De Musa à Medusa

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Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Amigas e amantes na literatura trovadoresca

N

a literatura portuguesa assiste-se ao derramamento das lágrimas de bardos e musas inspirados pela emoção. Entre os séculos XII e XV, falando em galego-português, gerações de nobres trovadores elegeram a coita, ou o sofrimento amoroso, como o estado de espírito ideal para a criação. Nada desejavam, nada aspiravam, nada exigiam além do exercício prolongado da espera desesperançada, do cultivo da sensação incompreensível e deliciosa de que eram acometidos diante da mia dona ou mia senhor, e que se transmudava nas cobras e talhos intensos, elegíacos, de cantigas torturantes e tantálicas de desejo e frustração. A tendência à sublimação do amor que atravessa a poesia trovadoresca revela-se menos como um pendor masoquista do cantor do que como o pressentido fermento alquímico da criação, traduzindo o compromisso vital do português para com o fingimento artístico, a sua ligação atávica com a fantasia acima da própria realidade. O amor do poeta medieval não se dirige absolutamente à mulher, que serve apenas como pretexto para a poesia. Deslumbrado com a sua capacidade de amar, o trovador vivencia o momento megalomaníaco da descoberta da paixão em si mesmo, e delira ante a possibilidade de expressá-la em palavras, numa obsessiva repetição do relato da sua tortura. Se a mulher que deflagra tamanhas revelações exige algo em troca, ou tem a ousadia de ceder aos apelos pungentes do cantor, é prontamente vituperada e rejeitada por quebrar a magia e o encanto do sonho irrealizável. Talvez seja este o caso da mais antiga, e talvez da mais intrigante cantiga de amor conhecida, a “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós, encontrada no Cancioneiro da Ajuda:

No mundo non me sei parelha, mentre me for como me vai, ca já moiro por vós - e ai!

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