A casa de Avis - Calicute

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A CASA DE AVIS

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Marcelo Mússuri

A CASA DE AVIS Calicute

coleção novos talentos da literatura brasileira

S ã o P a u l o 2013

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Copyright © 2013 by Marcelo Mússuri Coordenação Editorial Capa Diagramação Revisão

Letícia Teófilo Monalisa Morato Project Nine Mônica Vieira/Project Nine Mila Martins Rinaldo Milesi

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mússuri, Marcelo Calicute / Marcelo Mússuri. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. 1. Ficção brasileira I. Título. 13-09561 CDD-869.93

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2013 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia 2190 – 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Ao meu filho Lucas, por me amar quando ninguém mais me amou. À minha bela esposa Juliana, por manter-se com os pés firmes no chão para que os meus pudessem voar.

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“No mundo há três tipos de homens: os vivos, os mortos e os que são do mar.” Platão

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Precisei de muito encorajamento para amadurecer, acreditar e seguir adiante com esse projeto. Gostaria de agradecer a meus amigos historiadores de aquém e além-mar: Vittorio Serafin, Rui Oliveira, Vitor Sousa e Edgar Teles, pela inesgotável generosidade com que partilham seus conhecimentos. Erros serão fruto unicamente da minha ignorância ou teimosia. É preciso agradecer também aos editores Cleber Vasconcelos e Letícia Teófilo da Novo Século, por tornarem essa travessia muito mais tranquila. A meu amigo Daniel Castelani pela paciência e tolerância com que leu meu manuscrito e pelas constantes palavras de estímulo. Finalmente, a meu amigo e escritor Nivaldo Lariú, que forçosamente foi nomeado meu padrinho literário.

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PRÓLOGO Verão

do ano de

do amanhecer,

1483,

cidade de évora, portugal. antes

a Praça do Giraldo já estava completamente

tomada. A ansiedade era tanta que as pessoas tinham começado a sair de suas casas ainda na escuridão. Lentamente, aquela corrente de gente se transformou numa massa silenciosa, arrastando-se entre as ruas estreitas e escorregadias. Nas casas, as lamparinas penduradas nas fachadas já tinham se apagado, pairando uma fantasmagórica nuvem cinza no ar quente daquela sufocante noite de verão. As poucas lâmpadas, que teimavam em permanecer acesas, iluminavam precariamente o caminho repleto de um esgoto fétido que corria livremente pela rua. Com o surgimento dos primeiros raios de sol, a praça já estava apinhada. Os últimos a chegar forçavam a passagem com os braços e cotovelos. Em meio ao tumulto, alguns meninos tentavam subir numa grande árvore encravada no extremo sul da praça; mas com os pés sujos daquela lama pútrida, a tarefa se tornava ainda mais difícil. Um dos garotos, o mais franzino e de cabeça raspada grosseiramente para livrá-lo dos piolhos, foi se esgueirando por entre os galhos retorcidos até chegar ao topo e, de lá, ficou apavorado quando viu se desprender dos seus joelhos pontiagudos uma placa de excremento pegajoso que acabou caindo na orelha esquerda de Diogo e foi escorrendo, lânguida, pelo pescoço até se acomodar dentro da gola de sua camisa. – Jesus, estou todo cagado! – Diogo praguejou baixo, não querendo olhar para cima, receoso de receber ainda mais

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daquela massa languinhenta pela cara. E assim, cagado e espremido, ficou onde estava, confinado naquele espaço apertado. O sol já estava alto, esquentando as pedras do calçamento e fazendo subir à altura dos narizes um odor ainda mais insuportável. Já era quase meio-dia quando o silêncio absoluto foi rompido abruptamente pelo som ritmado e profundo dos sinos das igrejas da cidade, rasgando o ar quente com o seu som metálico e funesto. Situado bem em frente ao antigo templo romano, estava o Palácio das Cinco Quinas, uma grandiosa construção de estilo mudéjar flanqueada por duas imponentes torres de pedra. De lá, quem se posicionasse no pórtico gótico poderia ver a torre quadrangular e uma grande procissão que se iniciava. À frente de todos, pajens defumavam solenemente as ruas, misturando o cheiro de esgoto quente com o de ervas aromáticas. Logo atrás dos turíbulos, seguia o velho bispo D. Garcia de Menezes, ostentando sua impecável túnica branca sobreposta por outra roxa, bordada com fios de ouro. Sobre a cabeça uma mitra branca cravejada de pedras e na mão esquerda um báculo de ouro. Quem o observava altivo durante o cortejo não percebia o medo que percorria suas entranhas deixando seu passado de guerras gloriosas na África pateticamente para trás. Junto a ele, seguia seu contemporâneo D. Duarte de Almeida, um homem de aparência gélida, rosto quadrado e cabelos negros. Seus olhos eram profundos como os de um falcão. Trajava sua armadura de batalha completa, reluzindo os raios de sol como um espelho, pois tinha sido lubrificada com azeite de oliva e polida à exaustão durante a noite com

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vinagre e areia por seu cavalariço. Sobre a armadura, sua túnica branca com a cruz de Cristo vermelha. As pessoas observavam com curiosidade respeitosa o veterano da batalha de Toro, conduzindo seu majestoso corcel entre as ruas, apenas com o toque dos calcanhares, já que não tinha as duas mãos. Todos sabiam que D. Duarte, apesar de tê-las perdido durante aquela sangrenta batalha, não entregou a bandeira portuguesa ao inimigo e a sustentou entre os dentes antes de tombar semimorto cercado pelos Castelhanos e ser conduzido pelo próprio exército inimigo ao hospital. Pelo seu homérico esforço e coragem, recebeu do inimigo, além de respeito, o salvo conduto para retornar a Portugal. Junto dele na procissão, seguia silenciosamente a coluna de fumaça a mais alta nobreza portuguesa. Cortando as ruas, os nobres iam se contorcendo nas selas de seus garanhões, sacudindo seus estandartes de guerra completamente aparelhados com suas reluzentes armaduras de batalha. Estavam logo atrás de uma imensa cruz de madeira de aproximadamente três metros de altura, carregada solenemente por seis cavaleiros reais através de um suporte de madeira com seis hastes cruzadas. Entre eles vinha D. Fernando II, Terceiro Duque de Bragança. Um homem de rosto pálido e petrificado. Com passos firmes, mantinha os olhos vazios ostentando sua túnica com o brasão bordado das Armas da Casa de Bragança. As linhas entrecruzadas criavam a figura do escudo prata, uma aspa de vermelho vivo, carregada de cinco pequenos escudos azuis com as quinas de Portugal. Das janelas dos andares superiores, a multidão que acompanhava desviava o olhar e baixava a cabeça num ato

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discreto de profundo respeito a D. Fernando, até que a procissão chegou ao centro da praça onde tinha sido erguido um palanque de madeira. No alto, dois homens aguardavam a chegada do cortejo. O mais alto possuía a aparência tranquila, suas roupas eram simples, indicando que se tratava de alguém que ocupava algum cargo público de baixa hierarquia. Com ar de resignação, aguardou a chegada do nobre ao centro do tablado e não pôde conter um gesto que repetiu por muitos anos; e seguindo o que fazia a multidão, baixou discreta e brevemente a cabeça. No centro do palanque, havia uma mesa grossa de madeira escura forrada com veludo cor de sangue e fixada à borda da mesa por botões dourados. Em cima, repousava um objeto aparentemente grande e pesado sob um pano de linho branco. Logo atrás, o segundo homem, de cabeça baixa e roupas sujas, aguardava nervoso, tentando esconder um tremor persistente em seu braço esquerdo e um sentimento que fazia o pão azedo que tinha comido pela manhã subir várias vezes à boca, sendo empurrado goela abaixo com extrema dificuldade. O próprio rei de Portugal, D. João II, observava da sacada principal do Palácio das Cinco Quinas a trajetória grandiosa de D. Fernando. Cercado por paredes decoradas com passagens romanas do imperador Trajano e de alguns juízes, ele era a figura da mais absoluta calma e desinteresse. Enquanto assistia ao farfalhar da multidão, não parava de girar uma espada com os dedos cobertos de pedras raras, sem se preocupar com o furo que a ponta da arma fazia no imenso tapete mourisco abaixo dos seus pés. No salão, ao lado do rei, um menino de aproximadamente seis anos assistia a tudo com um olhar distante. Seus

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cabelos pretos eram cortados ligeiramente acima dos olhos, deixando os fios lisos cobrirem quase totalmente a fronte, formando um círculo negro e brilhante; sua roupa azul, do mais fino tecido, era decorada com as quinas de Portugal e trabalhada com fios de ouro. Sua aparência revelava a altivez de quem era nobre desde o primeiro suspiro e estava acostumado com cerimônias intermináveis e com a rigidez dos protocolos da corte. O rei parou de girar a espada por um instante, olhou para o garoto sentado aos seus pés e, tentando ser o mais bondoso possível, disse: – Viu, criança, isso acontece com quem esquece o seu lugar. Do cadafalso de madeira montado na praça, o homem alto e tranquilo que estava à espera de D. Fernando começou a enrolar, como num ato litúrgico, o pano de linho branco que ocultava o objeto adormecido. Primeiro, uma espessa lâmina de aço brilhante e depois, encaixado a ela, um longo e resistente cabo de madeira. Sob o olhar atento da multidão, após o objeto ter sido completamente revelado, o homem agarrou com as duas mãos um grande machado de guerra e o suspendeu para a população reverenciá-lo com pavor. O sujeito sujo e mais baixo sentiu um nó desatar de suas tripas e se contorceu em agonia observando aquele instrumento assassino girar ameaçadoramente no ar. No centro do tapume, D. Fernando parou, olhou durante um breve momento para a sacada real e avistou seu pequeno filho que assistia a tudo ao lado do rei. Sem dizer uma só palavra, curvou-se diante da multidão observando fixamente as feições desconhecidas e esperou o movimento brusco e preciso do machado, que num único golpe decepou-lhe a cabeça, fazendo jorrar seu sangue grosso e escuro.

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Sua cabeça se desprendeu na cesta de palha e o homem sujo e mais baixo aparou-a com dificuldade. Tão logo a cabeça se separou do corpo, o rei ordenou com sua voz rouca ao capitão da guarda: – Tirem esse bastardo de merda daqui! Abruptamente, os guardas suspenderam o menino pelos braços e o arrastaram com os pés quase sem tocar o chão. Aos trancos e empurrões, o conduziram até uma carroça que aguardava estacionada na saída de serviço do palácio. O povo na praça começou a se retirar tão silenciosamente quanto chegou. Em poucos minutos, o local da execução estava completamente vazio, exceto pela presença dos guardas que observavam o trabalho realizado no alto do tablado. De lá, os dois homens rolaram o corpo de D. Fernando até cair, desconjuntado, numa carroça que já levava outros corpos recolhidos da prisão de Évora. A cabeça, entretanto, que já havia parado de pingar os fluidos da medula, estava dentro de um cesto que foi entregue a um ginete. – Deixe cair e será a sua cabeça em outro cesto – avisou ao subordinado quando esse quase deixou cair o cesto de suas mãos. – É mais pesado do que imaginei, senhor – respondeu visivelmente constrangido. O ginete partiu a galope para o palácio. O cadáver percorreu as ruas até sair da cidade, oscilando conspurcado, foi atirado num terreno pantanoso junto com outras carcaças para apodrecer ao tempo. Tão logo a carroça apontou retornando para a cidade, um bando escondido na floresta que circundava o lodaçal correu para o corpo, despindo-o bruscamente para retirar-lhe as roupas e as botas.

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D. João II estava bebendo vinho na companhia de alguns fidalgos quando a porta do salão se abriu e o ginete entrou, carregando uma cesta coberta por um tecido manchado de sangue, e se curvou na direção do rei estendendo as mãos. Com um gesto silencioso, o monarca ordenou que o homem colocasse a cesta em cima de uma mesa ao lado de cachos de uvas, pêssegos, damascos e figos que estavam delicadamente dispostos em baixelas de prata. Assim que a porta se fechou, o rei caminhou serenamente até a borda da mesa e olhou através do tecido por um breve momento. Depois, retirou o pano com a mão esquerda, e com a direita puxou a cabeça pálida pelos cabelos e ficou olhando fixamente para os olhos murchos que estavam entreabertos. Depois de respirar fundo, virou-se para os presentes e disse: – Eu sou o senhor dos senhores, não o servo dos servos.

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PARTE I

RODA DA FORTUNA Diogo, com a camisa suja de merda e fedendo com o esgoto em seu pescoço, se juntou ao irmão mais velho quando a praça esvaziou. – Jesus, Diogo, você está fedendo como uma fossa! Você se cagou? – Eu não, um menino em cima de uma árvore – respondeu com um leve sorriso. – Pelo amor de Deus, como você consegue ser cagado por um menino que está em cima de uma árvore? – Dias estava tentando parecer severo, mas a tarefa de ser rígido era quase impossível diante do humor contagiante do irmão. Diogo, de dezessete anos, era bem mais alto do que Dias. Seus ombros deveriam ter pelo menos o dobro da largura das costas do irmão e sua postura leve e descontraída escondia um exímio espadachim. Ainda era um garotinho quando seu treinamento começou na escola italiana de Giovanni Dall’Agocchie, a melhor da Europa. Dall’Agocchie em pessoa oferecera uma bolsa de estudos a Diogo, depois de ter presenciado a luta do menino contra cinco garotos para defender um cachorro doente do apedrejamento. Por sua coragem, Diogo ganhou a oportunidade de estudar a arte do manejo da espada, onde ficou até ser chamado de volta por Dias. Naquela movimentada manhã, não havia completado vinte dias longe da academia.

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Dias, o mais velho, possuía um rosto placidamente comum; quando mais moço, frequentara as aulas de Matemática e Astronomia na Universidade de Lisboa e servira na fortificação da cidade de Ceuta. Com trinta e três anos, era calado e podia passar despercebido se assim quisesse, mas com sua grande coragem e firmeza de caráter, infligia quase que instantaneamente a admiração e respeito até dos mais perigosos ladrões e assassinos de Portugal. – Vamos para casa – falou com a fisionomia cansada. Diogo sorriu e os dois, montando num suspiro, puseram os cavalos a girar, se posicionando no rumo da saída da cidade. Lentamente, os cavalos iam atravessando as ruas seguindo um passo preguiçoso. Dias não os instigou. Em sua memória, reverberava a imagem da cabeça se desprendendo do corpo. E a expressão dos olhos murchos, vitrificados da face sem vida, teimava em retornar espasmodicamente à sua consciência. Diogo não tentou puxar conversa, e optou por deixar seu irmão imerso em seus próprios pensamentos. Uma última guarnição permanecia posicionada na saída da cidade para controlar o tráfego aduaneiro. Um cavalete de madeira era erguido toda vez que uma carroça recebia permissão para entrar ou sair. Os guardas observaram com desinteresse os dois conjuntos se aproximando. Como viajavam sem bagagem, não foram incomodados, e os sentinelas rapidamente voltaram a atenção para uma grande carroça carregada com sardinha seca que se aproximava. Uma junta de bois exaustos arrastava com dificuldade a carga para dentro da cidade, enquanto o atrito do eixo de madeira roçando no cocão de encaixe apitava uma melodia deprimida e monótona.

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A estrada mais larga e bem pavimentada foi se estreitando à medida que os cavalos seguiam adiante, até se transformar numa trilha no meio da espessa vegetação. O número de casebres fervilhando ao redor da muralha da cidade também ia diminuindo a cada palmo percorrido, até finalmente desaparecerem por completo. Muito raramente, algum viajante solitário seguia no sentido oposto, geralmente um caixeiro com sua mula carregada de arcas, e Diogo conseguia perceber o medo e a apreensão daqueles rostos castigados, enquanto os caminhos se cruzavam. Um sorriso brejeiro brotava internamente sempre que escutava o bufar aliviado dos viajantes quando se distanciavam em segurança. Já haviam cavalgado o suficiente para sentir cansaço quando finalmente começaram a procurar um abrigo para passar a noite. A estradinha seguia sinuosa, e a marcha cadenciada servia como um elixir atraindo o sono insistentemente. Dias encarava divertidamente seu irmão toda vez que o rapaz bocejava ruidosamente num ritual orquestrado: primeiro a boca era escancarada, depois um ruído pavoroso punha alguns passarinhos que cochilavam na beira da estrada a voar desesperados de susto, e para finalizar, uma sacudidela esquisita quando o frio percorria sua coluna no final da oscitação. Mais adiante, a luz reconfortante de uma fogueira quebrou o silêncio de horas. – Ali parece um bom lugar – as palavras se encontraram e os dois sorriram. Dias esfregou os olhos umedecendo a retina ressecada pela poeira, enquanto Diogo se empertigava na sela querendo acelerar o passo. Na chegada, observaram guardas reais em volta de um coelho estalando sobre o fogo alto.

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Mais ao lado, próximo aos cavalos apeados junto às árvores, uma carroça com um menino de braços amarrados ao tornozelo, que gemia abafado. Diogo escutou-o choramingando e se consternou com a aparência suja e os pulsos feridos pelos nós da corda áspera. O menino não se virou para ver quem se aproximava. Os nós estavam apertados demais e seus movimentos contidos ao limite. Dias percebeu que, apesar de não ter se movido, o garotinho parara de gemer, como se quisesse ouvir quem estava se aproximando. Diogo teve o ímpeto de se jogar sobre o grupo de homens e, depois de abatê-los como porcos, soltar o menino daquelas amarras, mas se conteve com dificuldade. Antes de desmontar, Dias falou ao que parecia ser o líder do grupo. – Eu e meu irmão estamos a caminho de casa, podemos parar aqui por esta noite? Já estamos viajando há bastante tempo. Os soldados cruzaram um sorriso cínico enquanto aguardavam as palavras do capitão daquele pequeno esquadrão. O cavalo de Diogo trocou o peso das patas e voltou a se acomodar, exausto. Dias não demonstrou qualquer sinal de impaciência. O silêncio se estendeu até que o líder do grupo finalmente rosnou para Dias. – Vocês podem colocar os traseiros de vocês em qualquer lugar, desde que não atravessem o meu caminho. – A frase foi seguida pelo escárnio de seus companheiros. Dias, com uma expressão serena, se curvou ligeiramente apoiando as mãos no arção da sela, como se quisesse chegar mais perto daqueles homens, e olhou, por um breve momento, profundamente nos olhos de cada um deles. Até que os risos foram sendo substituídos por uma expressão

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constrangida e respeitosa, como se vissem algo assustador através daqueles olhos brilhantes. Agora foi a vez de Diogo sorrir levemente, como se já tivesse presenciado seu irmão fazer isso outras vezes, e, enquanto sorria, era correspondido pelos soldados desconcertados. Os dois amarraram seus cavalos próximos aos outros e se acomodaram ruidosamente ao redor da fogueira. Naquele momento, enquanto remexia seu alforje em busca do que comer, Dias não parava de pensar no garoto amarrado junto à árvore. Um desconforto incomum atormentou sua prudência, a ponto de uma antiga sensação despertar sua mente, cansada da longa viagem. O menino está muito bem guarnecido, ponderou. E será difícil soltá-lo com todos esses homens em cima da gente, continuou avaliando. Suas mãos se mantinham vasculhando a bolsa de couro, mas estava desconcentrado demais para identificar ali dentro algo que pudesse comer. Olhou seu irmão de soslaio. Diogo estava sentado com os dedos cruzados atrás da nuca. Seus olhos semicerrados apontavam em direção às estrelas, enquanto seus lábios se moviam silenciosamente no que parecia ser um diálogo muito íntimo. O que esse desgraçado está pensando!, tentou adivinhar. O silêncio ameaçador só era quebrado quando o fogo crepitava alguns feixes de lenha ainda verdes, fazendo as fagulhas alaranjadas estalarem no ar parado da noite. Dias finalmente achou um pedaço de pão perdido dentro do alforje e, depois de parti-lo em duas metades, arremessou uma banda para Diogo, avisando-o com um assobio curto. Diogo estava tão absorvido naqueles pensamentos que não conseguiu segurar a sua porção a tempo, e teve de se contentar em dar alguns safanões no pão para tirar o excesso de terra que gru-

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dou no miolo. Depois de verificar meio de qualquer jeito, assinalou com um sorriso que estava satisfeito com o serviço e meteu um naco na boca antes de dar com os ombros para o resultado do asseio. – O que as donzelas fazem sozinhas à noite? – perguntou o líder dos soldados com ar provocativo. – Não têm medo de perder seu pudor? – Prezado senhor – agora era a vez de Diogo responder sarcástico –, estou cansado, fedendo à merda, com fome e sede, mas percebo que eu e meu irmão não vamos conseguir descansar enquanto não resolvermos nosso impasse – disse ainda de boca cheia. O soldado riu alto. – E o que um cagão filho de uma cadela sugere? Diogo, em silêncio, ficou de pé e retirou a espada da cintura lentamente. Os soldados comemoraram a diversão e se aprumaram para acompanhar o desafio. O capitão da guarda real puxou, com esforço, um pedaço de coelho preso entre os dentes e arremessou na direção de Dias. O naco de carne girou no ar sufocante da noite. Percorreu um semicírculo perfeito até ser apanhado pelas mãos ágeis de Dias, que se mantinha sentado calmamente. Quando já estava de pé com a espada apontando na direção de Diogo, o capitão disse com um sorriso cínico para Dias: – Guarde para mim. Depois que eu enviar a alma desgraçada do seu irmão para o inferno, comerei esse coelho enquanto meus homens comem o seu traseiro. Dias se manteve calado. Por um breve momento, ficou pensando se realmente deixaria seu irmão, apenas um rapaz exultante e espontâneo, enfrentar aquele homem calejado pela guerra. Sabia da habilidade fora do comum de Diogo,

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afinal, o jovem passara boa parte da vida num internato italiano famoso por desenvolver os mais primorosos espadachins da Europa, mas a visão do rosto imaturo do rapaz, contrastando com as cicatrizes daquele lobo traiçoeiro, martelava o seu coração a ponto de doer. Já estava decidido a levantar e interromper aquele absurdo, quando percebeu o movimento rápido da espada do capitão rumando com fúria na direção da cabeça de Diogo. O jovem aparou o golpe com tranquilidade. Dias se surpreendeu com a técnica precisa. Seguramente, se Diogo não tivesse se defendido do assalto, já estaria morto e com a cabeça dividida em dois pedaços, como uma laranja partida. Com o movimento quase imperceptível do tronco, Diogo ficou lado a lado com o capitão ainda atônito, e num giro simples da espada cortou a orelha direita do oponente, levando junto uma fina camada da lateral do rosto. O capitão sentiu o líquido quente escorrendo fartamente pelo ferimento e tentou inutilmente dar mais um golpe, completamente desorientado. A arremetida foi facilmente aparada pela espada de Diogo e, novamente, num curto movimento, cortou-lhe a outra orelha. O homem caiu de joelhos, postando as duas mãos nas laterais da cabeça, tentando estancar o sangue que escorria fartamente. O ferimento ardia como brasa, e seus olhos se encheram de lágrimas carregadas de frustração e desespero. Diogo então disse, secamente: – Agora você poderá escutar melhor os avisos silenciosos que a vida lhe der. Olhando para os soldados que o assistiam, seu ar sério foi se transformando novamente naquele olhar descontraído e, em tom pungente, disse:

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– Podemos descansar agora? O grupo perplexo assentiu com a cabeça e correu em seguida para socorrer o colega que estava caído com as mãos cobrindo os buracos abertos onde antes estavam as orelhas. Da carroça, o menino amarrado esticava os nós ainda mais tentando ver o que estava acontecendo e, por um instante, seu olhar de medo e dor cruzou com o olhar jovem de Diogo. O reflexo causado pela chama da fogueira nos olhos negros mareados do menino deixou Diogo desconcertado por um segundo. Dias lembrou instantaneamente da praça, do sangue grudado nos cabelos desgrenhados, da expectativa estampada nos rostos sofridos da população antes da execução e, mais do que tudo, da imagem dos olhos entreabertos completamente vitrificados naquela cabeça sem vida. – Desamarre-o e dê-lhe água e comida – ordenou ainda sentado junto à fogueira. Sem demonstrar nenhuma insatisfação, o soldado foi até o menino e desamarrou seus pulsos e tornozelos. As pequenas mãos estavam inchadas e azuladas, os pulsos esfolados pelo atrito da corda áspera e em um dos olhos havia um hematoma tão grande que não podia se abrir. Dias finalmente se levantou e foi em direção ao menino trêmulo de medo. Retirou a longa capa negra que pendia em suas costas, assinalando para a sociedade seu status de homem casado, e, num gesto de afeto, passou-a às costas do menino e disse: – Venha, junte-se a nós, saboreie esse delicioso coelho oferecido com tão boa vontade por nossos novos amigos. O menino os seguiu em silêncio. Seus joelhos em carne viva eram testemunhas de sua sorte. Diogo pegou um copo

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de vinho que estava sendo levado à boca pelo soldado sentado ao seu lado. O sujeito ficou olhando com os olhos arregalados, mas não reclamou. Diogo passou o copo para Dias, que estendeu ao garoto. Este, por sua vez, o agarrou com as duas mãos com grande determinação, tomando todo o líquido com desespero, deixando escorrer um fio vermelho pelo canto da boca. Com a ajuda do vinho e com a barriga forrada pelo coelho, o menino dormiu profundamente, chegando a roncar de vez em quando. Durante o sono pesado, a pequena cabeça foi lentamente pendendo solta, até se acomodar na perna de Diogo. Dias sorriu observando a reação encabulada do irmão. – O rapazinho deve estar exausto... – comentou sem jeito. Dias acenou concordando e voltou a fechar os olhos na tentativa de aproveitar o resto de sono. Diogo não conseguia relaxar, ficou ali parado por um longo tempo observando o garotinho. Sua perna formigou com a posição, mas não se moveu. A imagem do menino muito machucado despertou uma compaixão adormecida, e por um momento chegou a se imaginar naquela situação de completo abandono. A noite estava quente, sem a menor brisa para refrescar o ar; até os animais da floresta sentiam aquele terrível calor e optaram em permanecer inertes. Diogo ficou olhando o céu estrelado de verão completamente sem nuvens. Como era lindo!, pensou. Ainda estava de queixo para cima quando uma luz esfiapada riscou o céu de ponta a ponta. – Deus..., sussurrou. O firmamento proporcionava um espetáculo de brilho, como mil fagulhas de prata, e contando as estrelas, finalmente adormeceu.

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Os primeiros raios de sol começavam a surgir, enquanto os soldados se preparavam para mais um dia de viagem arrumando a pouca bagagem que levavam. O pequeno ainda dormia encolhido sobre a capa que Dias envolvera em seu corpo durante a noite, quando um soldado se aproximou e fez menção de acordá-lo com um chute. O chute foi interrompido pelo olhar atento de Diogo liberando um leve sorriso, enquanto balançava a cabeça com ar desaprovador, como se o que o soldado estivesse prestes a fazer fosse apenas uma grande travessura. – Tenho uma novidade para vocês, rapazes! – Dias estava se divertindo. Os homens se entreolharam cheios de desconfiança. – Mas depois do desjejum. Estou faminto! O grupo compartilhou em silêncio um garrafão de vinho. Comeram pão duro e um punhado de frutas secas. Diogo retirou do alforje uma maçã e mordeu, prendendo a fruta entre os dentes. Depois voltou a caçar mais algumas dentro da bolsa de couro pendurada na sela, e quando encontrava, as atirava na direção de cada soldado acocorado. O garotinho lutava para conseguir mastigar aquela massa escura que parecia feita de pedra. Seus dedos desincharam significativamente durante a noite, mas ainda guardavam as marcas do sofrimento e dos hematomas. O olho fechado permanecia azulado, e Diogo achou que uma bolsa de sangue coagulado estava se formando na pálpebra. – É assim que se faz – Dias mergulhou um pedaço de pão duro no vinho e aguardou a massa de farinha absorver o líquido. À medida que se encharcava, o pão ia mudando de cor, até só restar uma pontinha branca e dura entre a ponta dos dedos.

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Dias sorriu quando estendeu aquele pedacinho molhado para o garoto. Depois, enquanto o observava comer tudo com sofreguidão, se dirigiu ao grupo mais uma vez. – Eu e meu irmão andamos discutindo durante a noite, enquanto vocês sonhavam que mamavam nas tetas peludas das suas mães, e decidimos que vamos acompanhá-los durante a viagem, caso algum malfeitor tente algo contra a vida de vocês... O que acham? – Dias e Diogo levaram as mãos às espadas. Os homens se olharam e permaneceram calados, finalizando a amarração da bagagem nos cavalos, e logo em seguida montaram em silêncio. O sujeito que conduzia a carroça foi em direção ao garoto, determinado a amarrá-lo novamente. No mesmo momento, Dias esporeou seu cavalo, fazendo o animal dar um tranco firme nas costas do infeliz, tirando-lhe o equilíbrio. – Acho que o menino viajará melhor na carroça com as mãos desamarradas – e assim desceu do cavalo, pegou a criança por baixo dos braços e a acomodou na carroça. Durante a viagem, os soldados foram se acostumando com a situação e aos poucos começaram a dar menos importância à vergonha que tinham passado. Lentamente, voltaram a conversar entre si e, antes do meio-dia, já estavam rindo um do outro novamente; a exceção era o capitão, que ficara sem as orelhas. Esse viajava taciturno, com a cabeça envolta num pano branco manchado de sangue. – Vamos parar aqui para descansar. Os cavalos precisam de água – disse friamente enquanto se aproximava de um fino regato. Seu cavalo bufou aliviado com a pausa na marcha.

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Dias apeou e ficou com as mãos nas costas girando o tronco de um lado para o outro com os olhos cerrados como se estivesse contra o sol, no mesmo momento em que Diogo tomava as rédeas do seu animal para enlaçá-lo numa árvore próxima. Enquanto girava no próprio eixo, Dias percebeu a aproximação do capitão sem as orelhas, mas continuou se mexendo. – Já estamos muito próximos da cidade. Logo chegaremos ao estaleiro real – disse o capitão puxando assunto com ar despretensioso. Dias permaneceu calado e com a fisionomia distante. O capitão então mudou a voz para um tom ameaçador: – Você sabe que o que me fez será retribuído à altura, não sabe? E completou vomitando as palavras: – Chegando em Lagos vou cortar o pau de vocês e enfiar um no rabo do outro antes de matá-los. Dias apenas deu as costas e saiu para oferecer um pouco de água ao menino que acabara de acordar na carroça. Viajaram por mais um dia inteiro num compasso lento e enfadonho, até um estalo seco vindo debaixo da carroça obrigar a pequena comitiva a parar. Os animais reclamaram do tranco e os homens pularam de suas selas. – Mas que merda! – gritou o sujeito com a cabeça por baixo da carroça. – Esta porcaria aqui vai dar trabalho, senhor! – O som saiu abafado e espremido por entre o eixo e o traseiro dos animais. O acampamento foi montado ainda no alto de uma pequena estradinha e de lá se podia ver, no final da linha sinuosa que serpenteava a encosta, uma cidade cravada entre duas enseadas, formando uma enorme ferradura

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avançando para o mar; e flutuando nas águas calmas da baía, um pontilhado de embarcações dava a impressão de que se podia pular de um convés para o outro sem molhar os pés. De onde estavam, os navios ancorados pareciam imóveis e sem vida, com suas velas recolhidas e mastros vazios. O sol se escondia rápido atrás de uma montanha. Seu reflexo na água, como um gigantesco espelho avermelhado, iluminava os cascos negros impermeabilizados com alcatrão. Lagos era uma cidade portuária com intenso comércio. Navios do mundo todo ancoravam no seu moderno porto em busca de reparos, conexões de carga ou passageiros. O estaleiro era responsável pela renda da maior parte da população, assim como os bordéis eram os responsáveis pelas despesas na mesma proporção. Em torno do estaleiro, ferreiros, carpinteiros, tecelões, calafates, funcionários públicos, espiões, cientistas e todo tipo de gente se apertava nas ruas estreitas da cidade. Um vibrante comércio se espalhava durante todo o dia próximo ao grande portão da cidade. Várias lojinhas, bancas e esteiras estendidas no calçamento se alastravam ao redor do porto. Pessoas iam e vinham o tempo todo. Compravam, vendiam, gritavam, praguejavam uns com os outros e riam, mesmo sem motivo aparente. Sardinhas temperadas com ervas assavam em braseiros espalhando seu perfume no ar. Crianças corriam em meio à sarjeta, as mães gritavam ralhando com elas, mas a brincadeira logo recomeçava. Carroças se arrastavam com dificuldade, acompanhadas por cachorros magricelas latindo atrás dos bois de tração. Mas bastava o sol se recolher para a vida sumir junto com sua luz. Apenas as tascas se mantinham funcio-

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nando. Recebiam os trabalhadores do porto em busca de bebidas e prostitutas. O estranho grupo dormiu mal e muito pouco. Ainda não havia amanhecido quando retornou à estrada, e já estava escuro quando finalmente chegaram, indo diretamente ao estaleiro real de Lagos. No portão principal, uma guarnição bem armada defendia a joia da coroa portuguesa. Os navios e seus projetos de construção eram o bem mais precioso do rei e, por isso, guardados com a máxima segurança. Apenas os melhores soldados do reino exerciam a tarefa de proteger o local onde eram fabricadas as embarcações contra possíveis ameaças. Tinham ordem para matar ao menor sinal de perigo e geralmente trucidavam os infelizes que se aproximassem sem aviso. Quando o grupo finalmente parou em frente ao grande portão, o capitão avançou, ansioso com seu cavalo e disse ao guarda, que possuía o olhar mais ameaçador: – Este menino deve ficar aqui. Estamos sendo escoltados por esses dois desgraçados e um deles me feriu gravemente enquanto eu estava despreparado e indefeso. O soldado olhou para Dias e Diogo, sujos e com a aparência de profundo cansaço. Diogo suspirou consternado enquanto via de soslaio os homens do capitão sem as orelhas sorrindo em deboche para eles. O sujeito que provavelmente deveria ser o segundo em comando daquele destacamento saiu às pressas, passou pelo pesado portão e sumiu lá para dentro. Enquanto partia num passo duro e acelerado, escorava o punho da espada embainhada com a palma da mão esquerda evitando o tilintar do metal. Quando retornou, trouxe mais seis homens armados.

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Estancou o trote ao lado do chefe da guarnição, escondendo a respiração profunda. Os seis homens se distribuíram em alerta ao redor dos forasteiros ostentando fisionomias de cães prontos a atacar. A confusão na entrada do porto havia atraído a atenção dos fregueses da taberna. Algumas mulheres saíram para espiar o movimento. Duas estavam com os seios à mostra e uma terceira tentava arrumar o cabelo desgrenhado num nó sobre a cabeça. Os homens também haviam saído para espiar. Muitos estavam com canecas de vinho nas mãos, e a maioria sorria esperando a reação violenta dos soldados sobre os intrusos encardidos. Os cavalos giraram as orelhas captando toda a atmosfera prestes a explodir. Dias respirou fundo, se acomodou melhor na sela e aguardou o inevitável com profunda tranquilidade. O líder dos soldados em frente ao portão se certificou do posicionamento de seus homens e disse, enquanto o resto da guarnição apontava as armas para o grupo cercado: – O que faremos, senhor? – e curvou-se respeitoso para Dias. – Vamos dar a ele a oportunidade de se purificar! Pendurem-no ao costado daquela embarcação – os homens viraram as cabeças em direção ao local que Dias apontava com o queixo. – Vamos deixá-lo de molho por três dias. Acho tempo suficiente para ficar com a alma limpa novamente – finalizou tranquilo. E assim, o capitão sem as orelhas ficou com água até o pescoço. Dias retirou as ordens que estavam acomodadas dentro de um cilindro de couro, pendendo em seu pescoço por uma tira de couro e a entregou ao líder da guarnição.

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– Entregue-as ao administrador do estaleiro. Eles traziam ordens para deixar o menino aqui – o garotinho suspirava assustado enquanto Dias voltou a falar friamente. – Espero a colaboração de vocês para tratá-lo com um mínimo de decência! – os homens curvaram-se respeitosos e Dias girou o cavalo e saiu sendo seguido por Diogo. Enquanto o cavalo se adiantava, Diogo torceu o pescoço para trás e fitou a criança com tristeza; depois olhou de esguelha para Dias e perguntou silenciosamente com seus olhos vivos: Podemos ficar com ele? E recebeu em resposta a expressão taciturna de Dias: Não. Se fizermos isso, vamos nos meter em encrenca, completou com um suspiro naquela linguagem de mudo. O cavalo avançou dois passos e o garoto teve o ímpeto de sair correndo e gritando, pedindo que o levassem embora. Ficar ali parado observando era ameaçador demais; ele nunca se sentira tão desprotegido quanto agora, nem quando se viu sozinho naquela carroça. Lá, quando amarrado e jogado com extrema violência, sua mente entorpecida demais com o choque fazia tudo parecer apenas um sonho ruim. O cavalo de Diogo resfolegou pressentindo os pensamentos de seu condutor. A perna esquerda do rapazinho se adiantou à distância de um pequeno passo, logo após a outra, e quando já se sentia prestes a disparar, percebeu uma pressão no ombro. – Aonde você pensa que vai, rapaz? – a voz grave o trouxe de volta à realidade. Três passos à frente, Dias girou o cavalo novamente em direção ao menino e perguntou serenamente:

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– Como se chama? – Jaime, senhor! Com um sorriso triste, voltou o cavalo novamente para a saída e partiu.

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