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O menino não tinha ideia do que o destino lhe reservava, mas essa resposta, tão singela, ficaria marcada em sua memória. Nesse futuro tão distante, especulava o filho, talvez tivesse de proceder como o pai, que chamava o mordomo até para calçar um sapato. Por enquanto, não tinha privilégios, seja na escola ou na fazenda. Calado para um garoto de sua idade, ele não se cansava de ouvir as histórias da família, transmitidas de geração em geração. Histórias como aquela, de quando um Czapski foi rei da Polônia por uma noite. Desde o século 16 — sabia, pois tinha aprendido na escola —, sempre que um rei polonês morria, seu sucessor era eleito entre nobres europeus. Certa vez, a votação estava em andamento, mas não se chegava a um consenso. A noite se aproximava e o país não podia permanecer sem regente. Foi quando o banqueiro Czapski, pessoa de reconhecida neutralidade, teria sido indicado para ser o Rei da Polônia, até que, no dia seguinte, se elegesse o monarca definitivo. Ou o relato, cuja real dimensão só entenderia muito mais tarde, de como um acidente com uma carruagem tirou Obra do bisavô Szymon. Mas o primogênito dele, Julian — avô que o menino não chegou a conhecer —, conseguira recuperar a propriedade. Caçula de 13 irmãos, Szymon foi o primeiro Czapski dono de Obra. Ele ganhara a fazenda do pai, Salomon Czapski, um próspero comerciante em Kozmin, que a comprou de Michal Roszkiewicz, em 1852. Antes disso, essa área de 900 hectares sempre fora entregue como concessão pelo governo polonês. Franzino, de rosto fino e aristocrático, e muito inteligente, Szymon quis fazer um curso técnico de agronomia antes de tomar posse. Talvez essa formação tenha influenciado seu estilo de administrar a fazenda, que depois foi sendo transmitido aos seus descendentes. Um misto de modernidade — com bons investimentos em infraestrutura e equipamentos — e de paternalismo nas relações com os funcioná30

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rios. Assim como a propriedade passava de pai para filho, também os filhos dos funcionários foram herdando as funções de seus pais e permanecendo por lá. Obra tinha um solo predominantemente pantanoso, de baixa fertilidade e, em geral, coberto por florestas. Por isso, o jovem proprietário optou pela criação extensiva de ovelhas. Os ganhos dependiam do preço da lã na feira anual de Miskow, que ele fazia questão de frequentar. Foi lá que, uns vinte anos depois, ele notou uma carruagem em disparada. Dentro dela, duas senhoras desesperadas. Ele correu para salvá-las. Mas foi atropelado. Gravemente ferido, não pôde voltar à vida rural. Passou a viver na cidade de Breslau, no inverno, e na estação de águas Charlottenbraum, no verão. Nunca soube que o filho Julian tivera de vender a fazenda para custear o longo tratamento. Em poucos anos, Obra teve três proprietários. O primeiro, para pagar dívidas, derrubou as florestas e vendeu a madeira. O último, Samuel Auerbach, quis encontrar um bom administrador para reerguer a propriedade dilapidada. Indicaram-lhe Julian. O salário era modesto, mas o novo proprietário ofereceu participação nos lucros e patrocinou investimentos importantes, como a implantação da drenagem, uma novidade na região. Logo, Obra voltou a ser vistosa e lucrativa. Já melhor de saúde, de vez em quando, Szymon fazia uma visita. Julian prestava-lhe as honras, como se a fazenda ainda pertencesse à família. Então, o senhor Auerbach faleceu e os herdeiros não quiseram manter Obra. Para o pequeno Julek, agora vinha o pedaço mais interessante do relato: como, apesar de suas economias serem insuficientes e de a fazenda estar prometida a outros, o avô Julian conseguira recomprar a propriedade. Foi assim: sem o conhecimento dos Czapskis, os Auerbach firmaram um compromisso de venda com a Comissão de Colo31

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nização Prussiana, que pretendia retalhar a propriedade em lotes para atrair novos imigrantes alemães. Apesar de consternado, Julian não desistiu. Primeiro, pediu ajuda a seu irmão Siegfried, que se tornara diretor da Zeiss, uma importante fábrica de artefatos ópticos. E o irmão encontrou um fornecedor da indústria disposto a providenciar o dinheiro necessário em troca de uma hipoteca a longo prazo. Julian partiu, então, para o maior desafio de sua vida. Conhecido na comunidade não só pelo porte alto e pela sinceridade, como também pela atitude cavalheiresca e a capacidade profissional, buscou apoio do Conselho Distrital, do qual era membro, e do príncipe Stolberg-Wernigerode, que tinha uma fazenda bem próxima à Obra. Pediu-lhes que influenciassem o governo da Prússia para que desistisse do negócio. A tática foi certeira e, em 1903, Obra voltou aos Czapskis. Mas Fryderyk ainda herdou as últimas parcelas da dívida de compra. Em meio a tantas memórias de família, o menino foi crescendo e ganhando mais responsabilidades. Ficou radiante quando foi destacado para cuidar dos vinhos da adega, instalada no porão. Ainda era muito criança para experimentá-los. Mas, de tanto observar o ritual das refeições, bastava-lhe examinar a mesa posta para adivinhar o cardápio. É que havia taças específicas para cada tipo de vinho, e vinhos específicos para cada comida. Com o novo encargo, ganhou o direito de entrar periodicamente na adega. Sabia que tinha de virar cuidadosamente cada garrafa para preservar a qualidade da preciosa bebida. Passou a querer acompanhar o pai nas visitas periódicas do vendedor, que trazia novas amostras de vinhos franceses ou alemães até Obra para Fryderyk provar e decidir a compra para um ou dois anos. O menino também passou a examinar com mais atenção as centenas de cálices de cristal expostos nas cristaleiras que decora32

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vam a sala de refeições. E se divertia ainda mais com pequenos deslizes da mãe Ilza, que — apesar de ótima anfitriã, amada por todos — não conseguia se desfazer de certos costumes alemães, tão diferentes dos poloneses. É claro que ela adotara o hábito de deixar um prato a mais na mesa, em todas as refeições, à espera de algum visitante inesperado. Era um símbolo da hospitalidade camponesa. Só que, não raro, a mãe do pequeno Juljan perguntava o tempo de permanência de quem chegava para ficar. Entendendo a atitude como um jeito germânico de ser, os amigos perdoavam essa “grande grosseria”. Por não existir ginásio na aldeia, quando Julek e a irmã terminaram o primário, um professor particular foi contratado para continuarem os estudos em casa. A eles, juntou-se Jurek, filho de um guardaflorestal da região, garoto cuja inteligência impressionou Fryderyk. Ele passou a morar e estudar com os Czapskis. No final de cada ano letivo, os três prestavam exames em uma escola pública da região para validar o conhecimento adquirido. Mesmo que não se tivesse vocação para a música, aprender a tocar um instrumento era outro requisito da formação humanística da época. No caso de Julek e Guenia, essa foi uma tarefa que a querida avó, Wally Czapska, tomou inicialmente para si. Com seu jeito único de ver só o lado bom das pessoas, ela tratava o neto como “a criança mais bonita do mundo”. Ele, por sua vez, enchia-se de orgulho pela autoria do apelido Ó-ó, que ela manteve a vida toda. O menino ainda era quase um bebê, quando tentou pronunciar Oma – avó em alemão. Saiu Ó-ó. Bem mais baixa que o falecido marido, Ó-ó tinha uma agilidade inesperada para seu corpo roliço e o hábito de tocar seu piano de cauda todas as tardes por pelo menos uma hora. As crianças viviam inventando motivos para visitá-la em sua Villa, nome dado pelos familiares à antiga residência do gerente da fazenda, que fora reformada para 33

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ela após o casamento de Fryderyk e onde também morava a sobrinha Roma, a quem ela tinha ajudado a criar. Nas férias, o pequeno Julek adorava assistir aos ensaios dos conjuntos musicais que Ó-ó formava com os hóspedes mais talentosos e, depois, às concorridas apresentações que ajudavam a transformar a Villa num centro de reuniões de jovens. Mesmo sem talento para tocar, ele guardaria para toda a vida o gosto pela música erudita que absorveu com essa vivência. E chegou o dia em que o menino ganhou de seu pai um lindo cavalo branco, que fora colocado à venda pelo exército depois dos anos de serviço na caserna. O pônei que ele tinha usado para as primeiras cavalgadas fora entregue à irmã. Manso e benquisto pela criançada, revelou-se manhoso também com ela: obedecia a todos os comandos, exceto o de ultrapassar a divisa da fazenda. Complementando o presente, Fryderyk contratou um sargento para dar aulas de equitação ao menino. Com dificuldade para montar num animal tão alto, o garoto alegrou-se quando viu o bicho se ajoelhar, facilitando a tarefa. E, a partir de então, também entrou na sua rotina o aprendizado da arte de cavalgar, desde o simples trote e galope até verdadeiras acrobacias sobre o animal em movimento. Dificilmente, pensava Julek, alcançaria a maestria dos jóqueis, que eram a atração nas grandes exibições de animais. Como aquela maravilhosa Feira Nacional de Poznan, em 1929, que marcou os dez anos de independência da Polônia e, dizem, atraiu mais de quatro milhões de visitantes. Fryderyk teve a ousadia de alugar um ônibus para que os 30 hóspedes da fazenda assistissem às demonstrações dos melhores exemplares de cavalos Hackney, ovelhas e gado frísio-holandês criados em Obra. Uma bela festa que lhe rendeu a Grande Medalha Nacional e muitas medalhas “menores”. 34

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Ainda muito criança para se lembrar de detalhes, o menino não perdia a chance de rever o filme feito no evento quando os pais decidiam projetá-lo para uma visita. Produzi-lo foi mais um luxo propiciado pelo avanço tecnológico daqueles loucos anos 1920, década em que o cinema ganhou som, inventou-se a tecnologia da TV em cores, aconteceu o primeiro voo de avião sobre o Atlântico e a penicilina foi descoberta. Talvez os adultos considerassem-no criança demais para compreender as mudanças político-econômicas em andamento no continente europeu. No entanto, o pequeno Julek tinha fascínio pelas conversas sobre o tema. Por meio delas, aprendeu que, depois da Primeira Guerra Mundial, mas ainda antes de ele nascer, aconteceram vários eventos marcantes cujas possíveis consequências motivavam divergências nas rodas de discussão. De um lado, em 1922, foi criada a União Soviética, resultado da ascensão do comunismo bolchevique. Do outro lado, e na direção inversa, tomaram impulso movimentos de extrema direita como o fascismo de Benito Mussolini, na Itália, e o nazismo, do Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler, na Alemanha, que, em 1923, já tentava um golpe, em Munique. Józef Pilsudski, um herói da guerra polaco-soviética ganha pela Polônia, tornara-se um ditador no país em 1926. Mesmo assim, a situação econômica era estável. Em Obra, os sinais eram de prosperidade. Mas Fryderyk tinha trabalhado duro para alcançar isso. O menino ficava sempre orgulhoso quando ouvia o pai relatar sobre como chegara lá. Logo após a Primeira Guerra Mundial, quando começou a administrar a fazenda, Fryderyk promoveu a recuperação das casas dos colonos e da estrutura de drenagem. Então, adquiriu novos equipamentos. Visando agilizar o escoamento da produção agrícola, conseguiu instalar um trem rural, com vagonetes puxados por cavalos. Mas o que mais o empolgou, por ser sua grande vocação, foi a compra 35

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de bons animais de raça — gado frísio-holandês e cavalos Hackney — para melhorar o plantel. O importante, dizia Fryderyk, era estabelecer um sistema produtivo integrado. Em Obra, o esterco dos animais tornava-se matériaprima para produzir um fertilizante natural utilizado em plantações de centeio, trigo, batata ou beterraba. Se, depois da colheita, o produto não alcançasse bom preço de mercado, seguiria para a usina de álcool. O bagaço resultante desse processamento era um ótimo alimento para o gado. Havendo sobras, teriam utilidade nas esterqueiras, melhorando a qualidade do composto. Certo dia, os colonos correram para o patrão. As vacas estavam rompendo cercas, trançando as pernas, sem domínio de si próprias. O diagnóstico foi imediato. Por alguma falha nos controles, o bagaço saíra da usina ainda com alto teor alcoólico. Dado como alimento aos animais, provocou uma “bebedeira coletiva”. Passado o pânico e recuperados os estragos, o evento renderia muitas risadas sempre que lembrado. Para Julek, foi uma memorável lição de como o resultado final depende dos cuidados com cada parte de um processo. Sempre atento às discussões “adultas”, o menino foi percebendo o agravamento do contexto externo. Em 1933, Hitler venceu as eleições parlamentares na Alemanha, favorecido por uma forte crise econômica que levou milhares de empresas à falência e milhões de pessoas ao desemprego. Logo, conseguiu tornar-se chanceler, obter uma legislação que lhe deu plenos poderes e dissolver os partidos políticos. Quando morreu Hindemburg, o Presidente da República, em 1934, Hitler tomou seu posto com o título de Führer, ou condutor. Descendente de judeus, o avô Felix Dyhrenfurth, pai de Ilza, era um luterano praticante, aberto a todas as convicções religiosas. Tinha um casamento feliz com Ella, que manteve a opção pelo judaísmo. Sua fazenda Petersdorf era um ponto de confluência dos amigos em Bres36

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lau, que pertencia à Alemanha. Intrigado com a ascensão do Führer, de quem era ferrenho opositor, resolveu assistir a um comício. Queria entender como alguém conseguira seguidores pregando a “superioridade biológica da raça ariana”, a que pertenceria o povo alemão, e instalando uma forte perseguição contra o que chamava de “raças inferiores”, tais como judeus, ciganos, eslavos, negros e “doentes incuráveis”, entre os quais, homossexuais e epiléticos. Afinal, “ariano” era um antigo termo para indicar os indo-europeus, sem relação específica com uma nacionalidade. E os argumentos de “superioridade” não passavam de um artifício propagandístico para jogar uns contra os outros. Mais tarde, quando os Czapskis foram visitá-lo, o avô Felix confessou o quanto ficou abismado com sua própria reação. Pois, no momento do discurso, em meio à massa, sentiu-se entusiasmado. — Como é que pude me entusiasmar com aquele homem? — perguntava-se, inconformado com a capacidade do ditador de dominar sua plateia. Só muitos anos depois, Juljan entenderia as dificuldades, de outra natureza, que seu pai passou na mesma época. Com o sucesso em seus empreendimentos, Fryderyk resolveu ampliar a área de atuação, arrendando Zakjef, a fazenda vizinha, um pouco maior que Obra. O investimento começou a dar retorno e ele quis arriscar parte dos seus bens na compra de uma bela fazenda na Alemanha. Não contava com a rápida deterioração do ambiente políticoeconômico alemão e, ainda menos, com um grande incêndio que destruiu a imponente sede da propriedade. Inconsolável, preferiu desfazer-se daquela nova aquisição, mesmo que com grande prejuízo. Foi quando, também em Zakjef, houve uma reviravolta. Os proprietários, bons amigos dos Czapskis, estavam endividados e colocaram a fazenda à venda. O novo dono fez de tudo, até se livrar do arrendamento, sem ressarcir Fryderyk do capital empatado. 37

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— Tinha de manter Obra, porque somente Obra poderia me salvar, como realmente me salvou — contaria ele, décadas mais tarde, quando já vivia no Brasil. Fryderyk trabalhou como nunca para pagar suas hipotecas, fazendo frente à crise agropecuária, que chegara à Polônia, e tentando o impossível para não afetar o cotidiano familiar. E, de fato, Julek não se ressentiu dos problemas que o pai enfrentava. Desde novinho, ele sempre aguardava ansiosamente por dois grandes momentos na vida social de Obra, que também não foram afetados: a temporada de caça e o agito nas férias. Associadas à conservação da fauna, as caçadas em Obra pareciam uma confraternização anual, cheia de amigos. Os convidados vinham de longe e já conheciam as normas a serem seguidas. A cada saída, apenas uma espécie podia ser perseguida: lebre, perdiz, faisão ou cervo. Se os animais acuados ultrapassassem determinada linha, estavam livres para viver. Quando as perdizes eram o alvo, permitia-se o uso de cães farejadores. Eles localizavam as aves, faziam que levantassem voo e depois buscavam as atingidas. Até Pushek, o “terrível e inteligente vira-lata”, entrava nessa perseguição. Encontrado pelo pai de Julek, ele conquistara o coração de toda a família. Ainda muito jovens para participar, as crianças da fazenda divertiam-se ajudando nos preparativos do evento. E depois esperavam ansiosamente pelos toques musicais que encerravam o dia de caça. É que parte da carne era usada para animados banquetes, preparados na hora. O excedente seria vendido. Nas férias, a fazenda também se enchia de parentes e amigos que se hospedavam durante semanas, criando um ambiente propício para brincadeiras e saraus musicais e literários. Presença frequente nesses períodos, Fritz Christiansen-Weniger chegou a morar um ano em Obra quando eles tiveram a ideia de de38

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senvolver uma nova espécie de trigo. Fryderyk o conhecera em Breslau, como um professor de agronomia que tinha especial interesse na agricultura em terras difíceis. Tanto é que, em 1928, tornou-se conselheiro de Mustafa Kemal Atatürk, líder que entrou para a História como o primeiro presidente e modernizador da Turquia. As terras de Poznan eram propícias ao plantio de centeio, mas o trigo valia muito mais. Se o trigo dava um bom resultado na Turquia, por que não em Obra? Com a curiosidade típica da idade, Julek começou a observar as idas e vindas de seus pais para regiões de “terras fracas”, onde o trigo desenvolvia-se melhor, sempre trazendo algumas sementes das plantas mais vistosas e produtivas. Começaram, com elas, um longo processo de melhoria na qualidade das sementes, selecionando a cada safra os melhores grãos. Já entrando na adolescência, o menino aprendeu, com esse processo, sobre a importância de seguir um método e, sobretudo, ter paciência para alcançar um resultado. Não demoraria muito para que os novos grãos propiciassem também uma lição de solidariedade. Foi nesse período que os Czapskis tiveram uma das mais inesperadas e alegres surpresas que mudou o cotidiano de todos. Apesar do prognóstico antigo de que não poderia ter outros filhos, Ilza engravidou. Em agosto de 1936, nasceu Jan Felix, o caçula da família. Onze anos mais novo que o primogênito, sempre sorridente, logo ganhou o apelido Janek, um diminutivo afetuoso para seu nome. Fryderyk entrou no ano de 1937 com mais um motivo para celebrar. Após sete anos de esforços, praticamente todas as dívidas estavam quitadas. Poderia voltar a crescer. Mas logo veio um novo choque: o governo polonês incluiu Obra como área desapropriável para fins de reforma agrária. Por se tratar de uma fazenda produtiva, sem impostos atrasados e não se enquadrar no conceito de latifúndio, ele atribuiu a medida às tensões políticas de então. Cristão por opção, Fryderyk sustentava atividades da igreja católica mais próxima. Nas missas, tinha um lugar especial ao lado do 39

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altar. Ilza era luterana. Sobretudo no mês do Natal, encantava as crianças com sua belíssima voz, ensinando-lhes músicas natalinas. Mas eles tinham origem “não ariana”, e o antissemitismo também ganhara força na Polônia. Inconformado com a possibilidade de perder a terra onde nascera, o pai de Julek negociou com as autoridades. Conseguiu que desapropriassem “apenas” 400 hectares, menos da metade da propriedade, e justamente aqueles com solos de pior qualidade. Em Breslau, outra nota de tristeza para a sempre unida família. Após uma curta enfermidade, Felix Dyhrenfurth faleceu em Petersdorf. Seguindo a tradição local, foi enterrado na própria fazenda que, no ano seguinte, seria desapropriada pelo governo alemão. Era mais uma consequência do avanço nazista. Inicialmente, Ella, mãe de Ilza, e sua irmã Vally Ollendorf, também viúva, puderam lá permanecer. Foi o ano em que Julek, Guenia e o filho do guarda florestal ficaram aptos a ingressar no ensino médio. O colégio ficava em Kozmin, cidade-sede do distrito, situada a oito quilômetros da fazenda. Orgulhosos, diariamente, eles mesmos dirigiam a carruagem em direção à escola. Antes de entrarem na sala de aula, tinham de desarrear os cavalos para que os animais pastassem até a hora do retorno, quando eram novamente arreados. Apesar de habituados às modernidades da fazenda, os garotos curtiam os trinta minutos desse percurso, que permitiam a eles estudar mais um pouquinho. Por isso, era uma “desgraça” perder a hora, já que a superprotetora Ó-ó mandava-os de automóvel, que fazia o mesmo trajeto em poucos minutos. Então, a tão sonhada nova variedade de trigo foi enfim declarada pronta. Um grande plantio foi planejado para a safra seguinte, em 1939. No início de junho de 1939, o continente europeu estava em ebulição. O risco de uma guerra já era iminente quando Fryderyk 40

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partiu para uma missão semioficial do governo polonês no Brasil. Queria examinar uma propriedade rural que adquirira no Paraná. Integrante da Câmara de Comércio Polono-Latino-Americana e reconhecido pela visão técnica em agropecuária, ele atendeu ao pedido do Ministério das Relações Exteriores para vistoriar a colônia de imigrantes poloneses na mesma região. Os colonos reclamavam do sistema, mas os relatórios dos administradores indicavam que tudo estava bem. Retornaria à Europa, daí a três meses. Mas nunca mais a sua Polônia.

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