De Musa à Medusa

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Crimes possíveis: o olhar de Paula Rego sobre o romance de Eça de Queirós

se possa ter certeza se o faz por convicção ou por ironia. De fato, na conclusão de seu ensaio, o crítico-narrador defende exatamente a opinião que condenara no início, considerando aqueles dois procedimentos (o de Novalis e o dos “livros parasitários”) como princípios de uma nova e revolucionária técnica de leitura: Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita não leva a percorrer a Odisséia como se fora posterior à Eneida e o livro Le jardin du centaure de Mme. Bachelier como se fora de Mme. Bachelier. Essa técnica povoa de aventura os mais plácidos livros. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais?9

O crime do padre Amaro, romance de Eça de Queirós: libelo contra o celibato clerical A história do romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, tem algo a ver com a história de Borges “Pierre Menard, autor do Quixote”, no que diz respeito à discussão sobre a autoria das obras e a sua recepção. Como Menard, Eça foi acusado de plágio. Machado deAssis condena o seu livro como uma imitação de segunda categoria do romance de Émile Zola, La faute de L’abbé Mouret, acusação a que Eça responde com ironia no prefácio da segunda versão d’O crime, ainda que as suas afirmações possam ser consideradas, como as de Menard, “não-confiáveis” em certos aspectos. Sabe-se que a primeira versão d’O crime foi publicada em fascículos, sem autorização, na Revista Ocidental, em

9. Jorge Luis Borges, ibidem.

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