Notícias de Alverca

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Pega de Caras

Luís Ferreira Lopes Editor de Economia da SIC luislopes@sic.pt

"Sagres" made in China

M

eados de Agosto, um país a arder e a banhos, um calor sufocante, a indiferença estival do costume. Entre as notícias do combate duro dos bombeiros (os verdadeiros heróis deste pobre país, cada vez mais desertificado) e da indignação popular perante a brandura da Justiça (ou o que resta dela) em relação aos incendiários que saem em liberdade, uma notícia quase passou despercebida: a “Sagres” foi impedida de entrar no porto de Macau. Na sua viagem de volta ao mundo, o belo navio-escola da armada portuguesa tem atracado em portos de todos os cantos do planeta que Fernão de Magalhães ajudou a conhecer melhor. Desta vez, rumava a Xangai (onde foi bem recebido, depois do episódio lamentável de Macau) e, naturalmente, o comandante do navio tencionava fazer uma escala em Macau, território português (durante séculos) até há pouco mais de uma década. As autoridades chinesas negaram a entrada, alegando impedimentos técnicos. Lisboa ficou muda. A “Sagres” até poderia não ter necessidade de entrar em Macau, em termos de provisões ou de refúgio de alguma tempes-

tade. Os portugueses até poderiam ter ignorado que estavam a passar ao largo de Macau. Só que havia uma simbologia nesta volta ao mundo, 500 anos depois… Qualquer cidadão do mundo compreende, mas a China não. Os portugueses puderam ir a Xangai para ver com os seus olhos a grandeza da exposição universal, mas foram impedidos de entrar numa cidade que já foi sua porque a nova potência colonial / mundial quis demonstrar quem manda ali através de um gesto simbólico, como é costume naquelas paragens. Por esses mesmos dias, foi conhecido que a China já será, este ano, a segunda maior economia mundial, ultrapassando o Japão. O gigante asiático, outrora de inspiração maoísta, ficou rico graças à política de capitalismo selvagem, de exploração de mão-de-obra praticamente escrava, com salários vergonhosamente baixos, sem respeito por direitos básicos dos trabalhadores e sem respeito por normas ambientais. Que fizeram a Europa e os EUA? Os interesses ocidentais apreciaram o fascínio oriental pelo luxo do capitalismo atlântico e aproveitaram a boleia da mudança política para fazer in-

vestimentos na Ásia, ou seja, para exportar para o Ocidente a custos mais reduzidos, fomentando, paradoxalmente, o aumento do desemprego europeu e americano. Com a receita das exportações para o mundo ocidental, Pequim ficou com excesso de liquidez e foi comprando obrigações do tesouro e reservas cambiais de países como os Estados Unidos ou a Alemanha. Comprou também África para ficar com matérias-primas ao preço da chuva e foi fazendo empréstimos a esses países, apertando a dependência das nações africanas e enviando mão-de-obra ainda mais barata do que a africana (prisioneiros, por exemplo) para obras públicas como a recuperação do caminho de ferro de Benguela, em Angola. Em suma, Pequim foi vergando o mundo, cobardemente silenciado e inebriado pelos preços ultra-competitivos do made in China. Num país que não tivesse vergonha da sua História, obviamente que a ASAE receberia ordens superiores para fiscalizar de imediato e com mais detalhe as lojas e os restaurantes chineses – e demais negócios em Portugal. E se os negócios não cumprissem as nossas normas, os respeitáveis imigrantes chineses seriam

convidados a sair do país, o que, nalguns casos, seria uma pena porque são bons trabalhadores. Num país a sério, Lisboa explicaria a Pequim que, assim como a China não precisa deste pequeno rectângulo ibérico para nada, nós também somos capazes de sobreviver muito bem sem os artigos feitos com sangue, suor e demasiadas lágrimas de operários na miséria e populações rurais esfomeadas. Perante esta afirmação, alguns empresários dirão: “sacrilégio”, mas, convenhamos, eu estava a falar de um país a sério e com empresários a sério. Num país com ganas, o governo desta ocidental praia lusitana diria, diplomaticamente, que respeita a OMC e as regras do antigo GATT para eliminação progressiva de barreiras alfandegárias, mas não aceita atitudes imperialistas de novosricos, por mais poderosos que sejam – e nada teria a temer porque as intenções de investimento português na China são insignificantes, principalmente porque Portugal não tem escala ou dimensão para lucrar seriamente com a presença naquele mercado. Há outras alternativas mais interessantes e menos longínquas ao comér-

cio com a China. Voltemos, então, ao país real. No país pobre e sempre vergado à força dos poderosos, não podemos afrontar a China porque ela agora é senhora do mundo. No país real, o Zé Tuga está-se a borrifar para a Sagres e até acha que isso é apenas uma marca de cerveja, passe a publicidade. No país do “deixa arder”, os chineses até poderiam vender a 50 cêntimos a bandeira nacional trocando as cores ou substituindo os nossos símbolos por uma cara de Mao a sorrir com ar irritante… e a malta até acharia graça. O que vale é que este foi um episódio de Verão que ninguém viu e, claro, o país não é nada assim e eu estou a fazer uma tempestade num copo de água… um copo de plástico made in China. Por mim, vou fazer como fiz quando a Indonésia massacrou Timor e as Nações Unidas fingiram que não viram, no final dos anos 90: vou passar a olhar ainda com mais atenção para a origem dos produtos e, enquanto me lembrar deste episódio da Sagres e de Macau, obviamente não comprarei produtos feitos na China. Bom regresso ao trabalho e às aulas, com produtos fabricados em Portugal!

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Setembro 2010

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