Revista Noize #77 - BaianaSystem - Junho 2018

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Quando o sertão da Bahia chega a Salvador, logo encontra a Jamaica, mas também as culturas árabe e hindu. É a partir dessa percepção de que basta

#77 // Ano 12

expediente

uma melodia para dissolver séculos e quilômetros de distância que surge o

Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha

Coordenação de Projetos Jordana Monteiro Júlia D’Ávila Shana Sudbrack Sheila Pinheiro Thaís Martins

Gerente Financeiro Pedro Pares

Atendimento Interno Ingrid Mônaco

Gerente de Planejamento Cássio Konzen

Redação Camila Oliveira Daniela Barbosa Guilherme Flores Marta Karrer Rodrigo Laux Tássia Costa Victória Favero

NOIZE COMUNICAÇÃO

Diretor de Criação Rafael Rocha RH Taisla Heres Diretor de Arte Guilherme Borges Diretor de Arte Jr. Árthur Teixeira Jade Teixeira Lucas Abreu Vitória Proença

Mídia Aline Oelrich Kathiry Veiga

Vídeo Bernardo Winck Maurício Canterle Pedro Krum Shandler Franco

Community Manager Maurício Teixeira Vanessa Castro

Novos Negócios Leandro F. Gonçalves

REVISTA / SITE / NOIZE RECORD CLUB Coordenação de Projeto Karen Rodriguez Editor Ariel Fagundes Repórter Brenda Vidal Community Manager Kelvin Furtado

NOIZE FUZZ

O projeto já nasce ressignificando a tradição e a elevando a uma dimensão cósmica. Por isso, um neon sintético afrofuturista reluz sobre o lado A da revista, em que contamos a história do disco BaianaSystem. Aqui, também mergulhamos no samba-reggae, patrimônio da Bahia que vem dos tambores dos guetos e, hoje, é remixado pelos DJs nas

Planejamento Bernardo Costa Carolina Santos Eduardo Mello Julia Brito Juliano Mosena Luan Pires Mickael Prass

Produção Dani de Mendonça

Foto Mell Helade

BaianaSystem.

pistas. Já no lado B, buscamos a ancestralidade, narrando em fotos o processo artesanal de fabricação das máscaras do grupo e conversando com Roberto Mendes sobre a riqueza da cultura popular. Além disso, apresentamos Josyara, artista que leva

GRITO

o Recôncavo Baiano para novos espaços e

Gerente de Planejamento Marcel Maineri

a própria banda indica discos, livros e filmes e Russo Passapusso e Beto Barreto

Coordenação de Projetos Carolina Farias

refletem sobre o poder do canto falado e

Assistente de Projetos Helena de Oliveira

a força da guitarra baiana.

Planejamento Matheus Barbosa

A Arte do BaianaSystem se ergue sobre

Redação Camila Benvegnú Jéssica Teles Pedro Veloso

uma Pangeia de símbolos, onde os continentes são todos um. Embarque em

NOIZE BOOST

um frevofoguete e viaje nesse mundo com

boost@boost.mn boost.mn

as páginas seguintes.

Editor Gustavo Brigatti Joana Barboza Leonardo Baldessarelli

Ariel Fagundes

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co la bo ra do res

noize.com.br

Brenda Vidal Quase jornalista vivendo sempre

Camila Oliveira

em um ritmo frenético que só a música consegue acompanhar.

Constantemente procurando

Apaixonada por cultura, arte e

sentidos para virar do avesso. No

negritude.

resto do tempo, usa o jornalismo pra ouvir (e contar) umas histórias.

BaianaSystem Leonardo Baldessarelli

Unindo a guitarra baiana à cultura do soundsystem, é um projeto que

Jornalista e publicitário. Fã do

atua como um sistema aberto.

bizarro, do surpreendente e do

Muitos artistas se conectam à

mentiroso - ainda não se sabe

obra coletiva do Baiana, mas seu

se isso é bom ou ruim, mas segue

núcleo central é composto por Beto

confundindo a vida e a música

Barreto, Russo Passapusso, Marcelo

como uma coisa só.

Sekobass e Filipe Cartaxo. Aqui, eles refletem sobre o poder do canto, o futuro da guitarra baiana e ainda ensinam a fazer uma festa de rua.

Marcelo Ricardo Bacharel em Humanidades (IHAC - UFBA) e graduando em Comunicação pela FACOM - UFBA. É poeta, contista e cronista. 5A


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_Texto por Marcelo Ricardo _ Fotos por Lázaro Roberto/Acervo Zumvi _ Arte por Lucas Abreu

Percussionista do Ilê Aiyê no Campo Grande em 1992

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Que bloco é esse? Até os anos 1970, o carnaval baiano era marcado por trios elétricos que tocavam principalmente frevo e por blocos de temática indígena. Mas, na virada para a década de 80, uma revolução aconteceu. Nesse momento, uma onda de blocos afro levou para as ruas uma nova sonoridade que unia o samba, o reggae e os ritmos tradicionais dos ritos do candomblé. As letras de suas músicas resgatavam a história da África e as problemáticas de negros negra. Grupos como o Muzenza, Ara Ketu, Olodum, Malê Debalê e Ilê Ayê surgiram chamando bastante atenção e provocando reações diversas. A Ditadura Militar da época, por exemplo, os acusou de subversivos pela inspiração que declaradamente traziam do movimento negro dos Estados Unidos. A mídia local também não os viu com bons olhos. No dia 12 de fevereiro de 1975, o jornal chegou a publicar uma nota que começava assim: “Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: ‘Mundo Negro’, ‘Black Power’, ‘Negro Para Você’, etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de ‘Bloco do Racismo’, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval”. O jornal não entendeu, mas o público não demorou para se entregar aos novos ritmos que esses grupos trouxeram. Em pouco tempo, a batida do samba-reggae mudaria a história da Bahia e da música brasileira.

“Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu, foi a música que o Ilê Aiyê entoou na sua primeira apresentação de carnaval, em 1975. Formado em 1974 no bairro Liberdade e considerado um dos blocos afro mais antigos da Bahia, o Ilê inspirou muitos outros. Usando o repique com apenas uma baqueta, seu ritmo característico surgiu de uma mistura do samba com o ijexá, batida comum nos terreiros de candomblé. “Saíamos do Curuzu com uma percussão potente. Em nosso mos o tema do povo Tútsis [de Ruanda] para a valorização de nossa história”, conta Antônio Carlos dos Santos, conhecido como Vovô do Ilê, um dos fundadores do bloco. Em 1979, uma dissidência da diretoria do Ilê migrou para o Pelourinho e criou o Olodum. Entre eles, estava Neguinho do Samba, considerado por alguns teóricos como o artista que foi capaz de sistematizar o samba-reggae como gênero musical. Em um primeiro momento, o grupo não fez tanto sucesso, mobilização no bairro e começaram a praticar o ritmo do samba-reggae criando uma escola de percussão, o que fortaleceu o grupo. Em 1984, o Ilê Ayê lançou seu primeiro disco, Canto Negro. Em 1987, Ara Ketu gravou seu LP homônimo de estreia, o mesmo ano em que o Olodum fez seu primeiro álbum, Egito Madagáscar. Os primeiros anos de samba-reggae foram nas ruas, mas fenômeno, essa sonoridade começou a se expandir.

Desfile carnavalesco do Malê Debalê em 2000

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Dos guetos para o mundo Cada bloco sempre possuiu as suas peculiaridades, o que faz do samba-reggae um termo amplo que permite descrever uma série de variações rítmicas. O Ara Ketu, por exemplo, evidenciava o uso do aguidavi (varetas) como tocado no candomblé Muzenza investia mais no reggae misturado ao samba. “Existiam muitas similaridades, entretanto, as diferenças criavam blocos afros complementares”, ressalta Carlos Barros, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e professor de História, Sociologia e Antropologia. Um dos blocos afros mais representativos daquela época foi o Badauê, que trazia a público elementos dos rituais do candomblé. As vivências nos terreiros era muito importante para boa parte das pessoas envolvidas naquele movimento. Muitos dos percussionistas também atuavam como ogans, os músicos responsáveis pela orquestra que convida a chegada dos orixás nos ritos. O Ilê, inclusive, nasce sob os cuidados da yalorixá Mãe nhava as saídas do bloco. Goli Guerreiro, Pós-Doutora em Antropologia que modelou o conceito da Terceira trocas culturais pós-internet), aponta o samba-reggae como um elemento histórico na música brasileira prin-

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cipalmente “pela celebração das culturas negras”: “Seus cularizavam um conceito descolonizado sobre a África - A África estava sendo celebrada nos tambores, nas letras das canções, nas danças, nas indumentárias, no uso das línguas bantu e através dos blocos afros como a maior cidade negra fora da África - destaca Goli. Segundo a teórica, esse processo se impôs como um movimento complexo de não somente nos carnavais, mas na consciência da população: - Não se trata de um ritmo do passado. Quem andar pelas cidades de Salvador, vai ouvir canções dos blocos afros. É possível pensar o gênero como um elemento da Terceira Diáspora a partir de um circuito de comunicação virtual entre comunidades elaboradas pelo Atlântico Negro do século 21. É provável que tenhamos bandas de samba-reggae em outras cidades atlânticas tocando um hit do Olodum nesse momento. É notável como o Olodum se tornou um grande expoente do ritmo. Em 1990, Paul Simon chamou o bloco para tocar com ele “The Obvious Child”, do disco . Seis anos depois, o grupo gravaria o videoclipe de “They Don’t Care About Us” ao lado do rei da música pop, Michael projeção internacional. Neguinho do Samba no Pelourinho em 1987

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Ala dos Rastafári - Campo Grande, Salvador. 1991 Filhos de Gandhy - Pelourinho, Salvador. 1990

A máquina do Axé É na virada dos anos 1980 para os 90 que começou a se estruturar um mercado ao redor dessa nova estética. As bandas que tocavam nos trios elétricos estavam atentas ao movimento dos blocos afro e logo incorporaram o estilo. Unindo um aparato pop ao samba-reggae, os trios eletrizaram canções que tinham sido produzidas nos guetos de Salvador por grupos como Muzenza, Ilê Ayê, etc.

Campo Grande, Salvador. 1993 carnavalesco do Ilê Aiyê - Liberdade, Salvador. 1992

como um encontro dos trios elétricos com os blocos afros. Atraído pela visibilidade e inovação musical do samba-reggae, o Axé usava esse ritmo como base passível de remodelação.

- Pelourinho, Salvador. 1989

de ser o eixo central e, ao ser uma música voltada exclusivamente para o entretenimento, o Axé se tornou um fenômeno comercial. Chiclete com Banana, Cheiro de Amor e Banda Beijo foram pioneiros desse processo, mas foi depois que Daniela Mercury se lançou, em 1991, que o Axé realmente se espalhou por todo Brasil. “O Axé Music foi um recurso usado por empresários que souberam usar a musicalidade como mercadoria. Por isso, em todo carnaval temos o dilema de qual é ‘o hit do ano’”, comenta o sociólogo Carlos Barros.

Baixa, Salvador. 1990 Rastafári - Plataforma, Salvador. 1992 Salvador. 1997 Pelourinho, Salvador. 1989

Axé ganhou espaço ao mesmo tempo em que os blocos afros deixaram de ser notícia. Além disso, é através do seu mercado que se instaura a seletividade das festas de rua, os camarotes estádios de futebol. Na opinião do Vovô do Ilê, a Bahia é um dos estados mais racistas do Brasil. Ele aponta que isso se relaciona à uma distopia enfrentada dentro do mercado carnavalesco: os blocos afro, hoje, vivem no beiral dos editais públicos e dependendo dos convites de cantores de Axé Music para se sustentarem. 14A


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Batucada nas pistas

e fazendo uma homenagem. É um agradecimento a tudo que vi na infância. Por isso, a ideia de repaginar, para que não seja esquecido. Não estou inventando a roda, estou inserido uma galera em um contexto. Minha vontade era realizar uma homenagem ao que os blocos de samba-reg-

Com a explosão de novas estéticas musicais, a partir dos anos 2000, o Axé deixa de ocupar o espaço que teve no cenário nacional, porém o samba-reggae em si nunca morreu. Hoje, ele tem se fundido muito com a cena da música eletrônica baiana. Em 2014, a partir do lançamento da coletânea Bahia Bass, surge o que pode ser considerado um movimento

fazer um tributo para mostrar a harmonia que há [entre os sons eletrônicos] e os ritmos da Bahia. O que eu faço não é só um beat ou um remix, considero que a percussão dos blocos afros é o que importa! Não há dúvidas de que o samba-reggae segue em transformação porque é eterno. Essa música ampla, que descreve uma série de ritmos criados simultaneamente por vários grupos dentro de um contexto de efervescência musical em Salvador entre os

redor de um estudo de beats e remixes das batidas que nasceram dos blocos afro. Quem organizou o lançamento dos três volumes dessa co-

como Atooxxá, Lord Breu, A.MA.SSA. e vários outros. Telefunksoul acredita que os blocos afros começaram a ser esquecidos e conta que queria recriar nas pistas uma sensação que tinha quando assista aos blocos afro. “Nasci na Liberdade, perto do Ilê, e tínhamos uma interação quase familiar com o bloco. O Muzenza saía da minha rua”, conta Telefunksoul: - Por isso, quando chamo um percussionista para gravar, estou avivando minha memória

desde o rock d’Os Paralamas do Sucesso até o pop experimental de David Byrne passando pelo pagode do É O Tchan. Só a Bahia mesmo para conseguir isso. * Agradecimentos especiais há 24 anos registrando comunidades negras da Bahia. Folião do Ilê Aiyê no Campo Grande, em 1990

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noize.com.br O quebra-cabeça sem forma do BaianaSystem

texto por Ariel Fagundes fotos por Rafael Rocha

“A gente chegou lá desacreditados”, lembra Russo Passapusso, sério, sem tirar do colo o violão que lhe serve de brinquedo. A noite já caiu há horas em Salvador e a nossa conversa está agora em outubro de 2010, quando o BaianaSystem lançou seu disco homônimo de estreia pela primeira vez fora do país. Foi nessa viagem a Xangai, na China, que eles tiveram a ideia de distribuir máscaras para o público, como conta Russo: 19A


- Quando olhamos para os chineses, cara… Era um usar de máscara que eu nunca tinha visto na vida. Foi a primeira vez que caiu

O quebra-cabeça sem forma do BaianaSystem

botar a máscara... É o não-lugar, a não-pessoa, ao mesmo tempo em que aparece uma personalidade muito forte no ar, que se

de que a gente não é uma banda, é um assunto. A máscara é uma representação disso e o som também. Foi preciso ver o outro lado do mundo para que o BaianaSystem começasse a entender a dimensão universal que seu trabalho podia ter. Roberto Barreto, Marcelo Sekobass, Filipe Cartaxo e Russo, que formam o núcleo central do projeto, tiveram ali o primeiro vislumbre do furacão que o grupo sentiria na pele (e provocaria na música brasileira) nos anos seguintes. Após um longo percurso que passa pelo fortalecimento de cenas alternativas dentro e fora do contexto carnavalesco e pela formação de um público gigantesco que foi arrebatado pela catarse que se instala nos shows e pelo segundo disco, o elogiadíssimo Duas Cidades (2016), hoje, não há dúvida de que o BaianaSystem é um dos maiores e mais importantes nomes da música nacional. Nos últimos anos, tocou em países como Rússia, Dinamarca, importantes como o Prêmio da Música Brasileira e o Prêmio Multishow; teve uma faixa sua incluída na trilha sonora do game Fifa 2016. Em 2009, quando tudo começou, ninguém imaginou que isso poderia acontecer. Sob a benção de Ramiro Para entender o nascimento do BaianaSystem, primeiro é preciso conhecer o seu idealizador, Roberto Barreto. Nascido em Salvador, hoje com 46 anos, Beto cresceu em um lar onde a música era a lei. Ele morava ao lado da casa de Dorival Caymmi, o músico Walter Queiroz era seu padrinho e, nos anos 1960, seu época. Beth Carvalho e Luiz Melodia frequentavam as rodas de samba que aconteciam na sua casa e, desde os 13 anos, Beto já como uma guitarra baiana e a entrar de cabeça nesse mundo de onde nunca mais saiu. Em 1996, aos 24, entrou no Timbalada, grupo do qual fez parte por quase seis anos. Depois disso, lançou o Lampirônicos, que chegou a gravar três discos. No primeiro deles, Que Luz é Essa? (2001), Beto gravou uma versão de “Forró dos Dois Irmãos”, de Edimilson do Pífano, que era apresentada ao vivo em um medley com “Pipoca Moderna”, da Banda de

Pífanos de Caruaru. Ele não sabia, mas Ramiro Musotto também juntava essas duas músicas nos seus shows. Nos anos 2000, Ramiro já era bem conhecido. O músico argentino morava no Brasil há muito tempo e havia sido responsável por uma revolução na sonoridade da música baiana. Foi ele quem fez o beat de “Haiti”, que Caetano Veloso e Gilberto Gil lançaram no disco (1993), e seu trabalho apareceu também em faixas de Daniela Mercury, Gal Costa, Lulu Santos, Skank, Titãs, Os Paralamas do Sucesso, e muitos outros. “Os toques de berimbau são seculares, mas você pode encaixá-los num trance ou num dubwise. Ramiro foi o primeiro grande expoente disso ao pegar uma linguagem crua e botar um tempero sintético”, explica o percussionista Ícaro Sá, que fazia parte da banda de Ramiro, a Afrosudaka. Musotto o convidou a tocar com ele em um show e rapidamente nasceu um vínculo profundo entre eles. Logo, Beto virou membro de sua banda e foi nesse momento, em 2008, que começou a escrever o que viriam a ser as primeiras músicas do BaianaSystem. “Algumas composições começaram a ter uma cara e eu mostrei a Seko, que começou a pré-produção em estúdio”, lembra Beto. Sekobass já era próximo de Beto, com quem tocava no Lampirônicos. Além de ter uma grande versatilidade, por já ter tocado com muitos artistas, o baixista tinha experiência com produção musical desde os anos 1990, quando trabalhou com o músico Gerônimo, que é seu primo. Em um estúdio caseiro com poucos recursos, Beto e Seko começaram a germinar o embrião instrumental do BaianaSystem tendo Ramiro como guia. A simbiose entre sonoridades orgânicas da cultura popular e programações eletrônicas já norteava o trabalho deles. Mas, até então, faltava um dos principais ingredientes que eles queriam trazer para seu coquetel: a sonoridade o soundsystem de lá era como um trio elétrico”, comenta Filipe Cartaxo, irmão de Beto e responsável por toda identidade visual do grupo. “E o nome BaianaSystem vem justamente por causa da união da guitarra baiana com a cultura do soundsystem”, lembra Beto. Nascido em Feira de Santana, ele vivia em Salvador desde adolescente e, apesar de ter começado a estudar Publicidade e de ter entrado de cabeça no mundo do rádio, tendo inclusive feito parte de uma rádio comunitária em Itinga, na periferia de Salvador, Russo sempre dedicou sua vida ao estudo da música. Quando se mudou para o bairro Boca do Rio, com uns 19 anos, criou 20A


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_ Texto por Ariel Fagundes _ Fotos por Rafael Rocha

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“A máscara é o que tá escondido at rás da máscara” R u s s o . . . . . . . . . . . P a s s a p u s s o

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O quebra-cabeรงa sem forma do BaianaSystem


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um núcleo de amigos que também eram pesquisadores e, com eles, formou em 2005 o primeiro soundsystem ambulante da cidade, o Ministereo Público. “Rodamos 24 comunidades em Salvador sem apoio de nada”, lembra Regivan Rodrigues, um dos fundadores do Ministereo e, hoje, técnico de som do BaianaSystem. “A casa de Russo era o Dubcílio. Não tinha rango, a gente comia cream cracker, tomava água e estudava dub”, conta Regivan. Nos anos seguintes, o soundsystem deles chamou bastante atenção e foi através de suas apresentações que Beto conheceu Russo, na

A sintetização do DNA A partida súbita de Musotto veio como uma provação que poteceu o contrário: Ramiro se tornou uma entidade onipresente no trabalho deles. Como um guia espiritual, é ate hoje fonte de 25A

produtor de rock bem conhecido de Salvador, e Chico Correa, ros shows do Baiana, colaboraram na gravação e mixagem de algumas faixas; o produtor pernambucano Buguinha fez as versões dub; Roberto Mendes, Gerônimo, BNegão e Lucas Santtana cantaram; Emanuel Venâncio gravou baterias; Toni Duarte e Oliveira, tabla; Mamá Soares e Kaboduca gravaram percussões. “Começamos a pensar na ideia de ‘system’, que inicialmente era muito ligada ao soundsystem, também como um sistema matemático em que isso mais isso é igual aquilo”, comenta Beto. Desde as primeiras gravações, o grupo se tornou um polo agregador de artistas. “Quando comecei a tocar em cima da base da guitarra, estava imaginando na minha mente um monte de índios pulando”, lembra o percussionista Kaboduca retornando a meados de 2009, quando gravou o disco: “Aí, do nada, os três [Beto, Russo e Seko] começaram a pular! Porra, bicho! Foi amor à primeira vista. Fui lá gravar uma música e gravei umas quatro”, diz. segundo descreve Beto, mas extremamente ousado, usando a simplicidade a seu favor e pontuando as provocações artísticas época, a banda não tinha os formatos das músicas fechados, então muitas das faixas foram verdadeiros experimentos e o processo de produzi-las foi decisivo para o entendimento do que é o BaianaSystem, esse organismo vivo, mutante e incontrolável. sa de musicalidade oriental, Beto chegou às melodias sertanejas, [saiba mais nas páginas 28A e 29A]. - As preciosidades do primeiro disco foram encontradas dentro de um conceito de insegurança e imperfeição, mas de grande toda fé de Ramiro na gente e toda minha cobrança em relação ao sertão que eu abandonei e queria retratar. Não sabíamos o que era ainda, mas sentíamos uma fé conceitual. A gente queria fazer o avesso de tudo que faliu, de tudo que nos fazia perder avesso - diz Russo.

_ Texto por Ariel Fagundes _ Fotos por Rafael Rocha

Os músicos do Baiana contam que Ramiro Musotto se empolgou muito com a chegada de Russo ao projeto. “Quando conheci Beto, ele estava vivendo esse processo do Ramiro a fundo”, conta Russo, “Beto me levou lá e o melhor momento da minha vida em Salvador foi quando entrei na casa de Ramiro”. Isso foi no início de 2009, quando Ramiro já estava trabalhando em “Da Calçada pro Lobato” e “Systema Fobica”, faixas que iriam ser produzidas por ele. - A coisa ferveu tanto, ia ser tão forte, ele ia fazer as programações, ajudar a gente, já estava tudo direcionado. Ele estava dando a benção para o Baiana. Aí, quando vou lá pela segunda vez, Ramiro não pode porque tá doente. Na terceira vez, também não pode. Daqui a pouco, Beto me avisa: “Ramiro se foi” - lembra Russo, ainda atônito. De fato, no ano de 2009, tudo aconteceu muito rápido para eles: em janeiro, Beto e Seko começaram a trabalhar nas faixas; no dia 2 de fevereiro, durante as festas do Dia de Iemanjá, o BaianaSystem, já com Russo, fez seu primeiro show, ainda de forma bem experimental; a produção do álbum avançou nos meses seguintes; e, no dia 11 de setembro, Ramiro Musotto morreu devido a um câncer no estômago. “Em julho, ele falou pra mim: ‘Beto, não vou poder fazer essas bases, já sei que esse disco vai ser foda, faça e, depois, a gente faz outra coisa’. Dois meses depois, ele faleceu”, conta Barreto. - Fico pensando: e se Ramiro estivesse vivo? Ele era um mentor, tudo o que a gente prega hoje sobre quebrar conceitos, era dele. Era o cara que estava dando pra gente o caminho do desapego da música experimental. É como se ele quisesse nos passar uma visão antes de abandonar esse estágio - comenta Russo.

inspiração eterna e o primeiro disco saiu com uma dedicatória especial a ele no encarte. O orçamento para a gravação do álbum era nulo e a banda con-


Por trás das máscaras “Desde o início, a coisa tomava uma outra forma porque já tinha uma imagem pensada pra aquilo”, diz Beto sobre o trabalho de Filipe Cartaxo. A parceria dos irmãos já havia começado por volta de 2007, quando Filipe fez a identidade visual do programa Rádio África, que Beto produzia na emissora baiana Educadora

música. Não é o produto, é o processo. A gente pegou a música e colocou ela prostrada em uma entidade outra, que é esse con-

Nas trincheiras da alegria agem as migrações, as separações que demarcam a convivência

que seria o BaianaSystem, eu já mandava umas melodias e ele já fazia estudos do desenho da guitarra”, lembra Beto.

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de Design que Cartaxo estava fazendo na Universidade Federal da Bahia e ele lembra: - Os estudantes de lá, nos anos 1970, faziam as pinturas da

aplicando ao projeto do Baiana. Assim como o trabalho de Beto essa memória que foi se perdendo, essa estética da festa de largo - explica Cartaxo, cujo trabalho de conclusão de curso foi a identidade visual do BaianaSystem. Até hoje, ele é responsável por todo conceito imagético do grupo. É Cartaxo quem coordena a criação de todas fotos, vídeos, projeções e, claro, das máscaras que se tornaram um dos principais símbolos da banda [veja como elas são feitas nas páginas 12B a 17B]. - No começo, eu achava que a máscara era a presença eletrônica de um ser indomável que a gente não controlava. Tomávamos choques dos equipamentos e o eletrônico é esse outro elemento que se apossa de nós e faz tudo acontecer. Mas, quando fomos pra Xangai, vi que a máscara é mais do que isso. A máscara não é som, também não é imagem, ela é o que tá escondido atrás da máscara. É o que as pessoas não querem dizer, é o que não está - conceitua Russo. “O BaianaSystem é mais isso aqui [essa conversa que estamos tendo] do que o que a gente toca”, provoca Russo. “Se você nos ver tocando, vai gostar da música, demarcar nosso som, ver um cara gritando e pronto”, ironiza. “Somos um quebra-cabeça sem forma. Dentro do Baiana, tem pessoas muito diferentes, mas tem

valor das sabedorias ancestrais e das novas tecnologias que surda vida no planeta Terra e conecta todas expressões artísticas - tudo isso são apenas fragmentos do que o BaianaSystem se propõe a provocar e não apenas com sua música. Desde 2010, a banda se apresenta em trios elétricos no carnaval. Essa festa, até por causa da importância que tem para o mercado musical baiano, é o palco de uma batalha sazonal que o grupo encara todo ano. Hoje, o trio deles chamado Navio Pirata navega em um mar de gente, mas não era assim: - O Baiana não surge com público. No início, tinha pouquíssima gente atrás do trio, mesmo. O público que estava na rua nos mandava embora, não curtia. O primeiro ano foi doloroso, era uma militância do avesso - diz Russo. Demorou uns quatro anos, mas o avesso se tornou um sucesso. Partindo da ideia de levar a guitarra baiana para outros espaços unindo-a à cultura dos mosaicos sonoros dos soundsystems, Beto Barreto acendeu um pavio que nem sabia aonde ia dar. O projeto despretensioso que formou com Russo, Seko e Filipe, inspirado por Ramiro Musotto e contando com o apoio de uma rede de artistas, se tornou um fenômeno de público e uma pedra nas engrenagens da indústria cultural. A longa conversa que tivemos em uma noite quente de Salvador aconteceu durante a produção do terceiro disco da banda. Segundo Russo, o Baiana está passando agora por algo parecido com o que viveu no seu início. “Percebo o mesmo processo, estamos partindo de uma monstruosidade, de uma imperfeição, de um desencaixe, de um ponto solto, de uma sobra, de um grito”, diz. Até hoje, a pergunta que Lucas Santtana fez na faixa “Frevo carnavais? Ninguém sabe, mas com certeza, de uma forma ou de outra, o legado do BaianaSystem estará presente neles.

local-global/global-local”, diz Russo, que segue: - E a única coisa em que concordamos é que há algo maior que é a Arte. A Arte sem expressão, a Arte sem quadro, a Arte sem 26A


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BaianaSystem faixa a faixa Beto Barreto e Russo Passapusso desvelam as camadas de cada música desse álbum que traz aromas da Jamaica e a sabedoria dos desertos árabes e sertanejos.

Lado A 1) Nesse Mundo “É a primeira composição de guitarra baiana dentro do que seria o Baiana. Ela me passa uma coisa bem árabe e isso se mistura com as melodias do sertão. A ideia da participação de Roberto Menes foi pela referência de samba chula e viola. Chamamos pela fala que ele tem, de como ele entende a forma de cantar”, Beto. “Sem perceber, Roberto trabalha ali com dub poetry. Sempre buscamos referências da música jamaicana, mas ali foi uma coisa inerente, Roberto acabou cantando muito parecido aquela sonoridade através da pesquisa de etimologia e ancestralidade”, Russo. 2) Oxe, Como Era Doce “Eu só tinha a melodia da abertura. Quando mostrei pro Russo, numa das primeiras vezes em que sentamos pra fazer algo, foi incrível porque, muito rápido, a ideia do sertão já veio e ele fez uma história inteira ali”, Beto. “O trovadorismo e o berrante

vêm da coisa desértica e melodias arabescas e do sertão se parecem como se os continentes fossem juntos. Comecei a perceber essa sabedoria universal e me entendi como identidade disso. Vim do interior querendo dialogar com Yellowman, Shaentramos num minimalismo, terminando a faixa em um processo embrionário. Aqui, a guitarra baiana me mostrou que poderia assumir outras formas, entendi ela pela primeira vez ela como outra pessoa que cantava comigo”, Russo. 3) Da Calçada pro Lobato “Em 2007, Mestre Vieira e Pio Lobato vieram para Salvador falar pro Lobato’. São dois bairros de Salvador e, ao mesmo tempo, foi para o Pio Lobato. A gente chamou o Gerônimo pra participar porque tinha muito a ver com esse universo de lambada, da América Central. Seko é primo dele e tocou com ele muito tempo. Outra coisa é que Ramiro [Musotto], quando ouviu, disse: “Essa que eu quero fazer a programação de base”, Beto 28A


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4) Amerikha Expressa “Eu já tinha gravado no Lampirônicos, é a mais antiga. Fiz quando a gente morava em São Paulo e precisava voltar pra Salvador, mas não tinha dinheiro. Ficou

5) Jah Jah Revolta “Essa já existia, Russo cantava no Ministereo Público e já emocionava todo mundo!”, Beto. “É a primeira vez que o Baiana sai do imaginário tradicional de ditados populares, de construções contemplativas, para um ambiente social, do ônibus, da rua. Foi o primeiro entendimento urbano em relação a escrever uma poética que também tivesse conto. Vivi uma história que teve um tiroteio dentro do ônibus e, pra mim, o ônibus era muito agente de é aquela lata de metal. E tem uma relação muito forte com o samba-reggae em uma visão minimalista. Seria um samba-ragga, um samba-ragga-repente? Vai desconstruindo isso tudo. E começou ali a ponta da distorção. Tem muito a ver com antropofagia, com o interior da Bahia em Salvador, com o canto do sertão, o grito, essa pre-

6) Vinheta Baiana “Essa eu não sabia como desenvolver. Era uma peça feita sem distorção, com essa ali, só uma frequência rítmica. Aí teve a participação de Letieres Leite, que é uma referência enorme. O mais lógico seria uma participação dele tocando sax ou mos. Ele levou pra gravação vários caxixis enormes e saiu tocando”, Beto.

Lado B 1) Frevo Foguete Dub “Esse nome é em homenagem ao Retrofoguetes, uma banda de surf music. É um frevo bem tradicional, tem Betinho [Macedo], baixista do Dodo e Osmar, e é a única do disco que tem um guitarrão [termo baiano usado em oposição à guitarra baiana]. Sugerimos pro Buguinha fazer um dub de frevo porque era inusitado e primeiras simbioses de ritmos foram nessa faixa. Buguinha é um cara que tem a visão de que o dub pode ser colocado em qualquer história e essa foi uma das primeiras Santtana trouxe imagens de um sistema relacionado às estrelas e foi importante retratar a noite, a Bahia de noite é pouco vista”, Russo. 2) Barra Avenida “Flertávamos muito com frevo, que era a célula inicial da guitarra baiana, e Chico Correa transformou em um reggae minimal. Muito da evolução do Baiana vem os mundos tinham a ver e como eles se 29A

abriam. Colocar o reggae com o frevo é você misturar movimentos da rua e do carnaval que não tinham conversação nenhuma. ‘Pode tudo’, era o que a gente estava querendo dizer ali”, Russo. 3) Systema Fobica (Ubaranamaralina) “Essa vem da ideia de achar riddims que tivessem a ver. Uso a base de ‘Cassius Klay’, de Dennis Alcapone, e cito ‘Eu Sou o Carnaval’, um clássico de Moraes Moreira e Antonio Risério. Era a outra música que do quando BNegão gravaria. Aí ele veio tocar em Salvador, esperei acabar o show, fomos para o estúdio sem a letra, ele gravou e saiu pra viajar”, Beto. “Umbarana é o nome inicial do bairro de Amaralina. ‘Guitarra tem pedal, tem samba-reggae no beat’, comecei a descrever o que estávamos fazendo para as pessoas entenderem. ‘Adrenalina, melanina e dendê’ foi a priparceria com BNegão foi a glória da minha vida”, Russo. 4) Bembadub “Russo já brincava com essa onda de ‘Bemba Style’ no Ministereo, ‘bemba’ de ‘bem baiano’. Eu tinha o tema e essa programação acabou sendo feita por André T., Russo ouviu já na hora de gravar voz. Era uma vinhetinha, que faltava pra fechar o disco. A gente achou que fez mais sentido essa ordem do vinil do que o entendimento de canção de Beto e onde eu poderia dialogar. De novo, volta pra referência de melodias árabes, totalmente nordestinas. Ele estava sendo sertanejo por ser árabe, uma coisa de DNA”, Russo.

_ Texto por Ariel Fagundes

música, perguntaram o nome, e eu: “Ah, Amerikha Expressa”. Depois, precisávamos de composições na guitarra baiana e regravamos. Foi difícil juntar a tabla com o beat porque a tabla se toca muito solta né, Seko que produziu e construiu esse universo”, Beto. “Beto vinha com essas informações árabes, indianas. Não estávamos focados em entender isso como uma busca cíclica de melodia, de meditação, mas estava muito claro ali. E o nome da música me atira pra impossibilidade, locomoção, especulação e todo o assunto da da migração”, Russo.

sença que, depois, comecei a perceber que era uma atitude do rock n’ roll”, Russo.




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cipalmente na área da percussão, de

do mundo, ter um instrumento criado,

instrumentos que foram criados e/ou

projetado e produzido em um determinado

adaptados e que se incorporaram à cul-

local, que seja utilizado para expres-

tura local, criando uma identidade. No

sar sua música, criando com isso uma

geral, foram instrumentos que já exis-

sonoridade específica, que traga ele-

tiam e que foram incorporados à nossa

mentos que ajudem a traduzir e contar

música, com exceção de um: a guitarra

um pouco da história desse lugar. Na

baiana”.

Bahia, temos muitos exemplos, prin-

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_Texto por Roberto Barreto_Arte por Guilherme Nerd

“É um privilégio, em qualquer lugar


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Assim começava o texto “O que é que a Baiana tem?” escrito em 2007, no início das minhas experimentações com um novo trabalho baseado na guitarra baiana, e que viria a se chamar BaianaSystem. Um projeto que partia de questionamentos e entendimentos de todo o universo que esse instrumento levantava na minha formação e memória musical. Esse mesmo texto acabou sendo um ponto de

referência estavam se maturando e chegamos a tocar algumas das faixas que estariam no disco num histórico carnaval em 2009 com o trio elétrico da Afrosudaka, que era a orquestra percussiva de Ramiro.

E, nesse período, outra coisa me chamava a atenção: Ramiro Musotto. O músico estava viajando o mundo consolidando seu segundo álbum - o fundamental Civilização e Barbarye (2006) - baseado em sua pesquisa com percussão baiana e berimbau. Tanto no disco quanto no show, vale destacar a presença marcante de seu compatriota e amigo Mintcho Garramone, que tocava guitarra baiana de maneira incrível e acabou desenvolvendo um trabalho baseado no instrumento. Segundo as palavras do próprio Ramiro, um instrumento que “não era mais tocado em Salvador, com a exceção dos criadores do trio elétrico”. Ele dizia: “Papito, no meu trabalho não entra guitarrão. Isso tem em todo lugar. Aqui só original: berimbau e guitarra baiana!”. E, aqui, vale uma breve explicação, só pra situar: “guitarrão” é uma expressão usada

Quando o BaianaSystem começa a tocar o disco de estreia ao vivo, em seus primeiros shows no Pelourinho, Teatro Vila Velha, carnaval e, logo em seguida, uma inusitada viagem para a China, começamos a perceber que a guitarra baiana, assim como a máscara e a forma com que Russo cantava e achava espaços no diálogo com ela, trazia uma identidade e aproximava as pessoas daquele universo. Tínhamos sonoridades à guitarra baiana dentro daquele ambiente que estávamos construindo sem que isso se tornasse necessariamente uma bandeira. A partir do momento em que conseguíssemos dar naturalidade ao fato de estarmos usando um instrumento com tanta tradição num trabalho autoral que dialogava com pop, reggae, eletrônico, trazendo-o para um novo cenário de música que vinha sendo produzida em muitas partes do mundo, conseguiríamos preservar verdadeiramente sua história.

e diferenciar da guitarrinha, ou guitarra baiana, como depois passou a ser chamada como um bandolim. Considero o trabalho de Ramiro essencial e revolucionário para a música produzida na Bahia. Sua mistura de instrumentos orgânicos com impecáveis bases e prograda guitarra baiana nesse contexto, abriu um novo caminho. papel da guitarrinha crescia cada vez mais. Nesse período, as novas composições que vinha fazendo com toda essa

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A guitarra baiana foi efetivamente meu primeiro instrumento (na verdade, foi um tal) e sua característica essencialmente melódica ajudou a construir uma linguagem e um sotaque bem próprios que, acredito, fez parte da formação de muitos guitarristas daqui. Essa linguagem vai além do instrumento em si e passa por elementos fundamentais da música brasileira como o chorinho, frevo, samba e baião. Voltando aos questionamentos do inicio do texto e pensando sobre a contribuição desse e de qualquer outro instrumento para sua cultura, entendo que as experimentações e mudanças de paradigmas são essências para mantê-los vivos, evolutivos e distantes de um lugar somente no museu. O movimento os torna transformadores e recriadores de sua cultura.


por Russo Passapusso

o retrato falado de um canto

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trânsito de palavras e sotaques migrando pra outras convivências podem quebrar ou criar rótulos.

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_Texto por Russo Passapusso _ Arte por Vitória Proença

O canto falado grita que somos todos instrumentos musicais tocando as nossas cordas vocais. Grita também que, em todos os cantos do mundo, temos registros sonoros que nos unem pelo sentimento. Não é muito difícil encontrar musicas gêmeas em regiões distantes, separadas na maternidade, adormecidas dentro de nossas memórias genéticas. Ouvir o mestre Bule-Bule contando histórias é o mesmo que ouvi-lo cantando histórias. Quando ouvimos, percebemos um som carregado de sotaque e, através do desenho musical da sua forma de falar, até o ouvido menos atento é levado para o interior da Bahia. O arrastar das palavras num ambiente rural ou as palavras que se atropelam em meio a explosão de informações da cidade

Na cultura trovadora do Mestre Elomar, no canto falado dancehall do mestre Yellowman, de terras secas com os som das vozes que acompanham o aboio dos berrantes nordestinos e nos ecos que vibram meio tom e melodias árabes do deserto, descubro pistas de onde vêm as mutações das musicas que ouço hoje em dia. Em meio a choques culturais e apropriações, imagino misturas de todos os sotaques, todas as expressões sendo mastigadas pelo palavreado do futuro. Pra continuar escrevendo o que penso sobre o canto falado, eu me obrigo a escutar as conversas das pessoas ao meu lado, como se escutasse música. Agora me lembrei que, sempre que ouço um disco de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti ou Tom Zé, acabo passando o dia nesse exercício de autoconhecimento pelo simples entendimento do som que carregamos dentro de nós. Meditando no primeiro som do universo ou me perguntando pra onde vão todos esses sons quando se misturam no ar.


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Quando canto, escuto o processo de evolução desses códigos - que se afastam cada vez mais de suas matrizes. E a música tem ajudado a transcender esse entendimento sobre a comunicação. Eliminamos diferenças quando nos compreendemos nômades. Partes de um organismo maior que a música une. Me vi compositor quando percebi o ritmo nas minhas palavras. Acostumado a observar a virtuose dos versos de um repente e a sua complexidade estrutural, sempre busquei aguçar os interesses do ouvido o mote ditasse a direção do assunto, eu só descobria o conteúdo das palavras depois.

Essa foi a minha primeira experiência com as palavras cantadas. Palavras que pareciam totalmente diferentes das palavras ensinadas na escola. Essas palavras esticavam e encurtavam. Tinham segredos que não precisavam ser revelados no meio das pronúncias. Nessas palavras, os sentimentos gritavam. Hoje, mergulhando nessas palavras, remonto um quebra-cabeça. Um trava-língua. Um caleidoscópio que procura preencher o ambiente de energia, colocando lado a lado os gritos, que exorcizam como válvula de escape o profundo minuto de silêncio.

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Em “O perigo de uma única história”, uma de suas famosas palestras no TED, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie desdobra as problemáticas das narrativas que são exaustivamente repetidas, como se fossem a única e absoluta verdade sobre esse outro e sua respectiva realidade. Narrativas que, sorrateiramente, vão dando forma, textura e vida a diversos estereótipos.

de onde eu vinha. Até então, em olhar poético sobre o meu lugar”. Com o seu amadurecimento, cresceu também a vontade de amadurecer sua uma trajetória tipicamente nordestina da diáspora. Aos quinze, foi morar em Salvador para estudar música em um curso integrado ao ensino médio. De novos ares também vieram novas

Vinda de uma Bahia pouco propagada, município com pouco mais de 220 mil um retrato real e contemporâneo que rompe com os imaginários engessados sobre o sertão, a Bahia e o nordeste.

afros como o Olodum e o Ilê Aiyê, e bandas como Scambo, Lampirônicos (banda formada por Beto Barreto, do BaianaSystem) e Velotroz (antigo grupo do cantor e amigo Giovani Cidreira). Com os estudos concluídos, viajou para meses, até retornar a Salvador.

A música chegou cedo na vida da baiana, de um jeito bem tradicional: encontrando um violão esquecido no guarda-roupa do avô, aos dez anos de idade. “Sempre fui uma criança terrível, de mexer nas coisas. Peguei o violão e e para baixo brincando com ele, mas não tocava”, relembra. A brincadeira uma amiga de sua mãe se propôs a lhe ensinar a tocar o instrumento. “Ela começou a me ensinar o repertório dela, a cantar e a tocar. Fui tomando gosto e estou até hoje”, admite. Desde então, a relação com o violão com ajuda de um tio que produzia a encarar os palcos pelo interior afora. Na bagagem, um repertório de clássicos da MPB que, a cada nova cidadezinha, abria espaço para os sons de músicos e cantadores das romarias do sertão, como ela conta: “Fiquei muito encantada com o som da Matingueiros, da cidade de Petrolina, de Pablo Gabirú 19B

Na capital baiana, através de um edital de fomento à cultura, seu primeiro disco Uni Versos (2012) foi lançado. A jovem cantora teve que do silenciamento de suas ideias já na primeira experiência em estúdio: “Eu gravei muito nova. Fiquei muito refém dos caras e do produtor que queria usar aquele som, que queria impor uma bateria, mesmo que eu já tivesse noção de que não queria bateria, burocracia. É difícil colocar tudo o que você quer fazer no papel. Às vezes, a verba que você precisa é justamente para pagar o próprio processo criativo”, aponta. alcançasse novos rumos: fez shows, tocou em rádios, recebeu convites para festivais, decidiu abandonar o nome Paulo, cidade que se tornou sua terceira casa. “Eu já queria conhecer São Paulo e recebi o convite de um amigo. Ia passar

_Texto por Brenda Vidal _ Fotos por Milena Abreu/Divulgação _ Arte por Jade Teixeira

O sertão também é pop, também é digital, também é eletrônico. Na intersecção entre herança e legado, Josyara é o som do nordeste que habita o presente


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uma semana, mas acabei amigos”, revela. Há quatro anos, ela se divide metade do ano lá e outra metade em Salvador. Entre deslocamentos, crescimentos e vivências, percebida pelo olhar do outro. Seu corpo carrega as marcas dos imaginários habitados por aqueles que muitas vezes não sabem ler o mundo. Se propor a reconstruir os lugares comuns da música nordestina é o tantos outros artistas que fazem com que você atualize sua ideia sobre a tal “música regional”: “Sou do Nordeste, canto com meu sotaque e minha poesia, que é moderna. Nós sabemos nossas origens falam de ‘regionalismo’, soa como uma categoria encaixotada”, descarrega. Encarando um mercado fechado, ainda dominado por homens e que insiste em engessar sua produção, por toda a multiplicidade de vozes que carrega: das mulheres, das negras, das lésbicas, das nordestinas, das baianas e das sertanejas. Consciente das barreiras que lhe são exaustivamente impostas, conseguiu se conectar melhor com a sua identidade musical enquanto instrumentista solo. Na solitude de seu talento e de seu violão é que ela derrama suas composições

bastante pessoais: “Tudo que crio vem dos sentimentos e experiências íntimas. Um término, a imposição da família, entrar no mercado e ser seguida por um segurança, como já aconteceu em São Paulo”, expõe. Após o ótimo single “Perdição”, divulgado ano passado, os planos para 2018 são promissores. A cantora lançará seu mais novo álbum Natura Musica e promete experimentações: “Estou eletrônica, vai ter um som digital, porém tocado”, adianta. carregam a cultura nordestina. Cada movimento seu permite que o sertão, a Bahia e o nordeste habitem as regiões centrais - missão que ela divide com Giovani Cidreira, Mattos, Karina Buhr, Luê, Aíla, Lucas Estrela e tantos outros músicos nordestinos. Sem é herança em movimento, é legado em construção, é reconstrução: “O sertão também é pop, também é digital, também é eletrônico. Pode ser tudo isso”, exalta.

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Primeira impressão Texto por Filipe Cartaxo Fotos por Ariel Fagundes

Produção sem apropriação Ação sem imposição Desenvolvimento sem prepotência Lao Tsé (Século IV a.C.)

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Primeira impressão

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Há nove anos, quando pensamos em imprimir máscaras, buscávamos formas menos comerciais de comunicadominavam o mercado, mas, acompanhar o processo de produção de perto. E, pra nós, sempre foi importante o contato com o processo. A arte digital fortalece o sentimento geral das pessoas que, cada vez mais, valorizam só os objetos em si, e não a mos a fabricação das coisas, mas é justamente aí que está uma série de valores humanos atribuídos aos objeto.

Nossas máscaras são feitas troca de dados entre o computador e a impressora. Tem um cara misturando a tinta pra achar o tom certo, uma série de senhoras amarrando os elásticos e nos relatando as brincadeiras que fazem com as máscaras em meio à produção. Cada uma adotando seu personagem, colocando no rosto a com Nisso, já foram feitas cerca de 35 mil máscaras. Obrigado Seu Ricardo. Viva Senhora Conceição! A capacidade de nos vermos como iguais tem um simbo-

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lismo muito forte. É essa a imagem que se cria quando vemos centenas de pessoas “diferentes” usando a mesma máscara em um show. Acreditamos que a energia de cada um dos envolvidos no processo da sua confecção cria uma força enorme em seu simbolismo. Por isso, produzimos as máscaras no mesmo lugar até hoje. É uma relação com o tempo. Uma relação com as pessoas que atuam diretamente na sua confecção. São mãos operando máquinas, fazendo coisas, criando símbolos e conexões.


_ Texto por Filipe Cartaxo _ Fotos por Ariel Fagundes

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Primeira impressĂŁo

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_ Texto por Filipe Cartaxo _ Fotos por Ariel Fagundes

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A banda indica quatro discos essenciais para você entender o seu universo de ritmos e melodias.

Civilização e Barbárye (2006) Ramiro Musotto Segundo disco do instrumentista, compositor e arranjador argentino, radicado na Bahia, e que traz o melhor momento de seu trabalho de pesquisa com a percussão afro-baiana, programações eletrônicas e uma revolução no uso do berimbau.

Vitrola Adubada (2009) Buguinha Dub Disco autoral do produtor pernambucano Buguinha Dub, que traz toda a referência e sonoridade da música jamaicana dentro de uma linguagem brasileira. Traz músicas autorais e participação de muitos artistas que trabalharam com ele em diferentes projetos.

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Lambada das Quebradas (1978) Vieira e Seu Conjunto Primeiro disco de Mestre Vieira. Somente por esse fato, o LP é de uma importância simbólica. Mas também porque traz as primeiras, assim chamadas, “lambadas”, que era como o pessoal da época se referia às músicas com uma pegada caribenha dançante que se tocava naquele momento.

Eu Sou Negão (1987) Gerônimo Um disco fundamental no entendimento da música da Bahia que se destacou a partir da década de 1980. Gerônimo tem uma personalidade rítmica muito marcante, sempre revelando seus timbres caribenhos misturados aos tempos da batida no terreiro. É desse disco a faixa


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5 perguntas para

Roberto Mendes Seja pelas centenas de pela extensa pesquisa sobre a chula, Roberto Mendes é visto como símbolo da difusão da cultura popular do Recôncavo Baiano. Ao longo de seus 40 anos de carreira, trabalhou com diferentes

2-Como você enxerga o cenário cultural da Bahia hoje? A Bahia é muito grande e tem várias Bahias dentro dela. Sou da época em que Salvador era conhecida como cidade da Bahia. Falar da cultura, hoje, eu acho muito difícil, porque o entretenimento tomou conta da regra de sociedade, que são as heranças de costumes que geram comportamento.

gerações, com nomes que vão de BaianaSystem e Gal Costa aos seus conterrâneos Maria Bethânia e Caetano Veloso. A chula e a cultura popular, que estão no seu DNA, são os temas do nosso papo.

3-Como você percebe a diferença entre a cultura e a forma como ela se manifesta na indústria cultural? A cultura é um rio sem cais, que tem liberdade de caminhar sem a interferência burra da razão crítica. Hoje a arte, o conteúdo artístico, nada mais é do que um conteúdo que vem da forma. Por ter forma, vira produto. Por ser produto, tem prazo de validade. Isso é o contrário da cultura. A cultura é regra de comportamento. E a arte é uma exceção. Hoje você pega a internet e clica num diabo qualquer e,

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então, tem o compromisso de se assemelhar aos outros. Não! Você é uma variante única, assim como eu sou.

4-A partir da sua experiência como compositor e como professor de matemática, como se dá a relação entre a razão e a cultura? A razão quer explicação pra tudo e a cultura não quer explicar nada. Como professor eu passei a vida inteira dizendo que A só é igual à A e que a igualdade só existe pela igualdade. Isso é uma esculhambação! A igualdade só é possível na diferença. A própria matemática, patologicamente, admite que a mentira da mentira é uma verdade, embora seja uma mentira. A cultura é outra coisa. Na cultura tudo pode ser mentira e tudo pode ser verdade. Mas uma coisa é certa: ela tem o seu caminho. 5-O carnaval de Salvador é vendido para o mundo como um dos principais símbolos da Bahia. Pra quem quer conhecer a cultura Bahia na sua forma mais espontânea, o que você indicaria? A cultura de Salvador não pertence à Bahia. A cultura da capital é o entretenimento. Como é em toda capital brasileira, ela não representa o estado. Você tem que ver como a Bahia é fora do carnaval... Se você quer conhecer um povo e a sua cultura, tem que chegar nele e conhecer o cidadão comum. Quando alguém lhe convida pra ir na casa dele e marca o horário pra você ir, se prepare que é tudo uma farsa. O carnaval é isso, a Bahia se prepara para mentir descaradamente para os outros.

_Texto por Camila Oliveira_Foto por Adenor Gondin/Divulgação

músicas compostas ou

1-A chula é conhecida como o canto do Recôncavo Baiano, como ela se desenvolve e por que é tão importante? A chula do Recôncavo é o samba antes do samba. Em 1850, quando há o fechamento da baía do Benim, [um grande porto de comércio de negros escravizados], o batuque já existia aqui há 200 anos. Depois chegam as duas violas, a de machete e a de 3/4, do norte da África, trazida pelos portugueses. Desse encontro da viola com o batuque, surge uma coisa genial chamada canto violado [sinônimo de chula].




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