CAMÉLIAS E NAVALHAS

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Histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX

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Histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX

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Copyright © 2012 by João Natale Netto Coordenação Editorial: Silvia Segóvia Capa, Direção de Arte e Editoração Eletrônica: Ricardo Natale Ilustrações capa e miolo: Paulo de Carvalho Preparação de texto: Lucas Cartaxo Revisão: Daniela Nogueira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Natale Netto, J. Camélias e navalhas : histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do Século XIX / J. Natale Netto. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2012. 1. Romance histórico brasileiro I. Título.

12-14371 CDD-869.9308100000

Índices para catálogo sistemático: 1. Romances históricos : Literatura brasileira 869.93081

2012 Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei. Direitos exclusivos para a língua portuguesa cedidos à Novo Século Editora Ltda. Alameda Araguaia 2190 – 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – Barueri – SP Tel. (11) 2321-5080 – Fax (11) 2321-5099 www.novoseculo.com.br editor@novoseculo.com.br

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HOMENAGENS

À minha esposa Ruth, meus agradecimentos pela dedicada leitura crítica que fez deste trabalho e, principalmente, pelo incentivo que me deu em todas as etapas de sua consecução. Aos meus netos Renata, Danilo, Isabela, Caroline e Antonio para que ao lerem este livro, hoje ou em qualquer dia, possam ter uma visão bastante realista de momentos marcantes e pitorescos da História do Brasil. Ao artista Paulo de Carvalho, autor das artes que ilustram a capa e algumas páginas deste trabalho e cuja sensibilidade e talento nos transportam com fidelidade ao Rio de Janeiro do final do século XIX, época e cenário desta história.

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PREFÁCIO

Esta é uma obra de ficção, porém seus principais personagens transitam por cenários reais dos tempos da abolição e da instauração da república na companhia de figuras que tiveram papel de significativo destaque nessas duas épocas. Assim, tentamos retratar, na medida do possível, como era a sociedade do Rio de Janeiro nas duas últimas décadas do século XIX e como se comportavam as pessoas naquele tempo. Afora a independência do Brasil, consolidada no presumível grito de Dom Pedro I, os dois outros momentos sociopolíticos mais importantes da história de nosso país foram, certamente, o da abolição do trabalho escravo, conhecido como o “Tempo das Camélias”, e o curto período que antecedeu a proclamação do Estado republicano, período que poderia ser chamado de “Tempo das Navalhas”. As camélias representaram a candura e a inocência com que a libertação dos escravos foi reivindicada; as navalhas, por sua vez, simbolizaram a 7

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hostilidade com que foi recebido o advento da república por grupos que não aceitavam a adoção desse novo regime. Embora bastante exíguo, foi um período que fez os brasileiros começarem a pensar de forma totalmente diferente. Era como se de fato cidadãos de todas as cores, credos e classes sociais estivessem saindo de um país para entrar num outro, com novos usos e costumes, e também outra maneira de serem conduzidos. Para os historiadores, o pensamento e o modo de agir de um povo costuma levar anos para se alterar. Às vezes, até séculos. No Brasil, no final do século XIX, pouco mais de dez anos foram suficientes para que o mencionado divisório acontecesse. Uma época crítica, com uma governança senil por parte do imperador, sucessivos gabinetes totalmente desacreditados e, paradoxalmente, com uma regente ocasional e presumida herdeira do trono atacada pelos opositores e ao mesmo tempo venerada, sobretudo pelos milhares de negros e mestiços aos quais ela venturosamente concedeu a liberdade. Foram momentos extremamente conturbados durante os quais a sociedade se metamorfoseou de maneira marcante, sobretudo pelo fato de que nessa época a intelligentsia brasileira gerou candentes jornalistas, políticos preeminentes e, principalmente, inspirados poetas e prosadores. Na avaliação desses momentos históricos é difícil entender por que o Brasil, sob o governo de um monarca extremamente magnânimo, cultíssimo e bem informado, tenha procrastinado tanto para compreender que a manutenção do trabalho servil em nada ajudava o nosso país, mantendo-o, de certa forma, ilhado em relação ao resto do mundo. As razões, naturalmente, foram muitas, incluindo as de ordem econômica, geográfica e social. Em termos econômicos, até sua extinção em 1850, o tráfico era a garantia de lucros significativos para o tesouro imperial e, mesmo depois, manteve-se extremamente vantajoso na medida em que os escravos se transformaram em valiosa mercadoria de troca que movimentava um imenso mercado, em âmbito nacional. Nas frentes agrícolas, a mão de obra cativa, de custo ínfimo, possibilitou às classes dominantes uma grande expansão dos negócios e a obtenção de formidáveis lucros. Geograficamente, a imensa área do território brasileiro parece ter sido outra razão importante para que a abolição fosse procrastinada, pois os apresa8

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dos trazidos da África eram postos a trabalhar em terras às vezes longínquas ou em minas perdidas no fundo da terra. Considerando igualmente que, por séculos, esses escravos foram arrebanhados em lugares os mais diversos da costa ocidental africana e pertenciam a diferentes etnias, com idiomas e culturas próprias, isso evidentemente dificultou o processo natural da intercomunicação, insulando-os e tornando-os inermes. Apesar desse fato, depois da metade do século XIX o regime escravista começou a sofrer expressivas modificações devidas ao fluxo de populações cativas das províncias do Nordeste para as lavouras de café em desenvolvimento no interior do Rio de Janeiro. A partir daí, com a demanda por escravos aumentando, as pessoas de menos recursos começaram a vender os cativos que possuíam. Essa agregação concentrada numa única região passou a atemorizar a Coroa, que não desejava, aqui no Brasil, a repetição do que ocorrera no início do século XIX no Haiti, quando uma grande massa de trabalhadores cativos, sob a liderança de Toussaint L’Ouverture, se insurgiu contra os seus senhores franceses para criar o Haiti livre. Esse sempre foi também um medo generalizado entre toda a população branca do Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. Não obstante a riqueza proporcionada pelas exportações do café, foi exatamente nessa época que os escravos brasileiros deram início às primeiras ações visando demonstrar que a escravidão não se sustentaria por muito tempo. Longe de permanecerem passivos, começaram a se rebelar, empreendendo fugas em massa e se organizando em quilombos. Ao mesmo tempo, apesar da pressão dos fazendeiros, a monarquia já estava sem forças e parecia estar com seus dias contados. Com o imperador seriamente enfermo, a simpatia da princesa Isabel pela concessão de liberdade aos escravos já não se afigurava mais como uma vaga promessa como as do passado, mas sim uma decisão que foi tornada realidade em curto prazo, mesmo trazendo em seu bojo irreprimíveis e crescentes reivindicações pela adoção do regime republicano. Foi também nesse período que nasceu a Guarda Negra, com o ritualismo agregador de grande milícia no seu começo, mas totalmente acéfala e desorganizada pouco tempo depois e, por isso mesmo, extinta com rigor pelas autoridades republicanas. Seu objetivo principal era o render graças à princesa Isabel e 9

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reivindicar-lhe o trono do Brasil num terceiro reinado. Além de escravos libertos, a milícia congregou capoeiristas notórios e desordeiros da pior espécie, tornandose, por esse motivo, imprevisível e violenta, principalmente contrária aos que, à época, simpatizavam com a instauração de um novo regime. De qualquer forma, esperamos que esta obra, por meio de seu roteiro ficcional, tenha o condão de revelar alguns importantes fatos históricos, desnudando também, na medida do possível, o perfil da realeza brasileira e o quadro político do nosso país, nos anos que antecederam a abolição e o período pós-república. São Paulo, abril de 2012. João Natale Netto

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TEMPO DE CAMÉLIAS “Não mais dos homens os fatais horrores, Não mais o vil zumbir das vergastadas, Salpicando de sangue o chão e as flores. Não mais escravos pelas esplanadas! São todos livres! Não há mais senhores! Foi-se a noite: só temos alvoradas!” Paula Nei

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Apesar do vento gelado que soprava em alto-mar naquele fim de tarde de junho de 1887, as antigas e desgastadas espreguiçadeiras de vime afixadas ao tombadilho do Stella Maris se encontravam todas tomadas. Estavam longe de ser confortáveis, todavia permitiam aos que nelas se acomodassem um razoável relaxamento e principalmente o ingresso naquela condição de torpor contemplativo à qual as viagens marítimas geralmente acometem os viajantes. Sobretudo quando estavam próximas do fim. Estirado numa delas, quase na popa do navio, protegido por um surrado boné de couro e um grosso e malcheiroso cobertor de lã, Teodoro aparentava estar bem mais desperto do que os demais passageiros. No vigor de seus 24 anos não lhe preocupava o mar, medianamente encapelado, nem o balanço do navio ou o vento cortante que, não obstante a proteção do boné e do cachecol, fustigava-lhe o rosto, deixando-o mais corado do que o normal. Pela idade e pela compleição atlé15

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tica, parecia sobrar-lhe resistência para suportar uma viagem longa e tediosa como a que estava fazendo. Altivo, bem estruturado de ombros, olhos amendoados e com o rosto emoldurado por uma barba bem aparada que lhe vinha desde a costeleta, o jovem Teodoro revelava aquela aparência viril que o tornava invariavelmente atraente às mulheres e admirado até por outros homens. Pelo leve amorenado de sua pele e pelos cabelos negros e sedosos, podia-se conjeturar que, com certeza, carregava algum resquício de sangue mouro, obviamente omitido da árvore genealógica familiar por antepassados a quem essa revelação certamente não deveria convir. Os invasores, afinal, haviam se demorado na península ibérica por longos oito séculos, certamente deixando marcas indeléveis nas regiões do Algarve e do Alentejo, de onde provinham os ascendentes de Teodoro. Tanto quanto suas vizinhas de Espanha, as lusitanas também nem sempre conseguiam resistir ao envolvimento com esses mouros concupiscentes, bem apessoados e, ao que relata a história, bons amantes... Imerso em devaneios, a satisfação de retornar ao berço de origem e ao calor familiar impedia-o de render-se à indolência, mesmo sem ter nada o que fazer no final dessa monótona travessia do Atlântico, que já se prolongava por quase um mês. Já lera vários livros da biblioteca do comandante, e agora não lhe passava outra coisa pela cabeça senão imaginar o momento de colocar os pés novamente em terra firme, após sete anos longe do Brasil. Essa euforia fazia-o sentir-se diferente da maior parte dos outros viajantes, que pareciam já possuídos daquela irreprimível apatia que invariavelmente acomete as pessoas no final das longas viagens marítimas. Teodoro, ao contrário, sentia-se tão excitado como no dia em que o Stella Maris, que fazia a linha Liverpool-Buenos Aires, zarpou do porto do Rio Tejo com escala no Rio de Janeiro. O Stella Maris era uma antiga fragata de guerra inglesa, comprada por armadores portugueses e adaptada como navio mercante no transporte de passageiros e carga entre a Europa e a América do Sul. Dispunha, na primeira classe, de cinco grandes e confortáveis camarotes que acomodavam de seis a oito pessoas cada, e dois amplos salões de convívio para os passageiros. Na 2ª classe, as instalações eram coletivas, porém adaptadas para acomodar homens e mulheres separadamente. Apesar de ter-lhe sido instalado um motor auxiliar a carvão, 16

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continuava, todavia, um barco lento e de maneabilidade restrita, ainda que bastante confiável em razão de seu casco robusto e bem construído. Teodoro já fazia planos para após o desembarque no Rio: hospedar-se-ia num bom hotel do centro, flanaria dois ou três dias pela cidade, visitando o comércio, sem deixar de incluir, com certeza, uma visita aos padrinhos que residiam em Botafogo e não via há anos. À noite, com certeza, iria a um teatro de revistas e depois do espetáculo poderia arriscar um giro pelos cabarés da Lapa para apreciar como se dançava o maxixe, a dança proibida e nova febre musical da boêmia carioca. Se depois de tudo isso ainda lhe sobrasse disposição e não estivesse muito cansado, poderia, quem sabe, tentar achar alguma francesinha ou mesmo uma polaca, pois a Lapa estava cheia delas. Só então, refeito e minimamente readaptado à vida brasileira, é que trataria de pegar o trem para Vassouras, torrão familiar desde meados do século XVIII. Era lá, a 120 quilômetros do Rio, que ficava a Fazenda Emerenciana, onde o pai, Bento Meira Gonçalves Filho, conhecido na região como coronel Bentinho, com suas duas centenas de escravos, mantinha uma decadente e falhada cultura de café da variedade maragojipe e, no entorno do cafezal, uns trezentos hectares de cana-de-açúcar. Embora o café fosse de ótima qualidade, só a duras penas o pai ainda estava conseguindo exportar o que conseguia produzir, devido à crise econômica do momento. Quanto à designação da propriedade, era uma homenagem à avó, a matriarca da família, que aos 102 anos praticamente vegetava, sob os olhos atentos de mucamas de confiança. De vez em quando, no entanto, a macróbia iluminava-se em fugazes lampejos de memória, sendo que o mais recorrente era o de relembrar, numa voz tremida e assoprada, que aos quinze anos, num baile da Corte, dançara uma polca com Dom Pedro I. Quanto ao posto de coronel da Guarda Nacional ostentado pelo pai, além de honorífico o título era também de caráter político, pois fora assim que o imperador Pedro I, décadas atrás, havia conseguido conquistar o apoio da elite agrária que, em seus respectivos rincões, detinha grande poder e lhe fazia oposição. Com a criação dessa instituição paramilitar o imperador iniciou o processo de transferência legalizada do poder do Estado para os grandes proprietários de terra, conseguindo, todavia, mantê-los submissos ao poder imperial. Era, 17

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como se dizia nas ruas, a política do “toma lá, dá cá!”, que, a partir daí, virou modalidade clássica do império brasileiro. Durante o reinado de Pedro II, a outorga de patentes da Guarda Nacional continuou a ser feita com mais prodigalidade ainda, e não só porque o imperador não tinha confiança no exército; também precisava de apoios regionais para manter o regime escravocrata. A Guarda Nacional contava com sólidas bases municipais, e seus integrantes tinham elevado grau de politização, pois eram quase sempre cidadãos bem nascidos e possuidores de significativa renda anual. Em verdade, esse coronelismo, moldado na vaidade e no dinheiro, dava sustentação ao governo e mantinha o braço escravo produzindo e garantindo os lucros necessários para que o monarca mantivesse as rédeas do poder. Inúmeras vezes, o austero coronel Bentinho afirmara ao filho, ainda um menino, que o título lhe seria transmitido por herança – honraria que, para o jovem Teodoro, agora homem feito, não tinha a mínima importância, já lhe bastando e muito o indesejado e incômodo bacharelado em ciências jurídicas. O título de coronel só poderia lhe servir, quem sabe, para um dia entrar na política, pois não pretendia estabelecer-se com banca, nem em Vassouras nem em qualquer outro lugar. Não obstante alguns desencontros com o pai, Teodoro estava feliz por retornar à cidade natal. Até Vassouras, a viagem de trem levava pouco menos de três horas, e como a distância da estação à fazenda não passava de uma légua e meia, um dos tílburis ali estacionados poderia deixá-lo na fazenda em uma hora no máximo. Teodoro ansiava por esse momento, mas já decidira: depois dos abraços calorosos da família e dos afagos das negras escravas que o haviam criado, iria, de qualquer maneira, tentar encontrar um momento livre para rever os antigos amigos. Muitos certamente deveriam estar casados e, provavelmente, já formados como ele. Gostaria de encontrá-los na praça do chafariz onde haviam passado boa parte dos tempos descontraídos da juventude. De todos eles, no entanto, o que mais ansiava reencontrar era Eustáquio, o companheiro das primeiras molecagens e que chegara a lhe enviar algumas cartas. Sabia-o ser já médico formado na Bahia e com consultório aberto no centro de Vassouras. Com Eustáquio o encontro valeria para Teodoro colocar a conversa em dia e 18

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saber das novidades da cidade nesses anos em que estivera longe do Brasil. A região de Vassouras tinha uma natureza especial por ser composta de grandes planícies, separadas por suaves elevações integrando um imenso vale onde, aqui e acolá, uma ou outra rara árvore propiciava um pouco de sombra e algum colorido aos viajantes. Como era inverno, a mulungu de flores vermelhas e a guapuruvu, salpicada de flores amarelas, tornavam o panorama um pouco mais alegre. Do ponto de vista social, a região sempre fora assemelhada à Corte, chegando mesmo a configurar-se como um microcosmo dela – e tanto no fausto como na decadência, exatamente como agora parecia estar ocorrendo com a Casa Real. Nascida de uma sesmaria concedida em 1803, Vassouras emancipou-se em 1833 e foi transformada em sede do município por decreto imperial em 1857. Na época, as lavouras de café cobriam grandes extensões e garantiam prosperidade e progresso para toda a região. A cidade, entretanto, nunca escondeu as grandes divisões sociais lá existentes, que, em verdade, haviam sido determinadas pelo poder do dinheiro e pela ostentação sempre presentes no cotidiano das famílias mais abastadas. As dissensões políticas entre os fazendeiros, entretanto, quase sempre ficavam restritas às questões regionais, porque no plano nacional, politicamente dividido entre Conservadores e Liberais, as discordâncias eram mínimas, por comungarem quase todos com os interesses da Coroa. Pouquíssimos admitiam a troca do regime imperial pelo republicano e, muito menos, concordavam com a extinção do trabalho escravo. Mantinham-se fiéis à política do governo, essencialmente escravocrata, entendendo que o braço do negro cativo é que impulsionava a economia da nação. Com as benesses que garantiam aos poderosos senhores da terra, além dos títulos nobiliárquicos, empréstimos de longo prazo a juros baixíssimos e outros favores, o imperador se protegia das ameaças do pensamento republicano que, por influência de vozes europeias, já há anos fermentava em todo o país, com relativa intensidade. Entre os privilegiados da região de Vassouras estava o coronel Bentinho, que apesar de ter aceitado o honorífico posto da Guarda Nacional nunca fez questão de ser mais um barão na região. Ao contrário, a honraria não lhe significava nada, pois sempre se destacava como voz independente e marcante liderança política. Suas usuais divergências eram com o maior fazendeiro do 19

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Vale do Paraíba, o coronel Laureano Machado Silveira, barão de Campo Novo, que também era o comandante superior da Guarda Nacional e se jactava desse posto perante outros fazendeiros, também coronéis como ele. Na Câmara dos Vereadores, à qual a maior parte desses titulados tinha assento, o coronel Bentinho, contudo, ia à forra... Era mais culto, mais eloquente, e suas proposições eram geralmente aprovadas. Mesmo tendo passado tantos anos em Coimbra, Teodoro conhecia bem as posições progressistas do pai. Interessavam-no os problemas nacionais e, até hoje, mantinha desusado interesse sobre os fatos relativos à Guerra da Tríplice Aliança. Embora contasse apenas dois anos quando o conflito começou, sempre soube que os fazendeiros da região de Vassouras haviam dado as maiores contribuições para apoiar o império nesse embate internacional que acabou ceifando a vida de mais de 40 mil brasileiros, inclusive 29 escravos da fazenda, dos 34 arregimentados compulsoriamente pelas forças enviadas à região conflagrada. A extraordinária riqueza gerada pela produção agrícola de Vassouras é que deu condições a isso. Antes mesmo do conflito com o Paraguai, a cidade já ostentava o título de “maior produtora de café do mundo” e era conhecida no país inteiro como “a princesinha do café”. E com razão, pois suas lavouras produziam três vezes mais do que os estados de São Paulo e Minas Gerais juntos. Na Corte garantia-se, inclusive, que Vassouras era a cidade do Brasil com maior número de cidadãos nobilitados, pois ali viviam 25 barões, 2 marqueses, 7 viscondes e 1 viscondessa. De fato, o café de Vassouras sempre foi de fundamental importância para a economia brasileira, e jamais o imperador pudera prescindir daquela “nobreza”, que a Casa Real fabricava para comprar a boa vontade dos grandes fazendeiros. A produção total da região totalizava cerca de 70% de todo o café produzido no Brasil, e isso correspondia a cerca de 50% do montante anualmente exportado. Entretanto, quando Teodoro partiu para Coimbra, a região já começava a ressentir-se das novas frentes agrícolas que se abriam no oeste da província de São Paulo, onde terras de comprovada fertilidade eram incrivelmente mais baratas ou cedidas gratuitamente, como devolutas. Da mesma forma, isso também revelava que os poderes econômicos e políticos do país estavam, aos 20

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poucos, sendo assumidos pelos paulistas. E esses poderes pareciam crescer de forma gradual e constante desde a Convenção Republicana promovida pelos cafeicultores paulistas em Itu, no interior da província, que culminou com a criação de um partido para enfrentar as desastradas políticas econômicas dos últimos gabinetes nomeados pelo imperador. Teodoro lembrava bem: antes de seguir para Coimbra, nas reuniões de seu pai com outros cafeicultores de Vassouras, o assunto sobre a nova força dos paulistas era recorrente. Apesar dessa ameaça e de outra ainda mais grave, que poderia vir a ser a abolição total do trabalho escravo, as grandes famílias vassourenses pareciam não ter se dado conta desses novos tempos, continuando a viver com o mesmo fausto e luxo de sempre. Confiavam em D. Pedro II e, principalmente, na resistência do gabinete chefiado pelo barão de Cotegipe, até porque entre os abolicionistas e republicanos não havia surgido ainda uma grande liderança, capaz de se interpor à política imperial. Foi nesse cenário de ostentação e de fortunas, que agora parecia estar se derruindo, que Teodoro foi criado. De qualquer maneira, Teodoro guardava boas recordações da fazenda. Inclusive porque durante o período de sua infância e juventude, a Emerenciana, como muitas fazendas da região de Vassouras, já era bastante “crioulizada”, ou seja, tinha muito poucos africanos autênticos, pois a maioria dos seus escravos já havia nascido no Brasil, os chamados “crioulos”. A adoção desses “escravos brasileiros” decorrera diretamente da proibição do tráfico, instituída em 1850. Desde então, a mão de obra passou a ser adquirida noutras regiões do próprio território nacional, embora os escravos ainda continuassem sendo simples mercadoria de propriedade de seus senhores. Apesar das proibições que eram regularmente impostas, essa condição não impedira que Teodoro convivesse amigavelmente com muitos deles, principalmente dentro dos limites sociais do casarão da fazenda. O relacionamento de Teodoro com os meninos escravos decorreu, certamente, da complacência do coronel Bentinho em estimular casamentos entre os cativos, inclusive com os de outras fazendas; nesse caso, podia comprar ou trocar noivos e noivas com outros fazendeiros... Como a maioria das propriedades agrícolas da região, a casa-grande da Emerenciana era enorme, construída e decorada com o que de melhor e mais requintado o dinheiro dos Meira Gonçalves havia podido importar da Europa. 21

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Nesse ambiente de luxo e ostentação, repleto de tapeçarias e telas de artistas famosos, a família costumava ser, inclusive, servida à francesa, mesmo em suas refeições mais frugais, sempre adornadas com porcelanas de Sèvres e Limoges. As bebidas, até mesmo os prosaicos refrescos de frutas, eram tomadas em taças de legítimo cristal Baccarat, e as carnes, da mesma forma, trinchadas com os mais custosos talheres de pratarias artesanais portuguesas e inglesas. Para não se diminuir perante outras famílias da região, D. Matilde fazia questão que os escravos destinados à função da mesa estivessem sempre impecavelmente uniformizados e com luvas brancas, e ainda entendessem as ordens que lhes eram dadas em francês... Em razão da importância que a família Meira Gonçalves desfrutava dentro desse extravagante cenário social, a infância de Teodoro havia sido marcada por um acontecimento do qual ele jamais se olvidou. Numa das duas vezes em que Dom Pedro II, a princesa Isabel e o conde D’Eu compareceram a um animado sarau na sede da Fazenda Emerenciana, a convite do coronel Bentinho, tanto o imperador quanto o casal de príncipes e vários membros da comitiva imperial haviam ficado todos hospedados na mansão. Na época, Teodoro estava com oito anos, e lhe marcaram muito as acaloradas discussões travadas na biblioteca a respeito da instituição de uma nova lei, que iria garantir liberdade para os filhos de escravos. A nova lei, denominada “Lei do Ventre Livre”, que já havia sido instituída em outros países escravocratas, seria uma maneira de arrefecer os opositores abolicionistas. Somente anos mais tarde, Teodoro foi capaz de compreender em toda a sua extensão a importância desse decreto, assinado pouco tempo depois pela própria princesa Isabel. Lembrava-se também que, num desses jantares, servindo-se de ponche, ao lado do garboso marido, a princesa pareceu-lhe apenas uma jovem de rosto afável e bondoso, bem distante da imagem que ele tinha de uma soberana. Num gesto de carinho, ela havia passado as mãos em seus cabelos e, beijando-lhe a testa, sussurrou carinhosamente em seus ouvidos: − Quando eu tiver um filho, quero que seja bonito como você... Teodoro jamais esqueceu a doce impressão que a princesa Isabel lhe causou, e nem do seu agradável perfume de alfazema e do olhar terno com que o fitou. Teria ficado feliz se pudesse encontrá-la mais vezes. Agora, infelizmente, 22

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com o fausto e a riqueza de Vassouras chegando ao fim, essa parecia ser uma possibilidade bastante remota. Devido à gradual transferência das atividades cafeeiras para o interior de São Paulo, a região já estava perdendo sua importância perante a Corte. As principais fazendas já começavam, inclusive, a demonstrar uma decadência tão visível que, aos poucos, seria capaz de tragar de forma inexorável as grandes fortunas amealhadas durante mais de um século de predomínio agrícola. Inclusive a dos Meira Gonçalves. Imerso nesses pensamentos, Teodoro teve consciência de que este seria um momento triste para regressar à casa paterna. Também lhe pareceu fora de dúvida que dificilmente permaneceria na Emerenciana, uma vez que as possibilidades agrícolas da família já não tinham futuro. Tentando fugir dessas considerações, preferiu voltar ao que poderia ocorrer no dia que chegasse à fazenda. Fazia-lhe falta o calor familiar de antigamente... No rol de obrigações familiares, Teodoro estava apostando que a mãe, evidentemente com segundas intenções, iria insistir para que ele voltasse a participar das reuniões sociais ao lado das irmãs Ofélia e Letícia. Com certeza as duas iriam ficar orgulhosas de ostentar o irmão recém-formado em Coimbra no grupo de amigas e exibi-lo às jovens casadoiras da cidade. Considerando que assim deveriam ser seus primeiros dias, tanto no Rio como em Vassouras, Teodoro permaneceu no tombadilho do Stella Maris, tentando pacientemente vencer as últimas e monótonas horas que ainda restavam da viagem. Agora, já não passava despercebido que o comandante procurava aproveitar, com extrema habilidade e dentro das limitações do barco, os ventos que sopravam perpendiculares à costa naquele cinzento dia de junho, época normalmente fria nas latitudes abaixo do Equador. A impressão era que o paquete efetivamente ganhava mais velocidade, podendo nesse ritmo, quem sabe, chegar com mais rapidez ao destino. À exceção do francês Jean Marie, um dos seus companheiros de camarote e que devia estar beirando os quarenta anos, os demais passageiros próximos a Teodoro, idosos em maioria, pouco conversavam. Na monotonia daquelas tardes, preferiam cochilar ao sabor das ondas ou ler, aguardando apenas a sineta do jantar, que usualmente os tirava daquela modorra. Davam impressão de estar anestesiados pelo ruído monótono do motor a vapor e 23

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pelo farfalhar do velame que recebia a poderosa carga de vento e auxiliava a propulsão da embarcação. O Stella Maris era maior e bem mais moderno do que o Alexandrina, o pequeno navio a vela que o havia levado a Lisboa, numa viagem que demorara 45 dias. Pouco viu da capital portuguesa, pois dois dias depois já havia viajado para Coimbra, sem nenhum entusiasmo. E os sete anos durante os quais ficou preso à Universidade foram anos de poucas emoções. Raras vezes ausentava-se das atividades estudantis, nem mesmo quando os companheiros mais chegados, inclusive alguns patrícios brasileiros, programavam passeios às feiras que ocorriam em outras cidades do Vale do Mondego. Pouco também lhe entusiasmavam as costumeiras noitadas regadas a vinho e jeropiga, nas movimentadas tabernas das margens do rio. Preferia trocar esses prazeres, ainda que singelos e sem consequência, pelos estudos ou pela oportunidade de restar só, desfrutando apenas de suas lembranças, rebenqueado pelas saudades do Brasil. A bem dizer, desde a chegada a Coimbra, vira-se sempre como um desterrado, sem entender o porquê desse castigo. Um desterro determinado pela vontade impositiva do pai, que ele, aos dezesseis anos, não tivera condições de contrariar. Assim, o não levar de volta para o Brasil a lembrança de bons momentos era uma espécie de vingança com a qual Teodoro imaginava poder ferir o pai que, no passado, mostrara-se ditatorial. Portanto, se lhe indagassem algo sobre os anos passados em Coimbra, só poderia se reportar aos estudos e quase nada além disso. Justificava-se pois que, naquele fim de tarde de junho, no meio do Oceano Atlântico, Teodoro ansiasse pelo momento de pisar em terra para esquecer de vez os melancólicos anos passados em Portugal. Parecia-lhe um sonho poder rever as irmãs Ofélia e Letícia, que eram muito jovens quando ele partiu. Na ocasião, Ofélia tinha apenas quinze anos, e Letícia, treze, completados poucas semanas antes do embarque. Corresponderam-se muito, e graças às cartas e retratos que as irmãs lhe haviam enviado pudera, de certa forma, acompanhar a adolescência e o amadurecimento das duas. A correspondência, sempre maçuda, lhe chegava às mãos religiosamente a cada dois meses. E essas cartas não falavam somente das festas e das brincadeiras com a jovem Margarida, filha de Afonsina, mucama principal da casa; vinham quase sempre recheadas de retratos, recortes de jornais, papeluchos com poesias e pensa24

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mentos, e tudo o mais que as irmãs gostavam de inventar. Acompanhou-lhes, inclusive, o amadurecimento da caligrafia e, agora – quem diria – Ofélia já estava próxima de casar-se. Não lhe conhecia o noivo, embora a irmã, sempre pródiga em adjetivos, o descrevesse como um verdadeiro príncipe encantado, principalmente na aparência. Poderia ser, com certeza, um exagero de rapariga apaixonada, não fosse tudo isso confirmado por Letícia, que no entender de Teodoro lhe garantia informações mais minuciosas e, certamente, mais verdadeiras sobre o futuro cunhado. A mãe, D. Matilde, escreveu-lhe pouco, e quando o fez foi de forma reticenciosa, quase telegráfica, restringindo-se ao essencial, perguntando-lhe, nessa rara monotonia epistolar, se estava sofrendo com o frio, quais agasalhos usava, se o alojamento tinha boa calefação e outras preocupações clássicas de mãe. Sem jamais, no entanto, desejar saber como lhe andava o espírito. Quanto ao pai, na raríssima correspondência que lhe enviou nesses sete anos, mostrou-se sempre álgido. Apesar de nunca ter se manifestado, Teodoro ainda tinha mágoas, pois fora obrigado a estudar em Portugal contra a sua vontade. Poderia ter estudado na Faculdade de Direito de São Paulo, para onde foram muitos de seus amigos, e como ele próprio também desejava. A vontade do pai, que na juventude também estudara em Coimbra, havia prevalecido. Teodoro, na verdade, achava que todos aqueles anos em Coimbra lhe haviam sido roubados e trocados por um distanciamento sem razão de ser, que muito o fizera sofrer. Apesar de prometer, o pai não pudera estar presente nem mesmo na tradicional queima de faixas de sua formatura, para uma comemoração que o jovem pelo menos achou que merecia.

Já passava das sete da noite quando soou, enfim, a sineta do navio anunciando o jantar. O aviso costumava ocorrer regularmente por volta das seis e meia, e isso fez com que alguns casais famélicos reclamassem junto aos grumetes que os auxiliavam a caminhar, oscilantes, até o salão onde os 23 passageiros da primeira classe, o capitão Ivor Barnes e os oficiais faziam as refeições. Nesse fecho da viagem, o passadio já não era tão farto quanto nas primeiras semanas, e nessa noite, no Stella Maris, o cozinheiro esmerou-se na contenção. Os 25

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grumetes serviram somente sopa de castanhas, bacalhau grelhado com alho e azeite, sardinhas dessalgadas e algumas frutas secas acompanhadas de vinho do Porto. Como os tripulantes não pescavam rotineiramente tornava-se impossível que algo melhor viesse a ser servido, e todos acabaram se conformando com o magro cardápio. Mesmo assim, o capitão Barnes, dentro de um português razoável, desculpou-se junto aos passageiros, que aceitaram as explicações com conformada benevolência. Devido ao adernar da embarcação e ao vento gelado e cortante da noite, quase todos se recolheram cedo aos seus camarotes abdicando de aguardar a pequena ceia programada para as dez horas da noite. Teodoro e Jean Marie optaram por continuar na própria sala de refeições, acomodando-se nas cadeiras laterais enquanto saboreavam as perfumadas cigarrilhas egípcias que lhes haviam sido oferecidas pelo capitão. Ficaram lhes fazendo companhia outros três senhores e, em meio à fumaça azulada que enchia o ambiente, todos tentavam encontrar algum assunto que pudesse ser de interesse comum. Jean Marie era muito bem informado, e por sua iniciativa a conversa acabou entrando em considerações sobre a velocidade das novas fragatas da marinha inglesa, graças às quais o comércio internacional vinha se dinamizando bastante, pois agora havia condições de transportar até mesmo certos produtos perecíveis. Por serem muito rápidas, apresentavam inclusive a vantagem de se tornarem incólumes ao ataque de corsários, felizmente já quase banidos das águas internacionais. Além das novas fragatas, o comandante Barnes, bastante à vontade na conversa, fez questão de comentar o surgimento dos clíperes, em especial o do Cutty Sark, construído na Escócia quase vinte anos antes e que chegava a atingir uma velocidade de quinze nós horários, quase o dobro da velocidade do Stella Maris. Na verdade, essa limitação era responsável pelo atraso do navio em já seis dias. Isso sem contar que o Stella Maris ainda teria que fazer uma acostagem no cais de Macaé (embora de pouca duração) para reabastecer a carvoeira. Sem poder usar a caldeira para acionar o motor, o barco teria que depender exclusivamente das velas, o que, sem dúvida, deveria aumentar ainda mais o atraso. Sem carvão e com o vento sul frontal à proa, seria extremamente perigoso enfrentar alguma eventual tempestade, mesmo estando tão próximo do porto do Rio de Janeiro. Depois de 26

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discorrerem exaustivamente sobre os avanços da Marinha Inglesa, passaram a discutir o problema da exploração do trabalho servil e também a mão de obra explorada pela burguesia rica. Jean Marie, ilustrado e bem informado, avaliou a questão dentro de um enfoque universalista: – É curioso, mas na Inglaterra a mecanização dos sistemas de produção já está bem adiantada. Hoje já existem muitas máquinas tocadas a vapor que estão substituindo o trabalho manual. Ao que o capitão Barnes aduziu: – Dentro de pouco tempo, além dos barcos e trens teremos fábricas de tecidos, alimentos e roupas tocadas por essa energia poderosa, gerada pelo carvão... Será uma grande revolução! – Os fatores determinantes desses novos tempos são em princípio dois – interrompeu Jean Marie –; o desejo por mais lucros com menores custos e o aumento da demanda por produtos e mercadorias, principalmente nas grandes cidades! – Os países que puderem explorar o carvão mineral serão os maiores beneficiados... – completou um dos senhores presentes, que até então havia permanecido totalmente calado, apenas mastigando o seu charuto. – É pena que o Brasil não tenha se dedicado a explorar suas reservas de carvão, a não ser em algumas minas incipientes de Santa Catarina – fez questão de informar Teodoro. – A partir da abolição do trabalho escravo que, em tese, hoje não custa nada, o governo terá que ampliar a prospecção... – Ou importar!... – acrescentou Jean Marie. – Esses novos sistemas de industrialização poderão concorrer para o desemprego, eu acho! – afirmou Teodoro, achando que Jean Marie não teria resposta para essa colocação. – A humanidade caminha dessa maneira! Certamente durante muitos anos o desemprego vai aumentar, mas os benefícios da industrialização maciça também! – concluiu o francês, dando uma longa baforada na cigarrilha, enquanto se dava conta de que todos já estavam cansados e com sono, sem disposição de continuar a conversa.

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Apesar de Macaé já estar situada a poucas horas do desembarque, Teodoro entendeu que não valeria à pena sequer deixar o camarote para acompanhar o transbordo do combustível, pois a operação poderia estender-se madrugada adentro. Participaria somente da ceia, descendo em seguida para o camarote. Desejava dormir, se conseguisse, e acordar, já pronto para pisar em terra. Aquela última refeição, da mesma forma que o jantar, também atrasou e ofereceu parca variedade aos poucos que a ela compareceram: apenas chá indiano, biscoitos e novamente os paios e alheiras de sempre, ainda disponíveis na despensa do Stella Maris, que embora fosse originalmente um paquete inglês procurava, na medida do possível, atender a maior parte dos passageiros que eram portugueses. Ao fim da frugal refeição, Teodoro não se interessou nem mesmo em ouvir a música que vinha dos “engajados”1, que viajavam na segunda classe. O frio e o vento contínuo que soprava naquela hora da noite o empurraram direto para a cabine que dividia com Jean Marie e dois velhos ingleses...

(1) Os “engajados” eram jovens trabalhadores arregimentados em Portugal que, mediante contrato obtido por meio de intermediários, vinham ao Brasil para trabalhar, geralmente no comércio. Daí, o surgimento do epíteto “gajo” que os brasileiros, à época, davam indistintamente a qualquer imigrante português.

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