De Musa à Medusa

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Sujos quintais com tesouros: escrita e riparografia de Clarice Lispector

Feminino e natureza-morta O gênero das artes plásticas que melhor se debruçou sobre este aspecto da realidade não por acaso foi e ainda é considerado um gênero “menor”, não obstante venha resistindo durante séculos: a natureza-morta. Objetos inanimados são representados nas artes desde a Idade Média, em geral como fundo de pinturas religiosas de cunho realista. Mas é somente em meados do século XVI que a natureza-morta emerge como gênero artístico independente, em obras de pintores que articulam os temas religiosos à vida cotidiana e às cenas de gênero. Na passagem para o século XVII, a figuração documental exigida pelas ciências naturais contribui para a valorização de uma arte que almeja representar os objetos e a natureza tais como empiricamente observados. Assim, o processo de paulatina autonomia da natureza-morta acompanha tanto a pintura naturalista quanto a pintura de gênero, exemplarmente representada pelos artistas holandeses do século XVII e seus temas domésticos, figurados com riqueza de detalhes. Os objetos frequentemente escolhidos para compor as naturezas-mortas são as mesas com alimentos e bebidas, louças, flores e frutos, todos evocando o âmbito privado e a esfera doméstica, a decoração e o convívio no interior da casa. Naturalmente, o espaço da domesticidade remete ao seu ocupante: a mulher. Por isso, o gênero natureza-morta não só foi considerado feminino em suas características intrínsecas, mas também o único “apropriado” para o exercício da pintura por mulheres. Embora comumente despovoadas e silenciosas, as naturezas-mortas às vezes não se conformam em meramente aludir o humano de forma indireta, através dos seus ornamentos e/

esteja”. Ao ampliar a percepção dos objetos e seres massificados e excessivamente próximos, Clarice os torna novamente capazes de produzir uma aparição surpreendente, chamando a atenção para a sua existência no mundo: “o valor único da obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja”. (Benjamin, 1987, p. 170).

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