A Ideia

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1 Sem saída Todo mundo espera sua hora de brilhar. Pelo menos a maioria espera que um dia possa realizar seus sonhos, encontrar alguém de boa alma com quem construir uma família, ou apenas amar. Encontrar um bom lugar para viver, um lugar tranquilo e calmo. Viver sem vícios e com menos problemas possíveis. Ou seja, encontrar a felicidade plena. Admito, toda essa conversa é muito bonita, mas na realidade isso quase nunca acontece. Ninguém nunca está feliz, apesar da felicidade ao redor. Mas devo dizer que eu saberia muito bem ser feliz se eu conquistasse tudo o que citei mais acima. Até aí tudo bem, mas e se isso acontecer com alguém? Se alguém conseguir realizar seus sonhos, encontrar uma pessoa com quem compartilhar prosperidade e consternações, e tudo passar num piscar de olhos? E mais uma vez ver-se só, em casa, de frente para um computador, ouvindo apenas alguns pássaros cantando ao longe. Alguém que tenha conhecido tamanha felicidade não conseguirá aceitar a tristeza com humildade. É da natureza humana. Meu problema é pensar demais. Sempre penso naquilo que poderia acontecer. E que não acontece. E fico triste com o que poderia ter acontecido. É ruim pensar demais. É difícil aguentar todas as injustiças e malogros, mesmo por merecimento, como se as quisesse. É ruim pensar demais, não deixar as coisas fluírem 11

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normalmente, com surpresas.Tenho essa inconveniente mania de tentar prever e controlar tudo. Talvez eu seja um pouco mimada, mas me sustento por alguns privilégios que tenho e que a vida me ofereceu de graça. Privilégios esses que nem são muitos. E tenho esperanças. Não importa o que eu fale, o que eu pense ou o quão triste eu fique, tenho esperanças. Sei que existem pessoas numa situação pior que a minha. Mas será justo ficar alegre com a infelicidade e a pobreza alheia? Até que ponto, e quando, podemos dizer que uma situação é pior que a outra? Eu vivia submergida pela rotina doentia e me ocultei reclusa, para fingir que não vivia aqueles momentos; a alma se esvanecia a cada dia perdido. Eu, de tão escondida, nem me dignava a rezar, pois de onde eu estava não seria ouvida. A fé ouve quem existe. Eu nem precisava de perdão ou redenção; eu simplesmente não existia. Quando o azul do céu escurecia, assemelhava-se a um pedaço de morte. Eu vivia sem respirar. O júbilo extinto repousa entorpecido, à espera de um momento fugidio. Uma vida indecisa, por falta de oportunidades; uma vida que só tencionava acertar. Eu já acompanhei tantas madrugadas sem descobrir a aurora, desta vez quero forças para viver, para ver, para gozar uma última emoção. Minha vida inteira foi uma procura. O problema é que eu nunca soube encontrar. Como uma criança que ganha um presente, mas prefere deixá-lo intocado em cima da cama, só pelo prazer de possuí-lo. Minha vida era como um presente concedido, mas fiquei tempo demais para abri-lo. Lamento o passado, quem sabe o que eu descobriria? E agora, em cima de uma cama vazia, sem presentes. Entristece-me saber que Deus não está preparando algo bom para mim. É horrível não ter saída. Tentar andar, mas só retornar. Por quê? É ruim sempre ter vontade de continuar. E não adianta 12

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se um destino indigno, indiferente está reservado. Sei também que, amanhã, ao lembrar-me disso, vou achar tudo bobagem, mas é só nessas horas que enxergamos a realidade. Foi isso que pensei numa noite chuvosa. A manhã nasceu quente. O sol não estava poupando esforços para levantar qualquer indolente ou preguiçoso que não tenha tido coragem de sair da cama. Alguém como eu. Nunca gostei de acordar cedo. Nem nunca vou gostar. A maior parte das emissoras de televisão nem tinha programas passando naquele horário. Os raios do sol entravam pela janela e atingiam o espelho, que refletia feixes de luz que me davam agonia. Precisava tirar aquele espelho dali, urgente. Há situações de que só nos apercebemos quando chegam ao limite. Essa história do espelho só acontecia no verão. Meu cabelo castanho-claro estava tão desarrumado que nem se eu tivesse tentado com as próprias mãos teria conseguido aquele efeito. Talvez fosse o travesseiro ortopédico que minha tia comprara e que eu teimava em não usar. E, apesar de muito liso, os fios rebeldes surgem, principalmente quando acordo. Mas eu não me importava muito. Nunca fui muito vaidosa, gosto do que tenho e gosto de ser assim. Para compensar, cuido das minhas coisas com bastante zelo. Meu quarto tem um lindo papel de parede com rosas por toda sua extensão, um tapete rosa e branco da Minnie, que adoro. Em cima da estante está minha coleção de canetas. De todas as cores, formatos e tamanhos. Parece o quarto de uma criança, ou melhor, de uma menina caprichosa, e não de uma jovem de 23 anos. Mas tudo bem, eu não pareço ter essa idade. Levantei-me e fui beber um pouco de água, sempre acordo com sede. Dizem que beber um copo-d’água ao acordar melhora o funcionamento do intestino, ajuda na desintoxicação. Se for verdade, então saio no lucro. Minha tia Vera já estava acordada, 13

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como sempre. Ela acorda um pouco antes de o sol nascer. Nunca vi uma pessoa madrugar tanto, até nos fins de semana. Estava sentada no sofá tomando café. Disse-me o que tinha na geladeira: leite, pão, ovos, biscoito, requeijão. Sempre a mesma coisa. E eu sempre comia tudo. Disso ela se orgulhava. O edifício onde moro se localiza numa esquina. Ocupo o apartamento da face leste do sexto andar com minha tia. Não é um apartamento amplo, mas é grande o suficiente para nós duas. A sala é o maior cômodo, em seguida a cozinha. Os dois quartos são menores, o meu é um cubículo fechado, por isso sempre fiz questão de arrumá-lo o máximo possível. E isso era perceptível. Perto da janela há uma escrivaninha, ao lado da qual muitas vezes me sento e observo a rua, é onde estudo e faço anotações diversas. Apesar de pequeno, era aconchegante, e eu estava ali há cinco anos. Começo a achar que deve ser enfadonho morar sempre no mesmo lugar, mas eu não cogitava uma mudança para os anos seguintes, ou pelo menos até conseguir meu diploma. Indisposta, tomei um bom banho gelado, arrumei-me, escolhi uma calça jeans justa e uma camiseta básica, comi um pão com queijo e alguns biscoitos com requeijão, bebi um bom suco de laranja e parti para o mundo. Sair cedo de casa era muito bom. Ainda estava frio e havia pouca gente nas ruas. O trânsito era mais livre, em vinte minutos eu chegava à universidade. Peguei o ônibus e sentei na janela, sentir o ar frio era a melhor parte. Mais tarde um colega de turma entrou e sentou do meu lado. Conversamos durante toda a viagem. Não tínhamos muita conversa em comum, mas desenvolvemos um assunto qualquer até chegarmos. Minha vida sempre foi meio acomodada. Sei que pode ser desconfortável a princípio, mas tenho que contar um pouco da minha história, pois acredito que quem conhece a história de 14

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alguém pode conhecer também seu coração. Moro com minha tia desde pequena, oito, nove anos. Sempre tive a mesma rotina. Colégio, casa, estudar das duas às cinco. Depois tevê. Cama. Nada muito bacana. Eu também não sabia o que era bacana. Há muito o que falar dessa época, mas nada que valha a pena. Aos meus quatorze anos, abri os olhos para a vida, para a verdade. Fui apresentada a regras que não estão escritas em nenhum livro. Posso dizer que, ainda nessa época, pude ver a quantas andava a minha vida... E, diga-se de passagem, não andava muito bem. Durante toda a minha vida, vivi entorpecida por causas que só meu passado conhece, no subterfúgio do meu inconsciente. Mudei de colégio quatro vezes, duas vezes em outra cidade. Não foi legal, mas o que eu podia fazer? Conheci tanta gente, tantos lugares, que, no entanto, passaram em branco, como uma novela a que você assiste todos os dias, sem perder um episódio, mas depois que ela acaba, nem lembra mais o nome. Ainda nesses tempos, apaixonei-me. É, mas ele não me dava muita bola, o ano se passou e eu o esqueci. Aprendi então a suportar um amor rejeitado, situação pela qual todos passam um dia. Mas essa parte do “amor” é mais para a frente, não quero adiantar minha história. Eu ainda não sabia o que era amor. Creio que agora tirei um grande peso das minhas costas. Não podia continuar a narrativa sem antes contar “minha breve história”. Afinal, o que é história? Sem divisões. De verdade, ninguém sabe onde ela começa e onde termina. Uma hora depois, o tempo não estava tão ameno como antes. O vento frio fazia contraste com o calor, que já estava tão forte que não dava para conversar a não ser que fosse sob uma boa sombra.

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As aulas estavam muito chatas e cansativas naquele dia. Sentei-me no canto direito da sala e encostei minha cabeça na parede, enquanto a professora não parava de escrever no quadro para eu copiar. A pior aula era a daquela mulher, ela escrevia mais que qualquer outra coisa e fazia questão de falar rebuscadamente para que ninguém a entendesse. E ainda faltava uma hora para acabar. Por sorte, o professor das duas últimas aulas não tinha ido e pudemos conversar até a hora do próximo ônibus. Letras não era bem o curso da minha vida, mas eu estava gostando. A universidade era legal, as pessoas eram simpáticas. Não ia esperar que um dia soubesse de súbito qual era a profissão certa. Ainda que não tivesse certeza, eu me esforçava, obtendo boas notas. Algumas vezes não sabemos para onde estamos indo, mas ter consciência de que estamos em um bom caminho nos acalma. Ainda por cima, no último semestre, eu havia sido aprovada para a monitoria. Não é bem o que eu esperava, mas estou me saindo bem. Fico na universidade o dia todo uma vez por semana para tirar as dúvidas de inglês ou francês de alguns estudantes. Às vezes sinto-me cansada, sem tempo para mim mesma, sem tempo para realizar meus sonhos, sem tempo para me apaixonar. Às vezes não tenho tempo nem para parar e pensar. Tempo, tempo. É apenas uma desculpa.Talvez a vida siga mesmo um ciclo, como nascer, estudar, depois usufruir o que se ganhou durante todos os anos passados. Mesmo assim, não gosto de me incluir em ciclos. Era preciso ter uma média de no mínimo sete. Fui fazer a prova tranquila, nem tinha estudado nada, mas eu sabia o suficiente. Nervosa com o olhar do professor, com o qual eu havia tido aulas em outro período, continuava a me concentrar no teste. Ele parecia adivinhar em qual questão eu estava, exatamente quais eram minhas dúvidas, só esperando que eu levantasse o braço e o chamasse. Todavia, continuei fazendo minha prova. Só 16

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depois soube que meu resultado tinha sido um dos melhores. E aqui estou, dando aula para outros estudantes. Nunca pensei que seria professora na minha vida. Mas acontece que mergulhamos em correntezas, sem saber exatamente onde vamos chegar. E quanto menos lutamos contra e mais nos deixamos levar, mais percebemos que essa correnteza é o nosso lugar. Voltei para casa morta de fome.Aprontei o almoço em poucos minutos. Sabia cozinhar o suficiente para mim e minha tia. Gostava de almoçar na sala, perto da janela, vendo as ruas lá de cima. As pessoas pareciam tão pequenas, tão insignificantes. Imagine então seus problemas, hunf, insignificantemente pequenos. Quanta coisa se passava lá embaixo. Se eu pudesse sair, ao menos... Tomei um susto quando a campainha tocou. Pelo menos foi por um bom motivo. Tratava-se de uma grande amiga, Brenda. – Oi! Entra – falei animada, fechando a porta quando ela passou. – Como você está? – perguntou enquanto tirava a sandália. E sentou-se no meio do sofá, ocupando metade do espaço. Como eu estava almoçando, resolvi sentar na poltrona ao lado, perto do computador. – Estava passando por aqui e resolvi fazer uma visita. Quem sabe a gente pode dar uma volta por aí. – Servida? – perguntei, apontando o almoço com o garfo. Ela recusou contorcendo os lábios e explicou: – Acabei de almoçar. O seu celular tocou. Ela olhou e o deixou tocar. – Carlos. Que coisa! Ele está me ligando direto. Está ficando difícil de aturar. – Por que ele liga tanto pra você? Nunca entendi esse jeito dele de ser... – Ninguém entende – fez uma cara de impaciência, pondo a bolsa no sofá, ao seu lado. – E ele me perguntou o que eu iria 17

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fazer. Eu disse que pensava em fazer uma visita pra você, mas... – o celular parou de tocar. – Você disse que me visitaria? – perguntei já sabendo a resposta. – Então daqui a pouco ele me liga. Não deu outra. O telefone de casa começou a tocar. Ela balançou negativamente a cabeça com desaprovação, fazendo seu cabelo escuro sacudir. Por minha vez, não atendi. – Deixe-o pensar o que quiser – disse Brenda com desalento. – Por que você não conversa com ele? – Eu converso, mas ele não me ouve! Você não sabe como ele é. E quer saber de uma coisa? Para mim não dá mais. Namoro de fachada, ficamos com outras pessoas e fingimos que está tudo bem. – Ela olhou minha cara de falsa surpresa. – Isso mesmo. Ele me traiu várias vezes que eu sei. E eu também, não vou ficar por baixo. Eu caí na gargalhada, quase derrubando o almoço. – E com quem foi da última vez? – Ah, não sei – ela olhou para a cadeira com um semblante pensativo. – Acho que foi aquela vez do show. Eu sabia do que ela estava falando. As férias tinham chegado com todo o fervor de janeiro. Eu estava receosa de saber como seriam, pois as últimas não tinham sido lá muito proveitosas. Fiquei sabendo que uma banda famosa internacionalmente, depois de se desfazer, voltara a fazer show pelo mundo afora, e a turnê passaria pela nossa cidade. Na semana seguinte fomos comprar os ingressos. Mal podia esperar pelo dia da apresentação, era sem dúvida a despedida do conjunto musical de sucesso. E o dia chegou com bastante rapidez. Convencer minha tia a me deixar ir foi uma missão difícil, mas, com muita calma e jeito, consegui. Ela não era fácil de dobrar. Porém, creio que ela apenas dissimulava sua oposição, pois sabia o quanto eu queria ir 18

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e o quanto economizara para aquele dia. Sabia que eu iria de um jeito ou de outro, mesmo escondido. Então preferiu ser durona, para depois me liberar. Contribuindo com o fingimento, preferi agradecer. A noite estava linda e estrelada. Fui até a casa de Clara, outra grande amiga. Seu nome fazia jus ao seu corpo, ela era a mais branca de nós três. Seu cabelo loiro-escuro, liso e ondulado nas pontas, por causa da sua antiga mania de enrolá-las, mais parecia uma cachoeira dourada. As sobrancelhas finas realçavam seus olhos grandes e sempre curiosos, conflitantes com seu comportamento reservado e educado. Uma jovem bonita, inteligente e que transparecia bom senso. Ela nascera em outro estado, mas seus pais tiveram de se mudar para cá por causa do trabalho, o que já fazia quinze anos. Ambos eram fiscais sanitários e foram transferidos sem aviso prévio, porém aceitaram sem problemas. E sua filha única veio com eles, naturalmente. Brenda a conheceu por intermédio de outra amiga, e quando esta morreu, há alguns anos, as duas se descobriram grandes companheiras. Por sua simpatia e carisma, ficamos muito amigas desde o primeiro dia. Seu namorado, o Sandro, um rapaz alto, forte e de testa larga, também iria ao show. Demoraram tanto para se aprontar que eu quase dormi na cama ao lado de Jorge, primo de Brenda. Esta, sem nenhum motivo, enfiou na cabeça que sua blusa de caveira não valorizava seu corpo. – Por que você não percebeu isso na sua casa? – perguntei secamente. – Não sei. O espelho daqui é melhor. Ninguém evitou o riso. Um som de buzina entrou pela janela. Brenda finalmente escolheu uma blusa e fomos todos. Houve um pequeno empecilho, pois o namorado de Clara trazia um amigo. Não havia como 19

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acomodar seis pessoas dentro do carro. Mas, como estávamos perto do lugar, fomos mesmo no aperto. Acabei sentando perto do amigo do namorado de Clara. Ele era do meu tamanho, tinha um nariz enorme, o cabelo moldado com gel num penteado estranho. Percebi que ele olhava para mim de um jeito incomum. Aliás, acho que todos perceberam, mais cedo ou mais tarde.Tratei de virar logo a cara e responder monossilabicamente, por mais que ele puxasse assunto. Realmente havia muita gente, o que não era de se espantar. A fila dava voltas, demoramos quase uma hora para entrar. Por sorte, havia três colegas de Clara esperando no meio da fila, então pudemos nos adiantar bastante. Ficamos juntos assistindo às outras bandas tocarem. Fiquei conversando com Brenda até que me senti cansada de esperar e sentei no chão mesmo, encostada numa pilastra. Fiquei olhando algumas pessoas conversarem, quer dizer, não dava para ver muito bem, mas isso era o mais legal. Olhar para as pessoas sem que soubessem que estavam sendo observadas. O jogo de luzes ofuscava nossa visão. Clara estava mais ao lado conversando com o namorado e os amigos dele. Brenda e Jorge estavam em pé, assistindo à banda no palco. Faltava alguém... O rapaz perto de quem eu ficara dentro do carro sentou-se ao meu lado. – Você parece confortável aí. Posso lhe fazer companhia? – ele perguntou. Ergui os ombros como se dissesse “que posso fazer?”. – Você vem sempre aqui? Balancei a cabeça e apontei para o ouvido, demonstrando que não conseguia escutar nada. – Fale mais alto! – Você vem sempre aqui? – gritou no meu ouvido. 20

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Olhei para ele sem esboçar reação e virei meu rosto. Ele abriu a boca para falar. – Posso lhe beijar? Fiz como se fosse rir, mas depois parei. Até achei mesmo que pudesse rir. – Aquela ali parece estar interessada em você – disse eu, apontando com o queixo. Ao longe, uma mulher baixinha nos olhava a todo instante. Olhei para cima e vi Jorge. Ele olhou para mim com um sorriso como quem acha graça da situação. Brenda não estava mais ao lado dele. – Mas é você que eu quero – disse ele. –Você é linda, já disseram isso pra você? Seu cabelo é gracioso, seus olhos são dois diamantes... – Ok, ok, essa eu já conheço – e olhei para a frente. Mas ele continuava a me fitar. Aproximava-se. – Qual é? Você bebeu, foi? Não vou ficar com você não, dá para entender? Nem precisei olhar para ele para ver sua cara de desapontamento. – Certeza? – ele gritou ao meu ouvido. – Você ouviu o que eu disse. – Me dê seu telefone. – Tchau! Ele continuou me olhando por um tempo, levantou-se e saiu. Pouco tempo depois, Jorge ocupou seu lugar. – Você não dá uma chance, hein! – debochou. – Não vem você também! Depois nós rimos. – Onde está Brenda? – perguntei. – Está logo ali. Ele apontou mais ao longe, mas eu não via nada, a não ser a silhueta de algumas pessoas. Procurei ver Brenda, mas não a en21

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contrei. Garotas parecidas com ela me confundiram, só que eu a reconheceria muito bem se fosse a própria. – Onde? Não a vejo em lugar algum. – Espera ela desgrudar do cara ali. Não entendi de primeira o que Jorge disse. Ela estava beijando alguém? Não compreendi até que ela realmente “desgrudou” do rapaz. Eu não a tinha visto, já que a sua sombra e a do rapaz se fundiram em uma só. – É – Jorge disse. – Ela não perde tempo. Pouco tempo depois, ela estava beijando os outros dois que estavam ao lado do primeiro, ao mesmo tempo. Meu queixo caiu. – Minha nossa... – ouvi Jorge segredar. Muitos minutos se passaram, e ela voltou como se nada tivesse acontecido. – Amiga, o que foi isso? – perguntei, dando risadas. – Você viu? – Claro.Você os conhece? – Agora eu posso dizer que sim. – Aquela garota ali ficou olhando para você com uma cara de reprovação – disse Jorge. – Acho que era a namorada de algum deles. – Problema dela! – disse, balançando os ombros. – Eu não rejeito as oportunidades que me aparecem... – Entendi o que ela quis dizer, uma indireta mascarada de simples comentário, e era para mim. Por sorte, as poucas luzes acesas se apagaram e o palco iluminou-se. Houve um grito geral vindo da multidão que agora se aproximava. – Vamos, acho que já estão no palco – disse Jorge. E lá fomos nós. O espetáculo mal estava começando. No dia seguinte, acordei quase dez da manhã. Brenda dormiu na minha casa. Mais tarde, demos uma volta na praia e fomos 22

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à casa de Jorge. Ele morava no décimo terceiro andar. Podíamos ver todo o mar imenso ali da varanda. Montamos uma mesa dobrável, pegamos três cadeias. Ele foi à cozinha e trouxe algumas bebidas e ficamos por lá conversando. – Ainda não entendi o que aconteceu com você para sair beijando todo mundo que estava na sua frente – disse Jorge. Sabia que tocaríamos nesse assunto, mais cedo ou mais tarde. Só não queria que eu tocasse. – Todo mundo que estava na minha frente, não. Eu ainda sei selecionar. Nós rimos. – Mas como você chegou até eles? – perguntei. – Fiquei apreensiva de ver você sozinha com tantos homens. – Eu também – disse Jorge. – O que uma garrafa de vinho não faz ninguém faz! – e riu de si mesma. Eu a olhei seriamente nos olhos. – Fala a verdade – exigi. – Você quer realmente saber a verdade? – Claro. – A verdade era que eu estava tentando descolar alguém para você. Fiquei surpresa com o que ouvi. Era a última resposta que eu esperava escutar entre todas as imagináveis. – Você está louca? Você nem ao menos sabia direito quem eram. – Realmente não sabia – ela parou e olhou um belo jarro de flores que estava ao seu lado. – Mas eu sabia que não eram más pessoas. Eles estavam com as namoradas e tudo. – Não acredito! – falei. – Acredite. Acho que eles não estão mais juntos depois disso. 23

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– Sua doida! – e começamos a rir. Brenda nunca demonstrou ter um juízo muito bom. Mesmo assim eu a adorava. – E você falou alguma coisa com eles, pelo menos? – falou Jorge, o vento batendo em seus cabelos. – Houve alguma conversa ou nem isso? – Não lembro... Eu ouvi alguém chamado Henrique... Patrique, alguma coisa terminada em ique... Não me olhe assim, Bia, fiz aquilo para o seu bem. – Certamente – falei cínica. – Mas usou a sua boca para conseguir, não? Brenda deu de ombros e respondeu: – E a língua também. – Ah, não sei – ela olhou para a cadeira com um semblante pensativo. – Acho que foi aquela vez do show. – Por que será? – eu provoquei, mas ela não respondeu. – Aquela vez valeu por três – ela continuou. – Valeu sim. Eram 5h20 da manhã e acordei disposta como se fosse meio-dia; o céu demasiado claro. Minha tia já estava acordada, como sempre. Não demorei a ficar pronta. O dia estava lindo, e eu me orgulhava disso como se ele fosse meu. E de certa forma era. Tomei um café sem pressa e, sem falar muito com minha tia, saí de casa. Como acontecia durante os três últimos anos. Como acontecia durante toda a minha vida. E como eu passei todos os dias dos últimos anos da minha vida? Exatamente como vou passar hoje. A que horas minha vida vai começar? Ela ainda não começou, e chegará um momento em que não poderá mais. Sem remédio. Sofrer até quando puder. 24

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Será que não há perdão para uma lição sinceramente aprendida? Jamais conseguirei. Não há mais pensamento. Não há mais vontade. É possível reencarnar na mesma vida?

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