De Musa à Medusa

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Crimes possíveis: o olhar de Paula Rego sobre o romance de Eça de Queirós

Por mais influenciado que efetivamente tenha sido pelas teorias positivistas e deterministas e pela obra dos escritores franceses Émile Zola e Gustave Flaubert (O primo Basílio também padeceu da acusação de plágio do romance Madame Bovary), na verdade não há profundas semelhanças entre os textos franceses e os do português, para além dos motivos mais óbvios e da temática mais geral. A abordagem de Eça é completamente diferente, como ele mesmo indica. Há, nos romances franceses, um orgulho e uma reivindicação de autonomia e liberdade que não podem existir nos romances do português. Se Eça admitia que o homem era determinado pelo meio físico e social, seus personagens não podiam reagir ao ambiente extremamente negativo que ele nos oferece da sociedade portuguesa da época, da mesma maneira como os personagens dos romances franceses reagiam a uma realidade completamente diferente, considerada por Eça como ideal de Nação e exemplo a seguir. O padre Amaro da história perde os pais aos seis anos e é adotado por uma marquesa beata. Vivendo sem amor numa casa onde quase só há mulheres, o jovem desenvolve um temperamento apático e passivo. Sem poder escolher o seu destino, Amaro vai para o seminário por imposição da marquesa, que financia seus estudos como um legado após a sua morte. Esse intróito serve de justificativa para o comportamento posterior de Amaro: a ausência de vocação para o sacerdócio e o consequente drama do celibato clerical, considerado o principal alvo de discussão do romance na época do seu lançamento. Ordenado padre, Amaro segue para Leiria. Nesse meio corrompido, em que impera a hipocrisia, acaba por dar vazão à sua natureza. Assim, não hesita em trair os votos de castidade, transformando-se em amante da jovem Amélia, com quem tem um filho. O final do romance sofre alterações. Nas duas primeiras versões, Amélia morre de parto e o padre Amaro mata o filho que acaba de nascer. A descrição do ato é sórdida, e o crime premeditado e bem configurado. Já na versão de 1878-80, Eça ameniza a responsabilidade de Amaro, que se debate entre o sonho de que a criança nasça morta e as diversas possibilidades de salvá-la. Acaba por encaminhá-la à Carlota, uma “tecedeira de anjos”, ama que, como era do conhecimento geral, matava

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