Revista Noize #65 - Apanhador Só | Antes que Tu conte Outra | Junho | Julho | Agosto 2014

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“Quem tem consciência para ter coragem”, canta Ney Matogrosso em “Primavera nos Dentes”, como a voz dos Secos e Molhados e do poeta português João Apolinário. É preciso coragem para encontrar dentro de si a contra-mola que resiste. Para ir contra a rotina, o lugar-comum, a inércia de fazer tudo sempre igual. É preciso coragem para inventar moda e renegar tendências, para fazer um verso que sirva de bandagem pro que se quer curar. A NOIZE #65 tem cheiro de talco mas vermelho nas páginas, assim como Antes que tu conte outra, disco que acompanha esta edição, tem blood on the tracks (que Dylan nos permita a ousadia da expressão). O sangue de nosso Lado A respinga no azul de nosso Lado B e busca entender uma obra que, agora, renasce em vinil. Nossa aposta é que o novo formato permita novas conexões entre canção e ouvinte. E que a revista, que não termina onde um outro lado começa, ajude a fazer florescer novas interpretações. Como o Apanhador, seguramos a primavera entre os dentes: sabemos que é a música, não importa a plataforma, o que faz com que permaneçamos sempre jovens.

EXPEDIENTE #65 // ANO 8 // JUL/AGO/SET ‘14 NOIZE COMUNICAÇÃO

Diretora de Arte Luisa Severo

Repórter Ariel Fagundes

Direção Kento Kojima Pablo Rocha Rafael Rocha Leandro Pinheiro

Assistente de Arte Victoria Camaratta

Redatora Paula Moizes

Produção Patrícia Garcia

NOIZE FUZZ

Gerente Financeiro Pedro Pares

Vídeo Lucas Neves

Gerente de Planejamento Rafael Achutti

REVISTA / SITE / RECORD CLUB

Planejamento Bruno Steffen Cassio Konzen

Editora Maria Joana de Avellar

Coordenação de Projetos Andréia Sabino Marcelo Gernhardt Patricia Garcia Editor Pedro Jansen Redação Bernardo Alencastro

Caroline Michaelsen Cesar Rocha Daniela Grimberg Felipe Neiva Ingrid Flores Isadora Gasparin Leonardo Baldessarelli Luiz Henrique Escoppeli Marcelo Pizollotto Rayla Carvalho Renata Kras Planejamento Dionisio Urbim Jeronimo Azambuja Juliano Mosena Leonardo Serafini Luisa Samuel

GRITO Editora Lidy Araújo Planejamento Lucas Kafruni NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn


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FELIPE SANTOS

NOIZE #65 COLABORADORES Ana Laura Malmaceda analauramalmaceda.flavors.me

tratoremarrastao.blogspot.com.br

Mestre em Letras. Escreve e pratica esportes. É dele o texto sobre arte engajada,“Da flor seu mais forte refrão”.

Fernando Schlaepfer behance.net/anendfor

Nascida em Porto Alegre, é jornalista e pesquisadora de música brasileira. Mora em São Paulo desde 2011 e nos conta quem é Russo Passapusso na página 22B.

Ex-Seagullsfly, ex-Café e ex-Globo. Atual C.E.O. e sempre fotógrafo no I Hate Flash. Tem fotos dele e do crew na matéria “Primavera Sound”.

Antonio Ternura

Gaía Passarelli

vimeo.com/coletivoaura

gaiapassarelli.com

Cinematógrafo. Começou a dirigir buscando dar vida e movimento às fotografias que fazia.

Escreve sobre musica e viagens em seu próprio blog, além de editar a versão brasileira da MatadorNetwork e apresentar o canal Gato&Gata no YouTube com o namorado. É a responsável pela seção BQVNC.

APANHADOR sÓ

Hick Duarte

apanhadorso.com

hickduarte.com

O Apanhador Só foi responsável pela curadoria das resenhas desta edição, assinando as seções “Música pra ouvir”,“Pra ver”,“Pra ler” e “Discoteca Básica”.

Parte da crew I Hate Flash em São Paulo, é um fotógrafo dedicado a documentar com afinco o lifestyle da sua própria geração. Também esteve em Barcelona fotografando o Primavera Sound.

ARIEL MARTINI

Leo Felipe

Ariel Martini ainda insiste em fazer fotos de show. As imagens do festival Primavera Sound na página 16B são um exemplo disso.

Jornalista, escritor e mestre em teoria, história e crítica de artes visuais. Foi o responsável pela matéria histórica do Apanhador,“Antes do Antes”, e “Primavera Sound”

arielmartini.com

minima.fm

Eduardo Araújo

Mario Arruda

Publicitário por formação, largou a vida de agência para se dedicar exclusivamente a música. É sócio-fundador da Estrondo assessoria e produtora musical. Colabora na matéria “Primavera Sound.”

Mario Arruda é ímpeto-expressão em criação de estímulos não lineares para o inconsciente. Deu um rolê gonzo por Porto Alegre para a seção “24 horas em”.

rockinpress.com.br

marioarruda.com


para ler com os ouvidos.

o primeiro clube de discos de vinil da amĂŠrica latina // noize.com.br/recordclub


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Divulgação

MAS DEVERIa_


_Por Gaía Passarelli //09A

Alaídenegão alaidenegao.tnb.art.br Quem é e de onde vem Quatro caras de Manaus (AM): Agenor Vasconcelos e Davi Escobar, os fundadores, e Rafael Angelo, Markito Rock e Anastácio Junior (AJ). A banda começou em 2008 e tem a mesma formação desde 2011. Se descreve como Co-fundadores do movimento Pirão AM, “que reúne artistas locais representantes da atual geração da música manauara”. O nome é um personagem criado pela banda com o objetivo de remeter a algo inusitado, “sem rótulo e inesperado tal qual o som que tentamos produzir”. Comece ouvindo “Rodar na Bica”, irresistível hit manauara inspirado em um bloco de Carnaval da cidade; “Piranha”, do mestre brega expoente da lambada Alípio Martins; e o single mais recente, “Senóide Sensual”. Para ouvir No calor, na rua, no boteco e naquele auge de festa quando todo mundo já está animado o suficiente pra dançar sem cerimônia.

Item essencial no guarda-roupa Bermudão. Vale uma camisa de tecido leve (com o botão de cima aberto) se precisar ser mais formal. O álbum de estreia Vem pela Deck Disc ainda esse ano, “provavelmente em outubro”, e será batizado Senóide Sensual. Dizem por aí Deu no Globo: “Brega, samba, rock, carimbó e latinidades entram na mistura: põe inusitado nisso”. Pra quem gosta de Zoeira, dança e melodia. O som do Alaídenegao é saudavelmente inclassificável. Toca onde? Na FIFA Fun Fest durante a Copa e em festivais alternativos brasileiros como o Grito Rock.


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Colagem: Mario Arruda

Largo Vivo

PORTO ALEGRE _SAIBA MAIS Zumbi Bar e Espaço Cultural Travessa do Carmo, 136 Bar Garibaldi Venâncio Aires, 88 Comitê LatinoAmericano Vieira de Castro, 133

Para sacar a Porto Alegre pulsante e desconfiada que é berço de “Antes que tu conte outra”, onde o disco foi concebido, gerado, parido e criado, Mario Arruda psicografa gonzo as ruas, os ajuntamentos, as ocupações desocupadas e os picos mais vivos de quem faz samba e amor até mais tarde, mas não prega o olho nem quando tentam obrigar todo mundo a dormir. Manhã às 16h. Ainda vivos, chegamos na Lanchéra do Parque e chamamos pelo suco laranja-manga-maracujá. A espera é de sol no Parque da Redenção até às 18h e no caminho-nutrição o fluxo é rumar até o M&M, o melhor xis vegetariano da cidade.

Segue a rota: escolhendo os vegetais e pensando nos ajuntamentos que vão convergir energeticamente em breve, a psiquê segue tranquila, mas 18h27 o corredor de ônibus – que já foi ocupado pela festa Geramor – agora é fila de bancos onde se lê TRI CARO: R$2,95. Aí é pé na calçada e aceno aos ciclistas que passam pelos motores parados. Lancheria do Parque (Osvaldo Aranha, 1086) Parque da Redenção (Bom Fim) M&M (Lima e Silva, 10) Caminha-tempo até às 19h e logo a arte transgride: o Largo Vivo, ocupação artística do estacionamento que fica em frente ao Mercado Público e ao lado da Prefeitura, tem nessa sexta-feira o tema Feminismo.


_Por Mario Arruda //011A

Colagem: Mario Arruda

A performance do coletivo anarco-feminista Putinhas Aborteiras extravasa os limites do gênero em prol da destruição do EUNORMATIZANTEHETEROPATRIARCAL. Uma época do “senão agora, quando?”. A ponte do metrô a gente já subiu, a rua a gente já lotou. Mesmo assim ideias acabaram se tornando motivos pra julgar. “Tu tá do meu lado ou só fingindo?”. Que isso, eu só quero dizer que te amo. Ocupar dia e noite uma daquelas casas que andam sobrando por aí, transformar em centro cultural com oficinas, apresentações artísticas, saraus. Uma nova forma de vida. Já são 4 ou 5 ocupações em Porto Alegre, de repente 10 ou 15 e nada de ostentação na rede social. Pra descobrir os locais é conversar na rua. Largo Glênio Peres (em frente ao Mercado Público e à Praça XV de Novembro) E já é outra noite, e ninguém viu passar. O Tutti, muito responsável pela união de artistas e ativistas, acabou de ser fechado pela Prefeitura mais uma vez. Mas amanhã vai ser maior! Essa terça lotou toda frente do bar que fica ali no final da Borges de Medeiros. A festa, a troca e até os estados alterados de consciência são protestos e/ou tentativas de se divertir nessa cidade que já nem é mais nossa.

Tutti Colagem: Mario Arruda

A voz grita que a mudança não pode parar, mas tem vezes que eu só quero beber minha ceva no Bambu’s, um Tutti dos anos 2000 ou antes que a Prefeitura também fechou para ajustes. Reaberto, a gente vem pra cá beber sozinho com os outros sozinhos. Falar nada, seguir vivendo e marcando show no Signu’s Pub, tocando alto e crocante, gritando e rasgando roupa. Tudo um pouco menos florido e mais interior. Tutti Giorni (Borges de Medeiros, 1224) Bambu’s (Independência, 394) Signu’s Pub (Joaquim Nabuco, 272) Assim seguimos resistindo a partir do “nada a perder”.

Borges de Medeiros


_TEXTO alexandre kumpinski


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Antes que tu conte outra (2013) foi definido pelo Apanhador Só como parte de um processo de se entender cada vez mais como peça integrante do mundo – e responsável por ele. Coincidência ou não, foi financiado coletivamente, e uma interpretação mais romântica pode atribuir essa relação cúmplice entre público e artista ao fato de que o disco manifestou artísticamente a angústia de uma geração. Depois de angariarem quase R$ 60 mil, fruto da colaboração de aproximadamente 1.300 pessoas, viabilizaram a criação de um álbum onde os personagens fíctícios deram lugar aos próprios integrantes, fazendo da canção uma extensão do que pensam e buscam ser. O resultado transcendeu a estética, a experimentação e a poesia: captou o espírito de 2013, ano de inquietações políticas fervendo mais que sal de fruta em copo d’água. Como isso foi possível é o que esta edição da revista pretende desvendar. Aqui, quem nos dá pistas que vão da palavra ao ruído, e celebram o encontro entre ambos, é o vocalista, guitarrista e compositor Alexandre Kumpinski.

LADO A Mordido (4:17) Foi a primeira música trabalhada durante a pré-produção do disco, fase em que apenas criaríamos os arranjos para as composições (que já estavam prontas), mas que rendeu várias gravações que acabaram entrando no disco. Nela está contido muito da desacomodação provocativa e contestadora que rege o álbum como um todo – não só na franqueza agressiva da letra, mas também no arranjo ruidoso e na própria progressão harmônica tensa. Nos primeiros dos trinta dias que

passamos em retiro em um sítio em Gravataí para cumprir essa etapa do processo criativo, nossa cabeça ainda fervia por conta do que tinha acontecido dias antes, no episódio que ficou conhecido como “Batalha do Tatu”. Nele, centenas de manifestantes, incluindo amigos nossos, tiveram seus corpos espancados pela polícia por terem ameaçado a integridade física de um boneco de plástico da Coca-Cola no Centro de Porto Alegre. Foi a primeira vez que nos deparamos tão frontalmente com o absurdo da ferocidade carniceira da Polícia Militar e seu apoio público por parte da


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grande mídia local. Nos sentíamos agredidos, desamparados, engasgados, à flor da pele e, mesmo sem deliberar diretamente sobre o assunto, começamos a trabalhar no arranjo de “Mordido”, a única coisa que nos parecia possível naquele momento.+1

[+1] “Mordido” se tornaria a trilhasonora da resistência aos preparativos da Copa do Mundo no Brasil. Na virada do ano, ganhou um novo clipe não-oficial feito pelo “Coletivo Tatu Morto”. Disponível em ful.eco.br, tem imagens da grande mídia e de coletivos independentes, além do coro “Não vai ter Copa” no encerramento.

Vitta, Ian, Cassales (4:41) Com letra iniciada a partir de um texto publicado em uma rede social pelo Lucas Cassales, um dos três amigos cujos nomes são evocados na letra e dão título à faixa, essa talvez seja a composição de estrutura mais complexa do disco. Isso dificultou bastante a criação do arranjo, já que percorre vários caminhos diferentes de melodia e letra. Encontrar uma instrumentação que se sustentasse e respeitasse essas mudanças sem deixar a música plana ou amorfa foi um desafio que se iniciou na pré-produção e só se resolveu completamente dentro do estúdio de gravação em São Paulo, junto com os produtores Gustavo Lenza e Zé Nigro. Por tocar pontos da vida em uma esfera bastante pessoal, não acreditava, em um primeiro momento, que essa música pudesse fazer sentido pra outras pessoas. Logo percebi que, também dentro da canção, questões pessoais são influenciadas por questões gerais e vice-versa, e que a identificação das pessoas com uma certa música pode se fortalecer a partir dessa relação. Aliás, de uma forma geral, esse álbum traz uma nova postura que caminha pra esse lado no que diz respeito às escolhas do “eu lírico” nas composições: menos personagens fictícios, fabulísticos, e mais de nós mesmos, fazendo da canção uma extensão do que pensamos e buscamos ser. Parte de um processo de se entender cada vez mais como peça integrante do (e responsável pelo) mundo que nos cerca. Lá em casa tá pegando fogo (2:08) Talvez a música mais metafórica do disco, e um dos arranjos mais experimentais. Os ruídos, tudo aquilo que não é voz e violão, foram captados pela casa durante a pré-produção com um microfone de contato instalado como se fosse uma espécie de estetoscópio em vários objetos. Gravamos calha, skate, gás vazando

de uma lata de cerveja, batucadas em um estrado de cama, entre várias outras coisas. A ideia surgiu a partir de um questionamento do amigo Antonio de Paula Ternura, que passou por lá pra nos visitar e acabou assinando junto a produção da faixa. Brincando de tocar os arames de um corrimão no jardim como se fosse um instrumento de corda, nos perguntou se não era possível gravar aquele som pra usar em uma música. Testando e vendo que era possível, saímos buscando toda sorte de objetos que também poderiam gerar bons sons com o microfone de contato. Nenhum efeito posterior foi adicionado aos ruídos: a textura é da própria gravação. Nos chamou atenção a reverberação natural que os objetos parecem guardar


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Nos sentíamos agredidos, desamparados, engasgados, à flor da pele e, mesmo sem deliberar diretamente sobre o assunto, começamos a trabalhar no arranjo de “Mordido”, a única coisa que nos parecia possível naquele momento em seu interior, o que foi apelidado pelo Fernão de “reverb intermolecular” (ou algo do tipo). Despirocar (3:03) Composição em parceria com o Ian Ramil que narra a rotina esmagadora de um trabalhador contemporâneo. É uma das faixas mais perturbadoras do disco, mesmo com algum toque estranho de bom humor – o que cria uma justaposição de climas que nos parece interessante. A linha de baixo sorridente acompanhando a bateria frenética e repetitiva cria o cenário de uma rotina acelerada e desgastante tentando ser levada numa boa, enquanto o ciclo repetitivo e dissonante criado pelo piano e pela mini-harpa desafinada reme-

tem a uma possível dimensão esquizofrenizante dessa situação – também evocada pela melodia falseteada da voz no fim dos versos, pelo coro insano no meio da música e pelo solinho de piano no final da faixa. Ao vivo, cantar os versos encadeados quase sem tempo de respiro é literalmente de tirar o fôlego, o que acaba contribuindo também pra criação dessa atmosfera sufocante de que a letra trata. Pra gravação soar como a gente queria, passamos alguns instrumentos (que tinham sido registrados com equipamentos bons em estúdio) por amplificadores de guitarra para “estragar” seus timbres, o que deu uma liga que nos agrada na textura da música. Líquido Preto (2:06) Feita em parceria com o Rafael Penteado Vitta, foi composta antes de qualquer outra música do disco e partiu da vontade de criar um anti-jingle em homenagem à Coca-Cola e aos discursos cínicos de suas propagandas. A estrutura usada é clássica das músicas publicitárias, com refrãozinho grudento, harmonia e melodia alto astral, enquanto a letra ironiza alguns slogans já usados pela marca e aponta alguns reveses possíveis ao se consumir o produto. O palavrão que inicia a letra – que pode ser encarado como uma espécie de vandalismo linguístico – contrasta bem com o clima de felicidade simulada que permeia a publicidade de um modo geral, e é libertário no sentido de que não se espera esse tipo de desaforo vindo do comportamento dócil de “cidadãos de bem”. Eventuais questionamentos do público sobre uma lógica hétero-normativa no uso do termo “pau no cu” como negativo – assim como sobre uma certa lógica pró-padrão-estético-de-beleza-vigente ao elencar o verso “te deixa gorda” entre as mazelas que o consumo do líquido em questão pode causar – nos parecem positivamente angulosos e são muito bem-vindos. Não se precipite (3:20) Fala sobre a busca por uma comunicação sincera para se manter a boa saúde de um relacionamento, seja ele de natureza romântica ou não, íntimo ou não. A quebra de clima no meio da canção traz de volta os ruídos e


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as interferências características do álbum, e o solo de guitarra barulhento em cima de uma base de guitarras com linhas melódicas que se cruzam pode remeter a um xingamento, uma espécie de dedo em riste em meio a uma discussão. LADO B Rota (3:39) Outra parceria de composição com Ian Ramil. No arranjo, há a curiosidade do timbre de um teclado ligado a um amplificador ruidoso cumprindo a função do baixo (com exceção de um detalhe, uma única frase, que foi gravada com baixo propositalmente). É uma faixa bastante climática, cheia de delays e reverbs, e uma das canções mais delicadas do disco. A letra surgiu como uma adaptação livre de um poema da Karina Ramil, prima do Ian.

Torcicolo (2:57) No total, gravamos 14 músicas para Antes que tu conte outra, já tendo em mente que – em nome de uma busca por coesão – algumas delas poderiam não ser lançadas. Assim, quando de fato ficou detectado um excesso de faixas e chegou a hora de escolhermos quais seriam cortadas, “Torcicolo” foi uma das que mais gerou dúvida. Porque por um lado ela nos parecia um pouco deslocada tematicamente (e até sonoramente) do restante do álbum, mas por outro era uma música cativante que talvez cumprisse bem a função de desopilar um pouco o repertório, como uma válvula que não deixa a panela de pressão explodir. No fim, aconselhados por amigos, escolhemos pela permanência dela no disco em detrimento de “Mas Não”, cuja temática nos parecia um pouco defasada e cuja sonoridade, apesar de nos agradar, acabava deixando o disco um pouco redundante.

Por um lado ela [“Torcicolo”] nos parecia um pouco deslocada tematicamente (e até sonoramente) do restante do álbum, mas por outro era uma música cativante que talvez cumprisse bem a função de desopilar um pouco o repertório, como uma válvula que não deixa a panela de pressão explodir


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Nado (3:48) Outro arranjo bastante experimental, baseado em uma espécie de concretismo anárquico, dessa vez servindo como pano de fundo para uma canção mais leve, às vezes debochada e auto-referencial. Na letra, uma profusão de imagens corriqueiras casadas com um instrumental no qual se ouve uma penca de sons cotidianos (porta batendo, interfone tocando, cachorro latindo, carro ligando, entre vários outros). Uma parte desses sons foram gravados por nós durante a pré-produção e outra na semana em que as gravações foram feitas na casa da dona Lusa, em Porto Alegre, com um gravador portátil. Pela presença de tantos sons diferentes sendo tocados juntos, a execução ao vivo de “Nado” acabou tendo um papel muito importante nos shows da Apanhador, uma vez que passamos a convidar a plateia a subir no palco para nos ajudar a executar o arranjo da música. Isso também acabou concretizando ao vivo a relação entre banda e público que se acentuou durante a campanha de financiamento coletivo para a gravação do disco, inclusive no sentido do público tomar para si um papel mais atuante – e não só de mero espectador – dentro dos processos em que está envolvido. Por trás (1:13) Espécie de irmã menor de “Mordido”, trata do mesmo assunto que ela: questionar o uso recorrente de discursos bonitos em benefício de práticas calhordas, essencialmente incoerentes com esses mesmos discursos. Assim como a primeira faixa, pode muito bem se dirigir à grande parte das propagandas que chegam até nós todos os dias (empresas falsamente verdes, bancos dizendo querer dar as mãos para trabalharmos juntos por um mundo melhor, bebidas símbolo de um sistema excludente se auto-proclamando “a felicidade” e toda a sorte de engambelação). Também pode se destinar a discursos de movimentações supostamente libertárias que repetem em seus atos os mesmos anseios que se propõem a combater (circuito cultural independente não-verdadeiramente-horizontal tentando dominar o mercado de música pra usá-lo como trampolim político, agências de marketing querendo se apropriar

de novas movimentações sociais em benefício do portfólio próprio, entre outros), ou até mesmo às velhas cascatas discursivas de políticos profissionais ou de artistas que gastam a língua contestando o sistema em suas músicas, mas não se furtam de deixar que usem sua imagem ou seu próprio trabalho pra fortalecer esse mesmo sistema em troca de dinheiro assim que a oportunidade surge. Reinação (4:55) Através de uma reconfiguração de versos do hino nacional brasileiro e da evocação de uma cantiga infantil, essa música é uma fábula sobre um sujeito que viria mudar a lógica que rege o nosso dia a dia, transformando tudo o que é pressa/produtividade/falso-progresso em bem-estar. No arranjo, um dos criados com o produtor Diego Poloni, chamam a atenção as duas linhas de baixo bastante dissonantes e distorcidas criando uma atmosfera catastrófica que contrasta harmoniosamente com a delicadeza do violão&voz (e da própria canção de uma forma geral). As guitarras trazem uma sensação redentora no fim da faixa, que se encerra com uma espécie de solo improvisado de bateria ao fundo tocado pelo Antonio Ternura, que provavelmente nunca tinha sentado em uma bateria antes. Cartão Postal (4:16) Esta faixa foi gravada inteiramente durante a préprodução como o que julgávamos que seria apenas uma guia despretensiosa para a gravação mais cuidadosa que faríamos depois. O clima relaxado desse primeiro registro acabou dando um charme à música e, por julgarmos que seria difícil repetir essa atmosfera dentro do estúdio de gravação, resolvemos colocá-la direto no disco. O verso “a carne dura menos que qualquer madeira”, que encerra a canção e o álbum, me instiga um sentimento dúbio entre a constatação melancólica da fragilidade dos nossos corpos e a perspectiva construtiva de que, por conta dessa mesma fragilidade, precisamos fazer nossa passagem por aqui valer a pena, valorizando o que merece ser valorizado. Às vezes é difícil não esquecer o que realmente nos importa nessa vida.+2

[+2] “Cartão Postal” é trilha do vídeo “Quantas copas por uma Copa?”, com imagens das árvores de um dos principais pontos turísticos de Porto Alegre cortadas para a polêmica duplicação de uma avenida. Quatro dias antes do vídeo ser feito, na madrugada do dia 29 de maio de 2013, a Prefeitura e a Brigada Militar prenderam 27 manifestantes que estavam acampados no parque defendendo o espaço contra a obra.


_TEXTO leo felipe

_FOTO RAFAEL ROCHA

_ENTREVISTA Leo Felipe e Tomรกs Bello

_Fotos ARIEL MARTINI 018A\\ noize.com.br

ANTES D


APANHADOR josh homme TOMSÓ zé //019A

O ANTES Foi um começo como o da maioria: na garagem, uma masmorra úmida e cheia de cacarecos na casa da mãe do vocalista Alexandre Kumpinski. Naquele tempo, em 2003, mesmo com toda a bagunça e umidade, foi o local mais adequado que os amigos encontraram para tocar as músicas que tanto amavam+1. No repertório, canções daqueles que, antes, haviam feito a mesma coisa, reunindo-se em alguma garagem para tocar as canções do coração, dentre eles, The Who, Beatles e Strokes. Mas havia um ingrediente estranho na receita roqueira: a presença de “Construção”. “Já tinha uma tentativa de mistura lá no comecinho”, diz Alexandre, que costumava tirar no violão as músicas do songbook de Chico Buarque.


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As origens do que seria o Apanhador Só estão em uma banda formada no colégio por ele e o amigo Souto, que foi também quem batizou o grupo, inscrito às pressas em um festival da escola. “O presidente do grêmio estudantil estava indo embora, entrando no carro da mãe, pegamos a ficha de inscrição e preenchemos rápido”, diz Alexandre. Não que O Apanhador no Campo de Centeio (1945) fosse a melhor obra da literatura de todos os tempos naquela vida maravilhosa de descobertas de quando se tem 17 anos, mas o título do livro, lido no ano anterior, foi a primeira coisa que veio à cabeça.

[+1] A banda ainda ensaia lá e o lugar, condizendo com a importância que o grupo conquistou desde os primeiros ensaios, recebeu uma reforma e está bem mais ajeitado. [+2] A primeira composição em parceria entre Alexandre e Felipe, “Balão de viramundo”, era tocada pela Verde Vilastra por ser considerada pesada demais para o repertório do Apanhador.

Linhas bem desenhadas Uma das características marcantes da sonoridade do Apanhador Só, as ricas e delicadas linhas de baixo, também surgiram despretensiosamente e de forma circunstancial. Com a saída de Souto (hoje médico, “fazendo alguma especialização em São Paulo”), Fernão Agra se encarregou do instrumento. Fernão gravaria o primeiro EP, se afastaria para “dar um tempo” por uns dois anos e depois retornaria durante a fase de mixagem do primeiro disco. As idas e vindas do baixista que começou tocando guitarra (“é daí que vêm aquelas linhas bem desenhadas”, nota o guitarrista Felipe Zancanaro) parecem naturais na história de um grupo que passou por diversas formações. Souto, Drusko, Batavo, Baiano, Carina, Martin, Haroldo, Pacote, deixando suas contribuições, todos eles passaram pela banda, que hoje é formada por Alexandre, Felipe, Fernão e Andre “Foca” Zinelli, na bateria. Nos instrumentos adicionais, efeitos e percussões, Diego Poloni e Lorenzo Flach entram ou alternam-se em cena. Fernão também foi o primeiro vocalista, já que Alexandre não se sentia à vontade para cantar no microfone. Nessa época, aquela que se tornaria o símbolo da banda, ícone para o discurso político e estético que o grupo viria a construir, tinha um uso bem mais prosaico. A pequena bicicleta de criança já fora do irmão mais velho de Alexandre, passara para o irmão do meio e depois para ele próprio, havia sido emprestada para a vizinha e acabou jogada junto com os cacarecos na garagem. Com o apoio de uma muleta e uma baqueta amarrada na ponta, era usada como pedestal de prato da bateria.

A banda da bicicletinha A entrada em cena da bicicleta veio pelas mãos da nova integrante Carina Levitan, ainda em 2004. Carina foi a um show do grupo e, ao fim da apresentação, disse aos rapazes que sabia o que estavam precisando. Depois apareceu no ensaio e rolou um momento de criação coletiva, com todo mundo batendo no chão e no estrado de uma cama que tinha na garagem. Carina entrou com a percussão sucata e teve a ideia de usar a bicicleta. Alexandre tirou o guidãozinho, botou o garfo de uma bicicleta maior e ajudou a criar o ícone perfeito para o Apanhador Só. A bicicleta simboliza o aspecto lúdico da música do grupo e resume as novas proposições para uma nova forma de viver nas cidades, a fundamental questão da mobilidade urbana. “Antes era um power trio bem rock”, recorda Carina, “daí eu trouxe essa sutileza, a ideia de trabalhar os arranjos com mais diversidade, de se ouvir melhor, dar mais atenção aos momentos”. O EP Embrulho pra levar foi fruto da vitória em outro festival estudantil e teve um longo processo de gravação, coisa de banda principiante. O festival foi um dos primeiros shows de Carina. “A banda da bicicletinha vai ganhar certo”, diziam os jurados. Era a época do portal Trama Virtual, onde o disco foi disponibilizado, dando visibilidade ao grupo. No lançamento do EP, no Bar Ocidente, Felipe Zancanaro foi convidado para fazer a segunda guitarra de “Maria Augusta” e foi tocando cada vez mais até entrar na banda. Sucateiro assumido, Felipe já fazia uso desse aparato – ralador, fita cassete e walkie talkie – na banda Verde Vilastra+2, com quem o Apanhador costumava dividir os palcos das escassas casas de shows da Porto Alegre de 2006: Tear, Jeckyll e, principalmente, o Cave (“primeiro lugar que nos recebeu”). As aulas agora já eram na faculdade e a politização, um caminho natural no ano em que o Brasil viu a reeleição de Lula. Felipe cursava Filosofia e costumava usar um chapeuzinho de palha com uma pena. “Era ridículo”, recorda. “Não, era muito classudo”, discorda Fernão. O grupo também venceu o Festival de Bandas do Trama Universitário, região Sul. Bazar Pamplona, que concorreu na região Sudeste, tornou-se uma banda-amiga. A vitória no festival proporcionou a abertura para o


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show de Maria Rita, no Rio, evento assistido por cinco mil pessoas+3. “Deu um gás pra gente acreditar que a coisa poderia dar certo”, diz Felipe. Foi o primeiro contato com uma estrutura profissional de show, outra realidade. A banda começava a formar público em Porto Alegre e São Paulo – graças à amizade com o Bazar Pamplona. O Orkut era a rede social da hora. “Lembro que eu invejava as comunidades do Superguidis e da Pública, que tinham umas 320 pessoas. A nossa tinha 60, 80, e eu pensava: um dia a gente chega lá”, lembra Alexandre. Na terceira tentativa, em 2008, veio o Fumproarte, edital de fomento à cultura de Porto Alegre que possibilitou o lançamento do primeiro disco, Apanhador Só (2010). Não fosse o edital, “iríamos gravar um disco bem pior”, confessa Alexandre. O álbum marcou a fase existencial da banda, com uma poética que tentava por as coisas em cheque, analisar perspectivas. Os artistas cresciam, afinal. “Uma tentativa de decodificação do mundo, numa onda meio Picasso, abrindo ângulos. Nunca foi música de curtição”. Foi quando houve a fuga em massa. “Dei um tempo”, diz Fernão, que saiu mais ou menos junto do baterista Drusko e de Carina, mas acabou voltando. Drusko saiu antes ou depois, ninguém sabe ao certo. Sempre as dúvidas sobre o passado. Entra Baiano. E então Pacote, Martin e Haroldo, que depois foi trabalhar em Belém, no Forum Social Mundial, e nunca mais voltou. Crise. Convite para o Festival Psicodália e no hay banda. No entra e sai, Pacote gravou o primeiro disco, mas muitas das linhas de baixo são de Fernão. “Ele tirou as linhas de mim, gravou e eu tive que tirar dele”, confessa, sempre com bom humor. Fernão voltou na mixagem do disco, depois do sumiço de Pacote. Foi inevitável, segundo Alexandre: “ele ia nos shows e dava pra ver que queria voltar, tomava um tragão de vinho e ficava abraçado nos amigos dizendo: fui eu que fiz essa linha de baixo”. No show de lançamento, depois de um ano de agruras, fuga em massa, shows incertos e a interminável gravação do disco, a surpresa: duas sessões lotadas no Teatro Renascença. O Twitter se firmava como rede social e em dez dias do lançamento do disco o buzz estava formado. “Tudo se espalhou muito rápido”, diz Alexandre, “600 pessoas no teatro, a galera cantando as músicas”.

Sucata: ressignificando as coisas do mundo A necessidade de fazer algo interessante diante da demanda de apresentações acústicas em programas de rádio, circunstância imposta pela maçante rotina de divulgação, possibilitou a exploração das potencialidades da sucata. “Foi na sala de espera de uma rádio, começamos a batucar nos cases”, lembra Alexandre. Felipe emenda: “Eu tinha uma munhequeira por causa de uma tendinite e começamos a brincar com o velcro e logo depois o Fernão pegou a sacola, que foi o grande instrumento do Acústico-Sucateiro”. Das texturas produzidas por Carina, a sucata foi ocupando um papel mais rítmico, e até melodias começaram a surgir através de um tecladinho. “E foi evoluindo porque é uma coisa que é eternamente evoluível”, conjetura Felipe. A fita-cassete, mídia sucateada e reutilizável, fechou perfeitamente com o novo conceito. “Isso fez parte de uma mudança na nossa postura, de começar a se preocupar com as coisas do mundo, com algo que fosse além da música e da nossa carreira”, avalia Alexandre. Felipe completa: “A sucata não é só um instrumento, passa a representar algo que tem a ver com essa ideia de ressignificar as coisas”. Um novo olhar sobre as velhas coisas, reciclagem de objetos e ideias que já não servem mais, ato de resistência ao consumo burro e desenfreado: a tentativa de fazer com que o mundo, de alguma forma, seja diferente. A semente que iria germinar em Antes que tu conte outra como uma planta florida e espinhosa estava plantada. Também em 2011, apareceu o clipe de “Um Rei e o Zé”, que, ao menos para Alexandre, causa hoje um certo constrangimento. As roupas esportivas vintage que usaram se tornariam o figurino oficial de vários shows, a ponto de, ao fim da turnê, estar tudo encardido e fedorento+4. A onda sportswear durou pouco e, no ano seguinte, saiu o compacto em sete polegadas Paraquedas. Produzido por Curumin, o single capturava um lado mais sombrio do grupo. No lado B, “Salão-de-festas” já indicava o flerte com os recursos eletrônicos que o Apanhador exploraria no segundo álbum. A entrada de Foca, baterista de abordagem mais simples em comparação ao estilo exuberante de Martin, abriu espaços, permitindo que os elementos eletrônicos se instalassem.

[+3] Foi nesta época que a banda saiu pela primeira vez na NOIZE, ainda na segunda edição da revista. [+4] Chegavam a entrar no palco fazendo alongamentos e aquecimentos, em referência ao clima esportivo do vídeo (no qual os rapazes, vestidos de tenistas, disputam uma partida de taco).


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“Que merda de cidadão de bem uma ova, que ser comportado uma piça, bota barulho aí, estraga essa primeira faixa do disco, manda tomar no cu tudo, fode o mundo, vandaliza”

[+5] Lasier Martins, caricato e conservador comentarista da RBS (afiliada da Globo no Rio Grande do Sul) e, hoje, candidato a senador. [+6] Kumpinkski fala mais sobre ela no Faixa a Faixa, página 17A.

Vandaliza Politicamente, além do engajamento individual (maior ou menor) de cada integrante, o Apanhador Só entendia que, como grupo, também era preciso definir um programa de atuação, tomar um posicionamento. Na sempre polarizada Porto Alegre, o grupo passou a integrar um núcleo de resistência, um tanto festiva, contra o processo de privatização dos espaços públicos que a cidade vem sofrendo, financiado por interesses da iniciativa privada que paga as campanhas eleitorais. O Bloco de Lutas pelo Transporte Público passou a promover manifestações contra o aumento da passagem, os ciclistas da Massa Crítica reivindicavam a construção de ciclovias e, em outras frentes, coletivos artísticos como o Bloco da Laje e os Ovos e Llamas articulavam ações e festas nos espaços da cidade. No Largo Glênio Peres, em frente ao Mercadão, tradicional espaço de concentração popular e manifestações culturais e políticas, onde a Prefeitura instalara um estranho chafariz, estudantes, ativistas e artistas passaram a reunir-se aos finais de tarde nos movimentos Largo Vivo e Defesa Pública da Alegria. Quando o tatu inflável símbolo da Copa do Mundo (trazida ao Brasil com enormes custos humanos e democráticos) foi instalado no meio do Largo, o gesto deve ter sido entendido como uma provocação pelos ativistas. O episódio que se seguiu, no dia 4 de outubro de 2012, estopim dos protestos de maio de 2013, ficou conhecido como a Batalha do Tatu. O Apanhador iria se apresentar na manifestação daquela noite, mas acabou tendo que tocar no Rio e foi poupado da violência. Uma noite antes, Alexandre se envolvera em um embate tão definitivo para os rumos criativos da banda quanto as questões políticas enfrentadas pelo Brasil do século 21.Tom Zé se apresentou em Porto Alegre, na reinauguração do Auditório Araújo

Viana. A casa de shows, localizada no Parque da Redenção, havia sido reativada depois de anos de ostracismo após uma parceria com a iniciativa privada. Durante a apresentação, parte do público (muitos ativistas presentes) queria dançar na frente do palco, mas Tom Zé interveio, pedindo para que sentassem. Alexandre recorda: “Essa postura não me representa, se colocar como uma autoridade. Isso dizia muito respeito ao que estava acontecendo na cidade, esse moralismo. Na hora, rolou um afastamento entre eu e ele. Não foi culpa dele, ele não sabia o que estava acontecendo”. Então Alexandre saiu do show e se meteu em uma confusão porque era proibido pisar no talude, o “morrinho” de grama que há em volta do auditório, um ponto clássico do chimarrão de domingo dos porto-alegrenses, agora privatizado e interditado. “Na grama onde a gente não podia pisar, tinha um inflável da Coca-Cola, era tudo muito simbólico”. Ao ser expulso do espaço, chegou a ser levemente agredido pelos seguranças.Voltando para casa, deprimido, soube por uma amiga que, quando o show acabou, parte do público armou uma revolta, incendiando o inflável. Em volta do objeto pegando fogo, gritavam: “amanhã é o tatu, amanhã é o tatu!”. No Rio, após o bode tropicalista de Alexandre com Tom Zé, recebiam as notícias sobre os amigos espancados pela polícia durante a manifestação em Porto Alegre. “Como se a violência contra um tatu de plástico justificasse a violência contra corpos”, considera Alexandre. A explosão de agressões sofrida pelos colegas e amigos ajudou a dar forma a um conteúdo que já tratava de temas contundentes. Alexandre recorda: “a Batalha do Tatu rolou dois dias antes de a gente começar a pré-produção do disco, vários amigos apanharam, o Lasier+5 chamou todo mundo de vagabundo, que tinha


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que apanhar mesmo, que cidadãos de bem não poderiam permitir que vândalos tomassem conta da cidade. Isso pessoalmente me incomodou muito, passei vários dias dentro do estúdio, tocando e pensado: que merda de cidadão de bem uma ova, que ser comportado uma piça, bota barulho aí, estraga essa primeira faixa do disco, manda tomar no cu tudo, fode o mundo, vandaliza”. “Mordido”, a faixa de abertura de AQTCO, foi a primeira a ser gravada e o que ouvimos no disco é quase inteiramente o que foi registrado naquela madrugada de inferno astral+6. Diz Felipe: “Fizemos o arranjo, sentamos para fazer as batidas, fomos gravar e depois nunca mais mexemos. O violão chegou a ser reprocessado, mas as batidas, os radinhos, nunca foram regravados. O estranhamento é um conceito que a gente buscou, causar essa sensação no ouvinte”. “Mordido”, gíria porto-alegrense para descontente, é o manifesto do Apanhador Só contra os hipócritas cidadãos de bem. Alexandre já vinha expressando seus pontos de vista em textos na internet e as ideias de algumas letras decorriam do mesmo pensamento político:

“O segundo disco não vem mais levantando tantas dúvidas filosóficas e existenciais, mas afirmando uma posição e sendo mais intolerante: algo tem que mudar porque as coisas não estão funcionando assim. Não está tudo certo, então não vamos comunicar como se estivesse certo, daí vem muito ruído, muitas notas erradas, fora da escala, um arranjo todo torto, cheio de barulho, mixagens estranhas, um baixo alto e distorcido na caixa, coisas agressivas, letras dizendo claramente a que vieram, colocando o dedo na cara de algumas lógicas.” As faixas foram gravadas em três estúdios, com pré-produção do quinto elemento Diego Poloni, responsável por “muita coisa determinante”. “Cartão Postal”, por exemplo, é inteira da sessão da pré. O conceito do desconforto, o ruído como expressão do dissenso, foi reforçado através das técnicas de circuit bending+7 empregadas nas gravações. Felipe vinha juntando “uma porrada de lixo eletrônico”, bugigangas que foram montadas na antessala de um estúdio em Gravataí, na grande Porto Alegre. Caixas de coisas que não tinham uso determinado, ninguém sabia ao certo o que fazer com aquilo. O

[+7] “Circuit bending” é uma técnica que modifica circuitos eletrônicos, causando curtos, afim de gerar ruídos e novos sons. O procedimento é simples e utiliza brinquedos, teclados e componentes eletrônicos básicos. Crédito das fotos das páginas 24 e 25: Christian Camilo Fernanda Cirelli Leonardo Mascaro Liliane Callegari Lipcia Pereira Rafael Rocha Roberta Sant’Anna


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que havia era uma enorme vontade de experimentar, quebrando os protocolos que regulam a captação de áudio, “nada disso de lugar certo pra colocar o microfone”, provoca Alexandre, “se o ar-condicionado está ligado e deixa um ruído de fundo, melhor assim”. E de fato, em “Vitta, Ian, Cassales”, a guitarra mantida no mix final tem o acompanhamento da vibração de um ar-condicionado. Outro elemento importante nas gravações foi o microfone de contato, sugerido pela visita do amigo Antonio Ternura, que batucou no corrimão de aço instigando novas sonoridades. Os microfones foram afixados em vários pontos da casa e disso saiu o arranjo para “Lá em casa tá pegando fogo”. O pequeno caos experimentado na pré-produção, que incluiu também a troca de instrumentos (como no caso de “Despirocar”), é uma última sessão, “tudo que estava muito limpo e certinho”, foi retimbrado, passado por amplificadores de guitarra, captando ambiências, e “isso foi somado às gravações impecáveis do estúdio”, conta Felipe, “viemos depois a descobrir que isso não é um procedimento incomum”. “Mas, para nós”, arremata Foca, “era muito novo”. A possibilidade de contrato com a Som Livre, anterior à gravação, traria uma chance de inserção no mercado, mas também levantava questionamentos éticos da maior importância, afinal se tratava da gravadora da Rede Globo. Os rapazes discutiram a questão internamente, a primeira discussão importante da banda. A politização os fazia sentirem-se mais responsáveis por suas ações no mundo, como artistas e cidadãos. “Já existia nos indivíduos e foi por aí que conseguimos amalgamar

abertura à experimentação, “se propor e se dispor a vivenciar aquilo que está na tua frente como possibilidade sem pré-julgamentos”, observa Felipe. Um set list com dezoito músicas foi levado para as sessões e o material captado naqueles dias forma praticamente todo o disco, com apenas regravações de bateria, alguns baixos e vocais. Entre São Paulo e Porto Alegre as gravações do disco foram concluídas. Em Sampa, os produtores que não presenciaram o processo custaram um pouco a entender o espírito do disco. “Eles não sacaram”, lembra o batera Foca, “ficaram meio assustados”. “’Destrói o som’, a gente tentava explicar”, conta Alexandre, mas os produtores insistiam em métodos mais tradicionais de gravação. “A gente aterrorizou um tanto até que entenderam”, conclui Felipe. Na sala da casa de Alexandre, na essa posição como banda”, filosofa Felipe. E então veio a ideia do crowdfunding como solução de financiamento. “Uma maneira diferente de fazer as coisas”, considera Alexandre, “que tem tudo a ver com o álbum. Se a gente tivesse fechado aquele contrato, no fim das contas, esse disco nunca teria nascido”. Aclamado pela crítica nacional (conquistou o importante prêmio de melhor disco de 2013 pela Associação Paulista de Críticos de Arte), Antes que tu conte outra é uma obra de arte que, como poucas, captura o zeitgeist do Brasil de antes da Copa do Mundo, com suas ruas tomadas de manifestantes, a vontade de mudança dos jovens e as reações violentas do poder público. Independente, experimental, político, se AQTCO tivesse um cheiro, ele seria o de gás lacrimogêneo.


FIM DO LADO A. CONTINUE LENDO O LADO B


_TEXTO _TEXTO Ana Laura Malmaceda ana laura malmaceda 022B\\ noize.com.br


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Do interior da Bahia para a criação de uma nova cena de música independente em Salvador: conheça Russo Passapusso, aposta da música brasileira em 2014

Na cidade de Salvador, Russo, um recém chegado novo baiano, escreveu sua primeira canção, intitulada “Flor de Plástico”. Para realizar a tarefa, pediu entrada a um território criativo que foi construído durante a infância, no qual os objetos se animam e os sentimentos adversos, por consequência, sofrem a mesma inversão. Assim seria mais fácil acostumar-se com a solidão dentro de um pequeno apartamento na imensa malha urbana. Foi nas primeiras semanas vivendo em Salvador que Russo Passapusso, hoje vocalista das bandas BaianaSystem e Ministereo Público, começou a escrever as canções de Paraíso da Miragem, álbum que o apresenta como artista solo. Com um EP lançado em maio, o cantor baiano é uma das promessas deste ano na cena independente. Nascido em Feira de Santana (BA), Russo, de batismo Roosevelt, cresceu rodeado pela cultura sertaneja do interior da Bahia. Os pais viviam da agricultura, e o afeto pelas canções começou nas inúmeras festas de interior, nas quais os rituais e ritmos são quase incontáveis. Para o povo da cidade, pronunciar os nomes da família de Russo, batizada pelo avô a partir dos protagonistas da Segunda Guerra Mundial, nunca foi tarefa fácil. Antes que você se pergunte: sim, um dos tios dele teve má sorte e acabou com ‘Hitler’. Mas está tudo bem. “Ele é mestre de capoeira e acabou sendo chamado de Hitinho”, conta o músico. O nome de Roosevelt bateu no português e virou “Russo”. “O ‘Passapusso’ tem relação com ‘passar a pulso’, que significa superação pela força, e também

faz referência ao ritmo cardíaco”, explica. Ao chegar em Salvador, há cerca de dez anos, trabalhou como telemarketing e vendedor de sebo, enquanto começava a encontrar um grupo de músicos que seria essencial na formação do que se chama hoje de cena baiana. A Jamaica é aqui Desde os anos 1980, Salvador sobrevive de seu último grande gênero, o axé music. É claro que existem reinvenções, como o pagode do “Lepo Lepo”, o arrocha e o gansta axé, mas eles são uma continuação da linha evolutiva do gênero e da cultura do carnaval baiano. Com a divisão de música independente e mainstream nos anos 2000, artistas como Lucas Santtana, Márcia Castro, BaianaSystem, A.MA.SSA e Ministereo Público apresentaram uma produção independente que inventa outros versos e musicalidades para a cidade. Desde os tempos mais remotos do bloco do Ilê Aye+1, a Jamaica é uma grande referência na música feita na Bahia, e o samba reggae está permeado no axé e na cultura de Salvador. A cena da qual Russo vem é inspirada nessa referência. O coletivo Ministereo Público surgiu no início dos anos 2000, e buscou na história e cultura do dub e do soundsystem inspiração para levar música pela cidade por meio de sistemas de som itinerantes, como trio elétrico ou mini trio. Um dos fundadores do coletivo, Russo também fez parte do Dubstereo, grupo da mesma vertente sonora. A cena do soundsystem

[+1] Primeiro bloco afro de carnaval do Brasil, o Ilê Aye é hoje um grupo cultural de luta pela valorização e inclusão da população negra. Em sua primeira apresentação, em 1975, mostraram “Que Bloco é esse”, de Paulinho Camafeu.


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“‘Passapusso’ tem relação com ‘passar a pulso’, que significa superação pela força, e também faz referência ao ritmo cardíaco” jamaicano surgiu na periferia de Kingston, nos anos 1950. Ela foi essencial para a proliferação da música local jamaicana e para a existência do dub, um subgênero do reggae que sampleia discos e modifica a intensidade de cada elemento musical, além de retirar os vocais para adicionar novas letras. Russo aprendeu a cantar como os MCs Jamaicanos, um rap de entonação bastante peculiar. Hoje, Russo é vocalista do BaianaSystem, grupo experimental com referências musicais africanas e jamaicanas. A banda é formada pela guitarra baiana de Robertinho Barreto, batidas e arranjos eletrônicos do DJ João Meirelles, programação visual de Cartaxo – que é projetada no palco –, baixo de SecoBass e percussão de JapaSystem e Ícaro Sá. O nome reflete o norte experimental da banda; cada um dos artistas é parte de um sistema de som, e as bases eletrônicas são a direção para os outros instrumentos. Da nova cena de Salvador, o BaianaSystem é um dos projetos com mais visibilidade no exterior, e também um dos mais ousados, em estética e estrutura. O grupo deu nova vida à guitarra baiana, pouquíssimo usada na cena independente. Nos últimos anos, tocaram no Japão, Estados Unidos, China, Rússia, França, Dinamarca, entre outros. No carnaval de Salvador, o trio elétrico do BaianaSystem tem público cativo. Junto a Fael Primeiro e DJ Raiz, Russo também integra o Bemba Trio, grupo que dá mais espaço às características de música pop baiana na mistura do rap e da música jamaicana. Com o coletivo Ministereo Público, toca dub semanalmente, na festa Quintas Dancehall. Paraquedas Em 2012, o músico paulistano Curumin lançou Arrocha, disco urbano com levadas nostálgicas. Em parceria com

Russo, escreveu “Afoxoque” e “Passarinho”, músicas que foram destaque no disco do baterista e cantor. O ponto de partida para a produção de Paraíso da Miragem, álbum de estreia de Russo, aconteceu durante o encontro entre os músicos, no qual mostrou suas composições escritas ao longo de dez anos, desde a chegada em Salvador. Entusiasmado com o que escutou, Curumin o incentivou a gravar o repertório, e convocou para a produção seus parceiros Zé Nigro e Lucas Martins. Durante a infância no interior, Russo, então Roosevelt, conheceu um local chamado Alto da Maravilha. Era a fonte de água da cidade. O nome do disco, “Paraíso da Miragem”, faz referencia à lembrança de menino, “o lugar onde os objetos se animam”. Para Russo, o disco acabou se tornando um retrato d’água feito no Alto da Maravilha. As músicas são autobiográficas e fantásticas, um acesso aos sentimentos através de seu próprio oásis criativo. Há algo de Luiz Melodia nas letras, que misturam sentimentos com uma história não necessariamente linear. Nos últimos anos, São Paulo vive uma fase de resgate de grandes artistas da MPB e descoberta de discos e compactos antigos e, às vezes, desconhecidos. A cultura do vinil, que faz parte de uma rede global de DJs e do rap, também aparece no soundsystem baiano, que sempre usa vinil. Ao conhecer Curumin, novas referências da MPB chegaram aos ouvidos de Passapusso. Apesar de conhecer várias, não pensava em usá-las num disco, por serem diferentes de seu estilo de canto e da musicalidade de seus outros projetos. O ponto de Russo e da nova cena baiana é mostrar que há muito mais na Bahia, que ela vai além dos clichês. Ao escutar as composições de Passapusso, os produtores pensaram no soul e na MPB de Antonio Carlos & Jocáfi, Hyldon, Di


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Melo. O último é pernambucano, mas os dois primeiros são baianos pouco lembrados como tais. Em vez do MC, Russo se apresentou como um cantor. “Na Bahia, eu estou acostumado a cantar de outro jeito, mais no grito. Em ‘Flor de Plástico’ eu canto em falsete. Não esperava que nada disso iria acontecer, foi muito natural, a gente foi trocando ideia e aconteceu”, conta. O disco tem arranjos de Marcelo Seco e Junix, além das participações de BNegão, Edgard Scandurra, Anelis Assumpção e Marcelo Jeneci. Ao lançar uma prévia em EP, que apresenta “Paraquedas” e “Flor de Plástico”, alguns amigos não compreenderam a mudança tão abrupta. “Se você comenta sobre Cassiano ou Hyldon com os mais novos, eles não reconhecem a referência. Mas os mais velhos sempre lembram das músicas e de baianos como o Hyldon e o Paulo Diniz. As pessoas nunca tinham me ouvido cantar assim”, conclui.

Paraíso da Miragem deve chegar à cena independente com força de aposta: tem patrocínio do programa Natura Musical, que lançou discos de artistas como Marcelo Jeneci,Tulipa Ruiz e Filipe Cordeiro. A produtora do projeto é a mesma do rapper paulistano Criolo. A história dos discos têm algumas semelhanças; Criolo também era conhecido pelo rap, e seu álbum de estreia, Nó na orelha (2011), mostrou releituras de ritmos como o afrobeat, samba e até um bolero. O repertório de Paraíso da Miragem ainda está em definição. Ao menos uma música com influência do dub, ritmo no qual se baseiam seus projetos antecessores, é esperada.Tomara que Paraíso da Miragem chegue para jogar luz numa cena que pode se aproximar ainda mais do eixo de música independente brasileira, e mostrar como é possível “estudar a Bahia do mundo e o mundo pela Bahia”, como Russo gostaria.

Divulgação


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JAMES BLAKE James Blake (2011)

POR APANHADOR Só_

ATLAS A primeira vez que ouvi com atenção o álbum de estreia de James Blake foi no final de 2012, durante a gravação do Antes que tu conte outra. Ouvi despretensiosamente, com uma certa relutância. Demoro pra gostar de coisa nova. Fui arrasadoramente surpreendido. A primeira faixa, “Unluck”, já nos dá uma bela cutucada na mente: começa com um teclado acompanhado por uma linha percussiva aparentemente muito simples, mas que resolve silenciar nos exatos instantes em que estamos começando a nos acostumar com ela. A canção segue com um timbre de teclado único, assim como todos os timbres encontrados no disco. As marcações de tempo são diabólicas, oscilando milimetricamente à frente e atrás da pulsação, causando uma sensação de agonia e outra de maravilhamento puro. A parte vocal é extremamente bem trabalhada, com várias linhas se sobrepondo, sumindo, reaparecendo, sendo subitamente cortadas sem dó, às nossas barbas. E com o Melodyne usado com maestria por um propósito estético. Ao longo das faixas, o ouvinte vai chegando à conclusão de que tudo o que já ouviu até hoje pode ser virado do avesso por esse cara. Assim que conheci esse álbum, automaticamente pensei que o tal James Blake era um senhor beirando os cinquenta anos, de bigode. Talvez porque o meu cérebro só foi capaz de imaginar um cara cancheiro, velho de guerra, para fazer um som tão elegante. Qual não foi a minha surpresa quando fui procurar no Google e me deparei com uma figura imberbe, recém saída de uma fralda? Que guri desgraçado. Fernando Morsch

“There’s a limit to your love Like a waterfall in slow motion Like a map with no ocean There’s a limit to your love” James Blake, na letra de “Limit to Your Love”

Pra quem gosta de: Burial, Airhead, Mount Kimbie, Chet Faker


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CONVERGE All We Love We Leave Behind (2012) Epitaph Lançado em 2012, All We Love We Leave Behind é o mais recente disco de estúdio do Converge. Mesmo fazendo parte de uma cena musical extremamente conservadora, eles nunca se prenderam a um estilo padrão. É perceptível o cuidado da banda durante a gravação: além de ser impecável em questões técnicas (execução, timbragem, mixagem), é um álbum que impressiona por conseguir ser agressivo e delicado, às vezes em uma mesma faixa. Em suma, um dos discos mais sólidos e bem construídos que já escutei. André Zinelli Pra quem gosta de: Napalm Death, The Dilinger Escape Plan, Neurosis, Deafheaven

Curumin Japan Pop Show (2008) Urban Jungle Soando como uma espécie de mosaico harmonioso de timbres das mais variadas texturas, Japan Pop Show revela em Curumin um raro comando artístico e técnico nos arranjos das músicas. Mesmo sem a presença de grandes composições, mas contando com instrumentações variadas e um leque de influências bastante aberto que consegue colar em uma mesma página moderna vários clássicos e novidades, o cantor paulistano se revela um competente e versátil vocalista em suas interpretações ao longo do disco. Alexandre Kumpinski Pra quem gosta de: Lucas Santtana, Cidadão Instigado, Otto

DORIVAL CAYMMI Canções Praieiras (1954) Odeon Com virulência elegante e sabedoria simples, Dorival Caymmi apresenta em Canções Praieiras oito faixas inspiradas na vida e nos costumes de pescadores baianos da primeira metade do século 20. Prezando por uma ótima fruição de sonoridades, com um cuidado que faz com que cada sílaba cantada pareça ter sido escolhida a dedo – e com um vocal firme acompanhado do início ao fim apenas de seu violão gingado e bruto, como que tocado pela própria mão calejada de um pescador – Dorival demonstra domínio total da canção. Coisa de gigante. Alexandre Kumpinski Pra quem gosta de: Eliseth Cardoso, João Bosco, Paulinho da Viola


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Thomas Hawk/cc

A felicidade engarrafada nasceu em 1886 como um analgésico feito para substituir a morfina. Apesar de não fazer dor nenhuma passar, o líquido preto segue viciando multidões sem precisar de agulhas e injeções – e mantendo secreta sua fórmula. Com cocaína na receita até 1903, já era um fenômeno mundial quando Caetano Veloso escreveu o seu primeiro sucesso, “Alegria, Alegria”. A letra cita o refrigerante em meio a um caleidoscópio de cenas ambientadas em uma metrópole brasileira durante a Ditadura Militar. Lançada em 1967, a faixa é um dos marcos do Tropicalismo, que defendia a deglutição de elementos culturais estrangeiros para compor obras que pudessem de fato representar o Brasil daquela época.

__ por Ariel Fagundes

A Tropicália incomodou um núcleo de artistas que, movidos por ideais conservadores, acreditavam que o Brasil deveria preservar sua arte de influências do exterior. No mesmo ano em que saiu “Alegria, Alegria”, aconteceu a Passeata da Música Popular Brasileira (ou Marcha Contra a Guitarra Elétrica). O evento contou com a presença de Gilberto Gil (constrangido e contrariado), Jair Rodrigues e Geraldo Vandré, mas uma de suas lideranças foi Elis Regina.

Além de ser uma das maiores cantoras que o Brasil já viu, Elis ajudou a lançar Tim Maia com um compacto que gravaram juntos em 1969. Tão genial quanto polêmico, o cantor muitas vezes é acusado de homofóbico pela letra de “Vale Tudo”: “só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher”. Nas entrelinhas, entretanto, a música pode ser vista como uma grande ironia contra o conservadorismo hipócrita de uma sociedade que (quase) tudo permite. Em uma das diversas vezes em que o cantor foi pego com drogas pela polícia, em 1988, só foi liberado porque começou a cantar e gays e travestis que frequentavam o bar em frente à delegacia fizeram barulho para que o delegado soltasse Tim ali mesmo.


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Se alguém sabe como é difícil ser um músico famoso gay, é Rob Halford. O vocalista do Judas Priest esperou até 1998 para sair do armário publicamente, aos 47 anos. Depois disso vir à tona, a letra quase pornográfica de “Love Bites” ganhou um significado bem diferente do que alguns metaleiros machistas podem ter interpretado.

cc/flickr.com/people/st3f4n/

“Love Bites” é a quinta faixa do disco Defenders of the Faith, um dos vários grandes álbuns de rock pesado lançados em 1984. A lista inclui Powerslave, do Iron Maiden, Ride the Lightning, do Metallica, 1984, do Van Halen, e o disco de estreia do Red Hot Chili Peppers, homônimo.

Remo Cassella/cc

Lançado em 1949, a obra-prima de George Orwell se imortalizou ao retratar uma realidade controlada por governos autoritários que manipulam a população através de meios de monitoramento constantes e onipresentes. Um dos pontos que o livro aborda é o papel das loterias, um mecanismo de controle social por manter a ilusão de que qualquer pessoa pode ficar rica do dia pra noite sem esforço algum. Quase sempre, isso é mentira.

Em 1936, um comerciante pobre do interior da Bahia engravidou a filha do coronel. Se ele não tivesse ganhado na loteria federal naquele ano, provavelmente a união do casal teria sido perseguida e o filho deles, Antônio, não se tornasse conhecido como nosso querido Tom Zé. No ano passado, ele passou por uma saia-justa: participou de um comercial da Coca-Cola, para a indignação de seus fãs. No fim, doou o cachê e compôs a música“Tribunal do Feicebuqui”, defendendo-se do julgamento.


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Rafael Rocha

Estilingue

PASSO 1: olhe para baixo Ache um pedaço de galho de calibre médio-fino, não muito seco, caído no chão.

Estilingue, atiradeira, fisga ou funda. Foi com ela que Davi matou Golias e que tantos meninos viram a inocência da infância morrer um pouquinho no corpo inanimado de um passarinho. Aqui, o Apanhador Só ensina a fazer uma, não para aniquilar seres voadores, mas como um apontar de dedo médio simbólico. Aos desarmados interessados, eis o que os poderosos chamam de “arma de baixo poder”.

PASSO 2: quebre o galho Procure nele uma bifurcação com o formato da letra Y e serre em um tamanho confortável de se manusear.

apanhador só ensina a fazer a arma primitiva

PASSO 3: descame Se necessário, descasque até alcançar uma madeira lisa e resistente. PASSO 3: fure Perto das pontas superiores, talhe sulcos não muito profundos.

PASSO 4: emborrache Nesses sulcos, amarre dois pedaços de borracha de soro mais ou menos do tamanho do galho usando cordões ou arame. PASSO 5: antes dos nós, o couro Pegue o pedaço de couro de mais ou menos 6cm por 3cm e faça um pequeno furo de cada lado usando uma tesoura. PASSO 6: arremate final Amarre as pontas das borrachas que estão soltas em cada um desses furinhos e aproveite bem seu estilingue.



_foto: Ant么nio Ternura

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NOME_ Tuane Eggers O QUE FAZ_ Fotógrafa UM DISCO_ Chelsea Girl, da Nico “Música e fotografia têm algo em comum: são linguagens universais. Por falarem mais do que palavras, elas podem nos proporcionar sensações intensas. Além disso, também contam com essa capacidade incrível de eternizar momentos e pessoas. Penso que é por isso que a música é algo assim tão especial, inspirador e essencial para mim.





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