Alaba Textory - A melodia dos ecos

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Margot Weide

A L A B A T E X T O RY A melodia dos Ecos

S達o Paulo 2014

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Copyright © 2014 by Margot Weide

Coordenação Editorial Letícia Teófilo Diagramação Claudio Braghini Junior Capa Equipe Novo Século Revisão Patrícia Murari Fabrícia Romaniv Daniela Georgeto Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Weide, Margot Alaba Textory / Margot Weide. -- 1. ed. -- Osasco, SP : Novo Século Editora, 2014.

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 14-02372 CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia 2190 – 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville – SP Tel. (11) 3699-7107 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Às minhas filhas Lidia e Maura pelo estímulo, carinho, impulso e crédito.

Os agradecimentos de Alaba Textory - O sussurro dos sinos serão mantidos. Num adendo, gostaria novamente de agradecer a Chandal Nasser pela ajuda profissional nesse segundo romance e também com o título, o qual foi criado juntamente com Hermann Freimuth, montando a ideia de: Alaba Textory A melodia dos ecos.

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Ano 1965

A humanidade portadora de intelecto traz consigo uma predisposição para manter ou restabelecer, com os recursos momentâneos que possui, o equilíbrio... Eduardo ao chegar a São Paulo, no início de janeiro, instalou-se em uma pequena pensão no centro da cidade e fez o planejamento do dinheiro que trazia consigo e da quantia que receberia mensalmente dos pais, até que conseguisse custear suas despesas. Esforçava-se para ser calculista e objetivo, embora não houvesse uma razão notável para isso. A ociosidade da espera o envolvia. Acostumado a ter corpo e mente em constante movimento, viu-se fadado à inatividade por dias, os quais se tornavam extremamente longos. Na ansiedade em que se encontrava, chegara bem antes do início das aulas para agilizar as primeiras providências. Agora, aborrecido e arrependido por ter chegado com tanta antecedência, sentia-se irritado consigo mesmo. Suas decisões subordinavam-se a informações de que ainda não dispunha, pois dependia da distribuição semanal de aulas para engajar-se em um trabalho. Precisaria avaliar distâncias e horários num triângulo: universidade, moradia, emprego. Com relação à moradia, sua ideia era a de descobrir alguém que quisesse dividir um espaço alugado. O ato de providenciar está ligado ao momento propício. Se não for esse o caso, precisamos admitir que existe algo a mais por trás da espera. Precisamos sentir que o invisível trabalha por nós; reconhecer que o período talvez não seja adequado para receber o que queremos e que há mais para estruturar dentro e fora do nosso ser; identificar e aceitar 6

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a situação que se impõe momentaneamente. Na verdade, o sentimento vivido por Eduardo era estranho ao cotidiano comum às pessoas. Todos nós, quer isso nos dê satisfação ou não, manipulamos nossas vidas consciente ou inconscientemente para estarmos presos a algo ou a alguém: nossa casa, trabalho, estudo, parentes, família, amigos, animais, objetos, compromissos sociais etc., que, num todo, podem ou não nos fazer felizes, mas sempre nos nutrem como indivíduos. Afastado da família, de Nádia, dos amigos, de parentes, sem estudo, sem trabalho, sem moradia e sem seus objetos pessoais, a não ser roupas, quem era agora o rapaz que se sentia existir com a importância de um grão de areia, dentro de uma cidade estranha em hábitos e costumes? Seus dias eram sustentados pela grande expectativa da matrícula em uma universidade que nem mesmo conhecia, em um curso que parecia nunca iniciar. Não seria este o período mais propício para refletir? Para buscar-se no momento em que se está nu? Para engrandecer-se, dando-se ao outro, mesmo que de longe... revendo falhas, critérios, sentimentos? Não seria o tempo adequado de aprender, através da leitura, sobre os muitos mestres que visitaram e visitam nosso planeta, e que viveram o que chamamos de privações? Não viveram eles o anonimato, o isolamento e o abandono na busca da compreensão maior em escutar o divino que existe em cada ser e que a tudo e a todos dirige? Nos poucos dias em que Eduardo permaneceu em São Paulo por ocasião das provas vestibulares, manteve-se propositadamente cego pelo enorme receio de amar o que talvez nunca lhe pertencesse. Sentindo-se agora com os pés plantados em uma cidade cujo status industrial e comercial a quotiza entre as principais do mundo, deixava, apesar de toda a agonia que sentia, que a vaidade e o orgulho tomassem devagarinho conta de seu coração. Sorria bobamente ao andar rente às ruas movimentadas. Nos cruzamentos os carros se amontoavam à espera do sinal verde, enquanto massas humanas densas, indo e vindo, atravessavam apressadas. Detinha-se a observar o congestionamento de veículos, as buzinas nervosas que ressoavam por entre paredões de altíssimos, modernos e reluzentes prédios. Parava nas calçadas, perplexo 7

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com as vitrines luxuosas e com os shoppings, a atenção dirigida às roupas femininas, pois em sua imaginação, estaria um dia ali com a menina que tanto amava, transformada em uma elegante dama ao seu lado. Detinha-se também por um longo período ou entrava algumas vezes tateante nas lojas de móveis e decorações; era certo que em poucos meses ambos teriam um apartamento para montar. Seria lindo! cogitava em pensamento, com um ambiente simples, moderno e confortável. Sorria, certo da convivência agradável que teriam. Dividiriam as tarefas domésticas em meio a beijos e abraços ou brincadeiras que surgiriam sempre do humor espirituoso de Nádia. Aconchegados na companhia um do outro, na amizade e no amor, qualquer dificuldade seria superada, qualquer cansaço ou tensão desvaneceria, pois, ao findar do dia, estariam juntos. Chegar em casa e receber Nádia, que saltaria sobre ele num abraço saudoso, seria a gratificação das gratificações...; ou esperar pelo momento em que ouviria o ruído da chave na porta, em que seu rosto apareceria e a alegria surgiria vinda de suas palavras vibrantes... Esta ideia que fazia de uma vida a dois deixava-o, por vezes, com a dor do arrependimento de não tê-la trazido consigo. “Foi melhor assim”, convencia-se, “vou preparar o que puder para que ela venha o mais breve possível e com segurança”. Não obstante, sentia-se um corpo estranho e solitário por entre os transeuntes acelerados. Recebia, a todo instante, esbarrões; desviava constantemente seu trajeto quando as pessoas em sentido contrário ocupavam toda a calçada ou ainda cedia a vez a mulheres que portavam com altivez e satisfação sacolas coloridas a exibir a grife das novas aquisições. Um dia, pensava ao olhar em torno, estarei integrado a tudo isto, a este mundo agitado e em progresso! ... E quando vislumbrava os prédios lindos!... Lindíssimos, modernos em formas e contornos variados e envidraçados, seus dedos uniam-se num fechar de mãos para conter uma exclamação que viria com toda certeza em voz alta: “Por Deus! Posso jurar que não dei o passo errado”. E prosseguia num diálogo consigo: 8

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“Vai chegar o tempo em que estarei tão apressado quanto todos. Terei uma agenda lotada: reuniões marcadas para discutir empreendimentos, almoço com executivos para acerto de detalhes finais, muitas decisões a tomar, telefonemas... supervisões...”, e por aí se perdia nos ideais. Suplantaria com esperança a tendência a abater-se e a preocupar-se. Alimentaria seu objetivo para torná-lo a cada dia mais firme dentro de si.Vivia, entretanto, momentos de extrema tensão no pequeno quarto da pensão em que morava, quando a sensação de ter Nádia nos braços era muito forte, devido à intensidade de suas lembranças. Orgulho e vaidade uniam-se no esforço de fazer parte de uma cidade que nem sequer se importava com sua existência ou estadia. Monstruosas paredes de concreto armado, vidro e metal gelam pessoas... gelam relacionamentos.

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Anne acordara nesta segunda-feira muito bem-disposta, por sentir neste amanhecer uma alegria intensa e pulsante. Sabia que algo estava para acontecer e isso a estimulava. Como era seu hábito, fez suas orações em forma de um agradecimento por tudo o que possuía, desde o mais simples, sem julgar, conceituar ou criticar fosse o que fosse; simplesmente agradecia por toda e qualquer ocorrência vivida. Pensava com veemência nestes momentos no quanto era rica por ter um corpo perfeito, a casa em que habitava, a água que lhe servia, o alimento, em poder ver o dia, sentir a brisa no rosto. Agradecia pelas pessoas que a cercavam e assim prosseguia com o que lhe viesse à mente, utilizando sempre a luz rosa. Na sua idade, alcançara a compreensão tanto do mal quanto do bem num crescimento contínuo e em graus, e acreditava que criamos nossa vida tal qual a programamos. Vibrava tão somente pelo amadurecimento espiritual, quando este era atingido através do entendimento do que se pode chamar de erros e o êxito em superá-los. Seus agradecimentos expandiam-se pelo globo terrestre, pelas melhorias ocorridas em nosso planeta, pela beleza do sol, pela beleza da chuva, pelos mistérios maravilhosos da lua... cobria-se agora da luz prateada brilhante, símbolo do seu encontro com a paz da proteção divina. Após seu ritual, sem ponderar razões, decidiu dar prosseguimento a seus afazeres ao invés de tomar o café da manhã. Sentara-se à sua escrivaninha, situada em frente à janela, e organizava-se com as prioridades nas tarefas que assumira ultimamente, quando o telefone tocou. Ali mesmo, em sua mesa de trabalho, sem retirar os olhos da agenda, deslocou o braço para atender ao chamado. A voz fez seu coração palpitar; uma mensagem à distância... contudo, tão próxima! Seus dedos agora moviam-se por entre as páginas de compromissos, porém 10

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os olhos, que se haviam tornado mais alegres, deslocaram-se para as pequeninas violetas que, no parapeito da janela, recebiam os primeiros reflexos da luz solar. O diálogo foi curto e, ao desligar, Anne repetiu em sentido contrário o movimento anterior feito com o braço. Sua vista mantinha-se fixa nas centenas de pontos brilhantes das pétalas coloridas e pensava sobre a analogia da situação: em busca de brilho. “Eu agradeci antecipadamente por ele vir a mim, caso pudesse ajudá-lo. Agradeci ao cosmos por tê-lo comigo durante um período. Não marquei data... o acaso que decidisse”. Ela sorriu satisfeita ao ponderar:“Este momento, a meu ver, está aos gritos em urgência... Bem, vou desfazer minha agenda para recebê-lo!”. Sua fisionomia estava radiante ao erguer-se. O táxi havia chegado. Vitor recebeu um abraço forte, duradouro e envolvente da nova amiga assim que transpôs a porta. Sentiu-se constrangido com o afago, mas gostou dele... e, por precisar de carinho, deixou-se ficar. O abraço se transformou em amparo e consolo, exatamente como se faz ao acolher alguém ao término de uma luta ou mesmo de uma guerra. As brigas em vão haviam acabado. Embora confuso,Vitor estranhou o fato de Anne lhe parecer tão alta, tão corpulenta. Ou será que era ele que se havia tornado tão pequeno? Anne o recebeu, crescida na opção de oferecer-se toda: com benevolência, compreensão e, acima de tudo, com amor. “Não imagina o bem que pratica em vir me visitar”, disse-lhe. “Estou muito feliz em revê-lo.” Quando ele deu por si, estava num aposento. “Retire parte da roupa para ficar mais confortável e deite-se.Vou lhe trazer um chá e irá repousar um pouco. Mais tarde conversaremos”, sugeriu-lhe. Sem saber como contrariá-la, obedeceu; na verdade, preferia descansar a ter que explicar-se, a ter que falar. Com menos peças de roupas, entrou ligeiro debaixo do lençol e recostou a cabeça no travesseiro de encontro à cama. Olhava um tanto atônito à volta quando Anne entrou, equilibrando a xícara de chá sobre o pires, e a entregou com um sorriso 11

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cordial. O silêncio entre eles permaneceu. Enquanto bebia o chá quentinho, as cortinas foram cerradas e uma coberta foi posta sobre o lençol. Ao sair do aposento, Anne fechara a porta. Ele sentiu-se leve por não ouvir perguntas ou comentários. A cama, extremamente confortável, como que o abraçava, o acolchoado moldava seu corpo e o aquecia. O prazer em estar ali o fez pensar que ficaria, se pudesse, nesse estado para sempre. De repente, nada mais importava e adormeceu. Anne estava pronta para dar-lhe, enquanto dormia, os primeiros cuidados de que tanto necessitava. O chá havia sido um preparado especial para esse fim. Iria aliviá-lo da fadiga e ela aproveitaria o tempo para, em meditação, iniciar-se no preparo da grande jornada. “Vou dar a Vitor a vida de presente: alegria, espontaneidade, amor e desejo... o desejo de realizar! Descobrirá e desenvolverá suas potencialidades, aberto às escolhas. Superará problemas sem se omitir deles; entenderá, sem medo, que, ao surgir um contratempo, este tratar-se-á tão somente de mais um quebra-cabeça a ser resolvido no seu caminho de crescimento através de experiências neste planeta... e será outro! Terá a postura da felicidade: fisionomia aberta e franca, ombros erguidos, porte ereto. Não sentirá mais vergonha de si como sente agora”. Sorriu ao admitir o que sentia: “Eu o adotei... adotei-o em meu coração!” Entardecia quando despertou e, assustado com a escuridão do quarto, imaginou estar no meio da noite. Devagar, levantou-se, sentindo a diferença de temperatura entre a cama quente e o ambiente. Tornou a se vestir. Abriu a porta para ter noção do que se passava na casa e viu sua anfitriã sentada na cadeira de balanço, lendo. Ela o olhou risonha, reerguendo-se. “Eu sugiro que tome um banho bem quente e quando estiver pronto, garanto-lhe, teremos o jantar servido e nos aguardando. Acredito que esteja faminto.Veja, aqui há toalhas e o banheiro é ao lado do seu dormitório”. ... ao lado do meu dormitório?!, repetiu mentalmente. “Ok, conversaremos mais tarde a respeito.” Vitor regozijava-se em prazer na água aquecida, quando a frase, sem mais nem menos, voltou-lhe ao pensamento. “A água relaxa, sensibi12

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liza emoções; sob qualquer estado, o efeito se faz. Interrogamo-nos sobre os mistérios dos mares, sobre os resmungos dos rios, nos deprimimos com incessantes dias chuvosos, nos entusiasmamos com a beleza tranquila da neve... e como é prazeroso deixar a água escorrer através da nossa pele... dizemos: sou outro após esse banho”. Um sentimento de intensa tristeza lhe percorreu o corpo e arqueou-se ainda mais. Essa intensa tristeza era vivida pela forma como estava sendo tratado, pelos cuidados de Anne para com ele... seu corpo enrijeceu-se. A noção do quanto estava só o dominava, e, desta vez, o sofrimento doía, ardia... queria de novo morrer. As lágrimas misturaram-se, também aquecidas, às gotas do chuveiro. Queria ter agora algo que jamais poderia ter. Queria que seu desejo não ficasse somente na vontade vazia de ter. Queria tanto, neste momento, que o aposento que Anne lhe havia destinado fosse de verdade o seu quarto. Queria receber todo este carinho e zelo de sua mãe. Queria, sim, receber naturalmente e de peito aberto ao invés de se envergonhar e de desconfiar, restringindo-se. Queria estar em casa! Tentou reter as lágrimas em vão. A saudade o invadiu no ato mais simples e comum dos relacionamentos: o de dar e o de receber. Sentia-se tão só e tão criança. Ao julgar que a ducha poderia estar muito prolongada, engoliu o choro e se apressou. Não imaginava ser esta a última vez que teria a atitude de reter o choro. Não imaginava que nos meses seguintes a pessoa que o esperava para jantar, sua mãe de coração, o estimularia a chorar todas as dores contidas.

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...O gênero humano, como indivíduo ou como grupo, complexo em sua estrutura, que engloba os sistemas mental, físico, emocional e espiritual, manifesta um fenômeno de comportamento chamado comparação... Nos primeiros dias de aula, Eduardo travou alguns contatos, no intuito de averiguar quem estaria disposto a alugar um apartamento em conjunto; quem sabe a montar com ele uma espécie de república. Descobriu Artur em situação semelhante à sua. Mas o colega se restringia à busca de um emprego, para, só então, com o passar dos meses, financeiramente organizado, procurar outra moradia. No momento não era viável. “Nem pensar”, dissera cortante. Dessa forma, no contexto das dificuldades, Eduardo debatia-se nas adaptações peculiares a um recomeço de vida. A oposição crítica do colega mostrava-lhe o contrário do que imaginara ter; mostrava-lhe que as oportunidades teriam que ser duramente conquistadas. Ondas de insegurança e, consequentemente, de medo diante das situações inesperadas com as quais convivia o transportaram a pesadas comparações inconscientes, criando nele prematuramente um sentimento de rivalidade. Seus conflitos dentro desta grande cidade fizeram com que entendesse como definitiva a palavra concorrência, que se fixaria, gradativamente, no seu subconsciente. O que se sucedeu foi uma disputa cansativa em busca de prestígio. Essa posição opositiva ao meio era, no entanto, camuflada pelo seu carisma pessoal permanente. Seus relacionamentos e contatos transpiravam superficialidade, mas, num misto de simpatia e positivismo, conquistava professores e colegas. Artur lhe chamou a atenção por destoar dos demais, trazendo sempre consigo uma espécie de mala, destas usadas por vendedores, 14

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porém em tamanho maior e em couro cru, artesanal, da qual nunca se separava. Mantinha-se isolado num olhar cabisbaixo; seu porte era franzino, pele morena com manchas brancas em algumas partes do rosto, cabelo gorduroso e curto, vestimenta simples. Este seu jeito simplório sinalizava a Eduardo que, sem dúvida, poderiam ajudar-se, poderiam entrar numa parceria de igual para igual. O interesse de Eduardo era, no entanto, tão somente o de resolver seu problema de moradia. Artur, sim, vivia dificuldades extremas, tão extremas que, segundo seu prognóstico não haveria solução. Recém-chegado de Recife, estava perdido, assustado, deprimido por ter nas mãos ganhos surpreendentes sem base para consumá-los. Quando cursava o último ano do ginásio, um professor, certo dia, em suas divagações, comentou em classe sobre São Paulo, cidade em progresso industrial constante, e suas possibilidades profissionais. Para todos que o ouviram, tratava-se de uma fábula ou uma simples história. Entretanto, o professor, sem imaginar, plantara uma semente num local qualquer dentro do rapaz, o que o levou a prosseguir nos estudos e a frequentar, sob duras penas, o Científico em horário noturno.Trabalhava durante o dia para manter-se e ainda ajudar a sustentar os pais e os irmãos. Seus parentes do sertão pernambucano, paupérrimos, moravam em casas de paredes feitas de barro, telhado de palha e piso interno de terra batida. A sua opinião quanto a Artur era dividida, pois achavam que ele se debatia inutilmente com os livros... ao mesmo tempo em que se orgulhavam em ter um ente tão letrado na família, aliás, o único da enorme prole. Conseguiu como moradia o sótão do bar onde trabalhava e, em meio a trastes velhos e empoeirados, estendia sua esteira, e nela jogava o corpo mais morto do que vivo, após ter ainda estudado até a madrugada, debruçado sobre um caixote. Nesse período conheceu Fátima e seus planos futuros de estudar engenharia a entusiasmaram, fazendo-a ‘apaixonar-se’. Naturalmente que a faculdade seria feita em Recife, e, ao formar-se, seriam felizes para sempre! Ele, doutor, ela, sua companheira eterna. 15

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Mas Fátima demonstrava pressa em se casar e ele, sob pressão, aos vinte e três anos, embora dedicado e aplicado, amando-a cada dia mais, perdeu forças em relação ao estudo e precisou repetir o último ano do curso, o que por sua vez ocasionara sérios atritos entre o casal. “Assim que eu entrar para a faculdade, nos casamos”, alegava. “Tenha um bocadinho de paciência”, insistia. “E se você não passar nos exames?”, perguntava ela entre olhos lacrimosos, entristecendo-o, tanto pelas lágrimas que via, quanto pela chance que sabia ser remota da realização do seu desejo. E Fátima o provocava: “Você ama mais aos seus estudos do que a mim!”, intensificando o pranto. “Bichinha, não é isso não! Quero uma vida melhor pra gente. Quero você como madame”. Mas acabou adulterando seus planos e prometendo: “Está bem. Vou procurar um emprego melhor, paro de estudar e a gente se casa”. O emprego melhor surgiu, acrescido de um mínimo a mais e foi com uma alegria infantil que lhe deu a notícia: “Começo na semana que vem”, disse todo animado. “A gente economiza nestes poucos meses e, em dezembro, se casa.” “Tarde demais”, escutou numa voz fria. “O filho do dono da padaria me pediu em casamento pro meu pai.Vou ficar com ele.” “Mas, Fátima, você disse que me amava...”, e a viu afastar-se orgulhosa, de cabeça erguida, ouvindo-o implorar em vão: “Não faça isso comigo! Eu amo você. Largo os estudos, a gente se casa antes de dezembro...” O casamento de Fátima foi rápido, e Artur caiu em si ao vê-la certa vez com o ventre avolumado em excesso, em relação ao suposto amor que ela jurara ter por ele. Humilhado e dolorido, terminou o Ensino Médio, naquele ano, colocou no bolso o pouco dinheiro de que dispunha e na boleia ao lado do motorista que lhe deu carona, rumou para São Paulo. Queria ficar longe de tudo e de todos. Não sabia ao certo o que estava fazendo; queria somente fugir dali. Permaneceu uma semana morando na rodoviária, onde o caminhoneiro 16

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o deixara, porque lá havia a possibilidade de encontrar conterrâneos e de poder orientar-se. Foi assim que, por intermédio de uma família nordestina, soube da existência de um albergue. Artur morava em um albergue! Eis seu segredo diante dos colegas da faculdade. De bar em bar, restaurante em restaurante, prestava serviços em troca de comida ou de uns trocados por não conseguir oportunidade melhor. O dinheiro que portava consigo, sempre escondido dentro do sapato, serviu para a inscrição no vestibular. Na raiva e no desgosto ingressou na faculdade, embora numa péssima classificação: era um dos últimos. Não houve alegria ao ver seu nome num jornal qualquer que pegara emprestado para certificar-se do resultado. Não havia para quem contar, com quem partilhar, e sentia o que lhe acontecia como irreal, distante. Acompanhado da velha mala, dormindo ainda no albergue, decidiu frequentar as aulas até o prazo mínimo estipulado para trancar a matrícula; se tivesse sorte, continuaria no próximo ano o seu curso. Na verdade, sentia não ser parte daquele meio; ainda não. Não se entregaria ao que lhe era negado dia após dia; cada dia podendo ser o último. Gostava do colega que insistia em procurá-lo, mas não havia por que se falarem. Ele, Artur, não tinha o que dizer, por isso esquivava-se o quanto podia. Sabia que o procurava por estar só e, que tão logo encontrasse um grupo, o largaria. Além do mais, para que amizades se talvez nunca mais se vissem? Ele o irritava com perguntas que não queria escutar, quanto mais responder, tais como: “Você está sozinho em São Paulo ou mora com a família? Ah! Você mora com amigos! E você trabalha?”; ou comentários como: “Procuro alguém que queira dividir um apartamento, mas está difícil! A maioria do pessoal é daqui mesmo...” Dias depois, Eduardo voltou a procurá-lo e, com cuidado, retornou ao tema por tê-lo sentido frágil. “Você por acaso conhece alguém que tenha um quarto para alugar?” “Não”, disse-lhe secamente.“Não conheço nada e nem ninguém.” 17

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“O mesmo acontece comigo!”, respondeu Eduardo, eufórico por achar que conseguiria desta vez conversar com ele. “As pessoas são meio fechadas, você não acha? Digo, os paulistas. Parecem todos desconfiados”, sua voz tornou-se mais baixa como quem se abre em confidências. “Não me interessa como são”, disse este francamente aborrecido. “Vou mesmo cair fora daqui, pouco me importa!” E virou o corpo num gesto de desprezo para tudo o que o rodeava. Eduardo riu. “Você ainda tem cinco anos pela frente!” E ia prosseguir, quando ouviu uma forte exclamação. Forte por vir com energia agressiva, agressiva por conter emoções secretas. A tristeza era a emoção principal. Artur tinha que ser agressivo para não chorar; não deixar sair por meio das lágrimas toda dor que sentia pelo que já passara na vida em inexistências. Dizem que não se sente falta do que nunca se obteve, mas tanto o corpo quanto a alma suplicam pelas suas necessidades. O corpo tem fome. Tirar a fome não representa somente encher o estômago vez por outra com o que nos chega. Nosso corpo tem fome de alimentação balanceada e constante. Isso é muito mais do que os pobres possuem; nosso corpo precisa ser resguardado e protegido. O que não significa ocultar-se com trapos que mal servem; trapos que nos fazem ridículos e humilhados... calçar qualquer coisa enorme ou apertada. Nosso corpo precisa de carinho, bom trato, limpeza e cuidados. Nosso corpo é nossa única e sublime residência; nele habita nossa alma, que precisa cumprir seu objetivo maior, que é o preenchimento moral e intelectual, afetivo e sentimental. Quando esses elementos apresentam um bom equilíbrio entre si, podemos nos dizer satisfeitos e nos considerar sem sombra de dúvidas enriquecidos. “Que cinco anos, que nada! Não sou de ficar nas costas de ninguém”, soltou, e pela mentira virara o rosto, para sustentar o que havia dito dias antes, sobre sua moradia com uns conhecidos. “Não arranjo trabalho”, prosseguiu, “isto aqui não é pra mim. Vou cair fora, é só no que penso”, deixou escapar, quase se traindo. 18

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“Você vai largar tudo? Vai largar a faculdade?”, indignou-se Eduardo. “Não pode fazer isso! Tem que ter paciência.Você pelo menos tem estes conhecidos onde mora! Eu não tenho ninguém.” “Não quero mais morar lá”, resmungou, afastando-se por não aguentar o diálogo, porém ouviu quando Eduardo bufou. Ao voltar-se, olhou-o de alto a baixo, propositalmente e com descaso. “Você é filhinho de papai rico, não sabe de nada.” E retirou-se, ainda mais abraçado na mala. Isso aconteceu numa quarta-feira e a partir daí evitavam se falar, embora Eduardo gostasse de vê-lo chegar pela manhã. Era o sinal de que persistia, embora o sentisse cada vez mais retraído e com ar de revolta no semblante.

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