Revista Noize #68 - Otto | Março | Abril | Maio 2016

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Como um bom barco_no mar, a Noize #68 navega entre ritmos africanos,_ histórias de amor, amizade e_devoção. Lançado em 2009,


Certa Manhã Acordei de Sonhos_ Intranquilos já nascia transparente e confidente, antes mesmo_de se materializar neste LP que você_tem em mãos.


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EXPEDIENTE

#68 // ANO 10

NOIZE COMUNICAÇÃO

NOIZE FUZZ

Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha

Editores Isadora Gasparin Marcel Maineri

Gerente Financeiro Pedro Pares Gerente de Planejamento Cássio Konzen

Coordenação de Projetos Fernanda Lessa Giovani Barbieri

Diretor de Arte Jaciel Kaule

Redação Guilherme de Carvalho Heinz Boesing Ingrid Flores Leonardo Baldessarelli Rayla Carvalho

Assistente de Arte Alexandre Ribeiro Brian Mello Felipe Navarro

Planejamento Denis Eckhard Dionisio Urbim Juliano Mosena

Produção Thiago de Albuquerque

Mídia Daniele Rodrigues

Vídeo Ádamo Ovalhe Emília Abel Lucas Neves Maria Júlia P. Chaves Matheus Roese

REVISTA / SITE / RECORD CLUB Editora Marília Feix Repórter Ariel Fagundes

Community Manager Amanda de Abreu

GRITO Planejamento Danielle Karnas Redação Joana Barboza Pedro Veloso NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn

ara acompanhar o primeiro vinil de Otto, buscamos alguns personagens e temas que fizeram parte de sua metamorfose. No lado A, você vai encontrar uma entrevista com a Baby do Brasil, que colocou o galego debaixo de uma proteção divina, além de algumas confissões de Pupillo, baterista, catalizador de emoções e coprodutor desse disco. Para o lado B, fomos atrás das raízes da cultura afrobrasileira e descobrimos o que Fernando Catatau, responsável pelas notas guitarrísticas das composições de Otto, está ouvindo. Também tem Lira, o poeta de “Meu Mundo Dança” e suas inspirações sonoras. Na sessão de fotos “Páginas Negras”, Kenza, a francesa que é dona do coração de Otto, nos apresenta seu olhar onírico sobre o fim de um carnaval. E se todo fim é também um começo, vale lembrarmos do que já dizia o poeta: “Pra que chorar, pra que sofrer. Se há sempre um novo amor em cada novo amanhecer”. Então vamos lá, vire a página. Marília Feix


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lira

A faixa “Meu Mundo Dança” foi composta pelo cantor junto com Otto. Aqui, ele indica dois discos na seção Música Pra Ouvir.

otto

Cabeça do Cidadão Instigado, gravou as guitarras de Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos e de outras dezenas de discos importantes da música brasileira. Deu suas dicas na seção Música Pra Ouvir.

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Fernando Catatau

O músico pernambucano participou do início da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A. Solo, se prepara para lançar o oitavo disco. Otto assina as seções Páginas Negras, 24h, Como Fazer, Pra Ver, Pra Ler e Discoteca Básica.

Kenza Louise Saïd @kenza_said

Nascida em Paris. Formada em comunicação e artes na Sorbonne. Mora no Brasil há três anos. Fotografia é uma história de família!

daryan dornelles daryandornelles.com

Daryan Dornelles é um fotógrafo de música e cultura pop. Lançou em 2014 o livro “Retratos Sonoros”, com mais de 160 retratos de personalidades do universo musical.

Rica Amabis Leonardo Baldessarelli Jornalista, social media e comentador no hospício facebook™. Daqueles ecléticos que realmente ouvem (e gostam) de tudo. E um apaixonado por música brasileira.

O produtor e membro do Coletivo Instituto disse o que sente sobre esse disco do Otto na seção Meu NRC.


“Fico feliz por não ter participado do Woodstock” Ian Anderson, Jethro Tull


A Noize não termina na revista

Todos estes trechos são de entrevistas publicadas com exclusividade no site. Para fazer a leitura completa, acesse www.noize.com.br

“Tem sido tudo tão comercial ultimamente” SLASH

“Quando você tem experiência, você é mais perigoso“ KL JAY, Racionais MC’s

“As pessoas dão muita importância pro seu nome” SARA NÃO TEM NOME

“As pessoas me assustam” Matt Shultz, CAGE THE ELEPHANT

“Tô aqui pra ser porta-voz do meu público” Karol Conka

“A música que vem do meu coração é o que traz os demônios à luz”Black Alien

“Eu amo o Tim Maia, comprei vários dos seus discos” James McNew, Yo La Tengo

“Quero que cheguemos à igualdade entre homens e mulheres o mais rápido possível” Karina Buhr

“Estamos nos amando” Fay Milton, SAVAGES

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_TEXTO marília feix

_FOTOS DARYAN DORNELLES 010A\\


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BABY DO BRASIL “ N ã o v ai t e r b u nda m ol e no C é u , s ó casca g rossa ! ” E Baby é casca grossa. Afinal, foram seis filhos e somam-se quase cinquenta anos de carreira entre Novos Baianos, Baby e Pepeu, Baby Consuelo e Baby do Brasil. A menina, que hoje é “Popstora”, ainda dança muito e segue tinindo e trincando, virando os olhinhos para o futuro.


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Quando você chegou em Salvador, logo foi ao show “Barra 69”, de despedida do Caetano e do Gil do Brasil. É verdade que antes de conhecer o Pepeu, você se apaixonou pelo Gil? Fui de penetra, e entrei! Quando o Gil subiu no palco do Teatro Castro Alves em Salvador cantando “Cérebro Eletrônico”, senti que finalmente pintava no país alguém do cenário da música pra colocar a negritude no nível “A”. O Gil revolucionou o Brasil com a sua postura fantástica, em um tempo de discriminação racial muito maior. Aquele jovem, representante da raça negra, um príncipe, lindo. Me apaixonei por isso. Mas foi nesse mesmo show, tocando com Gil e Caetano, que vi o Pepeu pela primeira vez. De repente ele se destacou no palco para mim. Quando o vi, veio dentro de mim um olhar completamente diferente. Ele estava com seu cabelão até o ombro, tocando muito para os seus 17 anos, a minha idade também na época. Naquele momento tive a certeza de que ele teria uma participação muito forte na minha vida. Na mesma noite o conheci pessoalmente, e três dias depois, lhe encontrei de novo, e de novo, e começamos a namorar. Vivemos uma vida juntos por dezoito anos, tivemos seis maravilhosos filhos, e hoje temos uma neta incrível que também tem o nosso DNA musical. E em seguida surgiram os Novos Baianos. Vocês tinham uma autenticidade sonora, tropicalista, que chamou a atenção até mesmo do João Gilberto, que já era uma grande referência na época. Como vocês foram influenciados por ele? Nós estávamos morando juntos, em meio à ditadura. Ninguém podia se soltar demais, porque alguém poderia ser preso e desaparecer, então decidimos passar por aquele período terrível tocando em casa. Estávamos vindo do LP Ferro na Boneca, com uma forte brasilidade baiana das composições fantásticas da imbatível dupla Moraes e Galvão, com as pitadas sensacionais de Paulinho Boca de Cantor. Logo depois, para o segundo LP, veio Pepeu, que chegou arrebentando nos arranjos e também começou a participar de algumas composições.

(Pepeu é o Jimi Hendrix brasileiro, não tenho dúvida. Faço essa comparação para ressaltar a criatividade, habilidade com o instrumento e sua musicalidade, que já fez escola no Brasil. Por sinal, quem descobriu o Pepeu foi o Gilberto Gil). Quando estávamos começando a fazer a elaboração de um novo trabalho, Galvão disse: “O João Gilberto chegou ao Brasil, ele é meu amigo desde os tempos de Juazeiro”. Então pensei: “a minha vida inteira eu ouvi João Gilberto”. Desde garota ficava lhe ouvindo na vitrola da minha mãe, horas e horas. Quando soube da vinda dele, fiz um lugar especial pra lhe esperar. Retirei o armário embutido do meu quarto e forrei com edredons floridos da antiga Casa Pernambucana, para fazer a melhor acústica possível. Ficou um cenário lindo, e o quarto inteiro virou uma tenda, como um mini circo. E ali tocamos e cantamos com ele, muitas e inesquecíveis noites. A chegada de João nos trouxe a direção do caminho “de casa”, da bossa nova e do samba que ele fazia e faz. Foi fundamental para nós como Novos Baianos recebermos essa influência e formação musical. Ficávamos horas tocando e ouvindo. Mas perto dele eu mais ouvia do que cantava, queria observá-lo em todas as sílabas, na maneira como as cantava. Era uma escola para mim. João foi para todos nós, “o Mestre da Música Brasileira.” Você foi a primeira mulher a cantar em um trio elétrico de carnaval, já que até então, tudo era instrumental. Não havia nem microfone para voz. Como foi essa experiência pra você? Foi uma atitude deliciosa de ousadia. Peguei o microfone do surdo, e não aguentei, cantei mesmo assim. Estava doida pra cantar o hino do Bahia, então um dia, após o Pepeu dar a introdução da música, eu gritei:“Quem é o campeão dos campeões? E o povo cantou: É o Bahia!” Antes era só a guitarra baiana do Pepeu e o cavaquinho elétrico de Jorginho Gomes, seu irmão. No ano seguinte, Seu Osmar havia aprovado a ideia e convidou o Moraes Moreira para cantar no trio de Dodô e Osmar (inventores do trio elétrico) e o Moraes assumiu a voz definitivamente. Hoje o trio deles é liderado por Armandinho Macedo, um músico virtuose e artista absolutamente incrível, filho de Seu Osmar.


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Viver naquele universo tão masculino, era tranquilo? Eu me dou muito bem no meio de meninos. Tenho um jeito criança de ser, o que também não chega a ser um jeito masculino, mas também não é o totalmente feminino. Com isso, preservo a minha pureza de criança e fico à vontade, pois me sinto apenas “um ser”. É engraçado, porque embora eu seja bem feminina em roupas, cabelos, goste de bijuterias, botas e etc, tenho um lado que gosta de jogar futebol, soltar pipa e subir em árvore. Não raspo a perna, não raspo embaixo do braço. Quero ficar tocando guitarra, aprender bateria, e aí de novo, em contrapartida, amo enfeitar e vestir a casa toda de oncinha e zebra, com muitas flores, curtindo tudo. Mas geralmente acabo me relacionando mais com os homens por achá-los muito práticos, objetivos. Aprendo bastante com isso. Foi muito simbólico o seu reencontro com o Pepeu em 2015, no palco do Rock In Rio, depois de 27 anos. O que isso representou pra você? Foi maravilhoso! Depois de tanto tempo, foi uma vitória para nós dois. Hoje somos muito amigos. Vivemos em harmonia, unidos, o que é muito lindo. Isso também se deve ao fato de que hoje tenho uma compreensão mais sábia da vida, e devo isso a Jesus Cristo, que me lapidou no seu fantástico amor incondicional. Todo o casal passa por momentos difíceis e logo resolve acabar a união. Quando você não tem um amor Crístico, a tolerância é zero. Existem casamentos sim, em que a tolerância é zero por razões corretas. Já em outros, por causa da rapidez do mundo, as pessoas não têm tempo para a família e acabam não vivendo suas relações. Esse amor

Crístico não se encontra com tanta facilidade e precisamos reaprendê-lo urgentemente, pois fomos muito lapidados pelo poder do consumo. Pra mim, esse encontro com o Pepeu reflete e representa pra muitos casais que a separação não pode ser firmada em cima de um “fechamento de porta” no relacionamento da amizade. Isso é muito radical. No amor de Cristo, você perdoa e se perdoa. O Apóstolo perguntou pra Jesus: “Quantas vezes eu tenho que perdoar o meu irmão, 7 vezes?” E Jesus respondeu: “Não, 70 vezes 7!” Os casais devem se perdoar principalmente quando eles têm filhos. E é fundamental para sermos saudáveis que não sigamos na vida com o coração com mágoa de alguém. As escrituras sagradas advertem que: “A mágoa seca os ossos.” O mais lindo, nessa reunião minha e do Pepeu no Rock In Rio, foi o reencontro com o nosso filho Pedro Baby, fundamental para que tudo acontecesse. Sei que você tem uma relação de amizade com o Otto. Como começou? A minha história com o Otto é muito séria, muito profunda, muito Matrix. Eu não o conhecia, só pelas revistas.


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“ A m in h a h is t ó ria co m o O t t o é m u i t o s é ria , m u i t o p ro f u nda , m u i t o Ma t ri x ”


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Mas um dia, em casa, Deus me disse que eu tinha que orar por ele. Assim como pela Lady Gaga. E por que você sentia isso? Era um tempo em que estávamos perdendo muitos amigos artistas, e fiquei espiritualmente atenta. Quando ouvi que tinha que orar pelo Otto, comecei a pensar em como chegar pra ele e dizer:”Olha, eu quero orar por você”. Pensei: “Esse cara vai me achar uma religiosa careta, chata! Mas se eu encontrá-lo, é por que Deus está na área”. Então um dia, no aeroporto do Rio, o Otto passou por mim e disse de longe: “Eu sonhei com você!” E eu respondi com alegria: “Então você já está sabendo, não é?” Em seguida, fui convidada para participar de um show da Tulipa Ruiz, que é maravilhosa, e quando já estou no palco, quem aparece? O Otto! Assim que ele entrou, comecei a rir por dentro, não sabia que ele viria. Então pensei: “Vai acontecer aqui!” Quando ele começou a dançar, levantou a camisa colocando a barriga de fora, chegou perto de mim e se ajoelhou. Na mesma hora estendi a minha mão sobre a cabeça dele e orei no microfone: “Em nome de Jesus, eu declaro que a sua vida seja uma benção daqui pra frente. A glória de Deus vai descer sobre a sua vida e você vai conhecer o que eu conheço.” A plateia foi ao delírio, e ele ficou quietinho, com os olhos fechados, recebendo tudo. E assim surgiu um amor de irmãos nos nossos corações. Nos falamos na madrugada. Ele já me convidou para participações em seus shows e eu fui com o maior prazer. Otto é muito talentoso, uma voz forte e bonita. Tem muita garra e um trabalho musical que ganhou inúmeros fãs e está sendo lapidado a cada novo disco. Tudo isso aconteceu durante o projeto “Baby Sucessos”, dirigido pelo seu filho Pedro Baby, que foi muito bem sucedido. Quais são os seus planos agora? Estou em uma fase de transição. “Baby Sucessos” atingiu todos os níveis de sucesso que queríamos e reunificou um público de várias idades. Quando compus aquelas músicas, sabia que estávamos à frente do nosso tempo, embora também tenham sido muito bem aceitas na

época. Eu tinha essa noção de que o futuro entenderia bem melhor porque vivíamos em um contexto político diferente, em que algumas filosofias de vida não eram importantes. Era só política ou futebol. Hoje passamos a entender que, como diria Shakespeare: “Há mais entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.” Estamos em um tempo mais complicado, mas também melhor pra descomplicar. Dizem que Deus complica, depois descomplica, e depois é que explica. E tem como descomplicar? É tudo uma questão de mentalidade. A vida inteira eu quis que tudo que estivesse errado viesse à tona, para que as gerações que estão vindo assistissem, vissem e não repetissem. Para que o Brasil entrasse em um tempo novo, moralizado, no qual a área política entendesse que, se roubar, vai dar problema. Nós precisávamos ter passado por isso antes, mas na época da ditadura não era possível. Creio que aquele que é justo, honesto e busca crescer, prosperar e ser bom, vai conseguir crescer, prosperar e ser bom. Porque “pensamento é matéria”, como diria Einstein. Nós temos na igreja de Cristo, uma frase profética: “Aqueles que estão em Cristo, nunca estarão em crise”, pois quem é o dono do ouro e da prata, é o Papai. E é Ele que está indo na nossa frente. O mundo pode ter o que quiser, não tem problema. Quem vai mandar é o criador, desde que você esteja conectado a Ele. Isso está na quarta dimensão de Deus, e não na terceira do homem. Isso é Matrix! Você pretende seguir sua carreira direcionada ao mesmo público do “Baby Sucessos”? Já está gravando um novo disco, certo? Sim, já fiz oito canções. A minha ideia é preparar essas músicas de uma forma bem prazerosa e lançá-las em um álbum autoral, junto com algumas regravações. Mas tudo ainda está em fase de gestação. Paralelamente a isso, tem o projeto Baby e Pepeu, do reencontro no Rock In Rio, que também vai acontecer de novo em breve. Como vai ser esse novo disco? Ainda é segredo. Isso também é Matrix!


_TEXTO marília feix

T E R A _FOTOS RAFAEL ROCHA

_Fotos ARIEL MARTINI 016A\\ noize.com.br

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As lembranças de Otto flutuam entre as curvas do Morro do Vidigal e as ondas do mar. No bairro em que encontrou a paz, cercado de amigos e natureza, o filho de Xangô e Oxóssi abriu sua porta para a NOIZE entrar. Certa manhã, Otto já não era mais o mesmo. Algumas pessoas não estavam mais ali. Em 2009, quando este disco foi lançado, o nosso protagonista havia perdido a mãe e se separado da esposa, a atriz Alessandra Negrini, com quem teve Betina, na época com 4 anos. Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos faz referência à primeira linha do romance A Metamorfose, de Kafka, no qual o personagem principal acorda transformado em um inseto.Talvez tantas mudanças tenham sido a força motriz para a realização de um dos álbuns mais marcantes da carreira de Otto e sua busca impávida por essa tal felicidade. Hoje vai ser uma Ottoterapia. A gente vai ter que voltar um pouco no tempo. Pra esse disco sim, vai ser bom. Cada busca minha, um dia eu estava pensando, tem um porquê. Nunca é solto, sabe. Foi um momento bem forte, porque eu perdi mãe, me separei… É um disco que mexeu muito com as pessoas, mexe muito. Como o amor pega, né? O Sem Gravidade já foi romântico. E esse é o pós-romântico, a dor. Em uma resenha desse álbum, de autoria do Xico Sá, chamada “Das dores do mundo e da doce vingança de estar vivo e de novo” ele escreveu que você soube sacanear com a tristeza. É, o tempo todo. Quando eu canto “Quando eu perdi você, ganhei a aposta” Você pensa: “Que aposta?” Sei lá, essa é a frase que cabia... Mas mexeu muito. A Alessandra cantou no Sem Gravidade todo. Foi o disco da Lua de Mel. E o Certa Manhã... foi o disco da separação. É inerente, não dá. Eu vou sempre compor coisas do ser humano e o mais perto de mim sou eu. Na capa do disco parece que você encolheu ou que você está furando o olho do mundo. Esse prego é parte de uma exposição de um grande


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artista plástico brasileiro, que é o Tunga. São esses pregos cruzados em asas de borboleta, casulos, moscas.Trazem a sensação de que você está enfiando alguma coisa mesmo. Cada ferro tem três quilos, é gigante. O Jô Soares disse que eu pareço o personagem do filme O Incrível Homem que Encolheu, chamando a atenção do mundo. Esse é o lado bom de ser independente, poder fazer coisas bonitas com os amigos. Ser independente lhe possibilita assinaturas legais na sua arte. Sempre faço produção ao ar livre, nunca é em estúdio porque fica mais caro. Estou feliz porque vai ser meu primeiro vinil, o primeiro da minha vida, com essa capa do Tunga, que é uma loucura. Não tive essa lógica antes e posso ter agora.

estou nessa daí. Com a música eu toco um bocado de gente.

Em A Metamorfose há interpretações de que Gregor Samsa, o personagem que vira um inseto, teria desejado aquela transformação, já que sua vida como humano estava ainda mais triste. O disco também fala de mudanças necessárias, porém difíceis. É, talvez todo mundo já fosse inseto pra ele. Mas o que eu gosto no Kafka é que ele é muito humano, muito simples. Eu tento ser muito simples também. No meu caso, o mais simples é como permanecer aqui nessa porra. Não ficar muito surpreso. Eu tento passar uma coisa contemporânea. Eu falei muito desse amor contemporâneo que está acontecendo por aí. As pessoas são mais livres. A tecnologia deu isso. O amor está mais valorizado. Perdeu-se tanto, brigou-se tanto, pelo simples fato de que todo mundo está online. E eu

Aquele “lado que pesa e outro lado que flutua”? É isso, é bem simples.Você sofre, você não é feliz o tempo todo.Você vai, mas você tem ciclos, sabe. E a pele é crua. E eu também pensei na minha filha, me coloquei um pouco no lugar dela. Daí entra “por isso na primeira vez dói”. Saber que dói já é uma coisa boa pro homem é sobre a sensação de ser pai também sabe, ter uma filha.

Ainda na temática de A Metamorfose, a música “Crua” traz um viés mais instintivo do ser humano? É, “Crua” é a música que mais chega em Kafka. Nas minhas obras eu sempre busco os clássicos. Hoje há uma imensidade de referências estéticas, por isso eu fico nos clássicos. Principalmente na literatura, os clássicos se eternizam, são atemporais. E A Metamorfose é isso, a coisa da pele, do bicho. O homem sempre vai ter esse lado bicho. A capa do disco também retrata isso, é o mofo da humanidade. O que eu sentia era assim. A gente já era bicho, a gente já era mofo e a gente ainda estava discutindo se a gente era ou não era, e a gente já era.

E “Naquela Mesa” e “Filha” também entram no tema da paternidade. “Naquela Mesa” é isso. Eu sempre escolho um clássico. Do segundo disco (Condom Black) pra cá, eu sempre me dou o direito de regravar, fazer a releitura de uma obra. Essa, do Jacob do Bandolim, eu ouvi muito quando era pequeno. Remete à figura do pai. Eu nunca relacionei com pai brigão. Era um pai novo, ele estava falando de um artista.


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Você contou em uma entrevista que seu avô foi morto porque se envolveu com uma mulher casada. E como era o seu pai? Não falo muito com o meu pai. Ele teve outras mulheres, teve um filho fora do casamento. Minha mãe aceitou, daí ele foi lá e ficou com a secretária. E você? Eu tenho a mesma parada do meu avô e do meu pai, com mulher. Mas ainda bem que eu virei músico.

O encontro com a Julieta foi maravilhoso. É uma mexicana muito boa, muito legal. “Lágrimas Negras” foi por que eu escutei Mautner e Caetano gravando o disco Eu não peço desculpa, que o Kassin estava produzindo. Eu senti que remetia a um Caetano antigo, com frases brilhantes. Na mesma época eu estava fazendo a trilha do filme Só Deus Sabe, do Carlos Bolado. Quando eu faço trilha de filme, eu já penso que a música deve servir ao meu disco também. Então eu compus “Saudade” e regravei essa.

E por que, ainda bem? Na arte, eu posso ser menino. Mas nunca fui um cara mal. Agora não, eu estou na minha melhor fase, estou casado com uma francesa.

Já “Saudade” eu ia compor sozinho, mas a Julieta Venegas, que é uma grande artista, disse que queria fazer uma parte também. Então ela foi pro hotel e, no dia seguinte, chegou com este poema pronto:

Xico Sá também escreveu que esse disco mostra “a força de um pé na bunda”. Ah, é? Às vezes o pé na bunda fica pro homem mesmo. Por falta de controle.

“No tengo medo es la verdad Y lo que sucederá Podría perderme en esta felicidad Cuando estás comigo La distancia y el silencio Son solo un instante que ya terminó”

Você se dá um pé na bunda? É, lógico, você não aguenta.Você fracassa. Não é fracassar.Você não consegue, você diz: “Não tá dando”. No caso do homem, eu estou com 47, estou começando a ver o que talvez seja um homem. Até aqui eu fui um guerreiro. Agora eu virei homem. Mais agora. É difícil, né? Porra! Eu faço um disco pro homem tentar melhorar, e ele pode, ele pode. Você tem esperança? Tenho, é verdade. Eu sou bem LGBT, eu sou perfeito pra isso. Sério. As pessoas, ficam na boa. Eu sou pernambucanão, mas pego o melhor.Tem o sentido bom do homem pernambucano também. Está meio desvalorizado ultimamente, por embriaguez, mas tem uma coisa bem forte, bem boa. A gente chora. Eu choro muito. As participações do disco também são bem importantes. “Lágrimas Negras” ficou ainda mais bonita com a voz da Julieta Venegas.

A dor da separação aparece em “O Leite” de forma literal e metafórica. E a participação da Céu também traz o lado feminino à tona. “O Leite” eu compus em um dos piores dias da vida. Nesse momento não tinha mais a ver com a Alessandra. Foi no dia que eu saí de casa e dormi longe da minha filha. O dia em que eu me separei da minha filha. Acho que identifiquei com a minha relação de filho, sabe. “Quando eu perdi você, ganhei a aposta”... Eu já estava levando muita lapada por ser casado, engraçado. E foi o dia em que eu saí. “Quando eu saí da sua vida bati a porta”. Foi engraçado eu ter chamado a Céu. E a Céu tinha acabado de se casar e não tinha engravidado. Eu disse pra ela, “ó, leite derramado é o útero, você vai cantar essa música e vai engravidar”. E a Céu engravidou logo depois. O poema do Lirinha em “Meu Mundo Dança” parece expressar bem o que você estava


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sentindo naquela época. Lirinha é um poeta. Eu gosto de como ele viaja com as minhas coisas. É sempre forte a presença dele como artista e é sempre bom estar ao lado dele, trabalhar com gente boa. Essa música também é do Rica Amabis, do Instituto. A sua religiosidade aparece em “Janaína”, uma homenagem à Iemanjá. Você já havia feito o mesmo no álbum Sem Gravidade, com a música “Lavanda”. Também tem uma estátua dela na sua mesa da sala. Ela é muito mãe, mulher, mãe, mar, é a grandeza. Uma orixá muito bonita. E “Janaína” é uma homenagem a ela, a banda toca muito feliz. Meus percussionistas são ogãs+1. A gente adora tocar essa. É o “terreirinho” da gente. A música é uma homenagem a Salvador também. Recife eu já tinha homenageado e o Rio eu vou homenagear no próximo disco.Tem toda aquela magia de Iemanjá no dia 2 de fevereiro. É um dia em que se celebra o candomblé ao ar livre. É a força da Bahia. Eu sou muito ligado ao candomblé e à natureza. Por ser percussionista, eu evoco. Sou misturado. Meu irmão caçula é moreno e meu avó era mulato. É holandês também? Eu sou tudo que você quiser, garota. Uma mistura. Minha vó é índia.Tem essa coisa com o candomblé, com a natureza, a percussão. A gente aprende mais no babado do que fora dele.Você está lá junto, você está sentindo.

[+1] Cargo atribuído aos homens que ajudam nas atividades das casas de culto do candomblé.

“Seis Minutos” talvez seja a música mais dramática do disco, principalmente no que se refere a sua interpretação. Em seis minutos eu morro, ressuscito, eu vivo, acabou, morreu. Eu ia passar por aqui, se a minha memória estivesse recente, em seis minutos. Ou virar bebê, ou esperar mais um pouco. É o tempo pra você pensar. É o fim da eternidade. É o que você vai fazer quando você morrer, você tem seis minutos. É uma música muito bonita e também volto ao Kafka porque é humana, simples. Antes eu queria pular, gritar, passar pro nada.

Hoje o que eu quero dessa vida é ficar aqui. Quando você começa a ter público, você começa a vivenciar o ofício. E esse foi um dos poucos discos brasileiros que teve resenha no New York Times. Foi um momento em que eu não estava bem. Neguinho estava querendo me matar, perdi a mãe, me separei, estava mal. Dai eu conheci o Ilhan Ersahin que é saxofonista, é um cara sofisticado, e virou parceiro de “Seis Minutos”. Ele é do Wax Poetic, um coletivo do qual a Norah Jones é cantora. Eles começaram a fazer o jazz e eu comecei com a letra. Ele falava sempre pra mim,“Otto, grandes estádios.” Aquela hora em que o estádio para, uma coisa americana, por seis minutos. Por isso que ela se chama assim. Fui muito feliz nessa música. Ela tem esse cunho rock’n’roll que eu adoro. O álbum abre e fecha com arranjos de cordas. “Agora Sim” é intensa e leve, ao mesmo tempo. Sempre tem as cordas, quem fez foi o João Carlos, lá de Recife. Sempre que eu posso, eu uso. Em “Crua” também.“Agora sim” foi um devaneio pop. A sua temporada em Nova York com os músicos da Nublu Records também influenciou na sonoridade do disco? Essa fase foi muito boa, do tempo em que passei em Nova York. Acho que a aproximação com o jazz de lá, com o fino trato, me ajudou bastante. Nublu é bem pequeninha, mas tem jazz todo dia. Acho que afinou mais a minha música. E a compreensão que eles têm de mim, que é o melhor.Tipo, antes neguinho achava que eu não falava coisa com coisa. Mas eu me entendia. E você cantava em português, numa época em que a moda era cantar em inglês. Antes eu era muito brega por causa disso. Me chamavam de brega. Hoje já têm outros representantes. Hoje eu vejo Céu,Tulipa. Raul e Roberto fizeram rock em português. Você nasceu no mesmo dia que o Raul. Como você interpreta essa coincidência?


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Mesmo dia, 28 de junho. Eu sempre adorei a música dele, as letras dele, essa ideia de transcendência, esse apertar o foda-se.Você vê a quantidade de gente que gosta dele e como ele morreu assim, sabe. É o caminho de um ídolo mesmo. Eu agradeço por ser do mesmo dia que ele. E quando eu tinha meu programa da MTV, olha o que aconteceu. Não acontece com ninguém à toa não. Eu tinha um reality chamado “Viagem ao centro do Brasil”. Era eu de carro, não tinha roteiro. Daí eu tinha que ir pra Salvador, e eu queria ir no enterro de Raul. Isso não tem mais gravado

porque a MTV perdeu a fita. Foi roubo, sei lá. Quando eu cheguei lá, havia umas 2 mil pessoas. Não é todo mundo que consegue isso. Daí me apresentaram pro líder lá e eu entrevistei o cara que inventou o “Toca Raul”, um negão coroa sem camisa, me emprestou o violão, me deu vinho. Eu digo,“agora eu quero ver.” Cheguei pro líder e mostrei minha identidade e disse: Sabe que dia é hoje? Quando eles viram que era meu aniversário, eu já saí do chão pro alto. Já estava no alto. Daqui a pouco, eles me levantaram de frente pro céu e me puseram deitado de frente e balançaram

em cima do túmulo. E eu ainda tive esse arrepio célebre. Eu fui batizado de uma forma muito peculiar. Então a coisa de Raul é todo dia, toda hora. As pessoas me identificam muito. Sabe, pela bebida. Sei lá. Pelo que eu fui. Por essa coisa que eu busquei como músico. Muito por ser uma pessoa que se mete com tudo, mas hoje eu parei, sem precisar de ajuda. Acho que tem a ver com a busca. Só foi enjoo, acabou. Essas coisas só acontecem comigo. Ali eu entendi o porquê. Foi arrepiante. Quem você era e quem você é hoje, qual foi a sua metamorfose? Talvez esse disco tenha vindo como uma ruptura que a vida me deu. Acho que depois de passar por tudo isso, e por passar pra um disco, talvez eu tenha mostrado mais firmeza. Esse caminho mais conceitual, de querer contar uma história. Hoje eu trabalho mais tranquilo e esse disco me deu isso. Ou ele vinha e calava a boca do mundo e tocava por si mesmo, só. Ou, se não fosse pelo Ilhan, por esses amigos, eu não sei. Ainda bem que eu tive sempre as pessoas. Eu sou um vitorioso por tudo. Sou um pai de família e tenho uma filha maravilhosa, de uma mãe talentosa. O que mudou muito foi isso. Esse disco talvez tenha me tirado de um caminho... Me tirou de um caminho em que talvez eu pudesse ter me perdido. Não tinha mãe, dinheiro, não tinha nada.Tinha esse disco. Agora eu me sinto bem, agora eu vejo como eu sou, sabe. Foi essencial.“Seis minutos” foi uma música essencial. Ficou entre as dez melhores daquele ano nas revistas. Foi importante.




_TEXTO ariel fagundes

_ARTE JACIEL KAULE

_Fotos Alberto Henschel


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Milhões de africanos foram sequestrados e trazidos ao Brasil por séculos. Como mão-de-obra, eram escravos. Mas como músicos, eram reis.

Estima-se que 5 milhões de africanos tenham sido escravizados no Brasil até 13 de maio de 1888, quando chegou a Lei Áurea. Raptados principalmente da África Central, perderam suas casas e famílias. Porém, trouxeram uma bagagem imaterial riquíssima feita de ritmos, melodias, sabores, histórias, danças, aromas, palavras, vestimentas, rituais e conhecimentos cuja expressão, em última análise, mudou os rumos da história do Brasil. Nei Lopes, autor de livros como o premiado

“A África forneceu a base onde se desenvolveu a música brasileira”

nei lopes

História e Cultura Africana e Afro-brasileira (2009) e Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (2011), sustenta: - A África forneceu a base onde se desenvolveu a musica brasileira. A essa base, feita de ritmo e um tênue arcabouço melódico, veio se somar a música da tradição europeia. Esse somatório foi que deu origem à musica popular brasileira - diz no artigo “África e música brasileira”. Em História da Música Brasileira (1976), Bruno Kiefer destaca que “o emprego do negro escravo como músico era costume que se observa pelo período colonial afora”. Assim, os mesmos que batucavam atabaques nas senzalas também embalavam os bailes dos brancos. O intercâmbio que se deu entre as matrizes culturais europeias e africanas foi determinante, por isso Kiefer aponta: “Aquilo que chamamos hoje de música brasileira, seja ela popular ou erudita, é, pelas raízes principais, luso-africana”.


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Quando a arte é arma

[+1] No dia 11 de outubro de 1890, a capoeira foi proibida através do decreto 847, que só seria derrubado em 1935 por Getúlio Vargas.

[+2] Em 1939,Vargas proibiu a perseguição que havia aos ritos afro-brasileiros com o Decreto-Lei 1.202, que diz:“É vedado ao Estado e ao Município estabelecer, subvencionar ou embargar o exercício de cultos religiosos”.

[+3] Bantu, Jejê e iourubá são os três grandes grupos étnicos trazidos da África para o Brasil.

[+4] Órgão do governo paulista cujo “acervo abarca diversos aspectos dos universos culturais africanos e afro-brasileiros”, conforme seu site.

Formado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, o antropólogo Marcus Bernardes estuda as raízes africanas da nossa música e explica que expressar a cultura negra, por si só, se mostrou um meio eficaz de resistir à dor de um sistema violento aos negros no Brasil. - A oralidade, musicalidade e expressão do corpo são fundamentais para as sociedades africanas. Sendo expropriados de toda sua cultura material e realocados sob condições de escravidão, essa dimensão simbólica tornou-se mecanismo de resistência, fortalecimento e criação de identidades africanas no Brasil. Mas para a elite branca, essas danças e musicalidades eram sempre vistas como sujas, bárbaras e de conotação sexual no contexto da colonização. Africanos e ameríndios eram vistos como raças inferiores e toda sua manifestação cultural era repreendida. Fora que existiam mais escravos do que brancos e atividades lúdicas e religiosas têm o poder de aglutinar pessoas, então o elemento da subversão estava sempre presente. Francisco Lange escreve em A Organização Musical durante o Período Colonial Brasileiro (1966): “As proibições das ‘danças indecentes’ repetiam-se com frequência igual às de impedir que eles [negros] levassem armas”. Marcus Bernardes lembra que o fim da escravidão não aboliu a perseguição, pois práticas culturais dos negros seguiram sendo ilegais+1. “No início do século XX, as teorias racialistas europeias estavam em alta. Para o Brasil tornar-se moderno, deveria se aproximar dos padrões europeus e os elementos entendidos como primitivos deveriam ser repreendidos. Até a cor da população precisava ser mais clara”, explica o pesquisador. Conforme o antropólogo, “apenas quando surge a ideia da miscigenação como algo positivo e definidor da identidade brasileira é que diminui a repressão”. Isso foi nos anos 1930, a partir do governo autoritário e nacionalista de Getúlio Vargas +2 . O músico, artista plástico e cineasta Kiko Dinucci comenta:

- Houve uma necessidade de unificar o Brasil no samba e no Rio de Janeiro e buscar por símbolos de nacionalidade. O fato de o samba ser o ‘ritmo nacional’ tem muito a ver com isso e com o surgimento do rádio. Mas há outros 500 ritmos de origem bantu+3 que não chegaram à rádio: jongo, tambor-de-criola, maracatú, carimbó e por aí vai. É por isso que Bernardes pondera: “Falar da valorização desses símbolos não é o mesmo que sobre o fim do racismo. O racismo existe, mata todo dia e o mesmo Estado que passou a valorizar a herança simbólica negra na cultura brasileira é o agente racista que subjuga o corpo negro”. Eduardo Brechó, criador da banda Aláfia, cuja música pretende ser uma arma contra o racismo, acrescenta: - Como essa herança africana chegou? Através de pessoas torturadas. Essa cultura formou o Brasil e tem que ser levada em conta de forma afirmativa para reforçar esse valor e para que se saiba que os negros sofrem no dia a dia o racismo institucional e cotidiano. E o racismo mata. Mata muito: segundo o Mapa da Violência de 2015, feito pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, o número de assassinatos de negros com arma de fogo aumentou 14% entre 2003 e 2012; já o de brancos diminuiu 23%. Dentre as mulheres, o número de homicídios de negras aumentou 54% no período, já o de brancas diminuiu 9%. O vocalista do Aláfia já foi monitor do Museu Afro Brasil+4 e diz que a cultura negra ainda é reprimida no Brasil como consequência direta do racismo: - Se o negro estiver próximo a um gênero musical, esse gênero será perseguido. O negro não está mais tão próximo ao chamado “samba de raiz”, que é visto como cult. O negro frequenta pagode. E a polícia vai lá e desce a mão! E a sociedade olha o pagode como algo de segunda linha. Ou seja, o samba do negro ainda é perseguido. Aí perseguem a molecada que gosta do funk, mas muitos funks vão pra mídia. Não é o funk em si que é perseguido, e sim quem tá na favela curtindo o funk.


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“ rock´ “O ´ e tambem ´ musica de terreiro!”

Eduardo Brechó


Exu devorando o mundo. Kiko Dinucci. 33 x 19cm. Xilogravura. 2010.

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Para Nei Lopes, a indústria da cultura é quem determina esse processo. “A sociedade de consumo já diluiu o preconceito que havia. Hoje vemos o funk das favelas cariocas como trilha sonora até de festas de casamento da burguesia”. Orixás popstars

[+5] Seu último disco, Transmutação (2015), também homenageia a raiz africana dando uma ênfase na percussão bem maior do que há nos seus álbuns anteriores.“Sempre fui batuqueiro.Tenho pra mim que, se eu entrasse pra um terreiro, seria o cara do tambor”, diz BNegão.

Segundo Eduardo Brechó, o funk é um dos muitos exemplos da música pop atual que está recheada de religiosidade africana: - O funk carioca tem o padrão rítmico de um toque de terreiro muito comum. Quem conhece os padrões, reconhece. Se você pegar um arrocha, também vai reconhecer. Já o rock é uma música afro-americana que vem do blues, um canto de lamento dos escravos americanos. Se você ouvir os caras do Delta do Mississipi, vai reconhecer a África ali. A condução do blues é terreiro puro. E o rock também é música de terreiro! Alguns rocks parecem opanijé, que é um toque para Omolu. Esse universo matemágico dos ritmos serve de matéria-prima para o Aláfia criar seu som: - Os padrões rítmicos são eternos, podemos usá-los de forma consciente ou não. O Aláfia procura ir além da clave [melódica], tocamos os toques [dos orixás] com todas suas nuances: os tambores

graves, agudos e médios e a própria clave. Também levamos as frases dos tambores para outros instrumentos pra que fique tudo amalgamado e não só dito na letra. Quem conhece o culto a Oxóssi sabe que o agerê é um toque importante pra Oxóssi. Então, se falamos de Oxóssi, tentamos colocar o agerê de alguma forma, mesmo que quase ninguém reconheça. Usamos isso até de um jeito subliminar por uma convicção nossa. Acreditamos que dê mais consistência pro trabalho. Nei Lopes garante que há uma “indissociabilidade entre religiosidade e música” na cultura africana. Marcus Bernardes completa: “A música é o elemento de comunicação com o sagrado”: - Os atabaques são responsáveis por chamar os orixás e transmitir suas mensagens. Existem ritmos específicos para cada orixá. Em sacrifícios, oferendas e louvores, cânticos específicos são entoados e a musicalidade se faz presente com ou sem instrumentos - explica Bernardes. “A música cria um vinculo entre o mundo dos vivos e o dos mortos e das divindades. Da mesma forma que serve também para abalar e repelir os espíritos malignos”, afirma Lopes. Essa noção é compartilhada pelos vários cultos afro-brasileiros (como o candomblé, umbanda, quimbanda, batuque, cabula, xambá, tambor-de-mina, omolokô, terecô...) e também pelo resto da América em ritos como os da santeria, obeah, palo, vudú e winti. Kiko Dinucci se destacou nos últimos anos por uma obra que traz a estética das religiões afro. “Está em voga esse tema e o Metá Metá é o grande responsável por essa parada vir à tona de forma forte. É o maior de todos, um dos grupos mais importantes do Brasil de todos os tempos”, defende BNegão+5 . Juçara Marçal, parceira de Kiko no Metá Metá, diz que não é iniciada em nenhuma religião, mas se identifica muito com elas: “A forma africana de ver as divindades, as relações humanas e a relação do homem com a natureza são um norte pra mim. Inevitavelmente, minha música trará esses elementos”. Já Kiko é iniciado no candomblé e boa parte


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“Em vez da mocada na balada bater cabeca para ˆ indie ingles agora vai bater para Exu, Ogum, ˜ Xango... ˆ Iansa, Acho e´ pouco!” Juçara Marçal


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de sua criação reflete isso: - A arte é uma experiência divina. O artista trabalha com uma energia não palpável, como um médium. É uma espécie de transe no qual catalisa o que está a sua volta e acaba decodificando isso em obras, processos ou resultados. A minha religião é minha arte. Além do trabalho musical, Kiko já criou uma série de gravuras ilustrando orixás e dirigiu e produziu o documentário Dança das Cabaças - Exu no Brasil (2006)+6 , que busca derrubar o preconceito que existe sobre essa divindade. “Sou fascinado por Exu, é o orixá mais incompreendido e injustiçado. Queria fazer um trabalho que investigasse o processo de demonização pelo qual ele passou”, conta Dinucci. “Na época dos primeiros contatos de cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e carrega esse fardo até os dias de hoje”, explica Reginaldo Prandi no livro Mitologia dos Orixás (2001). Do terreiro pra boate Antes de formar o Aláfia, Eduardo Brechó foi DJ e conta: “Meu nome é esse porque minha família sempre teve brechó, comecei na música como DJ porque tínhamos muito vinil”. Iniciado no candomblé desde a adolescência, ele focou seu trabalho de DJ na busca de elementos da fé afro na MPB: - Isso virou até um movimento, eu estava inserido lá no começo. Pesquisávamos muito isso e às vezes só achávamos uma faixa do disco assim, tipo: “Ah, tem essa do Antonio Carlos e Jocafi”. Aí acabou virando um certo modismo underground. O pessoal gosta de tocar músicas que tenham influência afro-brasileira bem latente nos grooves, que falem de orixá e tal. Essa tendência demonstra uma atração crescente pela arte mágica desses cultos por um público que não vivencia suas práticas religiosas. “Há uma onda de as pessoas simpatizarem com orixás hoje em dia, virou até ‘bacana’ ou cool”, comenta

“Minha religião é minha arte.” kiko dinucci

Kiko Dinucci. Ele mesmo diz que se aproximou desses ritos, primeiro, “por atração estética”: “Você encontra música, dança, culinária, moda, literatura e esculturas representadas nos igbás+7. Pra quem gosta de arte, é uma religião muito atraente”. No entanto, esse interesse foi apenas o primeiro dos muitos passos que Kiko deu dentro da religião. Ele ainda pondera que uma atração meramente estética pode causar distorções sobre a natureza dos ritos: “É difícil ver essa simpatia toda na hora de sacrificar um bode e ir pra cozinha limpar o bicho. Às vezes, as pessoas enxergam o candomblé num campo muito romântico”. Juçara Marçal se diz cética quanto ao hype que há em torno de DJs que remixam pontos cantados de orixás para tocar na noite: “Em vez da moçada na balada bater cabeça para grupo indie inglês agora vai bater para Exu, Ogum, Iansã, Xangô... Acho é pouco!”. Já Kiko fica “feliz com essa simpatia crescente” porque vê nisso uma forma de diminuir o racismo que há contra esses cultos. “Dou pulos de alegria ao ver uma plateia lotada cantando em iorubá”, diz Kiko. Seja à luz das velas de um terreiro de candomblé, cantado como forma de reafirmar a importância dos negros na cultura do nosso país ou então remixado a todo volume nas pistas das boates, não há dúvidas de que o som de matriz africana nunca será apagado dos ouvidos, quadris e corações de todos os brasileiros.

[+6] “Uma investigação poética sobre a divindade africana Exu no imaginário brasileiro”, conforme sua sinopse. Está disponível na íntegra no Youtube.

[+7] “Cabaça que contém a representação material de um orixá, assento ou assentamento de orixá”, segundo Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.


Renata Pires/Divulgação

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MAS DEVERIa_


_Por Leonardo Baldessarelli //09B

ANINHA MARTINS soundcloud.com/aninhamartins Quem é? Aninha Martins é voz, performance e explosão. Cantora e compositora, prepara seus primeiros passos em carreira solo dentro do estúdio após anos na ativa. Nos grupos Sabiá Sensível e D Mingus e na banda de Matheus Mota, Aninha acumulou experiência e moldou seu estilo: teatral, de “expansão total”. De onde vem? Da capital de Pernambuco, Recife, Aninha chegou a estudar os lados mais líricos da voz no Conservatório Pernambucano de Música. Onde está? Preparando o disco Esquartejada, com lançamento previsto para maio. O primeiro single, “Útero”, já está disponível para audição no Soundcloud de Aninha e no YouTube. E, claro, fazendo shows, acompanhada da banda formada por Rodrigo Padrão (guitarra), Iezu Kaeru (bateria), Aline Borba (flauta), Victor Giovanni (baixo) e Hugo Coutinho (teclado).

Parece o quê? O som e a voz da artista trazem um conceito à cabeça: “força”. Por isso, é difícil não a comparar com Ney Matogrosso, Rita Lee, Elis Regina e suas companheiras de cena Isaar e Karina Buhr. Mas Aninha Martins é rock, MPB, performance e ainda mais, com toques de influências como o progressivo e a psicodelia nordestina. É espetáculo e interpretação criativa. O que pensa? “Quando subo no palco eu quero mudar o estado. Sou bastante tímida em vida, mas (no palco) eu quero que as pessoas entendam o que eu estou dizendo através das letras”, declarou em entrevista ao Interprograma, da TV Pernambuco. Começo por onde? Além do single “Útero”, dá para achar várias performances da cantora no YouTube. Destaque para alguns pontos centrais do seu repertório, como “Sábio Satanás” e “Faz Ideia”.


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Rafael Rocha

Self-hand hair

POR OTTO

O cortador de cabelo é um item básico desde os anos 80. É um objeto da música, perfeito pra quem quer mudar se vendo de dentro e de fora. O cabelo e a maquininha são dos itens mais legais de hoje. Então vamos fazer o que todo músico faz: um corte personalizado.

MATERIAL NECESSÁRIO Cabelo crescido, máquina de cortar cabelo e alguém de confiança. Obs: um espelho ajuda, mas não é obrigatório. 1. Ligue a máquina e segure firme porque às vezes elas tremem muito. 2. Encoste-a na costeleta bem acima da orelha e passe rente à cabeça fazendo toda curva pra baixo até chegar no pescoço. 3. Se precisar, repita a operação para que a parte raspada fique uniforme.

4. Faça tudo isso do outro lado. 5. Tem barba ou bigode? Aproveite pra dar uma aparada. 6. O difícil é o mullet. Dica: chame sua mulher, sua namorada, seu namorado, o que for, mas peça ajuda para dar um jeito na cabeleira da nuca. 7. Passe as mãos pela cabeça para tirar o excesso de cabelo cortado e pronto! É só curtir seu novo visual.


o primeiro clube de vinil da américa latina em 33 rotações


_foto RAFAEL ROCHA


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NOME_ Rodrigo Max da Silva O QUE FAZ_ Motoboy e mototáxi UM ARTISTA_ Cazuza “A música é a minha válvula de escape. Quando eu estou meio chateado, boto um som pra cantar, relaxar. Eu tenho uma caixa de som Bluetooth acoplada na moto e ouço sempre enquanto eu estou trabalhando. Alguns clientes me pedem pra ouvir um som, se eu tenho, coloco pra tocar bem alto, se não eu deixo só pra mim, fico ouvindo baixinho. A vida é mais fácil com música.”





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