De Musa à Medusa

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Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Surpreendeu os franceses, primeiros leitores dessas cartas, a falta de mesura da missivista, a ausência do sentimentalismo terno e adocicado vigente nos salões, marca do charme da mulher francesa. Mariana afigurou-se-lhes exótica, bárbara, despojada de qualquer noção de galanteio e denguismo. Ama retilineamente com o coração e exige que a amem também assim. Chora, mas de cabeça erguida, e chega a reagir à frustração com ameaças de represália. Um temperamento viril, uma alma portuguesa sentimental, mas que não tolerava vilanias. Segundo Manuel Ribeiro, “se Racine, depois da novidade das Cartas Portuguesas, quis ensaiar em arte esta maneira desusada de exprimir o amor, teve que buscar uma oriental, a sultana Roxane da tragédia Bajazel, em que alguns críticos modernos pretendem ver uma réplica de Mariana”.19 As Cartas provocaram os franceses de várias maneiras. É conhecido o depoimento de Jean-Jacques Rousseau a respeito, que atesta, para além de um grande preconceito contra a mulher, o alto crédito em que o filósofo tinha as epístolas em questão, considerando-as obra que só um gênio seria capaz de criar: As mulheres em geral não prezam nenhuma arte, nenhuma as prende e não têm gênio nenhum. Podem brilhar nas pequenas obras que exigem apenas leveza de espírito, graça, às vezes até alguma filosofia e raciocínio. São capazes de adquirir ciência, erudição, cultura, e tudo o que se alcança à força de aplicação. Mas este fogo celeste que aquece e abrasa a alma, este gênio que consome e devora, esta eloqüência estuante, estes transportes sublimes que levam os seus encantos até o fundo dos corações, não os achareis jamais nos escritos das mulheres. Todos frios e bonitos como elas. Terão o espírito que quiserdes: alma é que nunca. Serão cem vezes mais razoáveis do que apaixonados. As mulheres não sabem descrever nem sentir o verdadeiro amor. Apenas a Safo que eu saiba e outra (?) mereceriam ser excetuadas. Apostaria tudo quanto há no mundo como as Cartas Portuguesas foram escritas por um homem.20

19. RIBEIRO, 1940:283. 20. Carta de Jean Jacques Rousseau a D’Alembert. Apud RIBEIRO, 1940:289.

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