De Musa à Medusa

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Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Nelas, Mariana Alcoforado revela, pela primeira vez, como realmente sentiam e, talvez, como teriam escrito aquelas mulheres que, ao longo dos séculos, sofreram em silêncio a humilhação do desprezo e a dor do abandono. Não apenas o abandono dos homens sem caráter que as largavam à própria sorte, como se denuncia desde as cantigas de amigo, mas também o de seus pais, irmãos, amigos; de toda a sociedade, enfim, que conspirou durante séculos para relegar a mulher à condição de pária social, condição que aflora à superfície do discurso de Mariana numa denúncia comovente e involuntária. O desespero daquela alma inteligente, cheia de vida, acorrentada desde a infância a um mundo sem perspectivas, sujeita a um destino cruel sem razão que a condenasse, entrega, no auge da juventude, todas as suas esperanças de libertação ao primeiro homem disponível que tem a oportunidade de conhecer. O que justifica esse amor desenfreado, ao qual a figura, a personalidade e o espírito do oficial não estavam, evidentemente, à altura de corresponder? Obviamente a revolta inconfessa e inconsciente, a luta íntima da mulher contra a sua situação, o puro e simples instinto de liberdade. É isto o que dá a força poética que todos percebem nestas cartas; na verdade, testemunhos velados da opressão feminina em Portugal e no mundo, e cujos ecos ainda hoje se erguem, poderosos: Que vai agora ser de mim? Que pensas tu que eu faça? Quão longe me vejo de quanto imaginava! Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses; que as tuas cartas fossem muito longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança de tornar a ver-te; que uma confiança absoluta na tua fidelidade me desse uma espécie de repouso, e que ficaria assim num estado bastante suportável, sem extremos de dor. Tinha até formado uns ligeiros projetos de fazer todo o esforço, de que fosse capaz, para curar-me, se pudesse saber com certeza real que me havias esquecido inteiramente. A tua ausência, alguns rebates de devoção, o temor de arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tamanhas vigílias, mortificações,

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