De Musa à Medusa

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Phármakon: a escrita-contaminada de Clarice Lispector

Despersonalizadas, essas pobres imitações jamais conseguem sucesso, pois o que fez a fama daquelas estrelas não foi o cabelo penteado dessa maneira, nem foi o sorriso dengoso de dedinho na boca, nem foi aquele olhar cheio de convites. Os homens não gostam das mulheres em série. Se gostam daquelas estrelas é porque as acham diferentes. Vocês, imitando-as, apenas serão consideradas ridículas (LISPECTOR, 2008, p. 48).

Oculta sob um pseudônimo, a escritora Clarice Lispector deixava escapar nestas linhas, num de seus raros momentos de transparência, o seu desagrado com a tarefa a que se impôs: a de disseminar uma imagem padronizada da mulher que, mesmo quando construída sobre a figura de atrizes famosas (independentes, profissionalizadas e talentosas) continuava perseguindo o modelo da servidão ao homem: afinal, o objetivo das colunas era incentivar a imitação das “estrelas” com o fim último de agradar os parceiros das leitoras desses periódicos. Prova disso é que as atrizes não eram consideradas como mulheres livres, capazes, autônomas e muito menos como artistas. Aliás, é preciso lembrar que a profissão de “artista” para a mulher, durante muito tempo, foi vista no Brasil com grande preconceito, sendo ligada a um comportamento por demais livre, muitas vezes pejorativamente associado à prostituição. As colunas, portanto, não discutiam a mudança do papel social das mulheres que adquiriam independência financeira via o exercício de uma atividade remunerada nos palcos e nas telas, nem mesmo a questão da possibilidade de a mulher possuir outros talentos além dos talentos domésticos, como um pendor para a arte, para a cultura, para a vida pública ou política. Ao contrário, essas musas eram “despersonalizadas” pela imprensa feminina, como revela Helen Palmer, e reduzidas a estereótipos físicos a serem copiados no exercício da conquista do homem. O comentário acima revela o quanto Clarice ainda sofria a influência dos textos de Virginia Woolf evocados na sua fase “Tereza Quadros”, desejando talvez mostrar à sua leitora que a questão não era copiar o cabelo de Ingrid Bergman nem os trejeitos de Marilyn Monroe, mas descobrir como a “irmã de Shakespeare” estava conseguindo, afinal, aparecer como “Judith” no cenário internacional. Ou seja, como a mulher, no

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