Revista Noize #73 - Rael - Outubro | Novembro 2017

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Foi ainda criança que Rael sentiu a força do rap em seu imaginário. Aos 8 anos, já

#73 // Ano 11

expediente

dançava break com os mais velhos e inventava um mundo próprio na rua das rimas e NOIZE COMUNICAÇÃO

NOIZE FUZZ

Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha

Editor Gustavo Brigatti Joana Barboza Leonardo Baldessarelli

Gerente Financeiro Pedro Pares

Coordenação de Projetos Jordana Monteiro Júlia D’Ávila Pedro Webber

Gerente de Planejamento Cássio Konzen Diretor de Criação Rafael Rocha Diretor de Arte Guilherme Borges Freelancer Marcelo Torres Diretor de Arte Jr. Jade Teixeira Lucas Abreu Produção Marcelo de Bacco Nicole Fochesatto Vídeo Bernardo Winck Denis Carrion Diego Farias Jonas Costa Pedro Krum Shandler Franco Foto Mell Helade

REVISTA / SITE RECORD CLUB Coordenador de Projeto Thiago Piccoli Editora Marília Feix Repórter Ariel Fagundes Community Manager Kelvin Furtado

das melodias. A NOIZE #73 tem a honra de trazer Coisas Do Meu Imaginário para sua casa em formato real e tátil, fruto de um caminho heróico de resgate de identidade e evolução.

Atendimento Interno Ingrid Mônaco Redação Camila Oliveira Daniela Barbosa Guilherme Flores Marta Karrer Rodrigo Laux Tássia Costa Victória Favero

Rap com violão, pop com autenticidade e reggae com batidas de hip hop permeiam

Planejamento Bernardo Costa Carolina Santos Dionisio Urbim Eric Souza Felipe Lederhos Julia Brito Juliano Mosena

esse disco que tem o carisma de quem anda de cabeça erguida e se entrega por inteiro em tudo o que faz.

Mídia Aline Oelrich Kathiry Veiga

Na lei de Rael, a música é uma forma espontânea de oração,

Community Manager Maurício Teixeira

é o caminho de quem mira no

GRITO

impossível e acredita desde

Gerente de Planejamento Marcel Maineri

os tempos de moleque.

Coordenação de Projetos Carolina Farias Planejamento Lucas Regio Matheus Barbosa

Marília Feix

Redação Camila Benvegnú Jéssica Teles Pedro Veloso

NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn

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cola bora dores

noize.com.br

Daniel Ganjaman

Peu Araújo

Amauri Gonzo

Produtor, compositor,

Jornalista especializado

Jornalista e ijuiense. Foi

arranjador e engenheiro

em cidades e música,

editor do Noisey Brasil e

de som que trabalhou em

colaborou para Vice,

muitos discos essenciais

Rolling Stone, Brasileiros,

além de ser redator do

para a música brasileira.

Trip e outros. Hoje, é

Sumário de Rua e dono do podcast A Fita.

Fotógrafa, iniciou no coletivo Catsu Street. Já realizou trabalhos com Nike, Converse Brasil, Elle Brasil e Skol. É diretora de fotografia no MOOC (Movimento Observador Criativo).

Black Alien

Daniela Barbosa

Rodrigo Ogi

brasileiro há 26

DJ, redatora, criadora

Cria rimas desde

anos. Foi dupla do

compulsiva de playlists

1994. Por alguns anos,

e entusiasta do rap.

dedicou-se à música

do Planet Hemp e seus

Trocou a publicidade pra

e à pichação. Com o

dois discos solo se

cair no jornalismo e viver

Contrafluxo, teve dois

tornaram clássicos.

pra falar de música.

discos lançados e,

Um gigante do rap

solo, já tem três.

Rico Dalasam Cantor e compositor, representa a

Leonardo Baldessarelli

Chico César

chamado queer rap. Já

Jornalista e publicitário.

foi cabeleireiro e traz um

Fã do bizarro, do

Poeta na música música e na Ícone da página. Entre 20112011 e 2014 paraibana, entre

discurso inovador ao rap

surpreendente e do

nacional. Dalasam é a

mentiroso. Não se sabe

abreviação de “Disponho

se é bom ou ruim, mas

comunidade LGBT no

Sonhos Antes Mutilados”.

foi Secretário de Cultura e 2014 foi Secretário da Seu álbum de Paraíba. Cultura da

confunde vida e música

mais recente chama-se Paraíba. Lançou há Estado de Poesia . pouco o DVD ao vivo

como uma coisa só.

Estado de Poesia. 5

Marcelo Ricardo Bacharel em Humanidades (IHACUFBA) e graduando em Comunicação pela FACOM-UFBA. É poeta, contista e cronista.


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_ Texto por Daniela Barbosa Foto por Paulo Peixoto


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Black Alien ajudou a escrever a história do rap brasileiro. Após o lançamento do Babylon By Gus - Vol. I: O Ano do Macaco, o rapper viveu um longo momento de reclusão e reabilitação até que, em 2015, trouxe à tona o surpreendente Babylon By Gus – Vol. II: No Príncipio Era o Verbo. O Mr. Niterói foi convidado para o Coisas Do Meu Imaginário para contar o que ele viveu e aprendeu. Aqui, conversamos sobre a história que ele tem pra contar e o futuro que ele tem pra escrever.

1) A mistura de rap, reggae e MPB que Rael faz conversa muito com o som que você sempre fez. Você se sente um pioneiro? Como era quando você começou? Era muito divertido! Desde pivete consumi música, quadrinhos, cinema, skate e surf, e toda essa cultura veio à tona na hora de criar de maneira natural. Beats loopados com o dedo no vinil, cortados à mão em cassete para ir pra um Tascam de 4 canais. Linhas melódicas jamaicanas, rap norte-americano e africano, pop, cancioneiro popular, riffs de Hendrix, Page, Clapton, Kraftwerk, metal, rock industrial, maestros italianos, trilhas de B. Hermann e J. Willams, literatura de cordel e Chico Science. Amigos de mentes transbordantes num microcosmo de informações. Falar inglês desde cedo ajudou muito. Imitava os gringos do nosso jeito, observando a evolução. O único dinheiro que a gente gastava era pra fazer música, no começo ninguém ganhava com isso. Sobre me sentir pioneiro, posso dizer que me sinto muito bem. 2) “Papo Reto” fala sobre o perigo do abuso de drogas. Qual o significado de cantar sobre isso após um período de reabilitação? Narrar uma experiência após sobreviver a ela é um privilégio. Estar vivo pra contar é uma benção e, no meio de tanto desserviço, valores tortos que são passados, principalmente aos jovens, é fundamental alertá-los no modo papo reto, sem caô, sem me preocupar em parecer careta só porque encher os cornos de droga tá na moda. Foda-se a moda. Principalmente quando vem disfarçada de “avanço”. Não tem avanço nenhum em portar droguinha, cachacinha e cigarrinho na foto, no pulmão e na cachola. Mas jovem é foda, eu sei porque já fui. Incontáveis bons conselhos entraram

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por um ouvido e saíram pelo outro, mas sobrevivi a isso também. Não virei santo só porque parei de beber, continuo o mesmo cretino. No contra uxo como sempre, nós cumprimos nossa parte.Avançado é car vivo e com saúde. 3) Para você, onde está a maior potência do rap: na sua sonoridade ou no seu discurso? No conjunto. Na maneira que o verso é entregue e sua relação de fluência e cadência com o bumbo, a caixa e o baixo. Mas a verdade contida ali é verdade pra uns, pra outros não. Curto o inverso da vaidade intelectual, arrotação de técnica e presunção disfarçada de autoestima que empesteia o rap no momento. O ritmo e o discurso são dois poderes, e como qualquer poder, mal usado é um puta estrago. 4) Como foi voltar a trabalhar com Ganjaman tantos anos depois? Foi um prazer! Trabalhamos juntos pela primeira vez em 1999 em “Papai Quando Eu Crescer Eu Quero Ser Um MC”, de BlackAlien&Speed. Depois, em 2000, com Sabotage em “Um Bom Lugar”; em 2001, com o Planet Hemp; em 2005, com EchoSoundsystem; em 2011, com ForFun e, em 2016, com meu irmão Rael. Só golaço! Sensação familiar de alegria e satisfação artística recorrente, só aprendo, só agradeço. 5) O Babylon By Gus Vol. I é considerado um dos melhores álbuns do rap brasileiro e o Vol. II marcou seu retorno. Qual o próximo passo? O próximo passo é dado a todo o instante. Após o Vol. II, colaborei com artistas diversos, do rock ao reggae, passando pelo samba, cinema e TV. Soltei “Sangue de Free” há algumas semanas e tô trabalhando num disco pro m do ano. Já já tem outro single na rua.


como fazer Um passo de break _ Por Rael

Dos 8 aos 11 anos, Rael era de uma crew de break e foi essa sua porta de entrada para os rolês do rap. Faz tempo que não dança, mas, aqui, ele ensina a fazer o passo Windmill ou Moinho De Vento, que ele prefere chamar de “Moinho Old School do Rael”.

1) Alongue-se! O break é uma dança de rua, cuide pra não se machucar. 2) Escolha bem a roupa, é bom que proteja o corpo e o ajude a deslizar. Moletom é uma boa. 3) Comece se ajoelhando e apoiando as mãos no chão à frente do corpo, cada uma apontando para um lado fazendo um ângulo

Material necessário - Roupa leve e confortável - Chão plano

aberto entre si. 4) Apoie o cotovelo direito entre a cintura e costelas e estique a perna direita mantendo-a longe da esquerda, que ca dobrada. Coloque o apoio nos pés e nas mãos. 5) Torça o corpo à direita para preparar impulso. Aí, empurre o chão com a mão direita (se for uma pessoa ca-

nhota, considere as direções citadas ao contrário) e leve as pernas ao ar. 6) Mantendo o cotovelo rente ao corpo, jogue para esquerda as pernas suspensas. Fique com os joelhos dobrados de leve para ter mais controle. 7) Antes de as pernas darem uma volta, retire as mãos e apoie-se com

o ombro direito. Quando as pernas fecharem o giro, você já estará rodando com as costas no chão. 8) O impulso de antes fará as pernas carem girando no ar enquanto seu tronco as acompanha. Para manter o movimento, o segredo é deixar as pernas o mais abertas possível e gingar os ombros para frente e pra trás.


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_ Texto por Peu AraĂşjo Fotos por Rafael Rocha Arte por Guilherme Nerd


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Para evitarmos aquele clichê básico de começar um perfil com o nome do entrevistado vamos nos limitar a dizer uma coisa: Daniel Sanches Takara, o Daniel Ganjaman, não é um produtor, ele é uma assinatura, um status, é — para muitas bandas que ainda não chegaram lá — um sonho. Ganjaman é uma grife. Aos 39 anos, o paulistano tem na mochila uma porção de discos clássicos, históricos e umbilicais para a cena musical dos últimos 20 anos. Não é exagero, não é babação de ovo. Mas muitos dos discos que te marcaram tem a mão do mais velho dos três irmãos Takara. Tá duvidando? Então, saca só.

Produtor coleciona algumas pérolas do cenário musical brasileiro das últimas duas décadas

Rap é Compromisso, do Sabotage? Tem a mão do Ganja. Nada Como um Dia Após o Outro Dia, do Racionais MC’s? Também. Duas Cidades, do BaianaSystem. Confere. Nó na Orelha, do Criolo? É um trampo do Ganjaman com o Marcelo Cabral, assim como Bixa, d’As Bahias e a Cozinha Mineira. Coisas do Meu Imaginário, do Rael, lançado aqui, adivinha? Também é obra de Daniel Ganjaman. A pluralidade e a riqueza do trabalho do produtor tem um tripé sólido e consistente: o hardcore/punk, o rap e o skate. Ele define a influência. “Essas três coisas foram importantíssimas para a minha formação musical, pessoal, sociopolítica e estética. Fala-se muito hoje em dia sobre racismo, machismo, feminismo, homofobia e isso pra mim é tema da minha adolescência. Essas discussões eram muito latentes historicamente no punk desde sempre”. Autodidata, ele explica como virou um dos fazedores de discos mais requisitados do Brasil “Eu nunca fiz nenhum curso de áudio, de gravação, de mixagem, produção e eu gravo, mixo e produzo. Aprendi tudo sozinho.” Antes que esta história esbarre na pedância, vamos voltar no tempo em que o pequenino Daniel, com menos de dois anos, cravava os dentes no móvel da sala para manter os braços livres e fuçar nos equipamentos sonoros do pai. “Minha mãe tem a estante até hoje”, ele conta.


O pai, Claudio Takara, a quem renderemos algumas páginas abaixo, sacou a fixação do molecote. “Eu tinha uma parada com música mesmo, não era nem só tocar um instrumento. Tanto que, quando meu pai me perguntou se eu queria aprender um instrumento — eu tinha uns cinco ou seis anos de idade —, eu falei para ele que queria aprender reco-reco.” O diálogo surreal prossegue: Ele falou: — Você sabe o que é reco-reco? — Eu sei, aquele que faz tchá tchá tchá. — Tá, mas. Porra… O reco-reco pintou na casa para a decepção de Seu Claudio, rolou tchá tchá tchá pra todo lado, mas pouco tempo depois o mundo perdeu um reco-requista e começou a conhecer um dedicado aluno de piano. Ganjaman, acompanhado do pai, foi fazer o curso, segundo ele, desses bem “protocolares de bairro”. Ele define a relação musical com o pai. “Eu tive o privilégio de ter tido um pai que me incentivou.” Dá para acrescentar: incentivou, apoiou, empurrou e participou. Voltemos um pouco na árvore genealógica dos Takara. Claudio Takara era músico de bandas de baile, além disso, era um grande curioso de equipamentos. Engenheiro eletrônico, audiófilo, rádio-amador e músico não-praticante, ele mantinha aquele violão e aquela guitarra encostado e a disposição dos filhos. “Na época das bandas dele dos anos 60, ele montou os equipamentos de todas elas. Fez o reverb de mola.” E depois das aulas de teclado do mais velho, vieram os mais novos (Fernando Sanches, baixista do CPM 22, e o baterista Mauricio Takara). Quando se deram conta, o quarto

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dos meninos já tinha um miniestúdio. “A gente morava num apartamento de mais ou menos 70m² com dois quartos e o nosso, num determinado momento, tinha bateria, amplificadores, guitarra, baixo, teclado. Era um estudiozinho.” Daniel, Fernando e Mauricio já somavam quase uma dúzia de grupos, os amigos outros tantos. E, com isso, Ganjaman convidou o Seu Claudio, que por causa do Plano Collor perdeu o emprego como muitos outros brasileiros, para ser seu sócio. “Eu falei pra ele. ‘Pai, se a gente abrir um estúdio, eu tenho certeza que a gente vai estar lotado todos os dias. Tenho certeza que estaremos lotados todo final de semana e todo dia vai ter banda pra ensaiar e a conta se paga’”. Os dois fizeram as contas, se programaram e, em 1997, (há exatos 20 anos) o quarto/estudinho caótico virou um sobrado caindo aos pedaços na Rua Virgílio de Carvalho Pinto, em Pinheiros. O espaço ganhou um nome: El Rocha, um estúdio de extrema importância para a vida do Ganjaman e para a música independente de São Paulo. Claudio Takara não fazia ideia, mas se tornou um personagem importante para o hardcore/punk rock e também para o rap. “No Rocha, a gente não

tinha os melhores equipamentos, a gente não tinha a melhor sala, a gente não tinha os melhores microfones, mas a gente tinha material humano, a gente entendia. Nós viramos um diferencial no hardcore e no punk rock porque, quando a banda chegava, a gente respeitava o que ela queria. Se era pra ser desgraceira, vamos ‘desgraceirar’ o bagulho”. Ganjaman dá uma explicada em como era a cena no final dos anos 1990. “A gente tinha um monte de estúdios que gravavam coisas muito amadoras: no geral banda de baile, uma coisa ou outra de sertanejo, samba. A gente ficava na mão de uns caras que não tinham noção do que a gente queria.” Os resultados foram aparecendo. O El Rocha começou a ficar movimentado, requisitado, agenda cheia e algumas gravações importantes surgiram já naquela época. O Nitro (junção do Paulo Napoli com o DJ Nuts), Marechal, Black Alien & Speed, Academia Brasileira de Rima e mais uma porção de bandas do cenário do hardcore paulistano se revezavam lá. Em paralelo, Daniel Ganjaman foi construindo uma carreira como músico. Seu primeiro grande trabalho foi a direção musical do cantor pernambucano Otto na turnê do disco Samba Pra Burro. Ele conta. “Foi a primeira

vez que eu andei de avião na vida, foi a primeira vez que eu toquei em um Sesc. Foi o momento em que a coisa se profissionalizou. Em menos de um ano estávamos tocando no Central Park Summerstage, em Nova York. David Byrne no rolê com a gente, Arto Lindsay. Pra mim era um bagulho muito louco.” Por 10 anos, foi responsável pela banda do Otto, com um breve intervalo como músico do Planet Hemp. Ele participou das gravações do álbum A Invasão do Sagaz Homem Fumaça, produzido por uma de suas grandes influências: Mario Caldato. Ainda no paralelismo da vida, Ganjaman foi mostrando as caras com suas produções. E seu trabalho atrás da mesa de som já tem 23 anos. Ele conta. “A primeira demo que eu produzi foi a demo do meu irmão [Mauricio Takara], a banda se chamava Los Quatro Amigos, era de punk rock, depois virou o Small Talk. Foi a primeira gravação que eu ‘produzi’. Eu tava ali ajudando eles, dirigindo, mexendo um pouco nas coisas de som. Isso foi em 1994, se eu não me engano.” O produtor foi ganhando força e zerando várias fases do game, por exemplo quando, a convite do Zegon, conhecido nas antigas como Zé Gonzales, produziu o

disco Rap é Compromisso do Maestro do Canão. Ele fala sobre a obra histórica lançada no ano 2000. “O Sabotage era um cara muito foda. Até hoje, eu acredito que ele seja o MC mais foda que eu já trabalhei, que eu já gravei. Quando a gente tava fazendo o disco, sabia que ia ser um disco foda”. Ganja fala ainda sobre como o disco bate nos ouvidos em 2017. “É louco ouvir ele hoje em dia. A gente até cogitou abrir as tracks, mixar de novo, mas eu ouço ele e ouço um clássico. Ele tem um som de clássico. Aquela capa, tudo.” Dois anos depois, ele voltou a integrar mais um disco histórico. Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, do Racionais MC’s. “Acompanhei desde as primeiras guias e fiquei mais de um ano sob sigilo dessa parada, que eu sabia que, quando saísse, ia virar uma página do rap nacional. Imagina ouvir o Brown gravando em voz guia ‘Negro Drama’, ‘Jesus Chorou’, ‘Artigo 157’? ‘Tudo vai mudar depois disso’, e foi o que aconteceu.” Ele descreve um bastidor da produção, em que atuou como diretor técnico de novo ao lado do Zegon. “‘Jesus Chorou’, se não me engano, ele gravou quatro vezes. Gravou ela inteira, no dia seguinte, gravou de novo. Ele ia lá e gravava. Na terceira vez, eu falei: ‘Brown,


tá bom, mano’. E ele: ‘Não, vou gravar de novo’. Ele gravava de novo e ficava melhor”. Também em 2002 saiu o disco Coleção Nacional, uma obra-prima assinada pelo Instituto, hub de criação musical que contava com a participação de Ganjaman, Tejo Damasceno, Rica Amabis e mais um zilhão de convidados. O disco, que tem duas faixas cantadas por Sabotage e fez junções importantes da música que estava sendo produzido no início do século com rap, música brasileira e outras searas, abriu espaço também para uma banda plural e curiosa. Ganja explica como foi a fase de shows. “Era um laboratório de arranjos, direção musical. Foi ali que eu aprendi a escrever arranjos de metais, eu nunca tinha feito isso na vida. Os caras me ajudavam, corrigiam. Isso foi muito importante. Foi onde eu comecei a tomar conta de todo o processo. Sem depender de um arranjador para metais, enfim”. Nesta esteira de produções, gravações e, em sua presença como músico, Daniel Ganjaman já coleciona contribuições em mais de 50 discos, shows, faixas exclusivas. Entre esses trabalhos estão os álbuns Nó na Orelha, Convoque Seu Buda e Espiral de Ilusão, do Criolo, O Incrível Caso da Música que Encolheu e Outras Histórias, dos gaúchos da Ultramen, Hitler’s Dogs Stalin Rats, do desgracento Mukeka di Rato e até um tributo a Tim Maia com Ivete Sangalo. Ele fala sobre a produção desses dois últimos. “Eu tava produzindo um disco da Ivete Sangalo e do Mukeka. Zerei o game, tá tudo certo.” Ganjaman também assina a produção de Coisas do Meu Imaginário, terceiro disco solo completo do Rael, que até um tempo atrás tinha o acréscimo “da Rima”. “O Rael é muito merecedor, um cara que artisticamente tá no rolê dos artistas completos. Aquele cara que canta pra caralho, que é malandro, que desenrola, que é bom no palco, que escreve, que compõe, que toca, que produz, que entrega o pacote completo. O Brasil tá cheio dessas pessoas, mas


poucos emergem”, comenta. E completa: “O Rael canta sobre amor, mas ele é aquele malandro maloqueiro e isso faz muita diferença no final das contas. Na minha opinião, ele é a voz mais bonita dessa geração. E esse é um disco que eu tenho muito orgulho de ter feito. Tá entre os cinco discos favoritos que eu já fiz.” Considerando o currículo do Ganja, isso quer dizer muito. E Daniel Ganjaman está preparando uma novidade, mas ainda sem prazo de entrega: o primeiro disco solo.

Após dezenas de trabalhos como produtor ou músico, ele se prepara para ter um álbum em que configura como protagonista. O motivo é a vontade de fazer. Simples assim. Ele explica: “Tenho algumas coisas embrionárias e estou estudando quais são as melhores possibilidades de trabalhar a parada. Ainda não sei se vai ser um disco colaborativo ou se vai ser mais meu mesmo”. O homem responsável por inúmeros clássicos dos últimos 20 anos pode estar começando a lapidar mais um. O tempo dirá.


na “Seu nome não será mais Jacó, mas sim Israel, porque você lutou com Deus e com homens e venceu”. Gênesis, 32:28

texto por Ariel Fagundes foto por Rafael Rocha

Dia 1º de outubro de 1982. Jardim Iporanga, Zona Sul de São Paulo. Começa aqui a história de Israel Feliciano, o Rael.

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Ainda criança, Rael se descobriu dançarino de break e viu com os próprios olhos o hip hop dar seus primeiros passos no Brasil. Na estação São Bento do metrô paulistano, ele se alistou: a dança e a rima foram as armas escolhidas para servir ao exército do rap. Entre corres e bicos, rinhas e quebradas, não faltaram cicatrizes nem vitórias. Hoje, suas batalhas são travadas nas passarelas da São Paulo Fashion Week, nas ondas das grandes rádios e nos palcos dos maiores festivais do país. Quem diria, hein Rael? Ainda bem que seguiu as batidas do seu coração. Seja bem-vindo, os próximos parágrafos são um mergulho no seu imaginário.

A faísca acende - Era só eu, meu irmão quatro anos mais velho, minha mãe e meu pai, que sempre trabalhou de pedreiro, mas é músico. Já minha mãe, católica, sempre ia no final de semana à igreja. Cresci nessa atmosfera. De quebrada, vida difícil. Mas não abalou nós. Rael é o segundo filho de uma mineira preta e de um pernambucano branco que vivem no Jardim Iporanga desde que se conheceram. A música sempre esteve presente na vida deles e da família: “Meu tio era metalúrgico, mas toca violão e canta pra caramba. Já minha tia fazia bailes na casa dela e rolava Miles Davis, Michael Jackson, Marvin Gaye… Era um festão”. Com essa herança, a semente do hip hop encontrou solo fértil para germinar quando Rael era moleque. Em 1990, poucos anos após o movimento surgir oficialmente no Brasil através dos primeiros encontros de B-Boys e MC’s na estação São Bento, lá estava o pequeno Israel. Na época, ele era chamado de Faísca. Seu irmão, Daniel, era o Fumaça. Juntos, entraram para um grupo chamado Star Break, formado por jovens do Iporanga, Grajaú, Jordanópolis e região.

“Meu irmão aprendia os passos no colégio e me mostrava em casa. Quando a gente estava dançando bem, os caras mais velhos falaram: ‘Pô, cola com nós pra dançar no crew”. - Tinha uns matinês que eles arrumavam de eu entrar pra dançar. Aí, quando começavam as tretas, já me catavam e botavam em cima de uma cadeira. Tinha muita treta, muita briga, quebravam todo baile, às vezes um morria. Foda, era tenso... O bagulho é louco, mano. Era essa a atmosfera. Foi nessas primeiras idas e vindas do Iporanga ao Centro que Rael se alfabetizou na linguagem das ruas e entendeu que deixar brecha não é uma opção. - Essa foi a primeira vez que trombei com os moleques de rua mesmo. Tipo, fui falar com um e ele ficou meio durão, perguntei um bagulho e ele não respondeu, aí cheguei perto e ele já me afrontou… E os caras mais velhos ficavam: “Vai jão, o moleque de rua vai te dar um pau e você não vai nem ver”. Aí já olhei pra ele de outro jeito - comecei a ter medo. Ó a fita, esse bagulho não passava pela minha cabeça. Entre os 8 e os 11, época do Star Break, Rael viveu uma fase de amadurecimento precoce. Ali, conheceu a noite, as festas e as calçadas com os perigos e os deleites que elas podem trazer. - Por desenrolar com pessoas mais velhas, envelheci antes do tempo. Foi bom porque me preparou pro mundo, mas vi que estava conhecendo muita coisa antes da hora. Comecei a virar noite muito cedo, às vezes, saía da escola e já ia lá pro Centro. E se eu estava ensaiando e, sei lá, escorregava, batia a boca e começava a chorar, os outros caras ficavam: “Mano, você não vai chorar lá na hora [da apresentação], né?”. Mas é que eu tinha 8 anos! A estrada da rima Quando parou de dançar, Rael aprofundou sua relação com o rap. Na época, saiu o Raio X Brasil (1993), do Racionais MC’s, e esse disco mudou tudo. Suas faixas mexeram fundo e ele passou a fazer covers das suas músicas no colégio. - Em casa, não se falava de racismo, você aprende na rua com os caras já te tirando. Na escola, também não se falava. Só quem falou disso na minha vida foi o Racionais. Às vezes, chegavam “ah, não entra água no seu cabelo”, e eu não tinha resposta. Depois que ouvi o Racionais, se me falavam isso, eu batia de frente. Foi um resgate de autoestima, que é muito pouco presente em quebradas. Aos 14, Rael já era devoto do rap: ouvia o máximo de grupos que podia, frequentava festas em casas importantes como a Class, onde o DJ Negralha tocava, e acompanhava de perto a 22


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_ texto e foto por Ariel Fagundes

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_ texto por Ariel Fagundes Ilustração por Marcos Torres


cena. Ao mesmo tempo, estudava e trabalhava como pedreiro, office boy, transportador, feirante… “Vários bagulhos”, resume. No ano seguinte, formou com Preto G [Genilson Santana, também conhecido como Peterson011] sua primeira banda, a Gangsta Rap, que tocava covers de Chico Science e Nação Zumbi. Na época, ganhou o apelido de Rael da Rima. E o G foi um cara bem importante para ele: “O Grandmaster Flash que tivemos na quebrada foi o G. Ele que deu as manhas de comprar vinil no Centro e ensinou eu, DJ Kiko, MSário e Massao a contar [o ritmo] e pá”. Massao morava na mesma rua que Rael, que, por sua vez, conhecia o Msário do colégio. Os dois chegaram junto e o Gangsta Rap de Rael e G virou a banda KND. Pouco depois, Rael, que estudava com Dodiman, o chamou e não demorou para que Apolo e DJ Kiko também se unissem ao grupo que ganhou o nome de Can KND. A formação continha todos membros do futuro Pentágono mais o G e o Negro C, outro amigo. Isso era 1999: Rael tinha 17 anos, estava começando a compor, e o Can KND era bem underground, mas já chamava atenção: chegou a abrir shows do Racionais e ganhou elogios do Xis e do Black Alien. Porém, houve um desentendimento e G e C se afastaram da banda. Foi assim que o Can KND acabou e, em 2000, nasceu o Pentágono. O início do grupo foi duro, com todos membros mantendo trabalhos paralelos. “Tinha show, mas era um evento na quebrada, uma quermese… E foi difícil, em 2001, tive tuberculose, fiquei 45 dias internado e perdi 36% do pulmão esquerdo”, conta Rael. Em 2004, saiu seu álbum de estreia, Microfonicamente Dizendo, deixando claro que o rap deles era pautado pelo diálogo com outros sons. O groove do reggae, as melodias pop da disco music e as raízes da MPB que Rael ainda expressa já apareciam no Pentágono. - Eu já estava contaminado por outros gêneros, ouvia muito Djavan, muito Jorge Ben. E a gente sempre falou da realidade no Pentágono, a única coisa diferente foi essa ideia de mistura, mas algumas pessoas não entendiam que aquilo também poderia ser rap. Já ouvi neguinho falar: “Ah mano, isso aí não é rap, não, o bagulho é Facção Central, vocês é modinha”. De qualquer forma, após 2006, os shows começaram a ser mais frequentes e a dar mais retorno. Na mesma época, Rael participou como ator da série Antônia, da TV Globo, e, no ano seguinte, fez no mesmo canal o programa Som Brasil que homenageou Vinicius de Moraes. O segundo disco do Pentágono, Natural, saiu em 2008 depois de ficar parado no estúdio por falta de pagamento. Para espan-

to de Rael, e de todos, quem saldou a dívida foi KL Jay, DJ do Racionais. - O Dan Dan tocou “É o Moio” em algum lugar, o KL Jay ouviu e me ligou: “My nigga, desculpa a invasão. Ouvi umas músicas suas e gostei pra caralho. Fiquei sabendo que vocês tão gravando e que o disco tá parado. Ó, eu vou pagar lá pra vocês lançarem. Não quero ser empresário, não precisa falar pra ninguém, não quero o dinheiro de volta, é só pra vocês continuarem porque achei foda”. Foda. O KL Jay mudou muito minha vida, sou muito grato. Ali, “foi a época de ouro do Pentágono”, diz Rael. A banda chegou a se apresentar na França e logo já lançou outro material, o EP Pentágono, que traz Flora Matos e Projota como convidados. Foi um momento de criação intensa e Rael estava compondo muito. Em 2009, percebeu que havia repertório para um álbum solo inteiro e pediu a Apolo para gravar em seu estúdio “Trabalhador”, que se tornou o primeiro single de MP3 - Música Popular do Terceiro Mundo (2010), o primeiro solo e único assinado como Rael da Rima. Com esse trabalho, conseguiu ampliar seu trabalho chegando a tocar no Canadá. - As coisas foram melhorando porque eu tinha dois trampos. Mas também não conseguia me focar em nenhum. Era muito corrido, eu perdia show meu, o Pentágono tentava se adaptar e não dava… Cerca de um ano após o último disco da banda, Manhã (2012), o Pentágono encerrou suas atividades e Rael se focou em sua carreira. Ele já era amigo do Emicida há tempo, estava cantando nos shows dele, mas sua amizade tomou outra dimensão quando veio o convite para entrar no selo Laboratório Fantasma. “É engraçado, ele queria ser do Pentágono e, hoje, é dono do selo que eu faço parte”. O primeiro fruto dessa parceria foi o álbum Ainda bem que eu segui as batidas do meu coração (2013). Produzido por Beatnick & K-Salaam, que já trabalharam com Mos Def, Lauryn Hill e Lil Wayne, “foi um disco mais maduro” do que o primeiro, diz Rael. E foi aqui que ele tirou o “da Rima” do seu nome. “Me dá mais liberdade, o nome rotula muito”, explica. O poder da imaginação Quando viu Caetano Veloso tocar “A Bossa Nova é Foda” ao vivo, Rael decidiu que precisava fazer uma homenagem ao hip hop. Seu single “O Hip Hop é Foda” saiu em 2014 e, empolgado com sua repercussão, Fióti, irmão de Emicida e seu parceiro no selo, convidou Rael a fazer um novo trabalho, que foi o EP 26


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_ Texto _ por por Marília Ariel Fagundes Feix _ fotosFoto por por Rafael Rafael Rocha Rocha

Diversoficando (2014). Ele não imaginava que esse material contaria com uma faixa capaz de fazer sua carreira estourar. “Envolvidão” foi a última música a entrar no EP e Rael diz que ela só entrou porque faltava um “love song”. Para sua surpresa, a música explodiu em rádios de todo país e, até o fechamento desse texto, seu clipe já tinha quase 50 milhões de visualizações no YouTube. A partir daqui, sua vida se tornou uma correria pesada, com séries de shows agendadas em todo país. Nesse contexto, em 2015, ele inscreveu um projeto para um álbum no edital da Natura Musical 2016 e foi aceito. “Puts, rolou. E agora? (Risos) Eu não tinha as músicas, né”, diz Rael. Além de não ter as composições, também não tinha tempo. “Eu estava fazendo muito show, mano!”. No projeto, já constava que Daniel Ganjaman seria o produtor e que traria participações de Chico César, Ogi, Black Alien, Massao e Apolo, mas a única música que já existia era “Aurora Boreal”. Também havia o refrão de “Quem Tem Fé”, que foi feito em 2008 e lançado na música “Do Senhor”, do Pentágono. O processo de composição do Coisas… aconteceu em uma maratona intensiva de um mês. Como um cristal que só se forma sofrendo grande pressão, o disco nasceu num jorro criativo. - Fui fazendo umas batidas em casa, mas muita coisa fiz na hora, então virou uma loucura. Foram surgindo melodias e eu falei: “Mano, de onde vem esse bagulhos?”. Não sei, é das coisas do meu imaginário. Por isso ficou. Mas o que forma o seu imaginário? “É o oculto”, responde Rael. “Sei que vem coisas, mas não sei como nem de onde estão vindo. É uma conexão”. - Pelo meu imaginário, passam coisas que são impossíveis e que acabam se tornando possíveis: a palavra, a música, a melodia. Isso é invisível, é uma energia. É igual à espiritualidade,

“Tinha muita treta, quebravam todo baile, às vezes um morria. O bagulho é louco, mano. Era essa a atmosfera”. 27


Remonta O Amor


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“O rap me acolheu e me tornou uma pessoa melhor. É a minha lei.”

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_ Texto por Ariel Fagundes Foto por Rafael Rocha

tem coisas que a gente não enxerga, mas sabe que existe. Acredito que, se você ficar emanando uma coisa, ela de fato acontece. É o lance da oração - e a música também é oração. Dependendo do que você fala, reverbera como uma e transforma a vida de pessoas como uma. Não foi fácil lançar um disco após ter feito um grande hit de rádio, mas Rael veio mostrando que não é nisso que sua obra se ancora, mas sim em algo muito mais sólido: a sua trajetória pessoal e sua habilidade de cantar o que se passa na sua vida espelhando a vida dos seus fãs. “Foi da hora que não precisei lançar um hit igual a ‘Envolvidão’. Rolou um amadurecimento no que se tem a dizer, em como tá sendo dito e no cantar também. Ficou mais presente o Rael cantor nesse disco”. E se hoje Rael é cantor, isso não quer dizer que ele tenha deixado de ser o “da Rima”. Até o mesmo o pequeno Faísca segue vivo em algum lugar do imaginário desse artista que não se considera um rapper: “Eu me considero um músico. Porque o rap é música”. E como é.


coisas do meu imaginário faixa a faixa Para você sacar o disco de cabo a rabo, Rael comenta todas as suas músicas a seguir.

Lado A

1 - Do Jeito Ah, fui recortando e retratando coisas que acontecem no mundo. Crise humanitária na Europa, crise financeira aqui, falta de saneamento básico, brechas do governo e da oposição, manifestações. Fui só falando o que tá rolando do que jeito que as coisas são.

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2 – Estrada Mano, minha vida tava muito corrida. “Só resta pra mim check out, check in, 15 minutin, rumo a outra direção, fui”. Muito hotel, avião, fui colocando a atmosfera de estrada. No lugar que é pra dormir, você tá acordado; no lugar que é pra sentar, você tá dormindo; no lugar que você tá deitado, não dorme; no lugar que é pra comer, você tá passando som. Tudo isso.


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3 – Rouxinol É a calmaria, o que não tem nas grandes metrópoles. É a utopia. A melodia é calma, a música é pra trás, é pra desacelerar. É uma música tipo: “Para, coloca a mão na terra, sente aí, respira. Como é que tá o seu ar?”. É como se fosse essa calmaria. Mas como é que você vai achar um rouxinol aqui no centro de São Paulo?

5 – Minha Lei Desde moleque, o rap sempre esteve na minha vida. É o que eu sei mesmo, o que me chamou e eu não precisei de nenhum currículo, o que me acolheu e me tornou uma pessoa melhor. É a minha lei, são os meus ensinamentos. Aqui, falo de como penso que meu rap tem que ser. Nas ideias que tenho que dar, de como se portar, da responsa que você tem por ser uma referência para algumas pessoas. Ao mesmo tempo, reverencio o gênero. Tanto que no clipe tem o Brown, Rappin Hood, Rashid, Emicida, Projota, Pentágono, Thaíde, todo mundo da cena que pude chamar, chamei. E embora eu tenha sido do Pentágono durante 13 anos, não tinha nenhuma música só com eu e o Massao ou eu e o Apolo, e meus dois primeiros discos tinham o Msário, aí quis chamar eles. O Dodiman parou né, se não ele também estaria. E o Ogi é padrinho do meu filho, a gente tá sempre se vendo e ele tá lá também. 6 – De Amor Eu tenho filho, sou casado, tem a rotina de

Lado B

1 – Papo Reto Foi ideia do meu irmão [Daniel Yorubá], que veio com a melodia e o refrão. E o Black Alien gosta muito de reggae, então o gênero tinha a ver e o tema era uma coisa que ele também queria muito falar na época. “Quero falar das coisas que eu vivi”, ele disse. Ele teve histórico no bagulho, tinha propriedade para falar e aí foi o que foi. 2 – Descomunal Comecei com violão e voz e vi que era uma música tranquila, diferente do que estava minha vida. E eu queria falar daquela calmaria também, é quase o mesmo princípio de “Rouxinol”, mas aqui eu tô falando de um lugar fora do comum, com pessoas que pensam fora do comum. O instrumental remete a isso também, uma utopia que não se vê em qualquer lugar. E foi uma das que deu o nome “Coisas Do Meu Imaginário” porque eu comecei e foi fluindo muito, parece que foi um contato com outra parada mesmo. Gosto muito dela, acho que é a mais diferente das músicas que eu já fiz. 3 – Livro de Faces É a linguagem que a gente vive, esse universo virtual, era da modernidade, memes, hashtags. Eu fui no mesmo princípio de “Do Jeito”, recortando coisas da internet e imaginando uma pessoa pra quem tudo faz mais sentido se for postado. Eu acho

curioso, esse mundo virtual parece uma soma de coisas muito boas que resolvem a vida e de um monte de merda que não faz sentido nenhum. E as pessoas ficam consumindo isso o dia inteiro. 4 – Falacioso Aqui, falo de uma maneira mais descontraída de quem usa a internet para proliferar o ódio ao outro, falta de respeito, ou que não sabe o que tá falando e acha que tá falando tudo. Falacioso é o cara que fala inverdades, que fala pra caramba, mas você tromba na rua e ele fala que você é foda. Esse é o falacioso. 5 – Quem Tem Fé Tive sorte de nascer e crescer num ambiente em que a espiritualidade e a fé sempre estiveram muito presentes. Vivi muitas situações difíceis e a fé sempre me manteve vivo. Essa é a mais autobiográfica do disco. Minha vó por parte de mãe benzia em casa e muita gente ia lá pra se benzer, ela também fazia umas curas à base de plantas. Já minha vó por parte de pai era do candomblé, andava com guia, fumava charuto, fazia os trabalhos dela. Acho legal essa biografia porque, ao mesmo tempo em que fala de religião, fala de raça. A preta, católica; a branca, do candomblé. As duas não tinham conflitos e, com o tempo, aprendi o sincretismo, consegui pegar o bom de cada uma. E essa música se chamava “Do Senhor”, compus ela na época do Pentágono. Uma vez eu tava em casa e falei: “Mãe, quero fazer uma música. Fala aí um tema, do que você acha que eu devia falar?”. “Por que você não faz uma música falando de Deus?”. E aí eu fiz, mas foi pra um lado mais samba, cada um do Pentágono metia uma rima. Era um grupo democrático e eu falei: “Beleza, não tá do jeito que eu acho que tinha que ser, mas se todo mundo curtiu vamos lançar assim e depois eu lanço”. Aí eu fiz falando mais do lance das religiões, da fé, da raça, que tá tudo conectado.

_ Texto por Ariel Fagundes Foto por Rafael Rocha

4 – Aurora Boreal É uma pessoa que achou uma outra muito sensacional, muito fantástica, como se estivesse vendo uma aurora boreal. No primeiro verso eu falo de uma pessoa que se atraiu por outra e, no segundo, falo do fenômeno da aurora boreal, que é muito bonito, mas são explosões solares. Se não tivesse nosso campo de força, ia acabar com a gente. Essa era a única que eu tinha antes das gravações.

casa e, às vezes, minha mulher pedia um monte de coisa, aí fui só colocando aquela listinha. Na verdade, é um apanhado do que eu vivia com o depoimento de amigos. Eu falo da atmosfera de vida de casal, de quem mora junto, que divide uma vida, uma casa, um lugar. Não necessariamente a do Rael. Mas quando eu tava fazendo a rima, minha mulher falou: “Meu, você tá fazendo uma música me tirando?” (Risos) E eu: “Não, não é isso não. Deixa eu terminar!”.




_Texto por Ariel Fagundes e Marcelo Ricardo Fotos Acervo Pessoal

Radiolas e maresias embalam a histรณria do primeiro disco de reggae gravado no Brasil.


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“Nossa Senhora da Ladeira da Independência, reggai por nós que aqui é jogo duro!”, trecho de

“Reggae da Independência” A chegada do reggae ao Brasil é contada por muitos episódios, mas tudo indica que foi no Maranhão que a música jamaicana fincou suas primeiras raízes. Conforme a tese de doutorado “Jamaica Brasileira: The Politics Of Reggae In São Luís, Brazil, 1968-2010” (2013), do historiador Kavin Paulraj, da Universidade de Pittsburgh, desde os anos 1950, a capital do estado era um ponto importante de trânsito comercial entre o Brasil e o Caribe e, por isso, havia um intenso fluxo de discos lá, especialmente entre os anos 1950 e 1960. Além disso, a tese lembra que, devido à proximidade geográfica, muita gente conseguia sintonizar as ondas curtas das emissoras de rádio caribenhas que, a partir dos anos 60, incluíram o reggae na sua programação. Já o professor Carlos Benedito Rodrigues da Silva, do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão, que desenvolve pesquisas em São Luís desde 1985, lembra que é difícil definir com exatidão o que levou a adoção do gênero na cidade. Porém, ele aponta que, em função de o Maranhão e a Jamaica terem populações predominantemente negras, foi possível o reconhecimento de elementos culturais importantes para que surgisse um elo de identificação. “A importância do reggae como expressão da identidade de jovens negros e negras das periferias levou com que os DJs definissem São Luís como ‘Jamaica Brasileira’”, afirma. No entanto, em um primeiro momento esse fenômeno ficou ilhado em São Luís e, durante os primeiros anos de vida do reggae, o estilo jamaicano apenas tangenciou a música nacional. Em 1968, o jovem Jimmy Cliff apresentou a música “Waterfall” no 3º Festival Internacional da Canção da TV Globo ao lado de Caetano Veloso, Os Mutantes e Geraldo Vandré. Mas aquela música não era um reggae. A Phillips até lançou um LP inteiro de Cliff gravado aqui chamado Jimmy Cliff in Brazil (1968), no qual ele apresenta versões de músicas brasileiras como “Andança” em

ritmo de soul. Nada de reggae. Foi só na década seguinte que o som jamaicano começou a ser ouvido no Brasil além das fronteiras do Maranhão. Segundo as pesquisas de Paulraj, em 1970, a mesma Phillips lançou no Brasil uma coletânea do Jimmy Cliff (agora sim trazendo seus primeiros reggaes) chamada The Greatest Hits, que foi um sucesso. Nos anos seguintes, as gravadoras Beverly e a Copacabana lançaram alguns compactos e coletâneas de música internacional que incluíam jamaicanos como Dave e Ansel Collins, The Upsetters, Bob Andy & Marcia Griffiths e Horace Faith. Por iniciativa da Beverly, a coletânea The Front Line saiu em 1977 no Brasil contendo faixas de The Gladiators, Mighty Diamonds, Johnny Clarke, U-Roy, Delroy Washington, I- Roy e Keith Hudson. Os lançamentos eram esparsos e, apesar de um relativo sucesso comercial, ainda não havia a cultura do reggae estabelecida no Brasil. Segundo Paulraj, a ditadura vigente foi um grande empecilho para a consolidação do gênero no país. Sua pesquisa aponta que o filme The Harder They Come (estrelado por Jimmy Cliff) e o LP Catch A Fire, de Bob Marley and The Wailers, que seriam os maiores responsáveis por espalhar o reggae no mundo por volta de 1973, teriam sido obras proibidas pelo governo vigente. “Múltiplos informantes em São Luís me garantiram que Catch A Fire foi banido pela censura militar e vários informantes sugerem que The Harder They Come possa ter sido banido, apesar de ser difícil achar corroborações concretas”, comenta Paulraj. Também foi por causa do regime militar que Caetano Veloso se exilou em Londres. Quando voltou, em 1972, ele trouxe para a música brasileira a primeira citação ao reggae com a letra de


[+1] “I walk down Portobello road to the sound of reggae”, diz Caetano no primeiro verso da música.

[+2] Em 2002, sua faixa “Iaiá” foi incluída na coletânea “Black Soul Power (19711980) da gravadora inglesa Strut.

“Nine Out Of Ten”+1. Mas (adivinha?) essa música não é um reggae. As primeiras gravações de músicos brasileiros explorando a sonoridade jamaicana só aparecem no país em 1979. Nesse mesmo ano, saíram as três primeiras faixas de reggae feitas no Brasil: Gilberto Gil, no Realce, gravou “No Woman, No Cry” (Não Chores Mais)”; já Raul Seixas abriu seu LP Por quem os sinos dobram? com o reggae “Ide a Mim Dada” e Baby do Brasil (na época, Baby Consuelo) fez uma versão de “Is This Love” chamada “É Amor” no seu segundo disco solo, P’ra Elouquecer. Um ano depois disso tudo, Bob Marley em pessoa veio ao Brasil em uma visita rápida para inaugurar a filial da gravadora Ariola aqui. Apesar de ter jogado bola com Chico Buarque, Toquinho e Alceu Valença em um episódio famosíssimo, o jamaicano não fez um único show aqui. De qualquer forma, sua vinda colaborou muito para ampliar o público brasileiro de reggae. Poucos meses após sua visita, o Brasil viu o lançamento do seu primeiro álbum realmente dedicado ao gênero: Bahia Jamaica, da dupla Jorge Alfredo e Chico Evangelista. Tambor que bate lá, tambor que bate cá Neto de uma yalorixá chamada Dona Dadá do Matatú e completamente envolvido com a cultura afro-brasileira, Chico Evangelista foi um dos fundadores da banda Arem-

bepe, um pioneiro da mistura de funk, soul, psicodelia e ritmos brasileiros de matriz africana. Formado por Chico e Kiko Tupinambá, Dinho Nascimento e Carlos Lima, o grupo de baianos residente em São Paulo gravou apenas dois compactos: - “Iaiá” / “Lá Na Esquina” (1974)+2 e

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“Afoxé Ponto De Oxóssi” / “Rosa Mulher” (1975) -, mas participaram de festivais e abriram shows do Gil. Também baiano, Jorge Alfredo conta que conheceu o reggae através da amizade que tinha com Caetano e Gil por volta de 1974. Mas foi só cinco anos depois que ele conheceu Chico Evangelista e aí é que foi apresentado a vários LPs do Bob Marley que Chico tinha ganhado de Moyra, sua namorada da época, que era inglesa. Em 1979, Jorge gravou pela Copacabana seu primeiro e único LP solo: Quem Fica É Quem Traz o Sol. Nesse trabalho, cantava rock, chá-chá chá, MPB e já esboçava o sotaque do reggae. As faixas “Parecendo Pequi” e “Antiga Mesma Tristeza (Reggae Da Saudade)” trazem forte influência do estilo com misturas de funk e música nordestina. Foi nessa época que a amizade com Chico começou a render frutos: “Antes do meu LP ficar pronto, compus com Chico Evangelista e Antonio Risério o ‘Reggae da Independência’ e inscrevemos no Festival da Tupi [de 79]”, conta Jorge Alfredo. “Nossa Senhora da Ladeira da Independência, reggai por nós que aqui é jogo duro!” era o primeiro verso dessa composição que marcou o início da parceria de Jorge e Chico e se tornou um marco histórico do reggae no Brasil. “Jorge Ben pirou com a música, ficou nos camarins do festival cantando com a gente. O Caetano declarou à Folha de S. Paulo que ‘era espalhafatosamente a música mais bonita do Festival’”, relembra Jorge Alfredo. Chico fazia a voz principal dessa gravação que, depois, entraria no disco Bahia Jamaica e Jorge fazia o backin vocal. Talvez por desconhecimento do júri em relação ao reggae e aos significados de elementos da letra como “2 de julho”, “jeje”, “malê”, “nagô” e “ijexá”+3, e com certeza pela concorrência que enfrentaram (Caetano, Jorge Ben e Arrigo Barnabé também estavam inscritos) Jorge e Chico não chegaram às finais do festival. Quando saíram da eliminatória da competição, Chico, Jorge e Risério foram para o Rasta Bar, no bairro paulistano Itaim Bibi e começaram a compor a canção “Rasta Pé”. Entre agosto e setembro, durante a mixagem do Quem Fica é Quem Traz o Sol, foi finalizada essa música que se tornou o grande sucesso da dupla. Em abril de 1980, na primeira eliminatório do MPB SHELL, da TV Globo, a composição foi classificada para a final. Em seguida, ficou seis semanas consecutivas em 2º lugar na parada de sucesso do programa Globo de Ouro. A faixa tocava nas rádios e TVs e também ganhou a Buzina de Ouro do Chacrinha em 1980 ao lado de artistas como Clara Nunes e Gonzaguinha. “Isso fez com que a Copacabana Discos engavetasse meu


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LP e divulgasse só um compacto simples de Jorge Alfredo e Chico Evangelista e um compacto duplo chamado Geração Rasta Pé, que, além de “Rasta Pé”, tinha “Vestido de Prata” cantada por Era Encarnação, “De Olho na Esquina”, do meu LP solo, e “Reggae da Independência”, do compacto do Chiquinho”, conta Jorge Alfredo. A partir da explosão de “Rasta Pé”, os produtores da Copacabana insistiram aos músicos que gravassem juntos um LP. A dupla surge assim: pela pressão de produtores somada ao clamor do público. Foi uma união que nenhum deles estava planejando, mas que funcionou. Chiquinho, como recorda carinhosamente Jorge Alfredo, era um excelente músico. “Ele tocava num violão Ovation de nylon parecendo que estava tocando num atabaque. E puxava sempre para o contra ponto, ou seja, antecipava o tempo forte”, explica. A música era um ponto de conexão entre eles, o outro era o hábito de fumar maconha. Segundo Jorge, a temática do disco Bahia Jamaica surgiu sobre influência da planta em uma conversa que ele teve com Dorival Caymmi: “Ele, certa vez, falou assim: “Tambor que bate aqui é o tambor que bate lá”. Essa foi a maior dica para mim”. No passo dessa dança Lançado em 1980, Bahia Jamaica aproveitou o compacto simples de Chico Evangelista, com “Reggae da Independência” e “O Dia” (1979), e o compacto simples da dupla com “Rasta Pé” e “Música Alegre”, gravado em 1980 para o Festival MPB SHELL da Rede Globo.

A banda que os gravou se manteve nas outras faixas. “Chega a ser irônico que a banda se chamasse Banda Axé”, comenta Jorge, pois a dupla é tida também como uma das precursoras do axé. “Gravamos mais seis músicas especialmente compostas para o álbum: ‘Amaralina’, ‘Bahia Jamaica’, ‘Alô, Alô’, ‘Arraias no Ar’, ‘Oxum Mulher’ e ‘As 3 Marias’”, conta. Após 16 anos, o álbum foi relançado em CD com outras quatro músicas incluídas: “Felicidade Morena” e “Pipôco da Chinfra”, que saíram em um

compacto da dupla em 1981, e “Carapiaçaba” e “Esperando Badauê”, de um compacto solo de Jorge Alfredo de 1982. Segundo Jorge, ele viveu ao lado de Chico um momento surreal em que o assédio dos fãs era imenso. “Nas rádios, ‘Rasta Pé’ não parava de tocar. A gente ficou muito surpreso com a rapidez do sucesso”, conta. Nelson Motta chegou a escrever em sua coluna no jornal O Globo que “Rasta Pé” não precisava ganhar o festival da Tupi, pois já tinha conquistado o público. A música não ganhou nem o primeiro nem segundo ou o terceiro lugar, mas continuou nas paradas de sucesso até o final de 1981. “Nunca aceitei bem esse resultado”, diz Jorge. A crítica não era receptiva à parceria de Chico e Jorge. O disco Quem Fica é Quem Traz o Sol recebeu resenhas elogiosas de Tárik de Souza e e também de José Ramos Tinhorão, crítico que se envolveu em polêmicas com o artistas como Paulinho da Viola. Por outro lado, a explosão de “Rasta Pé” foi praticamente ignorada pela imprensa especializada da época. Outro problema, conta Jorge, foi que o sucesso massivo da música eclipsou o resto da sua obra. “A gente ia no Chacrinha quase todas terças e quintas e eu pedia para trocar a música - e nada!”, lembra Jorge inconformado. De fato, ele tinha motivos para se sentir assim: o lado B de Bahia Jamaica trazia “Música Alegre”, que, em 1981, foi regravada no disco de estreia do Chiclete com Banana e acabaria se tornando uma canção clássica do São João e do Carnaval de Salvador. “Vestido de Prata”, de Jorge e Chico, foi regravada por Paulinho Boca de Cantor no LP Valeu (1981), por Margareth Menezes (com participação de Caetano Veloso) no LP Gente de Festa (1995) e por Curumin no disco Arrocha (2012) Porém, a fama de Jorge Alfredo e Chico Evangelista ficou

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[+3] Data do fim do episódio histórico conhecido como Independência da Bahia (1823), quando o estado foi de fato anexado ao Brasil independente. Jeje, malê, nagô e ijexás são termos que se referem a grupos étnicos africanos.


muito restrita a “Rasta Pé” e eles não tinham espaço para tocar outra música. O público estava viciado no ritmo do reggae e Jorge, na verdade, não queria assumir o papel de animador de carnaval: “Sabe aquela onda de Música Pra Pular Brasileira? Isso me enchia o saco. Eu não fui feito para festa! ”, confessa Jorge. O fim da festa No início dos anos 1980, o reggae começou a se firmar no Brasil e, na Bahia, ele se misturou completamente com o samba e a música nordestina. Não demorou muito para que tudo isso desaguasse no nascimento do axé. Jorge Alfredo foi um protagonista do início dessa história, mas ele não queria seguir os seus próximos capítulos. Após quatro anos de parceria com Chico Evangelista em São Paulo, no final de 1983, Jorge volta à Bahia. Chico, em 1982, havia lançado o compacto solo com “Frutas & Línguas / Frevo Do Abafabanca” e resolveu ficar no Sudeste na esperança de seguir sua carreira. - Quando decidi voltar pra Bahia e dar um tempo, achava que Chiquinho iria se dar bem, que o público iria aceitar isso com naturalidade. Na minha cabeça, esse tempo seria bom para eu colocar a minha cabeça em ordem, compor livremente e, depois, uma outra gravadora me procuraria e eu recomeçaria minha carreira. Mas tudo aconteceu bem diferente - conta Jorge. Chico não conseguiu lançar outro trabalho. Jorge foi morar em um sítio afastado com Suki, sua companheira, e teve outros dois filhos lá, completando o quarteto de filhos do casal. Em 1987,


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Apesar de serem praticamente anônimos, Jorge Alfredo e Chico Evangelista tiveram a honra de inaugurar a cultura do reggae no Brasil e essa chama segue acesa como nunca. houve um reencontro breve com Chico Evangelista, quando eles compuseram oito canções, ainda inéditas. Depois do “retiro espiritual” na natureza, Jorge concretizou o sonho de fazer cinema que já flertava desde antes de viajar para São Paulo. Em 1977, ele tinha sido

músico no set de filmagens de A Idade da Terra, de Glauber Rocha, mas como a carreira de músico estava indo bem, havia deixado o cinema de lado. No cinema, Jorge começou fazendo trilha sonora, direção de fotografia, câmera e roteiro. A partir de 2000, com a estreia de Oriki, filme de sua direção, e Samba Riachão, seu primeiro longa-metragem, ganhou prêmios de Melhor Filme, no júri oficial e júri popular do Festival de Brasília, em 2001. Desde 2014, ele edita a revista Caderno de Cinema, fruto de uma antiga paixão com o Jornalismo. Vítima de problemas renais, Chico

Evangelista morreu em fevereiro de 2017, em Salvador. Muitos veículos publicaram a informação de que ele havia lançado em 2011 o seu primeiro e único disco solo, Luz e Cor, porém a NOIZE não encontrou nenhum registro desse álbum na internet para consulta. “Foi triste o Chico Evangelista ter partido sem gravar tantas outras canções”, diz Jorge Alfredo. Também é triste que Bahia Jamaica seja ainda desconhecido do grande público, inclusive dos fãs de reggae nacional. Hoje, o CD, o LP e os compactos da dupla podem ser achados em sebos por preços que variam de R$10 a R$180, dependendo do grau de conhecimento que o vendedor tem sobre a importância das obras. Apesar de serem praticamente anônimos, Jorge Alfredo e Chico Evangelista tiveram a honra de inaugurar a cultura do reggae no Brasil e essa chama segue acesa como nunca. Em Salvador, por exemplo, acontece desde 2003 um dos maiores eventos do gênero, o República do Reggae, que, em 2017, reúne Morgan Heritage, Alpha Blondy, Clinton Fearon, The Congos, Ponto de Equilíbrio, Edson Gomes e Tribo de Jah em seu line up. “O reggae está vivo no meu coração e na minha mente”, diz Jorge Alfredo. Ontem, um pioneiro incompreendido; hoje, ele é mais um membro da massa regueira que está espalhada por todo Brasil.


Gente que tenta

Gente que treme pra gente que pula.

quando vento venta contrário enfrenta!

O terror da lei é o povo que burla,

É gente que pula!

os muleke que pilha não tem quem anula,

Nunca na gula,

rua que ensina,

lupa na bula

tv que emburra,

um galho de arruda?

faltou merenda barriga urra.

É gente que pula!

Todo pequeno é gente que pula,

Joga o malote

é festa de guerra

pega o macete

enquanto queima a vela

deita na rede,

quem dança guerreia

hoje ninguém me atura,

quem senta não ajuda.

há quem se atreva, contra noiz truta,

Vim besha bem bixa

sou luz na treva.

ninguém me segura

Gente que pula!

Pra mim não tenho cura!

Não aceita cerca demarca terra, berrante berra o grave empurra,

Só gente que pula!!!

quem deve corre, quem tem paz não surta.

Estamos de olho no tempo pra que ele não seja tão duro, estamos de olho em tudo pra que ninguém se perca no tempo!

Gente Que Pula Por Rico Dalasam

Vento do tempo bom, leve os desertos de mim, Floreste dentro de mim. Viver sem Viveiro e voar! Reflita ainda é assim, rótulo só aprisiona, escolha e colha do pé seu próprio guaraná.

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_Fotos e produção por Catarina Martins

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Gente Que Pula


_Fotos e produção por Catarina Martins


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Gente Que Pula


_Fotos e produção por Catarina Martins


De diferentes formas e por diferentes motivos, quatro discos foram fundamentais para Rael compor seu imaginário.

Raio X Brasil (1993) Racionais MC’s Quando dançava break, eu ouvia as músicas do Holocausto Urbano [disco de estreia do Racionais], mas ainda não assimilava o que eles estavam dizendo. Com 11 anos, quando saiu o Raio X Brasil, eu já entendia e o seu discurso foi muito presente pra mim. Foi um divisor de águas que direcionou minha vida até hoje e me deu um resgate de identidade.

Por Rael

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Afrociberdelia (1996) Chico Science e Nação Zumbi Sempre ouvi de tudo em casa, mas, quando conheci o rap, eu não tinha olhos pra outra coisa. Meu irmão me mostrou o Afrociberderlia e, no começo, eu tinha uma resistênciazinha. Depois, comecei a entender e me conectar com aquilo. Me lembrava Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, pelo sotaque nordestino, mas ao mesmo tempo parecia um rap, uma embolada, e tinha tambores africanos, guitarra de rock. Aí eu vi: “Olha, as coisas se misturam”. Foi um despertar para outros ritmos musicais.

Enter the Wu-Tang Clan (36 Chambers) (1993) Wu-Tang Clan Foi um disco que bateu muito forte. Influenciou toda uma geração, os caras usavam muitas metáforas e o rap também começou a ser assim. O Wu-Tang foi um bagulho tão gigante que, até hoje, todo mundo é fã, tem tatuagem, etc. Só que os caras se preocupavam mais com o flow e, aqui no Brasil, o que tava pegando era neguinho morrendo na favela, crises de diversos tipos. Eu era moleque e lembro que o Can KND [banda antiga de Rael] tinha uma demo com essa paradas das metáforas e a gente mostrou pro KL Jay e ele falou: “Ó, uma música é boa, mas o resto... Essas ideias aí não viram, não!”. Ele gostou da música que falava mais da realidade e essa opinião do KL Jay foi muito importante pra nós.

Catch a Fire (1973) Bob Marley and The Wailers O Catch a Fire parece que fechou uma tampa, tipo assim: “Ó, você já ouviu isso, isso e isso... Mas o que você vai fazer com isso?”. Fui do gangsta rap pro Chico Science e Nação Zumbi, depois passei pelo rap modificado do Wu-Tang e parei no Bob. Que é o lance do amor, das guitarras, da melodia ser diferente do que é cantado. Na hora em que me deparei com o Bob, foi tipo: “Puts, a gente precisa falar de amor”. Fiquei naquela brisa. Aí fiz os dreads, me desapeguei daquele bagulho do rap de ficar usando roupas largonas, foi mudando minha cabeça. Virei outra pessoa.


Bandas que você

não conhece _ Texto por Leonardo Baldessarelli Foto por José de Hollanda

mas

deveria

SENZALA HI-TECH s e nza la hit e c h. c o m.b r

- Sabia que, hoje, no Brasil, apenas 10% da população fica com mais de 50% da renda total que circula dentro do país? - Cara, não sabia o número exato, mas tinha ideia de que era por aí. Onde tu viu isso? - Na real, quem me contou isso foi o Junião, percussionista e ilustrador do grupo Senzala Hi-Tech, que tá aí na foto. Ele, aliás, é o primeiro da esquerda pra direita... - Pô, que massa! Mas como, quando, onde ele te contou isso? O que é esse Senzala Hi-Tech? - Calma aí, vamos falar de uma coisa por vez. O Senzala é uma banda, formada pelo próprio Junião, pelo produtor e DJ Minari Groove Box, pelo rapper

Sombra e pelo atleta de taekwondo Diogo Silva, medalha de ouro nos Jogos Panamericanos de 2007 - sim, isso mesmo. O Diogo vira MC, e os caras têm um projeto incrível de rap, dub, funk, salsa… enfim, de mistura entre as sonoridades de origem afro. - Bah, que rolê incrível! Como eu não conhecia isso? - Pois é. É muita gente massa junta, mas deixa eu te contar por que a gente estava conversando sobre aquilo: toda essa desigualdade que existe no Brasil acaba não sendo muito diferente da lógica de senzala e casa-grande que existia nos tempos de escravidão, com os 10% sendo quem tem praticamente todo o poder e o dinheiro, e o resto só


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servindo a eles. É assim que surge a ideia de “Senzala Hi-Tech”, de estarmos vivendo numa situação de exploração, mas em um momento de evolução tecnológica extrema. O principal disso tudo, porém, é que o conceito tem um viés muito forte de resistência. - Como assim? - É que, além de serem símbolo da escravidão, as senzalas também são símbolo de resistência, pois foi lá dentro onde começaram a rolar as primeiras fagulhas de revolta e surgiram os movimentos que deram força aos escravizados. Assim, o grupo quer buscar toda essa ideia de resistência por meio da música - quer ser uma das fagulhas na senzala do mundo moderno -, abordando a realidade atual

do negro e tecendo críticas complexas ao senso comum e à visão padronizada do sistema. Pra fazer isso, porém, eles não citam nomes, eles não falam diretamente sobre os problemas - a gente tá falando de rap, então a gente também tá falando de poesia, e tudo tende a ser em parte sutil e elegante. “Baile da Meia Noite”, por exemplo, é um som que impressiona muito só por trazer a realidade da rua e jogar na nossa cara. - Bom, e pelo que você já falou o som deles tem bem a ver com tudo isso, né? - Sim, a ideia é pegar o máximo de coisas possíveis do caldeirão da música afro e misturar. Eles próprios se definem como “Rap + Funk + Samba + tambores + afrofuturismos + hitech”, mas isso é só um

resumo de tudo o que os quatro abraçam. A base é, inevitavelmente, o rap, mas muitas coisas diferentes são somadas. Tem música com uma pegada árabe no beat, tem som que é praticamente um samba com pitadas de rap. Enfim, os caras militam no afrofuturismo, na ideia de olhar, estudar e respeitar o passado para moldar um futuro desejado - e é de toda a história da música negra que emerge o som do Senzala Hi-Tech.





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